quinta-feira, 28 de agosto de 2014

            MY KIND OF TOWN, CHICAGO IS

                                                  





Harry Cohn, o já aqui citado homem forte da Columbia Pictures, deixara escapar Marilyn Monroe entre os dedos e viria pouco tempo depois a torcer a orelha sem deitar sangue. Porque estava a começar o tempo em que as loiras platinadas e peitudas faziam entrar dinheiro no box-office, Jayne Mainsfield, Mammie Van Doren, Diana Dors. Harry Cohn teria de inventar uma loira para fazer face à concorrência.


E inventou. Chamou-lhe Kim Novak. Kim Novak que por acaso também serviu para substituir uma Rita Hayworth a entrar na decadência.
 

Kim Novak estava a concorrer pela Columbia de Harry Cohn com as tais platinadas de outros estúdios, Jayne Mainsfield, Diana Dors, Mammie van Doren, a própria Marilyn. Concorria, digamos, mas só pelo cabelo, porque pelo peito não era concorrência de maior para as outras. Era bonita rapariga, lembro-me bem, mas também não se poderia dizer dela que fosse actriz de mão cheia. Não era grande actriz, está bem, mas conseguiu certa performance de um género sempre muito apreciado pelos mandões dos estúdios: 3.500 cartas de fans por semana. Não era grande actriz, está bem, mas Hitchcock fez dela alguém em Vertigo, não esquecer.


Porque se dizia que Kim Novak era como um vazio no écran, os espectadores podiam projectar nela as emoções que lhes apetecesse.

                                                                                            

E Kim Novak, farta até aos cabelos de Harry Cohn, começa a deitar os mirones para possíveis outros (e melhores) contratos. Harry Cohn está atento. Não gosta muito dela mas não a quer perder nem por nada.
Quando Kim Novak entra no filme O Homem do Braço de Oiro, por sinal com Sinatra, cobra 100.000 dólares a Cohn e Cohn fica rôxo de raiva quando essa soma aparece escarrapachada num número da revista Time de 1957.


É nessa época, 57, que a Novak conhece o cantor e dançarino negro feio como um corno que trabalhava em night clubs e dava pelo nome de Sammy Davis. Foram Tony Curtis e a sua mulher dessa época, Janet Leigh, quem os apresentou:
– Tenho imenso prazer em conhecê-lo… adoro tudo o que você faz - terá dito Kim Novak a Sammy Davis no momento das apresentações.


Sammy Davis… Sammy Davis…

                                                                     

No pós-guerra, Sammy apresentara-se em tournée pela América em números de cabaret com o pai e com o tio. Em 51 o trio desfez-se. O público pagava sobretudo para ver o puto Sammy sapatear e não ligava meia aos outros dois. Sammy, a solo, tem sorte no Ciro’s, de Los Angeles. É visto por gente grada do espectáculo e por alguns artistas conhecidos que o apreciam. Bogart, Bacall, Gable, por exemplo, faziam questão de o aplaudir como se ele fosse um branco. E a carreira dele arranca.
Tanto Novak como Sammy tinham muitas queixas do mundo artístico. E passaram a noite mesma em que foram apresentados a trocar lamentações. Sammy chorava-se pela carreira, que não atava nem desatava só pelo facto de ele ser negro; Kim Novak queixava-se do patrão, Harry Cohn, um brutamontes que parecia querer estrangular-lhe a carreira. Sammy Davis tinha umas poucas de coisas na vida contra ele na América democrática, racista e puritana dos anos 50. Era negro. Era ainda meio judeu. E para ajudar ainda era bissexual – fora violado e humilhado repetidas vezes pelos soldados seus camaradas durante a II Guerra, que lhe batiam, que lhe partiram o nariz, que o obrigavam a beber cerveja misturada com urina; soldados brancos, está bem de ver. Ele não tinha desgostado, alargara as suas sensações, e tornara-se bissexual. E para cúmulo dos cúmulos Sammy Davis era zarolho – num desastre de automóvel, um dos seus olhos ficara espetado no espigão do emblema da Cadillac que havia no volante… brrr!


Depois do desastre em que perde o olho Sammy recupera, continua a ter êxito no Ciro’s, apesar de se deixar magoar muito quando ouve insultos do público a chamar-lhe negro sujo. Quanto mais fortes eram os aplausos mais sonoros eram os insultos – desde a história de O Padrinho tenho estado a falar da democracia americana, não sei se repararam...
Mas estava escrito. Davis deve uns dinheiros à Mafia através do que pedia emprestado aos donos das boites onde trabalhava, todos eles mafiosos em maior ou menor grau. E trabalhava muito para ir pagando as dívidas. E contraía novas dívidas para pagar as primeiras, prática clássica que bem conhecemos do que se tem passado no formidável boom económico português…
- Podes andar com mafiosos e podes mesmo fazer-te amigo deles, como também podes distanciar-te respeitosamente deles. O que não podes é dever-lhes dinheiroconselho dado por um agente artístico a Sammy Davis.
Bem, mas tudo isto para dizer que a Kim Novak e o Sammy Davis enrolaram-se e começaram a sair juntos.

