AS SOMBRAS QUE NOS GOVERNAM
No dia 20 de Maio
de 1981 a
notícia saiu nos telejornais italianos: o conselho de ministros resolvera
tornar pública a lista de membros da Loja P2 – Propaganda 2 – sociedade secreta
dirigida pelo Venerável Mestre Licio Gelli. Toda a Itália treme.
Há tempos que se
falava naquela misteriosa loja sem contudo ser possível atribuir-lhe um nome e
um rosto. A Itália tremia à evidência de um governo fantasma, de um poder
paralelo e subterrâneo que se apoderara das principais alavancas do Estado. Da
lista de nomes constam 4 ministros, 44 parlamentares, todos os chefes dos
serviços secretos,o comandante da Guardia di Finanza, altas patentes das Forças
Armadas, magistrados, empresários, banqueiros, directores de jornais e
jornalistas.
Para lá disso, foi
notória a pertença à Loja P2 de muitos dos membros da Junta Militar Argentina,
incluindo o general Videla e Lopez Rega, o tristemente afamado ministro de Estrellita Perón.
Os sombrios territórios
da vida política.
Territórios sombrios,
ou mesmo ocultos e insuspeitos, que traçam as coordenadas da política real, e
de tal ordem que só os patetas,os desprevenidos ou os mal intencionados ainda
hoje acreditam que quem realmente os governa são os ministros de serviço, e
quando na obscura realidade o poder verdadeiro e efectivo está mais nas mãos do
chefe dos serviços secretos de um país – aquele que colhe, trata, controla,
confunde e difunde a informação estratégica como melhor lhe parece -, do que
nas mãos de qualquer primeiro ministro, rei, ou presidente da república.
Na sequência das notícias vindas a lume
nos telejornais desse dia 20 de Maio de 1981, o governo nomeia uma comissão
parlamentar de inquérito à Loja P2. É nessa altura aprovada uma lei que proíbe
as sociedades secretas e dissolve a Loja P2. Suspeita-se de uma conspiração
contra as instituições da República.
Licio Gelli, o
Venerável Mestre da P2, entrara para o Grande Oriente Romagnosi, de Roma, em
Dezembro de 1965, naturalmente como aprendiz. É contudo um maçon atípico e sobe
de grau e de importância no Grande Oriente, apoiado pelos membros da mais alta
hierarquia, visto que trouxe com ele, em carteira, uma quantidade apreciável de
possíveis futuros membros, gente extremamente qualificada, segundo diz.
Gelli é um
ex-fascista da República de Saló e combatera antes disso na Guerra de Espanha
com os camisas negras.
É amigo de
Giulio Andreotti e tem altos contactos no Vaticano, nos serviços secretos e nas
Forças Armadas.
Um ano depois da
admissão é ele o chefe de outra loja, a chamada HOD, mais conhecida como P2, a
mais secreta e importante loja do Grande Oriente italiano.
Não se sabe, como é
óbvio, a data da fundação da Loja P2. Dizem que essa data se perde nos tempos.
Vem pelo menos do século XIX, sabe-se. Diz-se que acolhia elementos notáveis do
tempo em que a Maçonaria tinha papel decisivo na vida institucional italiana –
lembremo-nos do próprio Garibaldi. A P2 terá sido revitalizada a seguir à II
Guerra com a ajuda das maçonarias dos EUA, e transferindo-se para ela os maçons
mais proeminentes e cuja filiação deveria permanecer secreta. Era de facto uma
loja encoberta, com as respectivas prerrogativas na organização maçónica, e
cuja gestão estava envolta em mistério.
Houve quem dissesse
não se poder atribuir à maçonaria um qualificativo de sociedade secreta, senão
de uma sociedade com segredos. Era diferente. E fica aqui dito só de passagem,
porque não é por este respeitável
caminho que vamos.
Licio Gelli, às
vezes conhecido nos meios políticos como eng. Luciani, era um homem duplo. Fora
um agente duplo da Resistência. Espiava para os serviços secretos de Mussolini,
tinha contactos com os partiggiani e
por conta da República fantoche de Saló fizera a ligação com a secreta militar
do Reich. A seguir à guerra trabalha para os ingleses e para os americanos.
Fora também, como
outros ex-fascistas e ex-nazis, soldado do chamado exército invisível,
organizado pelos Aliados para fazer frente ao avanço comunista na Europa. Mas
da fama não se livrou de continuar a gostar de jogos duplos; da fama não se
livrou de trabalhar tanto para a CIA como para o KGB.
Gelli tinha tido um
papel na abortada tentativa de golpe de Estado em Itália do príncipe
neo-fascista Valerio Borghese, o dito príncipe negro, em 1970, e um papel nada
secundário, uma vez que lhe estava cometida a tarefa de, no Quirinale, dar voz
de prisão ao próprio presidente da república, Giuseppe Saragat.
