OS CARVOEIROS
Estás
disposto a pegar numa carabina, revólver, punhal ou bomba e esperar onde quer
que seja o tirano do povo para nele executares justiça sumária?
Desejo comunicar com a invisível Carbonária.
Entra, e não te assustes.
Primo
Presidente, ser-me-á permitido falar com os homens que tudo sabem e que tudo
vêem? Acompanha-me um amigo que
deseja ser iniciado.
E como pôde esse
homem pensar em ser iniciado nos segredos da Carbonária?
Presidente, este
homem é da minha confiança.
Vários tipos de fraseologia de iniciação na
Carbonária. Mas os pormenores de encenação também são significativos, e
simbólicos. A mesa da presidência forrada a negro; o triângulo invertido; as
velas acesas; o machado. Assim dentro de casa. Podia ser ao ar livre, na
floresta, na sombra de uma árvore, de onde pendiam os símbolos carbonários e
maçónicos.
Dois tostões de jóia pagos ao proponente. Uma
fotografia do neófito, junto com os dados biográficos. Olhos vendados. Uma sala
às escuras. Cuidado, meus primos, que
todas as precauções sejam tomadas. O cano de um revólver encostado ao
ouvido do candidato. No cano de revólver
que sentes no teu ouvido está a garantia de que nada poderás contra nós. Nunca
penses em nos atraiçoar.
O candidato era algemado. O grilhão que te aperta os pulsos significa que é um escravo dos
inimigos do povo todo aquele que não pertence à Carbonária. E o candidato
era inquirido. Sobre o seu passado. Sobre as associações a que pertencia. Sobre
a religião – a que não poderia responder afirmativamente sob pena de ser
imediatamente expulso. Sobre o seu grau de instrução. Sobre as ideias que tinha
a respeito da regeneração nacional. Ninguém
te sugestiona para entrares nesta organização? Vens livre e espontaneamente,
sem coacção?
Os deveres: proteger os sócios que precisassem de
auxílio; obedecer às ordens dos corpos superiores; ter a força de guardar um
segredo; informar a associação de tudo o que possa interessar; ser tanto ou
mais dedicado à associação como à pessoa que mais estima. Conformas-te?
Quem presidia à sessão podia vestir um balandrau e pôr
um capuz com orifícios na boca, nos olhos, no nariz e nas orelhas. Era
assistido por bons primos, dois secretários, dois vogais, chamados pelos nomes
de árvores, primo choupo, primo carvalho, primo olmo, havia um de vigia que
tomava conta do local e avisava se algo nas redondezas acontecesse de suspeito.
Era proibido pertencer a qualquer outra organização
política de tipo secreto, exceptuando, obviamente a maçonaria. Era proibido
mencionar nomes de outros consócios, bem como as casas onde se reuniam ou os
mistérios da iniciação. Era proibido transmitir as palavras de ordem. Nem aos
próprios filiados era permitido referir o que se passava na organização, assim
como era proibido dar-se a conhecer como carbonário até a outro membro da
Carbonária.
Dedicação. Segredo. Obediência. Em que incorre o que não cumprir o perceituado? Será perseguido. E o que não obedecer? Será punido. E insistes em pertencer á organização? Pensa
bem. Ainda estás a tempo de desistir. O candidato diz que sim. Tiram-lhe as
algemas. Era-lhe recomendado que apagasse da memória a casa onde estava e o
timbre das vozes que ouvira.
O que é que
mais desejas? A consolidação da
república. Qual o ideal que nos une?
O ideal da Carbonária que está acima de todos os ideais. Qual é o ideal da Carbonária? O bem estar do povo. Onde trabalha a Carbonária? Em toda a
parte. Que voz ressoa na floresta contra
os traidores? A voz lúgubre da justiça. Porque
a Carbonária está em toda a parte, faço votos para que nunca no teu espírito se
acoite a ideia de nos atraiçoar. Faça-se luz. Em cima da mesa podia haver
uma folha de papel atravessada por um punhal.
Podiam perguntar ao candidato se se sentia com força
para verter o seu sangue pela república, ou em plena revolução, e se seria ou
não capaz de recuar no caso de uma sentença de morte lhe ser incumbida, claro
está que para bem da sociedade ou fazendo parte do castigo de um traidor. Está
visto que o candidato já sabia ao que ia e dizia a tudo que sim, e jurava tudo,
incluindo a sentença da sua própria morte, se por um desvario, uma
desobediência ou uma traição a viesse a merecer.
