sábado, 5 de outubro de 2013

                               O ESPELHO


Almas sentidas, noites perdidas, sombras bizarras…
Passa hoje, ou talvez amanhã, mais um ano sobre a morte da Amália.


Porque morreu? Sim, porque morreu. Diziam-na imortal? Pois por isso. Tinha que morrer. É imortal e morre? Pois, imortal, e por isso mesmo a ter de morrer um dia. Para se saber ao certo que era imortal. E porque nenhum artista é imortal enquanto estiver vivo. Enquanto vivo, um artista ou é novo ou é velho. Imortal nunca. Para se ser imortal como deve ser tem de haver a prova decisiva, a morte física.
Mas não é disso que quero falar.
Ouvi-a a cantar há bocado num rádio aqui da vizinhança. 
Só se é pela luz cansada de todos os outubros de Lisboa que o caso da Amália se torna actual e algum povo torna a cantar a imortalidade daquela que morreu. É sempre tempo de falar de uma eternidade. O povo cantou no funeral, o povo cantou-a ontem, o povo canta-a hoje. É o que dá a medida certa de uma eternidade.


No funeral? Sim. Lembro-me. Eram ex-salazaristas. Eram ex-comunistas. Eram actuais democratas. Eram antigos democratas. Eram até actuais comunistas. Eram eternos coisas-nenhumas. O povo – fala-se tanto dele quando não há nada de glorioso de que falar, e pouco se fala dele quando ele reassume a sua memória e canta nas ruas o seu destino.
Maravilhado e temeroso com o canto do seu destino, o povo de Lisboa comemorou-a espontaneamente nas ruas. Cantou uma artista. A artista que o tinha cantado a ele. Troca por troca, sim. O povo das ruas não podia ter feito outra coisa. Não há como o povo mesmo povo para compreender, e o povo compreendeu que desaparecendo fisicamente a Amália começávamos todos a fazer menos sentido. Como deixámos de ter quem nos cantasse o destino, interrogamo-nos ainda hoje muito justamente: será que vamos continuar a ter um destino?
Com a morte da Amália partiu-se-nos o espelho.
Será que precisamos de um espelho para o nosso espírito de nacionalidade fremente e encoberta?
De nacionalidade? Ou de universalidade?
Todo o homem, como todo o grupo, precisa de espelhos, espelhos continuamente vivos de si. Só com espelhos vivos se adestram identidades.
A identidade? Algo que é, e que, paradoxo, não se limita a ser. Não é uma estátua finita. Pode ser imagem reflectida. Pode ser movimento renovado, embora perplexo ou imponderável. Imagem que se propaga e que incessantemente se repropõe à consciência.
E ela era, sim, a Amália, a voz, a figura, o estro, o cabelo, o nariz, o hálito, um espelho de certa condição de ser; espelho de um ser colectivo que existe porque sim. Sim, mais nada. Só porque sim. É o nosso ser de portugueses, porque sim.
E partiu-se-nos esse espelho. Mau agoiro.
Um espelho é um alarme. Quantas angústias me não são acrescentadas pelo espelho que sou eu mesmo sem ser? E quantas satisfações de ser eu mesmo sem ser não me são dadas por um espelho?
Partiu-se-nos o destino. Partiu-se-nos o sonoro espelho de nós mesmos. E comprometeu-se-nos grande parte da nacionalidade – quero eu dizer: da universalidade.
Se ela gostava do Salazar não sei. Sei que o som dela foi um acto de resistência a todas as pequenas tiranias que vivemos, porque era um som transversal à consciência. Mesmo com o Salazar, ela advertia-nos do Eterno que estava em nós, logo, cantou a negação do próprio tempo contingente que construiu o Salazar, esse tempo contingente que se quis ideologia nacional.
Faço-me entender?
Já calculava que não.
Digo que o som dela era a História. O som dela era a reminiscência de uma nacionalidade espiritual a sobrepujar a miserável circunstância de um regime político ou de uma casualidade económica.
O som dela eram as cavidades e os pináculos da nossa insensata razão de ser. De ser a nossa alta civilização, de ser a nossa particular barbárie.
Agora, com esta burocracia euro-comunitária, precisávamos mais dela do que nunca.
Precisávamos-lhe do som que brotava da nossa memória e corria para o nosso esquecimento.
Precisávamos-lhe hoje – mais do que nunca, não sei -  do som que errava por claustros monacais, por renques meridionais perfumados de laranjeiras, por brancas frontarias ao sol, por palácios de grandeza envergonhada, por palmares silenciosos de escravos e por quenturas indianas, por certas vielas da nossa ruína senhorial, por todos os números cabalísticos, pela nossa nostalgia de um cheiro de mar, pelo suor e pelo sangue das nossas batalhas perdidas, pelos nossos mais altos tronos ora apeados, pelos altares da nossa velha ansiedade de não ser…
Ela era todos. Ela era a nossa altitude e a nossa atitude. Ela era o curso brutal do nosso rio subterrâneo.


Almas sentidas, noites perdidas. Mais do que isso: sombras bizarras: nós, de nós mesmos, e da nossa soberania de sonâmbulos que cantaram nas ruas a melopeia que nas ruas havia para cantar e que só ela foi sapiente para compreender.
Não era uma artista. Não era uma cantora. Não era uma fadista - a menos que o fado seja o inventário de uma fé, o relatório de um desespero. Ela éramos nós, nem que cantasse o exótico Inch’allah, ou o negro Summertime.
Ela era o espelho. Naquele espelho identificávamos o nosso sangue mesclado, o secreto nome árabe que escondemos, a sonegada negritude, os traços célticos que nos são mais íntimos, o judaísmo. Ela era toda a condição de sermos nós, almas sentidas, noites perdidas, sombras bizarras…

Não se sobrevive bem sem um espelho, caraças.

                                  

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