Rumores sobre a
acção na vida italiana de uma poderosa organização secreta e conspirativa,
havia-os, e muitos, já nos anos 70. Instauram-se dois complicados inquéritos
judiciais, um sobre o assassínio de um advogado de Milão encarregado de
liquidar as contas do Banco Ambrosiano; e outro sobre o misterioso rapto de
Michele Sindona. Ninguém sonhava que tais inquéritos pudessem levar as
autoridades a uma loja maçónica.
Estávamos nos anos
70, à entrada dos anos 80. A
actividade nos circuitos subversivos de extrema direita era febril.
Proliferavam os grupos secretos, as operações ocultas, os golpes, as acções
negras, as infiltrações e contra-infiltrações, as campanhas de propaganda, os
financiamentos secretos, os serviços privados de espionagem.
Cria-se a rede
secreta Gladio, uma estrutura NATO financiada pela CIA para contrariar a
influência comunista na política italiana, formada por muitos ex-nazis, e com
uma organização militar preparada para acções de guerrilha.
Numa entrevista da
RAI a um ex-agente da CIA, as ligações e
financiamentos da CIA à Loja P2, incluindo tráficos internacionais de
divisas e de armas, vêm à luz do dia. O bastante para, por forte influência do
presidente da República de então, Francesco Cossiga, provocar a demissão do
director do telejornal e de um jornalista: não era admissível que os serviços
de segurança de um país amigo fossem atacados na televisão pública italiana.
A Loja P2 parecia
nesses tempos revestir a forma de um serviço secreto atlântico, além de ponto
de encontro das estruturas paralelas que na realidade governavam a Itália.
Na lista mais tarde
encontrada numa das residências de Licio Gelli avultavam os nomes de agentes
secretos e funcionários dos mesmos serviços secretos, tanto retirados como
ainda no activo. Um deles, um conhecido general, tinha orientado o longo
processo de fichagem de cidadãos como primeiro passo de um possível futuro
golpe de Estado.
Nos anos 70, os
organismos de informação italianos e suas redes ocultas muito se tinham
afadigado em manobras de protecção dos activistas de direita suspeitos de
atentados. Para tanto, não hesitaram em empreender negociações com as máfias, a
‘Ndranghetta e a Camorra.
Era preciso libertar um tal Cirillo e despistar os
juízes encarregados dos inquéritos ao atentado da estação de Bolonha, além de
várias outras actividades, peculato, nomeadamente, e também difusão de notícias
caluniosas pela imprensa secretamente financiada.
Dia 2 de Agosto de
1980, 10.25 da manhã. Uma bomba escondida numa mala na sala de espera faz
explodir a estação ferroviária de Bolonha. 85 mortos. Mais de 200 feridos.
Fala-se de atentado. As atenções viram-se para as Brigadas Vermelhas. As
investigações são obstruídas e despistadas. Prendem-se uns quantos activistas
de extrema direita e criminosos de delito comum, mas os mandantes continuam até
hoje na sombra. Terá sido parte da estratégia da tensão e do escândalo
defendida pela Loja P2.
Os serviços
secretos italianos organizaram em poucos anos 157.000 processos de cidadãos com
vista a poderem ser usados como instrumento de chantagem sobre políticos,
militares, padres, jornalistas, figuras da cultura e até cidadãos comuns, se
fosse preciso.
Ao chefe dos
serviços secretos fora conferido o encargo de organizar o exército clandestino,
a força Gladio. Já em 62, os serviços secretos, em associação com a estação da
CIA em Roma, tinham criado esquadrões de assalto para atentados às sedes do
Partido da Democracia Cristã e de alguns jornais. Atentados que posteriormente
seriam atribuídos à esquerda. Contemporaneamente, actuariam grupos de pressão
política para exigir ao governo e ao presidente da república (Antonio Segni ao
tempo, 1962), medidas de excepção em face de tais atentados.
A Loja P2 não
parava naqueles anos 70. Desenvolviam actividades de lobby, envolviam-se em negócios, petróleo, banca, jornais.
Crimes e escândalos. A sociedade
italiana vivia sob tensão. E os cadáveres foram aparecendo. Roberto Calvi...
O advogado milanês Ambrosoli...
Aldo Moro...
Michele Sindona...
Mino Pecorelli, jornalista...