Assim que, por este ritual, ao candidato fosse
arrancada a venda dos olhos, o espectáculo para ele seria terrificante, pois
sentiria encostados ao peito os bicos de vários punhais de duplo gume,
apontadas para si várias pistolas e pendente sobre a cabeça um machado de
lenhador. Se faltares ao teu juramento,
serás morto sem remissão.
Rocha Martins opinou que o ritual podia ser grotesco,
todavia muito necessário, como ele diz, como
medida de precaução para ferir as imaginações.
Fala do mestre sublime Luz de Almeida, transcrita pelo
Prof. António Ventura no seu livro A
Carbonária em Portugal, a que devo boa parte deste texto: no lôbrego subterrâneo de uma loja de
trapeiro, na Rua da Cruz dos Poiais, pertencente a um Bom Primo que era
conhecido como o trapeiro de Paris,
fizeram-se sensacionais iniciações de rachadores e de mestres. O candidato numa
dessas iniciações era dono de uma carvoaria e fanático admirador dos panfletos
de João Chagas. A iniciação foi rapidíssima e aquele Bom Primo e mestre viu-se
obrigado a embarcar para a Califórnia e completar a sua choça com enfarruscados
carvoeiros de verdade.
Pois algumas iniciações, como se viu, decorriam mesmo
em carvoarias. Uma mesa enegrecida para o presidente. Montes de carvão pelos
cantos. Uma lanterna pendente do tecto. Molhos de carqueja encostados às
paredes. Um cepo nodoso com um machado enterrado. Nalguns destes casos não eram
precisas máscaras nem balandraus. Bastavam as camisolas cobertas de pó de
carvão, com o qual os circunstantes também enegreciam as caras ficando assim
irreconhecíveis.
José Nunes, um dos nomes que mais ressaltam quando se
fala de movimentos clandestinos da sazão ardente de 1907/1908, conta que dentro do cemitério dos Prazeres, um dos
iniciados, torneiro no Arsenal da marinha, foi vendado e e em seguida
precipitado na vala comum, ao mesmo tempo que lhe ordenavam que se desvendasse.
E teve esta frase lapidar dirigindo-se aos cadáveres pelos quais trepou até ao
nível do solo: ainda não é desta que vocês cá me apanham.
A um outro, conta ainda José Nunes, fizeram estar
horas vendado e sentado à porta de um jazigo nos Prazeres. Como não ouvisse vivalma, aborrecido, desvendou-se, olhou em volta, e
com um sangue frio admirável, sossegadamente, procurou a saída.
Machado Santos, o herói da república e um dos
sumo-sacerdotes da Alta Venda carbonária – em 1921 vilmente assassinado na rua
por esquadrões da morte -, deixou escrito o acto da sua própria iniciação.
Uma noite,
Luz de Almeida conduz-me à Rua do Benformoso, depois de me obrigar a dar várias
voltas, conseguindo eu perceber que pelo caminho trocava sinais com vários
indivíduos estrategicamente postados.
Depois de me
demorar uma meia hora numa casa de espera, conduz-me vendado, à sala onde se ia
proceder á minha iniciação; e aí se consumou o acto, parece que a contento de
todos os mascarados. Ia quase protestando à entrada, quando me chamaram pagão,
não porque me sentisse em estado de graça para com a santa madre igreja
católica, mas porque era tão irritante o tom da voz que estive quase para
responder – pagão será você!
Feito o juramento, não se pense que os mestres e
chefes aceitavam assim, sem mais nem ontem, o candidato. Teria de prestar
provas várias. De dedicação,de coragem, de solidariedade e de segredo. Também
não lhe confiavam os segredos mais relevantes. Era o qe faltava. Nem lhe era
permitido assistir às sessões onde matéria mais delicada se tratasse.
Um certo juíz, já aqui anteriormente falado, o
conhecido Veiga, chegara a dizer que só havia atentados anarquistas em Lisboa quando João Franco
estava no poder.
Porque foi com a chegada de João Franco ao poder, e
sequente instauração da ditadura, que a Carbonária assumiu maior militância e
se tornou uma força temível e extremamente activa de resistência, aumentando o
número de iniciados por todo o país e fundando choças onde era possível. Numa
choça de Évora chegou a estar planeado o rapto da família real quando estivesse
em Vila Viçosa.
