MORAL NACIONAL E DEPENDÊNCIA INFANTIL
Será que o indesmentível pendor narcísico-exibicionista compulsivo
do nosso presidente da República pode configurar alguma distorção psico-patológica?
A ser assim, como homem superiormente inteligente que é, o nosso presidente já
há muito se deve ter apercebido desse transtorno. Será que já andou (anda)
nalgum psicoterapeuta? Ou, optimista empedernido, está feliz e contente com
essa sua compulsão narciso-exibicionista e a vê como mais valia admirável posta
ao serviço do sempre depauperado moral nacional?
O moral nacional?
Pois regressei ao livro de que falei no post anterior. Estudos
Psicanalíticos da Personalidade, do Prof. Fairbairn.
Porque razão haverá soldados que vacilam e se vão abaixo por
completo se metidos em situações de perigo e outros não? Será que o sangue frio
e a coragem de enfrentar e aguentar os momentos perigosos é variável com o grau
de ultrapassagem que um militar conseguiu da sua fase de dependência infantil?
Há, sempre houve, e talvez ainda haja, apesar de tantas
mudanças tecnológicas, três tipos de militar: o que gosta da tropa – e
eventualmente da guerra – e mais de todas as coisas desagradáveis, incómodas ou
perigosas que lhe vão a ela, tropa, por inerência; o que não gosta da tropa mas
que, pronto, vá lá, o que é que se há-de fazer?, ainda pode aguentar; e o que
tropa nem vê-la nem tolerá-la seja como for, nem com com molho de tomate.
Aquele que, não gostando propriamente da vida militar, ainda
a pode tolerar é talvez o tipo mais comum – reparo agora no meu caso pessoal e
percebo que foi nesse número que me inscrevi na minha época militar. Também fui
o tipo que não gosta de fardas nem de brutezas, mas que, compelido e sem muita alternativa
a juntar-me às fileiras em tempo de guerra colonial, é menino para suportar o
embrechado, inclusivé em estados de guerra, aquele fulano que com jeitinho e
algum êxito conseguiu vencer a inibição de um estádio de dependência infantil
na sua vida.
O que não gosta da tropa e que nem por um decreto lhe passa
pela cabeça aturar os mil sacrifícios precisos para minimamente a suportar e
tem suores frios logo que pensa em fardas, casernas, botas, galões, cheiros
corporais, disciplinas, superiores, continências, sacrifícios, marchas, armas,
perigo… ah, esse poderá considerar-se do tipo neurótico que no seu
desenvolvimento emocional estacionou num certo ponto e psicologicamente ainda
não se libertou dos aconchegos da infância.
E depois há os que gostam da tropa, inclusive da guerra, os
que se pode dizer que amam mesmo os estados de guerra – e conheci de perto uns
quantos, entre profissionais e milicianos, oficiais de carreira e soldados
rasos. Nesses, seriam de contar uma boa porção de heróis psicopatas sem tirar
nem pôr. Foram esses que terminantemente recusaram a sua dependência infantil;
ou os que, pelo menos no palco da sua vida, representaram melhor a recusa da
dependência infantil, ao ponto de conseguirem apagar da estrutura das suas
personalidades a sensibilidade, a simpatia humana, a compaixão. Ou mesmo o medo, não sei.
Soldado que gosta da guerra? Enfim, lá porque gosta dela não
quer dizer que esse soldado tenha toda a estaleca para a suportar. Recusou as
mariquices da dependência infantil, está muito bem, mas em alguns casos essa
recusa não passou de uma pseudo-recusa, e no acto de demonstrar cabalmente ao
mundo que não é um mariquinhas nem um sentimental reage aos estímulos da guerra
com exagero, mata e esfola que se farta, e por vezes até ao ponto de se deixar
caír sob a alçada disciplinar. E cá para mim será mesmo no número desses que
haveremos de encontrar alguns criminosos de guerra.
Identificação. O indivíduo pode identificar-se emocionalmente
de modo muito profundo com aqueles de quem depende. Identificação que remete para
o estado psicológico da dependência infantil, já se vê.