Tráfico
de armas e de droga. Lavagem de dinheiros. Escândalos variados, o da
magistratura, o escândalo Rizzoli. Fuga de segredos de Estado…
Um dos homens de
mão da P2 era um simples porteiro de hotel - aliás, um simples porteiro não
seria, era o chefe dos porteiros. E nem o seria de um hotel qualquer, era-o do
maravilhoso Excelsior da Via Veneto,
o hotel da dolce vita romana de duas
décadas atrás, porque era de uma suite
do Excelsior que Licio Gelli
comandava todas as operações da P2 e altas individualidades da vida italiana
faziam bicha nas antecâmaras do Excelsior
para serem recebidas por ele. Eram políticos de primeira linha, militares,
banqueiros, príncipes, jornalistas. Eram Andreotti e Cossiga e Bettino Craxi e
Fanfani, presidentes ou ex-primeiros ministros, os deuses ex-machina, as grandes estrelas da política italiana do momento.
Gelli recebia
igualmente bombistas e terroristas de extrema direita. Bombistas e terroristas
que podiam encontrar-se na suite de
Gelli com o general Vito de Miceli, o chefe da polícia secreta, o homem que era
suposto vir a prendê-los. E que não os prendia, claro está.
Um certo deputado
democrata-cristão, Gaetano Stammati, acaba de se inscrever na Loja P2 e é imediatamente
nomeado ministro do Comércio Externo do governo de Giulo Andreotti.
Em Junho de 79 há
eleições gerais. Toca a Francesco Cossiga
encargo de formar governo. Cossiga promete o lugar de ministro do
Comèrcio Externo a um certo Altissimo, do Partido Liberal. Mas acaba por
confiar a pasta ao Gaetano Stammati, que vinha do anterior governo presidido
por Andreotti. Ante os protestos do Partido Liberal, o 1º ministro indigitado,
Cossiga, responde:
- De facto, eu
queria dar o cargo a Altissimo, mas não o pude fazer depois das fortíssimas
pressões que recebi.
Era o governo das
sombras que tinha nas mãos o destino da nação italiana.
A influência da
Loja P2 cortava transversalmente todos os partidos, todos os institutos
públicos e instituições italianas.
Recolheram-se
provas quanto a um conjunto de acções concertadas que visavam o reagrupamento
de toda a extrema direita italiana, incluindo os declaradamente neo-fascistas
da Ordem Nova, não obstante ter sido já aprovado o decreto de dissolução deste
grupo.
Declarava falência
o poderoso Banco Ambrosiano, o maior banco privado do país, descapitalizado
devido às manobras financeiras de Roberto Calvi – chamado o banqueiro de Deus e
homem da P2 - e o homem do Vaticano, o famoso monsenhor Marcinkus. Descobriu-se-lhe
um buraco de 1,3 milhares de milhões de dólares.
Michele Sindona,
outro homem da P2 e com profundas ligações à Mafia, é acusado nos EUA por
falência de bancos e sociedades financeiras. Foge para a Sicília em 79. Diz-se
que chantageava Andreotti. Hospeda-se em casa de um médico maçon, especialista
em rituais esotéricos e cirurgia plástica. Na Sicilia, aparecem assassinados um
juiz e um comissário de polícia. Sindona reaparece na América e é raptado. O
médico esotérico e cirurgião plástico dispara-lhe um tiro cirúrgico numa perna.
Não era um ferimento incapacitante, todavia era um ferimento credível no apoio
à versão do rapto.
Vem a saber-se que
o rapto de Sindona, apesar do tiro na perna, fora, claro, um falso rapto.
Sindona é deportado
para Itália. O médico vai encontrar-se com Gelli para tratar do destino de
Sindona.
Julgado, Michele
Sindona vem a ser condenado pelo assassínio do advogado Ambrosoli, entre outras
coisas. Vai preso.
Na prisão de
Voghera é vigiado dia e noite. Mas é assassinado na prisão. Para temperar o
café, alguém lhe deitou cianeto na chávena.
Tinha sido Roberto
Calvi a pôr o Banco Ambrosiano nas mãos da Loja P2. A descapitalização do
grande banco é devida aos milhares de milhões que a P2 movimentava em trafico
de armas para a guerra das Malvinas, financiamentos ao ditador Somoza da Nicarágua
e ao movimento sindical polaco Solidariedade. Milhares de milhões e
movimentação de capitais que desembocaram na bancarrota.
Roberto Calvi
aparece pendurado pelo pescoço na Blackfriars
Bridge, a Ponte dos Frades Negros, em Londres.
Um jornalista da
P2, Mino Pecorelli sabia demasiado sobre o caso Aldo Moro e aparece crivado de
balas dentro do seu carro, a 20 de Março de 1979.
O papa João Paulo
I? Pois, há quem diga que sim...
Os objectivos
operacionais prioritários da P2 dividiam-se em três pontos principais. Assim:
fracturar a unidade sindical; dominar os media;
subordinar a magistratura ao poder executivo.
Berlusconi vem à
baila.