Mas também parece evidente que os acontecimentos
revolucionários falhados, as explosões acidentais, as expectativas de revolução
republicana e as prisões que foram consequência de tudo isto, alguma coisa
enfraqueceram a Carbonária, pondo a polícia em estado de alerta máximo quanto a
conspirações secretas. Em todo o caso, não foi, nem nada que se parecesse,
suficiente para anular a operacionalidade da organização.
Nas contas da polícia, o número de carbonários activos
em começos do sec XX andaria pelos 8 mil, 10 mil. Mas pelo testemunho de Luz de
Almeida haveria pelos anos de 1907/1908 34.000 filiados, subindo aos 40.000 até
ao limiar da república. Acho muito, mas enfim, catar documentos de uma
sociedade secreta deve ser missão impossível para um historiador.
Fidalgos e
burgueses, juntando-se ao povo, não pregavam sua liberdade económica. Iam, como
José Relvas e Anselmo Braancamp Freire, guardando a integridade de suas
fortunas pingues – prosa do celebrado
Rocha Martins. As bombas iam-se fabricando em larga escala nos antros lisboetas
da clandestinidade.
Na verdade, os anarquistas actuavam em ligação com
alguns elementos monárquicos dissidentes, José de Alpoim entre eles, os quais
também teriam alguma coisa a ver com republicanos mais radicais. E havia boa
gente de dinheiro a financiar a fabricação e a aquisição das bombas e de outro
material de guerra.
Se os maçons eram os pedreiros, ditos livres, os
carbonários seriam os carvoeiros, certamente não menos livres. Viviam, pensavam
e conspiravam associados, sendo embora os carvoeiros, como braço armado dos
pedreiros, os mais secretos.
A ligação umbilical, pode dizer-se, entre Carbonária e
Maçonaria, é fora de dúvidas. A Carbonária funcionaria como um braço executor,
operacional, armado, dos superiores desígnios maçõnicos, com especial destaque
para a Loja Montanha - nas palavras de Aquilino a milícia secreta da república.
A Carbonária teria a seu cargo os golpes duros,
executados por militantes cujas actividades e nomes não soavam muito nos meios
sociais e políticos. E acredita-se com facilidade nas fileiras carbonárias de
homens com profissões liberais ou oficiais do exército e da marinha, mas o caso
é que, associados às acções violentas e ao fabrico de explosivos, e por isso presos,
segundo o livro do Prof. António Ventura, as profissões são banais, são
humildes até, caldeireiros, ferro-velhos, carpinteiros, canalizadores,
sapateiros, tanoeiros, droguistas, calceteiros, taberneiros, cortadores, um
guarda-portão, um bordador…
E quanto a hierarquias militares, o mais que se
encontra são sargentos. Raramente um oficial subalterno, e mais raramente ainda
um oficial superior. Está bem que na Carbonaria fossem aceites homens de todas
as classes sociais e profissões, mas para as acções arriscadas vê-se bem quem
avançava.
Cada canteiro englobava cinco chamados rachadores. A
choça compunha-se de quatro canteiros, e havia um mestre de choça. E cinco
choças davam uma barraca; e cinco barracas constituíam ma venda, A Carbonária
designada como Jovem Portugal tinha os graus de rachador, aspirante, mestre e
mestre sublime. A Alta Venda, já se disse, era o estado-maior da Carbonária,
composto por cinco mestres.
Os carbonários chamavam-se entre si de primos - irmãos eram os maçons. Só se
conheciam entre si até ao número de cinco – mas os chefes conheciam todos.
Tratavam-se por tu nas sessões. Trocavam sinais próprios e palavras de passe.
Carbonário podia ser qualquer um, evidentemente que depois de proposto e
iniciado. Havia um ramo militar que podia incluir de oficiais superiores a
soldados rasos.
Organização secreta, iniciática, ritualista,
naturalmente que primava pelas simbologias. Uma estrela de cinco pontas
representava a figura de pé de um Bom Primo, pernas afastadas, braços abertos,
cabeça erecta. O que significava: pronto
para a luta contra as tiranias.
Claro que vem tudo do italiano, carbone, que é carvão;
carbonaria que é carvoaria; e visto que foi em Itália que o movimento foi
criado como maçonaria florestal.