O processo de identificação às relações emocionais da
infância poderá representar a continuidade na vida extra-uterina de uma atitude
emocional existente ainda antes do nascimento. Poderá representar uma tentativa
de recuperação de um estado primordial de segurança e estabilidade, estado esse
violentamente interrompido pela dolorosa experiência de nascer.
Nascimento. O nosso nascimento é uma primeira experiência de
alta ansiedade. É também a nossa primeira experiência de separação.
No nascimento deve estar o núcleo inaugural de todo o
sentimento de ansiedade de separação que a vida nos proporciona. O que não quer
dizer que haja em nós lembranças conscientes do traumatismo que foi para nós o
nascer. Será uma experiência a um nível mental muito profundo, reactivável sob
certas condições de vida e de circunstância, e verificável nalguns fenómenos
psicopatológicos.
O sonho de caminhar por uma passagem subterrânea que vai
ficando estreitinha, estreitinha, até que o sonhador, incapaz de se mexer,
acorda em estado agudo de ansiedade. O sonho de cair de um andar alto, que
dizem normal nos soldados vítimas de neurose de guerra. Experiências
traumáticas que remontam ao traumatismo primeiro de ter nascido. Dizem os
sábios.
Na identificação com aqueles de quem dependemos, a figura
primeira, original e indiscutível, é, sem dúvida, a mãe. O pai vem depois. E
venham as figuras que vierem subsequentemente na nossa vida, a identificação
original persiste e sobreleva todas as identificações posteriores. Mas quanto
mais maduros nos vamos tornando menos o fenómeno da identificação se manifesta
em nós.
Todo o ser incapaz de ultrapassar o estádio da dependência
infantil sentirá muito altas dificuldades em estabelecer relações com os outros
numa base de independência mútua. E até talvez, pela vida adiante, tenha
dificuldade em estabelecer novas relações.
O dependente infantil, se assim lhe posso chamar - e que
muitos de nós, todos nós, somos em grau variável – sente-se como parte dos
seres identificados, figuras parentais ou não; e sente por consequência que
esses seres são parte de si próprio. Na ausência deles, o dependente infantil
tende a afrouxar a evidência do seu próprio ser e personalidade, omite-se nos
contactos com o mundo, está incompleto, a sua inteireza de personalidade fica
diminuída.
Em caso de um militar é patente a dificuldade de obter bases
psicológicas de identificação e relações normais com o grupo, com a consequente
recusa do espírito de corpo, fundamental à instituição e ao serviço militares. O
dependente infantil, ou o militar paciente de neurose de guerra será sempre um
diferenciado relativamente ao seu pelotão, à sua companhia. A sua identificação
primeira com a casa e com as figuras parentais não suporta facilmente
competidores.
Mas soldados há que conseguem surpreendentes identificações
com o seu corpo de exército. E essa identificação é tão forte que eles se
tornam extremamente activos e competentes. Estão absorvidos pela instituição. Exibem exageradamente o seu zelo. Querem ir a todas. Estão hiper disponíveis
para o serviço. Querem estar na primeira linha de qualquer missão. São
altamente disciplinados e intolerantes na relação com os outros e não encaram
bem tudo o que no serviço seja rotina. Sonham com aventura, risco.
Isto é
identificação total com o grupo. E esses esperam ver premiados a sua dedicação,
competência e arrojo. E impacientam-se muito se tal não acontece com a presteza
que entendem adequada. E se o reconhecimento e o prémio do seu mérito não lhes
chegam no tempo justo sentem-se rejeitados pelo grupo, rejeitados afinal na sua
desesperada tentativa de identificação e de independentização das tutelas
mentais da casa e da família. É um problema levado dos diabos…
Sente-se
a rejeição evidentemente como uma recusa de aceitação por parte do grupo e de
tudo o que esses soldados exemplares deram de si ao grupo, e, nessas condições,
eis que começam também eles a desenvolver uma ansiedade de separação, e
separação justamente daquilo a que se sentem mais chegados na sua actual fase
de corte com o estádio de dependência infantil.
