O MUNDO SOU EU!
Proclamou-o
o romancista francês Rémy de Gourmont no limiar do século XX.
O mundo sou
eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo
é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.
Era um livro
intitulado Sixtine – Romance da Vida Cerebral.
Foi um imaginário
pardo e adoentado o que assolou as mentes europeias mais brilhantes na
transição do século XIX para o século XX. Um chamado fin de siécle que
muito previsivelmente teve Paris como cenário, teve Paris como força
intelectual difusora das novas ideias, das novas formas de expressão artística,
dos diferentes parâmetros estéticos, e igualmente, e por isso mesmo, das mais
tristes expectativas para a vida do espirito, e até para o homem comum.
O simbolismo
decadente impõe a moda artística, em especial na literatura, na poesia, mas
igualmente noutras expressões. Que o digam os que o pintaram, ou que o
teorizaram, ou que o tocaram, Moreau, Redon, Munch, Satie, Puvis de Chavannes,
Huyssmans, Debussy, Paul Bourget ou Richard Strauss. Na música, e a meu ver
exageradamente, há mesmo quem diga ser Wagner já um produto desse mal-estar
existencial. Mas talvez eu acrescentasse com mais propriedade, e pelas febris
composições ainda no domínio da música, outro nome grande, Gustav Mahler.
Decadência.
Pessimismo. Tédio de vida.
O Homem em conflito com o seu meio, horizontes
existenciais a abarrotar de incógnitas dolorosas. Tudo isso desabou sobre a
expressão artística. Tudo isso instituiu uma nova moral estética, e ética,
claro, a que muitos dos criadores não puderam fugir.
E de Paris a moda
do tédio e do desespero alastrou Europa fora, desencadeou transformações civilizacionais
e específicas linguagens, como a contestação do tipo anarquista-nihilista nas
rússias, como o pessimismo alemão, como a neurose do sul. Neurose decadentista
que Nietzsche já distingue como raiz da obra de Wagner em 1888.
Uma técnica
complexa de decomposição de linguagens, um estilhaçar das unidades formais
conceituadas, como diria Paul Bourget – segundo leio – uma independência da
página escrita; uma decomposição dessa página a conferir autonomia à frase; um
estilhaçamento formal da frase a abrir a via à soberania da palavra.
Ou, caminhando em
inverso sentido, a palavra a exceder a frase, a frase a obnubilar a expressão
da página, a página a impor-se, subalternizando a unidade do todo.
Em suma, um
exercício de liberdade; ou uma exigência universal de direitos. Outra moral.
É nesta época da
vida intelectual que nasce na literatura – ou talvez também na vida – o herói
por assim dizer negativo, o herói decadente. É Huysmans quem o faz nascer como
protagonista do romance A Rebours - ao contrário, ao invés, às avessas.
Des Esseintes,
chamava-se a personagem, esse herói decadente, esse homem crepuscular, essa
figuração de uma crise moral abrangente e a braços com a complicada adequação
aos valores emergentes.
Os valores
emergentes decorriam da evolução do conhecimento científico e tecnológico. Os
valores emergentes eram a alteração das coordenadas estáveis de um conceito de
tempo e de História. Uma aceleração de vidas. Um saltar de etapas do
quotidiano. Uma tecnologia que estendia tentáculos inevitáveis à sociedade, à
vida comunitária e que deixava os homens em dúvida na própria área política.
Claro que esta escola
decadentista e sensível à perda de um mundo mitificado opunha-se à intelectualidade
que, a rebours, pelo contrário, mitificava os dias a vir, aplaudia
entusiástica as novas oportunidades que o próximo século traria para oferecer
ao Homem. Zola era um progressista, logo, um expoente desses artistas da nova
ciência. Zola e o romance social, o romance que sobrevoava o exterior das
existências, os passos rigorosos, os gestos exactos e convenientes e
científicos, a razão, digamos, mais pura, mais desataviada do doentismo
cinzento dos simbolistas profetas de uma desgraça futura.