Os primeiros lugares de reunião dos maçons florestais
italianos era no meio dos bosques, nas choças dos carvoeiros – os que rachavam
a lenha.
Outras simbologias revertem à tradição: as barracas,
as vendas de carvão, o cepo, a lenha, a raíz, o ramo, a corda de nós,o carvão,
o machado, o punhal, as cadeias de ferro, as estrelas, o sol.
E
muitos dos nomes que aparecem quando se fala de acontecimentos portugueses do
final da monarquia só nos sugerem nomes de ruas de Lisboa, o almirante Reis, o
Feio Terenas, o Brancaamp Freire, o Azedo Gneco, o Heliodoro Salgado.
Pois tomemos o Heliodoro Salgado. Foi um dos grandes
ideólogos da Carbonária. Terá sido ele o criador da loja dos Obreiros do
Futuro, por voltas de 1899. Heliodoro Salgado esteve sempre em contacto com os
seus primos italianos, napolitanos, dos quais bebeu os ensinamentos organizativos,
segundo os quais fundaria a sua loja. Os rituais eram copiados dos dos célebres
revolucionários italianos Mazzini e Garibaldi.
Começara por não iniciar quem na sua biografia não
denotasse rigorosos princípios anarquistas, só mais tarde aceitando todos os
credos políticos, menos os monárquicos
Com disposições revolucionários mais objectivas, a
Carbonária (agora chamada Carbonária Portuguesa, e síntese de outras
organizações cabonárias pré-existentes) recebe novos alentos nos fins do sec.
XIX, por influência de Luz de Almeida.
Luz de Almeida, o grande animador da ideia
carbonária era venerável da loja Montanha do Grande Oriente Lusitano Unido; era
bibliotecário; era magro, baixo e pálido; era metido consigo e songamonga;
vestia sempre de preto e usava uma lavalliére. Morreu em 1939.
Pelos anos de 1907/1908, a Carbonária vai ter um papel
absolutamente decisivo no desenvolver da sazão ardente do fim da monarquia, até
à chegada da república. Cãndido dos Reis (o almirante Reis da avenida), Machado
Santos e António Maria da Silva virão a ser alguns dos seus chefes supremos.
No dia 6 de Agosto de 1907, ás 9 da manhã, no nº 17 da
Rua de Sto. António à Estrela dá-se uma violenta explosão.
Fora um acidente. Os homens que fabricavam bombas
teriam errado nalguma coisa e as bombas rebentaram-lhes nas mãos. Um estava
maneta; outro estava com as tripas de fora; outro estava zarolho; outro ficava
com o peito rebentado. Todavia, vivos. Em estado lastimoso, mas vivos. Um ainda
fugiu e foi preso. O rei estava a águas. Atribuía o desastre aos anarquistas
cujos atentados estavam então muito em moda na Europa.
Estreitamente implicada dos rebentamentos estava a
Loja Obreiros do Futuro, onde a maioria dos congregados eram operários.
Avisados da explosão,alguns primos dessa loja – os mais famosos a dar pelos
nomes de António Alcochetano e Carlos Antunes – correram de madrugada à sede e
fizeram desaparecer material explosivo que chegava para carregar 1.500 bombas.
Mas não tardaria muito que pelas prisões feitas e pela fuga de alguns membros,
a loja Obreiros do Futuro desaparecesse do mapa da insurreição lisboeta.
E foi com o restante pessoal clandestino dos Obreiros
do Futuro que se congregou a chamada Carbonária Portuguesa, organizada por Luz
de Almeida.
Mas o povo das províncias aclamava el-rei por onde
quer que ele andasse. El-rei não dava mostras de temer pela vida, não obstante
o exemplo que tinha na família: Umberto I de Itália, seu tio, morto num
atentado sete anos antes. Os rebentamentos da Estrela eram considerados pelo
rei obra de marginais e sem relevãncia para o curso da política.
Meu querido
João, quanto aos anarquistas, não me admira que neste momento alguns apareçam,
mas é para isso que cá estamos e por certo nem a ti nem a mim será o medo que
nos fará mudar de caminho.
E não mudaram mesmo de caminho. Ao entrar o ano de
1908, dá-se a frustrada revolução do 28 de Janeiro em que os principais
cabecilhas são ridiculamente apanhados por um polícia de giro num elevador. Os Náufragos do Elevador, chamei-lhes
eu.
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