Gelli acusa-lo-à de, no seu programa de governo, ter copiado o programa
político de renascimento democrático da P2. O Plano R. O texto desse plano veio
a ser apreendido no aeroporto de Fiumicino. Estava no fundo falso de uma das
malas de Maria Grazia Gelli, filha de Licio Gelli,o Venerável Mestre.
Podemos rir-nos à
vontade, mas o objectivo declarado da P2 era fazer renascer a democracia,
transformando a Itália num país organizado segundo critérios de mérito e
hierarquia e para exclusivo bem do povo, segundo declarações posteriores do
próprio Licio Gelli.
Não foi assim há tanto
tempo...
Do programa desse
renascimento democrático constavam, entre outras coisas, directivas no sentido
de usar instrumentos financeiros para a criação rápida de dois movimentos, um
de esquerda e outro de direita, os quais seriam patrocinados por dois clubes
político-financeiros promotores. Com cerca de 10 milhares de milhões de liras
seria possível uma infiltração nos ficheiros do Partido da Democracia-Cristã e
tendo por objectivo tomar posse do partido por dentro. E com mais 5 ou 10
milhares de milhões poderiam provocar-se cisões, com o consequente nascimento
de uma confederação sindical única e livre.
(Não foi assim há
tanto tempo...)
Os media eram um dos alvos mais apetecidos
da P2. Evidente.
Seria de nomear
secretamente dois ou três elementos de cada órgão de informação, mas isso feito
de maneira a que uns nada soubessem dos outros. Aos elementos recrutados era
conferida a obrigação de simpatizar com os notáveis e as políticas que lhes
fossem superiormente indicados.
Também era preciso
adquirir semanários, por assim dizer, de combate.
Era preciso
coordenar a imprensa regional e local por meio de uma agência centralizadora.
Era preciso
coordenar as televisões por cabo.
Era preciso dissolver
a RAI estatal em nome da liberdade de antena e de expressão e implantar uma
rede de televisão por cabo que contribuísse para controlar a opinião pública
mais mediana do país.
Através do
enfraquecimento dos sindicatos, do controlo dos media e dos políticos dos partidos de governo, e com a destruição
da RAI, visava-se a transformação qualitativa da república italiana num sentido
presidencialista, corroendo a oposição de esquerda e minorando a essa esquerda
as esperanças de algum dia poder chegar a ser governo.
Quando tudo é
descoberto, Licio Gelli é expulso da maçonaria e foge para a Suiça.
Em Genebra, tenta
sacar os milhões depositados nos bancos suíços.
É preso.
Foge da
prisão.
Vai para a América
do Sul.
Numa busca a uma
das residências do Venerável, as autoridades italianas aprendem 2 milhões de
dólares em lingotes de ouro.
Volta a aparecer em
Itália e começa a escrever poesia.
Parece que é
readmitido na Maçonaria. Reclama-se das suas mãos sempre limpas. Mãos que,
segundo alega em entrevistas, nunca conheceram nem o ouro nem o sangue.
Entre os membros da
P2 estavam, como se disse, variadíssimas individualidades cujos nomes nada nos diriam
hoje. Mas um ou dois nomes talvez nos dissessem alguma coisa.
Vittorio Emanuelle,
príncipe de Saboia, herdeiro do trono de Itália, filho do deposto rei Umberto
que viveu ali para os lados de Cascais – ficha nº 1621 da Loja P2. Afirmava não
se dedicar à política, mas não podia entrar em Itália. Tinha porém negócios em
Itália. De armas, nomeadamente. Negócios que eram feitos por intermédio de
companhias estrangeiras. Mas o príncipe queria poder regressar a Itália em
definitiva. Membro da P2, era mediador de negócios no estrangeiro, inclusive por conta do Estado italiano, Estado no qual não podia pôr o pé. Mas em breve
alguém o faria regressar.
Silvio Berlusconi.
O
príncipe dizia que era Berlusconi o único capaz de pôr ordem na economia
italiana e evitar o desastre, que estava iminente, devido ao estatuto do
trabalhador e à proibição dos despedimentos.
O onorevole cavalliere Silvio Berlusconi
tinha o cartão nº 1816 da Loja P2, com o código e.19.78, do grupo 17, do
fascículo 0625. Entrara a 26 de Janeiro de 1978. Em Maio desse ano contribuíra
com 100.000 liras para o financiamento da Loja. Interpelado pela magistratura
de Veneza quando se julgava o caso P2, e sob juramento, Berlusconi negou ter
pessoalmente contribuído com dinheiro para a Loja. Todos os documentos provavam
o contrário do que ele disse ao juiz de Veneza.
É condenado por
perjúrio.
É amnistiado em
tempo de poder ser presidente do conselho de ministros. Em 1994 e em 2001.
Não foi assim há
tanto tempo.
E não nos faltam
hoje, ainda hoje (ou hoje mais do que nunca) evidências de um governo de
sombras sobre as nossas vidas.