Não acontecerá também assim na nossa vida civil e burguesa,
no nosso clube, no nosso partido, no
nosso trabalho, na nossa empresa?
Oh, sim, na empresa!
O inevitável Freud entra em acção. Já cá faltava.
Psicologia
Colectiva e Análise do Eu – obra
de 1921 que não recebe, à época, a atenção devida das autoridades médicas.
Freud pôe a tónica na quebra exactamente do esprit de corps - espírito de corpo:
essencial nas relações militares.
Dizem
que há um estado de pânico associado à derrota iminente de um exército em
campanha. Nas ânsias de uma derrota militar instala-se o espírito do “cada um
por si e os outros que se lixem”. O espírito de corpo desintegra-se. Mas Freud
interpretou inversamente. É quando o espírito de corpo falece que o pânico
individual e a situação do cada um por si acontecem, e não o contrário, como
era vulgar pensar-se. Ao sentirem a quebra do espírito de corpo, os indivíduos
experimentam uma espécie de orfandade, deixaram de ser membros do grupo, estão
a perder as referências identificativas. É o isolamento do Homem. É o pânico
nas almas. E pode não acontecer só nos estados de guerra ou nas instituições
militares, acho eu.
No soldado neurótico dá-se uma ansiedade de separação até
quando os laços que unem o grupo estão intactos e fortes, porque esses laços
entre o soldado neurótico e o grupo são precários. O soldado neurótico consumou
um grau alto de dependência infantil e tão identificado se manteve com os seus objectos
originais de amor no grupo familiar que nunca foi muito competente a contraír
relações emocionais com a instituição militar.
E é nesta complicada relação de forças anímicas e psíquicas
que assenta o moral. O moral das tropas, como o moral dos grupos de trabalho,
ou até o moral de uma nação – em favor do qual o nosso presidente tenta
capitalizar o seu exibicionismo televisivo.
A maturidade emocional parece que nunca é um absoluto. É uma
questão de grau. A dependência infantil nunca está completamente ausente da
nossa vida. O que é é que varia de pessoa para pessoa, e no nível de tensão sem
experiência de ansiedade que cada pessoa pode suportar em condições de
separação dos entes queridos. E, avaliado em si mesmo, todo o grau de
dependência infantil do indivíduo pode ser nocivo ao moral. O das tropas. O das
empresas. O das nações.
A existência de uma elevada motivação, ou seja, de um alto
grau de moral num grupo, pode, por outro lado, neutralizar os efeitos da
dependência infantil entre os membros desse grupo.
A incidência das neuroses de guerra era um critério aferidor
do moral das tropas. E se transpusermos a questão para a nossa vida quotidiana
de país – e nem será preciso forçar muito os raciocínios – verificaremos o
nosso moral nacional na razão da corrida às consultas de neuro-psiquiatria nos
nossos hospitais públicos e às crescentes necessidades de acompanhamento
psicológico dos nossos cidadãos.
E quando uma nação conta com um exército de civis recrutados,
o moral desse exército é inseparável do estado do moral de um país – quem viveu
em idade adulta no Portugal de 1962 a 1974 pode tirar as parecenças.
A falta de espírito público e a hipotética baixa do moral
nacional podem traduzir-se na relutância do indivíduo em sacrificar-se pelo
interesse do grupo a que pertence, pelo grupo nacional que é a sua pátria,
decorrendo daí as atitudes burguesas, o privilégio dos interesses
exclusivamente pessoais, familiares ou corporativos sobre as exigências do bem
comum.
Aliás, percebe-se uma decadência do moral nacional que pode
ser acompanhada de um regressivo ressurgimento da dependência infantil da
comunidade – e veja-se, de caminho e com atenção, o grau de infantilização que
nos é proposto pelas televisões, o grau de infantilização a que o obsessivo
consumo de televisão nos faz regredir noite após noite. E perante isto
perceba-se a que nível de mobilização de vontades e de esforço geral nacional
pode um governo, qualquer governo, aspirar. E é para acudir a tal que em
registo de auto-propaganda tenta o nosso presidente lançar mão da sua compulsão
exibicionista e narciso-televisiva.