Para os
decadentes, ou decadentistas (por melhor dizer), a Arte revestia fumos de uma
religião da qual eles frequentavam com unção os altares. Os decadentistas
teimavam que era à vida que cabia em sorte e destino a imitação da Arte, da
grande Arte. Viver seria uma manifestação de grande estilo; seria idealmente um
acto estético.
Para os
naturalistas apaniguados das novas esperanças, dos admiráveis e científicos e
racionais mundos novos a trazer pelo novo século, competia à Arte perseguir a
vida verdadeira, ou mesmo servi-la; competia à Arte não se divorciar do real
circundante, nem que fosse preciso a obra da imaginação, que seria o romance,
transformar-se em dissertação sociológica.
Uma questão de
moral e peras…
Populistas e
aristocratas, se assim podemos dizer. Isto é: duas atitudes comunicacionais na
apreciação do fluir imparável do tempo. Os socialistas e os esteticistas – se
assim também pudermos dizer. Ou ainda mais simplesmente: aristocratas e
burgueses.
Era à vida
burguesa, pragmática, positiva, sujeita ao discurso das realidades que Zola e
companheiros apelavam; era a um triunfo da tecnologia que tornaria a vida mais
prática e menos contemplativa e o viver mais acessível a todos, com os bens de
consumo, antes privilégio de poucos, ao dispor da maioria. Era à democratização
da vida, enfim, iniciada por uma atitude cultural, que os positivistas adeptos
do novo século aspiravam.
Os decadentistas,
os tais que, como Rémy de Gourmont encaravam o mundo como criação sua – a
criação que lhes fugia, que os abandonava, que os traía - refugiavam-se na
subjectividade. O sonho. O ideal místico impalpável, imensurável. A invenção de
uma realidade interior. A simbologia que as coisas encerravam.
O herói de crise,
o campeão decadente, é um solipsista. É um egocêntrico. É ele o inventor do
mundo. E é ele a sua própria invenção. É ele o mundo. E o mundo que é ele, e
que se pode libertar do sonho dele, começa pelo fim do século XIX a causar-lhe
mal-estar, náuseas – Sartre, acho eu, vem muito mais tarde a revisitar, noutros
pressupostos, bem entendido, estas mesmas paragens existenciais.
O herói de crise
é mórbido, porque cultiva a morte como saída estética, ou como hipótese moral
de redenção.
O herói de crise,
o decadente, pela sua posição filosófica face à novidade do mundo, ou ao
irreconhecimento de um mundo já não moldado ao seu parecer, toma atitudes de
mundano blasé.
Ao herói
romanesco da crise de fim de século repugna (tal como repugna hoje a muitos de
nós) o utilitarismo burguês, o mercantilismo comandante de uma vida que se tornaria
– e tornou - feia de morrer.
E se a natureza,
redescoberta pela ciência e pela tecnologia, determina pensamentos pequenos e
gestos rotineiros e desengraçados, então que se lhe contraponha o
artificialismo das paisagens e das figuras ideais. Que se lhe oponha a magia.
Que essa natureza tão natural seja confrontada com a fantasia que habita o ego
em desesperos de causa. Que se combata a ditadura do natural pelo misticismo
simbólico que fará da arte uma actividade salvífica e redentora dessa vida
burguesa e tediosa.
Porém, inegável
será a herança recebida pelos aristocráticos decadentistas. E essa herança receberam-na
eles das consciências futuristas, positivistas, naturalistas, que começavam por
detectar na vizinhança do novo século as causas do seu mal-estar.
Foi o
conhecimento, ou uma pré-consciência do que estaria para vir, que provocou a
reacção simbolista-decadentista aos intelectuais que então se reclamavam da
vanguarda, e que, ao aperceberem-se das fanfarras que saudavam o novo século,
gritaram que é lá isso!, que querem vocês fazer do mundo?, como é possível
estarem tão contentes com o que aí vem?, não se deram conta de que o mundo sou
eu, é cada um de nós, que não há forma de o mundo existir senão por nós, em
nós?
Foram os Zolas
que abriram caminho ao conhecimento social, artístico e mental dos
simbolistas-decadentistas. Foram eles que, anunciando o novo século, alertaram
para as patologias num mundo que já era dos outros.