                                                                        

Davis interessava-se mesmo, sentimentalmente, sexualmente, pela Novak? Ou saía com ela por cálculo, para aparecer nas revistas e aproveitar-se da popularidade dela, que era uma estrela ascendente, loura, branca, bonita, e lhe poderia ser útil à carreira como publicidade. Sei lá eu…
Mas quem não sabe fica a saber: no mundo artístico, tudo, a certa altura, começa a ser feito ou não feito e dito ou não dito em função da carreira.


Está bem. E a Novak, estaria interessada mesmo amorosamente no negro zarolho e feio como uma noite de trovões? Ou servia-se dele para evidenciar a sua independência face ao patrão da Columbia, Harry Cohn?

                                                                                          

Sammy Davis virá um dia a dizer que o que sustentava a relação deles era o desafio.
Grande admirador de Mussolini, Harry Cohn, patrão da Columbia, era ávido, caprichoso e sem escrúpulos – segundo cronistas da época e do lugar, era ele o homem com mais condições pessoais para ser produtor de cinema. E comparando Harry Cohn com Al Capone, um jornalista da Associated Press considerava Capone uma excelente pessoa.
A Columbia parecia ir com os negócios de vento em pôpa. Parecia. Em 57 produzira 47 filmes e encaixara 10 milhões. Mas a realidade das contas não sorria aos administradores tão luminosa. A contabilidade prenunciava riscos terríveis para o ano seguinte. Uma das maiores fontes de lucro para a Columbia em 57 fora A Ponte do Rio Kwai, filme que Harry Cohn nunca quisera fazer.


E num certo jantar, alguém se chega a Harry Cohn e lhe bichana qualquer coisa ao ouvido. Cohn levanta-se, alterado sai da sala e sofre uma crise cardíaca.
Que terá acontecido de tão grave para o homem ter um ataque cardíaco?
Essa primeira crise cardíaca de Cohn também não durou muito. Duas ou três horas depois já ele estava fino, ao telefone, a comunicar ao seu assistente o que acabara de lhe chegar aos ouvidos, que Kim Novak ia para a cama com esse ciclope negro chamado Sammy Davis. E no dia seguinte nova crise cardíaca acometia Harry Cohn.
Em Janeiro de 58, o conselho de administração da Columbia encosta à parede o restabelecido Harry Cohn e intima-o a pôr fim à relação entre a loiríssima Kim Novak e o negríssimo Sammy Davis. Pôr fim à relação, sim, seja por que meios for. E antes que esse affaire caia no domínio público.


O que Cohn pensou, e disse, foi que a Mafia se encarregaria de arrancar a Sammy Davis o olho que lhe restava. O conhecido mafioso Frank Costello telefona a outro conhecido mafioso, Mickey Cohen. O patrão da Columbia tinha prestado alguns serviços à organização e agora pedia uma contrapartida. E a contrapartida seria assassinar essa imundície negra (as palavras são deles) chamada Sammy Davis – serviço contra serviço, troca de favores, tráfico de influências coisa de tipo maçónico, não sei se me faço entender...
Mas afinal o que é que tinha de mais Kim Novak ser amante de Sammy Davis – para além do picante de ser um negro com uma platinada? Tinha. Tinha porque estávamos na América de 1958 – que não era exactamente a mesma América dos nossos dias, que até já consegue eleger um presidente negro. Tinha, pois tinha...

                                                                            

A relação Kim Novak/Sammy Davis era um enlace escandaloso  para os critérios morais e raciais do público americano de então, sim, isso de se vir a saber que uma puríssima loira que era figura pública, loiríssima deusa eleita pela tribu do cinema, se deitava com um negro, ainda que fosse ele também estelar figura pública. Era mau para a popularidade da estrela loira, e era por consequência, e acima de tudo, mau para os negócios cinematográficos da Columbia, cujas finanças já não eram saudáveis.
Por outro lado, os mafiosos desconfiaram que independentemente das razões comerciais alegadas por Harry Cohn, também haveria ali ciúmes em jogo, e que Harry Cohn poderia estar apaixonado pela sua estrela.


E como Sammy Davis fazia parte do círculo maçónico chegado dos amigos de Frank Sinatra, é a ele, Sinatra, que a Mafia recorre numa primeira fase. Ele que convencesse Sammy a largar a loiraça.

                                                                  

Um dia Harry Cohn está nas corridas de cavalos de Hollywood Park e também lá está um senhor negro chamado Sammy Davis… Senior. Pai do outro, já se percebeu. E Cohn faz o sacrifício de ir ter com ele para lhe dizer claramente que tem ordens para mandar limpar o sebo ao filho. O velho fica apavorado, como seria de esperar, e corre à procura de um telefone.


Mas havia uma escapatória. E essa escapatória seria o filho casar com uma mulher negra. Eram magnânimos, eles, e davam-lhe 24 horas para o fazer.
Nesse entretanto, num dos intervalos de um show em Las Vegas em que participava com os amigos, Dean Martin e Frankie (the Rat Pack), Sammy Davis andava por ali, pelos corredores dos camarins, a fumar um cigarro, quando dois fulanos anónimos e sorridentes, malta porreira, se chegam a ele, lhe pedem lume e lhe dizem:
- Tu és zarolho, és judeu, és preto… não tens ponta por onde se te pegue… e se voltas a encontrar-te com essa loira vais continuar a ser judeu e preto, mas vais ficar zarolho total, dos dois olhos… - estavam a ir-se embora mas voltaram atrás, a rir. – Ah, é verdade não sei se sabes, mas tu vais-te casar com uma mulher negra este fim de semana… tens que te despachar e tratar de arranjar a tua futura mulher… já não faltam muitos dias para o fim de semana…


Depois desta cena há quem jure ter ouvido gritarias vindas do camarim de Sinatra e de ter ouvido Sinatra ao telefone a pedir que lhe ligassem a Fischetti, o contacto directo dele com a Mafia, o rapaz que lhe tomara conta da carreira e que o levara a Havana ao beija-mão do padrinho Lucky Luciano.
Sammy Davis estava desfeito, fora de si, sem saber o que fazer.
                                                                                      
                      

Sinatra fala a Sam Giancana. Mete uma cunha.
- Quem, esse sonso desse preto? – pergunta o capo mafia –, interessas-te por ele?
Davis também quer falar ao “doutor” – Sam Giancana fazia-se chamar de Dr. Goldberg em Las Vegas. Giancana diz a Sammy Davies que talvez o pudesse proteger em Las Vegas e em Chicago, mas que não o podia fazer em Hollywood.  

                                                                                    

- E olha, rapaz, ouve o que eu te digo, o melhor é não voltares a Los Angeles antes de fazeres as pazes com o Harry Cohn.
No camarim, Sammy dá´voltas e mais voltas à cachimónia à procura de uma saída. Passa em revista o seu carnet de contactos em busca de uma rapariga negra que não se importe de casar com ele de hoje para amanhá.
E encontra. Uma corista chamada Loray White.
Casam a 10 de Janeiro desse ano de 1958. Vem na imprensa o casamento da vedeta negra. Estava salva a pátria.


A noite de núpcias é passada no Hotel Sands de Las Vegas, suite presidencial. Noite de núpcias só porque era de noite, posto que núpcias não as houve, o casamento nunca foi consumado, foi só no papel e para consumo dos media.


Giancana telefona no outro dia:
- Pronto, rapaz, já fui informado de que o assunto se regularizou. Podes andar descansado.
O divórcio foi dois meses depois. A esposa negra recebeu 25.000 dele em cash e mais 10.000 em vestidos e sapatos.
Mais tarde, especialistas no assunto, afiançaram que a vida de Sammy Davis nunca estivera propriamente em risco. Com todos os handicaps físicos e rácicos que tivesse, a Mafia não o desprezava tanto quanto desprezava o patrão da Columbia, Harry Cohn. E não tanto pelo lindo olho de Sammy Davis. Quando mais não fosse porque a Mafia era proprietária dos night clubs  e casinos onde Sammy actuava, e dava lucro, e por isso a vida dele era mais valiosa do que a do homem da Columbia.


Kim Novak chegara a ser chamada ao gabinete de Harry Cohn. Provavelmente ameaçada. Notara que ele estava acompanhado por elementos da Mafia. Mas não me perguntem mais nada sobre a disposição da estrela quanto ao desenlace do caso porque eu não estive lá. Além do mais, Kim Novak nem fazia parte da maçonaria de Sinatra.
Sei é que Harry Cohn, tal como vinha a prometer, morre de ataque cardíaco a 27 desse mês de Janeiro de 1958, dois meses depois de ter sido informado do romance da sua estrela com um negro. E a mulher dele passará o resto da vida a acusar Kim Novak de ter sido a causadora da morte do marido.  
Na ficha de polícia, Sam Giancana passava por psicopata, mal educado, sarcástico, desequilibrado e sádico. (Porra, não lhe faltava nada!) Enquanto nos comités de avaliação do exército, na ficha dele, lá vinha o psicopata à cabeça. Mas Giancana dizia a isso que tinha feito uma fita desgraçada para se livrar da tropa.
O filho do actor Yul Brynner também botou opinião sobre Sam Giancana. Que era de tal maneira feio que dava medo olhar para ele, e que tanta feiura seria o reflexo perfeito da alma dele.
Nariz de fuínha, cabeça de gárgula, medonho: opinião de Peter Lawford acerca de Giancana. E diz mais:
- Eu não o suportava, mas Frankie idolatrava-o. Era o mais eficaz assassino da Mafia e Frank gostava de conversas sobre crimes de morte e sobre os tipos que tinham sido eliminados e como o tinham sido.


Sim, Sinatra considerava Sam Giancana como o seu mentor. Principalmente no capítulo dos negócios. Giancana não se cansava de dar conselhos a Sinatra.
O mafioso judeu Meyer Lansky é que dizia de Giancana que era o único italiano que fazia nascer dinheiro como um judeu.


E lembrem-se da conhecida canção de Sinatra My Kind of Town Chicago is. Quando a cantava, e se Giancana estava na assistência, fazia sempre um pequeno sinal cabalístico convencionado entre ambos e que significava gratidão.


A  reunião em Las Vegas de Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis, e também Peter Lawford, o clã de Sinatra, que passou à história do showbizz  como Rat Pack, foi em 1960. 
                                                     

Subiam ao palco depois do blackjack, cantavam, dançavam,  diziam piadas, faziam habilidades. Para muitos, estes espectáculos eram hinos ao álcool e boa publicidade aos bares e boites controlados pela Mafia. 


Entre starlettes, estrelas de cinema, artistas, políticos e mafiosos havia de tudo na assistência.


Peter Lawford e Pat Kennedy, sua mulher, compraram os direitos de um romance cujo tema era a vida dos casinos. E decidiram fazer dele um filme - em português Os 11 do Oceano, produzido pela Warner. George Raft também estava presente e a ideia era esvaziar os cofres de quatro ou cinco casinos de Las Vegas – isto no filme, claro. Eles faziam o show e não se deitavam para aproveitarem o tempo e começarem a filmar ao nascer do dia.

                                                                      

Angie Dickinson, a actriz, que também participava, viria a dizer que o filme pretendia transmitir a onda de optimismo que varria a América, e respectiva democracia exemplar, sob a perspectiva de um novo presidente jovem e dinâmico.



Johnny Formosa, um dos consiglieri de Giancana, tempos depois - no ponto mais alto da perseguição do procurador geral Robert Kennedy ao crime organizado – desconfia muito de Sinatra e é de parecer que o passo seguinte seja eliminar o cantor. Giancana afasta a ideia.
- Seja como for, temos que mostrar a esses idiotas de Hollywood que eles não podem andar por aí a exibir-se como se não nos conhecessem, como se nada se tivesse passado entre nós.
Dean Martin e Peter Lawford também se habilitavam a apanhar pela medida grande. E também ninguém na Mafia, tempos depois da reunião do Rat Pack, daria nada pelo outro olho de Sammy Davis.

                                                           

- Não Johnny, não concordo. Frankie não. Frankie é diferente deles todos, dos outros parasitas de Hollywood. Frankie é um tipo fixe, às direitas – replicava Giancana.
Giancana chega a dizer a alguém, um dia, que se não fosse a afeição que tinha por Sinatra há muito que o cantor estava morto.


Mas é Bobby Kennedy, que já havia jurado pela pele à Mafia, quem vai para cima de Sinatra quando ordena uma investigação rigorosa às ligações dele com o crime organizado. A investigação produz um relatório de 19 páginas.
Mr. Sinatra frequentou gangsters e vigaristas durante muito tempo. A natureza do seu trabalho é propícia a pô-lo em contacto com personalidades suspeitas. Mas por aí pouco se pode apurar de  concreto, tirando os possíveis laços de amizade ou relações de tipo financeiro como os que têm figurado nas listas do Departamento de Justiça. Fontes dignas de crédito indicam que não apenas Sinatra terá relações de negócios com os suspeitos, donde será possível concluír pela existência de uma comunidade de interesses a ligar Sinatra aos gangs de Los Angeles, do Illinois, de Indiana, de New Jersey, da F lorida e do Nevada.
E ficamos assim, por agora, quanto a Sinatra e respectivos amigos. Mas não sei se um destes dias não diga alguma coisa a respeito de uma família não menos mafiosa do que estas que por aqui tenho feito desfilar. Mafiosa família, não italiana, irlandesa, e muito respeitada – os Kennedy, é evidente, a família real americana. Andava tudo ligado. 




1 comentário:

  1. Instituição tenebrosa e intemporal, a máfia...belos rapazes "tudo bons rapazes, não haja dúvida...

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