Porque o culto do moral nacional é sempre um factor decisivo
a usar pelos estados totalitários. Rússia, Itália, Alemanha, por exemplo, antes
do eclodir da II Guerra – antes e durante, claro -, um moral nacional que lhes
permitiu prosseguir uma guerra devastadora.
O caudilhismo. Veja-se o tom
exaltado e patriótico do franquismo na sua guerra civil. Ou mesmo do
salazarismo – que nem precisou do narciso-exibicionismo que o provinciano presidente
do conselho nem tinha.
Honra, Dever, Serviço, Sacrifício: uma divisa chegava,
se bem me lembro, a dos tempos da velha Mocidade Portuguesa, a que muitos,
ainda assim, se devotaram com toda a convicção.
Sob regimes totalitários cultiva-se objectivamente no
espírito de cidadania um princípio de dependência do Estado. Dependência do
Estado que pode funcionar como substituição da tal dependência infantil dos
objectos familiares mais amados. Ou seja, pode explorar-se a natural
dependência infantil presente no indivíduo a favor dos interesses do grupo
nacional e em prol do moral da comunidade. E se ocorrerem êxitos
político-militares estão todos de cavalinho e tudo é ouro sobre azul – como
seria hoje ver a massa dos turistas ingleses esfalfados a correr para o
Algarve. O êxito faz disparar sentimentos de plenitude, graça, contentamento,
segurança pessoal e colectiva. O pior é se, e quando, em vez do êxito acontece
o fracasso e os turistas ingleses não há meio de aparecerem - afinal, parece que estão a começar a aparecer.
Em caso de fracasso nacional, na política e/ou na guerra, o
que dá é um forte sentimento de desilusão quanto à capacidade do Estado e dos
dirigentes nacionais, o que levará fatalmente a uma inflexão dos impulsos
originais de dependência infantil do indivíduo, do cidadão, que os transfere do
Estado e do interesse nacional para os originais objectos familiares, em face
da ocorrência de agudos sintomas de ansiedade de separação e de fragorosa
derrocada do moral nacional. Isto em regimes totalitários.
Ou talvez não só em regimes totalitários se atendermos aos
50% de abstenção a cada acto eleitoral na nossa democracia – e noutras…
Mas também é verdade que nas democracias o indivíduo está
menos dependente do Estado. Em democracia, o cidadão experimentará em toda a
liberdade de consciência os sentimentos primordiais da dependência infantil e
de apego aos objectos do seu amor familiar, a par com uma necessidade e uma
oportunidade melhoradas de segurança pessoal.
Em democracia, o que pode acontecer é uma tendência
individualística para se ser complacente à vista dos resultados objectivos da performance do grupo, seja, do país. O
que pode constituir, a prazo, uma realidade negativa, porque cultivada à sombra
das aparências de um moral nacional psicologicamente falseado.
A ansiedade de separação pode caracterizar-se por um
decréscimo do sentido do dever, o que significa a desintegração da estrutura
mental de uma consciência libertada da autoridade do Super Eu, na regressão ao
estádio infantil de desenvolvimento individual em que a estrutura da consciência
ainda não se organizou em estabilidade. Nesse caso, o indivíduo, regredindo ao
estado emocional da criança, ainda dificilmente aceitará os pais como figuras
autoritárias da sua consciência e não se preocupará muito se o seu
comportamento é moralmente bom ou mau à vista dos pais. Estará então muito mais
interessado em saber se os pais o amam ou não, se os pais lhe aparecem como
boas ou más figuras a interiorizar.
Remata o Dr. Fairbairn com a sua convicção de que, do ponto
de vista militar como do ponto de vista nacional, os problemas postos por
aquilo a que se chama de neurose não são temas da área da psicoterapia.
Diz ele que são mais questões de moral.