Foram os
naturalistas a abrir os olhos para os condicionalismos do meio ambiente no
comportamento dos homens outrora donos do mundo, para o factor hereditário que a
ciência acabara ontem mesmo de descobrir, e isso e mais umas botas instauraram
como realidade a ter em conta no próximo século.
Representação
fiel da realidade feita por uns, que induz aos descontentes com tal
representação fiel a invenção de outra realidade – ou uma conservação da
realidade nos limites secularmente conhecidos.
A essa
representação fiel da realidade haveria que contrapor outra atitude que talvez,
com o andar dos tempos, afeiçoasse e repusesse a realidade em pés de mais
compensador humanismo. E essa atitude consistia em criar uma ficção. Uma ficção
que se opusesse com eficácia à realidade fiel que outros representavam. O
momento era de passear por oníricos e artificiais paraísos de forma a que o
mundo se conformasse sob a cenografia do Eu, e sendo o Eu o estádio perfeito do
humano. Não era novidade absoluta. Ia-se ao Schopenhauer e ficava a saber-se
que o mundo não passava de representação de um Eu que lhe era prévio e ao mesmo
tempo atávico, dispersando o Outro pelos recantos menos devassados, quase
inóspitos desse mundo que era o Eu.
Verlaine escreve: je suis l’empire a la fin de la
décadence.
O que era a
sociedade para os decadentistas senão uma concessão generosa, e por vezes bela,
do Eu? O que era o Outro senão uma construção episódica do Eu?
Mallarmé escreve: ouí, c’est pour moi que je fleuri,
déserte !
O mundo, que
tenderia a ser os outros, o Outro, abrandava convicções sagradas.
O mundo manobrado
pelos que acabavam de o descobrir como afloramento da realidade transformara-se
para os dandies decadentistas numa neurose. Só o Deus que parecia
alheado do mundo e da vida sabia o que estaria ainda para acontecer.
Os novíssimos
psicologistas ajudaram um tanto os decadentistas ao estabelecerem na sua
ciência uma relação directa entre genialidade e doença mental. Wagner era então
chamado, também ele, à conversa.
Promover a
ritualização até dos próprios objectos.
Reapreciar
culturalmente as épocas que a História estipulara como decadentes.
Explorar
artisticamente o Eu e descobrir, e aceitar torturadamente, a ambiguidade do
desejo sexual.
Como vingança de
um Eu ofendido, explorar perversamente o erotismo.
Enfim, reagir. E
reagir pode ser exprimir o até então inexprimível. O vazio. Exprimir o vazio
pela infinidade de estados de alma que o preenchem e que assim o tornarão ainda
mais vazio. Ultrapassar a realidade esquerda pela direita do artificial, do místico,
do voluptuoso.
O Outro era o
bárbaro. O Eu habitava uma ilha. Não, melhor, o Eu era a ilha. E a ilha do Eu
era a única realidade que sendo falsa era inquestionável.
O mundo sou
eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo
é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.
A espiritualidade
impõe-se. Necessariamente. Se os valores da matéria soçobram, então que lhes
sucedam os valores do espírito. E o espírito é vasto, e é belo, e é vário, como
o mundo que ele mesmo configurou.
O mundo é belo,
vasto e vário, e de tal ordem o é que suscita uma quantidade de manifestações
que nem por serem ideológica e visceralmente opostas deixam de ser espírito, do
catolicismo ao budismo; do rosa-crucianismo ao satanismo. Magia. Cabalística.
Astrologia. Espiritismo. Manifestações renovadas do profundo e feroz pessimismo
que a crise mental do fim do meu mundo e da próxima inauguração do mundo dos
outros despertou.
Sem dúvida que a
esse espiritualismo desenfreado de recusa de um mundo materialista e
tecnológico correspondeu a espiritualização a rebours, ao invés, às
avessas: uma espiritualização do progresso.
Nessa
espiritualização do progresso contava um tópico historicista: a entrada do
século tecnológico, o XX, seria uma revisitação do Século das Luzes;
constituiria a herança cultural dessas Luzes. E até porque a introdução em
França das teses de Schopenhauer tinha acontecido tardiamente, não preparara os
espíritos para um desenvolvimento filosófico disposto a acolher os cientifismos
figurados na emergência do século XX.
Péladan,
iniciadão rosacruciano, inaugura nos salões da própria ordem exposições de
pintura, e avisa: o salão da Rosa-Cruz será doravante um templo dedicado a
uma Arte-Deus, que terá como dogma a Obra-Prima, que terá por santos todos
aqueles que tiverem Génio.
Estava a acabar o
mundo.
Nos anos 90 do
século XIX estava a acabar o mundo, esse mesmo mundo que tantas vezes na
História já tinha acabado, que continuou a acabar nestes nossos dias com a
revolução informática, que continua a acabar para todo aquele que de hoje para amanhã
vá desta para melhor.
Sim senhor, estava a acabar o
mundo e os verdadeiramente optimistas eram os burgueses desligados das visões
espiritualistas, assediados por essas consciências despertas e maçadoras que
eram os visionários da arte pela arte, os estetas, os anarquistas sem
esperança, os militantes promotores do caos, em busca da nova ordem que ainda,
e por enquanto, não sabem exactamente qual seja, mas cuja busca em si mesma
lhes confere já um sentido à vida.
E nestes
desavergonhados tempos parisienses de que falo, por cá, em Portugal,
anunciava-se para breve o fim da pátria, o pessoal à nora com questões mais
triviais.
Antero, um
desencantado decadentista, tinha escrito uma carta a Osório de Castro com os
seguintes dizeres: em Portugal não pode haver revolução que mereça esse nome
(…) revolução pressupõe propósitos, firmeza e força moral. O que aqui não há.
Portugal é um país eunuco que só vive de uma vida inferior para a vileza dos
interesses materiais e pra a intriga cobarde
E mais, e mais
tocante e revelador, na sequência do berbicacho concreto que foi o Ultimatum
inglês que nos marca a fogo a profunda crise da viragem do século: sob o
insulto imprevisto esta nação parece agora acordar. Mas o nosso maior inimigo
não é o inglês. Somos nós mesmos.
E em idêntico contexto
pode preferir-se a Antero um outro, António Nobre:
Nada me importa, país.
Seja
meu amo o Carlos ou o Zé da Teresa… amigos
Que desgraça nascer em Portugal
Não havia país,
por atavicamente atrasado, dependente, paroquial e senhorial onde a crise
finissecular francesa do decadentismo encontrasse melhores imitadores. Em
Portugal, sim, estava para ser o fim do mundo.
A crise chega à
intelectualidade da chamada geração de 90. E chega através do dito romance de
Huysmans, A Rebours. Sempre imitativos, os intelectuais portugueses
adoptam a cartilha da nova escola literária acabadinha de chegar de Paris e
constituem-se em manifesto. Os Nefelibatas.
Eça estava então
cônsul em Paris, e é claro que as finas antenas dele apanham a mensagem. E até
nem destoava ele da reacção simbolista ao que avisadamente entendia como um
excesso de materialidade o que vinha na esteira da ortodoxa moda cientista. Mas
nem por isso ficou cliente dos decadentismos parisienses
É Antero que
propõe uma idealização do espiritualismo como trajecto a seguir, contra o que
chamou de gélido fatalismo soprado pela ciência ao coração dos homens.
Enquanto para outros equilibrados espíritos o optimismo dos próceres do novo
século científico só seria aceitável se fundamentado numa raiz metafísica.
O aristocrata
Eugénio de Castro não fazia concessões e é ele o arauto que inaugura nas nossas
letras a voga simbolista: julguei que se tinha levantado um obelisco místico
no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido
um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.
Ou o estimado
Raúl Brandão, na sequência das crises nacionais, muitas, dos anos 90 do século
XIX, escrevendo nas suas Memórias: a vida antiga tinha raízes, talvez a vida
futura as venha a ter. A nossa época é horrível, porque já não cremos – e não
cremos ainda. O passado desapareceu e do futuro nem alicerces existem. E aqui
estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera.