quinta-feira, 30 de maio de 2013

             O SENSO, DE VISCONTI, OU O     
    MELODRAMA OITOCENTISTA ITALIANO         
        ENQUANTO AGENTE DA HISTÓRIA
                                                                                                      
O melodrama ficou com má reputação quando os seus defensores o abandonaram a interpretações esquemáticas e convencionais. Mas em Itália o género acha uma natural disposição do povo, embora se adapte bem a um público europeu, pela sua estrutura unitária e muito directa. Amo o melodrama porque ele se situa exactamente fronteira entre a vida real e o teatro. Palavras do próprio Luchino Visconti.


 Senso, o filme, funciona como transposição para o cinema justamente daquela categoria estética que irá ter desempenho decisivo enquanto veículo ideológico e elemento dinamizador e propagandístico de uma nova ordem política: o melodrama, fosse ele em prosa, em verso ou em música. Melodrama esse alimentado pela História, e restituidor dessa História a actuar sobre o real imediato.


Porque nos achamos em pleno ano de Verdi, diria que os traços do melodrama verdiano são mais do que evidentes em Senso, e com  a linha melodramática a prosseguir sob a música de Bruckner, de modo embora menos directo, e desde o momento em que, na concepção do realizador, era forçoso que a música sustentasse o desenvolvimento dramático e assim conferisse às personagens um recorte que era realista, bem entendido, mas que não deixava de ser romântico. Ou melodramático.

As sequências iniciais do filme Senso estavam para ser rodadas na Praça de S. Marcos. A mudança para o interior do La Fenice relevaria do simbolismo da associação de Veneza a um espaço teatral, a um jogo de espelhos, realidade e ficção, que do interior do La Fenice se iria expandir pela cidade alargando as significações, tornando a cidade mesma um lugar de representação, espaço de melodrama, cenário de uma teatralidade de transgressão, visto ser da transgressão a diversos títulos que trata o filme – a  subversão contra o ocupante; a condessa descendente de uma família tradicional veneziana que se apaixona por um oficial do exército inimigo; a traição da condessa entregando ao amante os valores que lhe foram confiados para ajudar a causa da luta contra o inimigo ocupante; a transgressão do oficial perante a moral militar subornando uma junta médica que o dá como inapto para o combate; a transgressão da condessa à moral dos amantes quando, por vingança, denuncia ao alto comando austríaco o oficial seu amante como desertor, condenando-o ao fuzilamento.
A pintura de uma paixão trágica, melodramática, centrada directamente num episódio colectivo ou patriótico, mas num caso particular, sobre uma história privada. É o contexto histórico que, por assim dizer, universaliza o adultério da condessa Livia Serpieri e todas as demais transgressões envolvidas num stendhaliano amour fou, a paixão amorosa que melodramaticamente rompe os limites do razoável.

            

Note-se ainda, historicamente, o momento crucial e contextualizante do filme, a apontar o princípio de decadência efectiva da aristocracia italiana enquanto força cultural e socialmente preponderante. Morte e loucura enquadram, melodramaticamente, esse momento histórico de aniquilação.

                                                                     
   
   

Todo o cinéfilo se lembra da cena inicial. O momento mais heróico do Trovador, de Verdi a ser cantado no palco perante uma plateia de oficiais austríacos ocupantes e nobres venezianos com eles de certo modo confraternizantes. No momento da cabaletta Di quella pira, quando o tenor e o coro gritam às armas, a ordem pública é alterada e a outra parte do público, os patriotas venezianos da galeria, levanta-se num clamor patriótico e lança panfletos sobre a plateia.
O Teatro La Fenice, que foi um símbolo da resistência patriótica dos italianos ao ocupante estrangeiro nos dias do Rissorgimento. É uma verdade. Mas essa cena do filme talvez não tenha acontecido. Ou antes: aconteceu realmente, pelo menos uma vez, mas não com o Trovador. De certeza, sabe-se que o levantamento patriótico no La Fenice se deu numa récita de Macbeth, do mesmo Verdi, no momento em que o coro cantava as palavras la patria tradita, piangendo m’ínvita… a pátria traída e chorosa incita os irmãos oprimidos a correr a salvá-la. Os austríacos presentes no teatro ficaram aterrados. E esse foi o dia da primeira insurreição veneziana contra os austríacos. 6 de Fevereiro de 1848. Houve arruaças pelos canais. Os notáveis venezianos mais patriotas que assistiam à récita, e também o barítono Felice Varesi que cantara o protagonista, vão-se aos armazéns de adereços, sacam inofensivas espadas de teatro e correm para as ruas e para a Praça de S. Marcos a ameaçar os austríacos, que apesar de tudo não estavam a achar graça nenhuma e alguma coisa se temeram…
O filme Senso decorre na atmosfera daqueles anos de brasa da vida italiana, é certo, mas estiliza os factos, mediatiza-os, não se refere de forma estrutural e deliberada aos aspectos políticos e sociais, deixando embora a descoberto as pontas de algumas questões implícitas, como os dilemas entre o compromisso e a atitude frontal: a alta burguesia que comerciava em causa comum com o inimigo ocupante estrangeiro, e alguma jovem aristocracia que conspirava, dava a cara e pegava em armas.
No que se refere à dívida que a História italiana tem para com a actividade teatral italiana da primeira metade do sec. XIX, Visconti dedica-lhe eloquentíssima alusão, não somente pela desordem no Teatro La Fenice, como também pelo estilo melodramático de representação e expressão corporal e gestual dos seus actores, tão marcadamente enfáticos e teatrais – reparar em especial na expressão dos olhares, nas atitudes corporais e no gestual da criada da condessa, interpretada pela grande actriz de teatro Rina Morelli, numa expressividade marcadamente teatral, diria mesmo operática, a ir ao encontro dos pressupostos estéticos estabelecidos por Visconti...

O princípio de sublevação patriótica da cena de abertura do filme, será uma cena de passagem, mas marcará o tom operático e verdiano do filme.

Uma historicização, digamos, do tempo, da acção dramática e das personagens no Senso  impeliu Visconti na senda do melodrama italiano, já de si tão carregado de memórias de vida e de História. A quinta-essência do espectáculo era o melodrama, no pensamento de Visconti. E assim por considerar o melodrama a mais harmónica fusão e o modo mais eficaz de integração dos elementos dos diversos géneros de espectáculo que lhe interessavam.

Uma síntese, o melodrama. Uma síntese de todas as artes. O espectáculo total e integrador de todas as artes, que foi a ópera, em Oitocentos, que seria o cinema, em Novecentos – que será a televisão e o computador no terceiro milénio que vivemos. Um cinema, forma espectacular nova à qual Visconti ambicionou integrar o elemento mais distintivo da grande cultura retintamente italiana. Como escreveria  Suso Cechi d’Amico, colaboradora de sempre: era isso que procurava o decadente Visconti, o proustiano Visconti, o conde Visconti – enfim, diria eu, o oitocentista Visconti, herdeiro de um nome pelo qual já de si parte da História de Itália perpassava. 
A contribuição teatral para o processo histórico que desembocaria na unificação – processo e período históricos a que se chama de Rissorgimento – foi uma contribuição indirecta de divulgação de ideias libertárias e de ideais patrióticos. Foi elemento capital na criação de uma atmosfera geral e nacional de paixão política e de militância que logrou até a reunião de entidades politicamente divididas.       
Não obstante a vigilância censórea, cada espectáculo corria entre invectivas ao opressor estrangeiro, incitamentos populares à rebelião, à liberdade, chamamento à morte pela pátria, gritos de invocação a uma Itália unida e fadada para um grande destino.


A tragédia patriótica era o prato forte da produção teatral daqueles anos da mais alta coragem cívica na Itália do meado do século XIX.
As personagens antigas e mitificadas incorporavam os anseios nacionais. As récitas eram comícios e manifestações revolucionárias. Obras teatrais houve que se celebrizaram nem que fosse por um único dito, uma única cena, tornados válidos e significativos no presente histórico e mobilizadores para a luta política.
Vittorio Alfieri, um dos grades dramaturgos da época, chegou a escrever: os homens é no teatro que devem aprender a ser livres, fortes,  generosos, transportados por uma verdadeira virtude, contrários a toda a violência, amantes da pátria, conscientes dos próprios direitos ardentíssimos, rectos e magnânimos em todas as suas paixões.


Depois do melodrama em prosa e em verso, chegará a hora do melodrama lírico como protagonista na luta pela independência e pela liberdade de Itália.
     

O melodrama lírico é o canto, e o canto pode dizer-se o limite da expressão vocal humana. E o melodrama é viver a vida nos limites. Melodrama é o viver da vida ao máximo e a cada momento. O que, por sinal, se relaciona com a vivência de uma revolução. O revolucionário arrisca os seus limites a cada dia. 
Ao entrar o ano de 1848 o ideal da independência é já uma vaga de fundo muito espalhada em toda a Itália, deixando de ser uma espécie de propriedade ideológica de elites intelectuais e burguesas. E é então que a linguagem da tragédia em verso decai e os favores do público se transferem pouco a pouco para o melodrama lírico. Ou seja, o melodrama na plena acepção do termo – o melos a multiplicar a eficiência expressiva do drama.
O melodrama, enquanto elemento estético, pode ser uma fronteira da realidade. E o melodrama lírico falava às almas de modo mais abstracto, é certo, por meio da música, exactamente nessa justa fronteira da realidade. Porém, um dado motivo musical devidamente popularizado poderia ser adoptado pela rua, entoado repetidamente, obsessivamente, pelo povo e ser-lhe assim acrescentado um sentido subversivo, revolucionário. 
E pela música – que na verdade, em si mesma nada significa a não ser música, mas na qual é sempre possível pôr os sentidos que se queiram – a comunicação da mensagem subversiva de resistência torna-se mais ampla. E se, num inicial fôlego do primeiro Rissorgimento, certas frases das tragédias passavam de boca em boca, no segundo Rissorgimento bastava um curto motivo melódico para inflamar as almas patrióticas.

 
Na récita da Norma no Scala, na noite de 10 de Janeiro de 1859, há um pé de vento no teatro apinhado de oficiais austríacos a fazer lembrar precisamente o do filme, do Senso. Ao chegar o momento do coro Guerra, guerra le galiche selve (um incitamento à revolta das Gálias contra o ocupante romano), o público levantou-se e multiplicou a intensidade das vozes que vinham do palco, cantando com os coristas e provocando uma manifestação que levou os militares austríacos fulos a enfrentar a massa ululante que gritava e cantava guerra, guerra…
Mas, como se sabe, o grande emblema patriótico da cena lírica italiana do tempo, será Giuseppe Verdi. Ao triunfal e muito político sucesso de Nabucco, Verdi acrescenta-lhe outros êxitos. Eram filas (bichas) sem fim nas bilheteiras dos teatros; era uma loucura de público conspirativo amontoado em camarotes e galerias a festejar cada ária, cada concertante, vivas a isto, vivas áquilo. Era o grande público militante do melodrama.



                                                                                                                   

A acção no melodrama verdiano é rápida e concisa, nos primeiros tempos, com larga incidência sobre a voz colectiva, os coros. Alguns definem esse período patriótico verdiano como uma poética do uníssono, a alegria de cantar sem divisões nem dissonâncias. O célebre caso de Nabucco, é sabido, com o famoso e popular coro dos escravos hebreus, que passa a ser o hino das aspirações itálicas – como o foi ainda há dois anos, na Ópera de Roma, em protesto contra o fecho dos teatros e o corte das verbas para a cultura, na presença do então 1º ministro Berlusconi.
O melodrama, hoje ainda, século XXI, a funcionar sobre o real imediato…
E é mesmo Visconti quem o diz de Senso: é um filme romântico, onde transparece a verdadeira seiva da ópera italiana, onde as personagens fazem declarações melodramáticas. Eu quis transferir os sentimentos da ópera Trovador,de Verdi, da ribalta lírica para uma história cinematográfica de guerra e rebelião.


Senso é como uma ópera. É um filme de acordes visuais e dramatúrgicos sucessivos, de melodias continuas. A melodia de fundo, evidente, objectivada pela música de Bruckner; como a  melodia sugerida no tom operático, melodramático, que cruza o filme nas frases, nos corpos, nos gestos, nos cenários, desde o primeiro enquadramento da cena do Trovador, de Verdi, até ao ritual do fuzilamento do tenente austríaco e aos passos desesperados e demenciais da enlouquecida condessa Livia Serpieri.


Segundo Visconti estaria no Verdi e na correspondência histórico-temporal do Trovador, o elemento que era melodramático mas que também era realista de Senso.
              
                        

Transpôr a estética e as regras do melodrama para a possível vida real – escopo de um Visconti herdeiro da grande tradição cultural italiana, esteticamente imbuída desse mesmo estilo melodramático: a ópera vivida sobre o quadro da realidade.
Na verdade, as relações de Visconti com o melodrama eram muito chegadas, vinham de família, o tio Guido Visconti fora um dos refundadores do Teatro Scala de Milão. Aliás, no ano de estreia de Senso, 1954, no dia 7 de Dezembro, o Scala inaugura a temporada com uma encenação de Visconti (julgo que a primeira encenação operática que faz) para um melodrama dos tempos napoleónicos – La Vestale, de Spontini. 
A unificação política de Itália é uma realidade, pode dizer-se que nascida sob os bons auspícios do melodrama, na vertente poética como na vertente lírica.
Íntima correspondência entre realidade histórica e realidade cénica: intimo conflito no seio do binómio das realidades, a realidade que é, e a realidade que não é, mas que pode ser mais real do que a que é: assim se caracterizou para muitos a essência da chamada tragédia rissorgimentale e do melodrama lírico italiano até à metade do sec. XIX.
Numa arriscada tentativa de analogia chamo à conversa Marc Ferro, crítico de cinema, quando diz que a funcionalidade histórica do cinema se desdobra entre a apreciação do filme sob o ponto de vista da História, ou a apreciação do filme enquanto visão de um passado, uma leitura da História feita através do cinema.
Foi nesta dualidade funcional do cinema que a obra de Visconti precisamente se afirmou, em Senso, como no Leopardo, como, num particular lance da História italiana da época contemporânea, em Rocco e os Seus Irmãos – ou, se quisermos, com Ludwig, na História dos balanços ainda hoje conflituais entre indivíduo, Estado e cultura.
Senso  remete assim para o período histórico em que a Itália se faz, o Rissorgimento, quando os destinos individuais se vão cruzar com as conjunturas políticas que a História registou.
Em certo sentido (senso), e de algum modo evocando o anteriormente citado de Marc Ferro, Senso incorpora factores históricos a duas valências, a do passado, de que dá testemunho, e a do tempo histórico-cultural circunstancial da sua concepção e feitura, em plena guerra fria.
No segundo caso estão as intervenções censóreas dos poderes políticos e militares, num ambiente dominado pelos ditames do único partido de governo no pós-guerra italiano, a democracia-cristã, bem como as condicionantes relacionadas directa ou indirectamente com o anteriormente dito e que lhe afectam as condições de produção e de comercialização.
Por exemplo, Visconti não previa terminar o seu filme com aquele final algo apressado em que a condessa Serpieri denuncia o amante e em que o amante é presente ao pelotão de execução e fuzilado. No final primeiramente escrito (e rodado), a condessa vagueava pelas ruas entre soldados austríacos bêbedos, em que um deles cantava, chorava e dava vivas a Áustria e ao império austro-húngaro (também ele em decadência acentuada, prestes a desaparecer da História). E não havia fuzilamento. O tenente austríaco, depois da cena canalha, era deixado no apartamento com a rapariga e não se queria saber mais dele, era abandonado à sua sorte ficcional, o destino dele não interessava a mais ninguém. Livia caminharia pelas ruas no meio dos soldados e das raparigas da vida como se mais uma delas ela fosse.

Sim, mas este final foi considerado perigoso pela censura italiana de 1954. O vilão (estrangeiro, ocupante) não era castigado, e a heroína aristocrática, italiana, ficaria por demais exposta à ignomínia, à desonra. Era perigoso. E a cena foi cortada. E o negativo foi queimado. E o novo final, o que se vê, o do fuzilamento, foi filmado tempos depois, já não em Verona mas em Roma, num castelo de Sant’Angelo que nada tinha a ver com a história – aquela história, claro.
Porque a estreia de Senso cai em plena guerra fria, com a democracia cristã eternizada no poder desde 47, e a cumprir aquilo a que alguém (se não me engano Moravia) chamou uma ditadura democrática. E Senso funcionaria de algum modo como bandeira política que confrontava culturalmente aquele tempo italiano dos anos 50, tal como os acontecimentos narrados questionavam a desgraçada situação italiana do século anterior.
A apresentação do filme dá polémica. Porque Senso circulava por uma das mais duras e vergonhosas derrotas militares da Itália. E daí as outras cenas (as de batalha) serem cortadas pela censura por ofensivas da dignidade do exército italiano.

 
Também se viu e discutiu muito o filme no estético plano das dicotomias do realismo. Foi apreciado como produto, ainda, de um neo-realismo esteticamente ultrapassado; foi por outro lado apreciado precisamente como obra que superava as limitações do mesmo neo-realismo, e que alguns sintetizaram como uma nova fórmula que tinha em vista a passagem da mera crónica à História.
O compromisso entre realizar um filme histórico ou um filme intimista tecido de histórias individuais é comentado pelo próprio Visconti: não quis fazer um filme histórico como algo de diferente do que foi a minha obra até aqui, o que quer dizer que não abandonei nem abandonarei a linha do realismo cinematográfico que até hoje tenho seguido. Não perderei o contacto com as minhas personagens só porque elas vestem roupas oitocentistas.
A aventura amorosa de Senso e respectivas circunstâncias aludem perfeitamente ao momento crepuscular da História de Itália no tempo da acção do filme. A adúltera condessa de Serpieri e o tenente austríaco desertor, traidor à honra militar e aos valores pátrios, prefiguram-se com simbólicas da decadência de um dado mundo – ou, se se quiser, prenúncios de uma nova viragem da História.
Um cínico sem escrúpulos, moralmente degradado e uma aristocrata romântica, deprimida e vingativa são figuras de um tempo histórico e social determinado, de um mundo e de uma cultura perdidos para sempre. São, enfim, personagens de melodrama teatral, desta vez desligadas da lógica das marcações e convenções do palco; desta vez revistas e actualizadas pelo realismo cinematográfico de Visconti. Teatralidade e nobreza espectacular, como quis André Bazin, conciliadas com o refinamento estilístico aplicado à realidade em estado bruto.

 
Haveria então um deliberado sentido de História na concepção de Senso, quanto mais não fosse pelo título primeiramente pensado, Custoza, o nome da tal desditosa batalha da qual, no filme, se faz uma stendhaliana reportagem, e que resultou numa derrota aviltante para as cores italianas.
E por falar em Stendhal, e em batalhas, tem que se dizer que Visconti pensou muito em Stendhal. E teve mesmo como projecto de filme uma adaptação da Cartuxa de Parma. E disso há ecos neste filme, Senso, nomeadamente no modo confuso como são filmadas as sequências de batalha, evocando o jovem herói stendhaliano Fabrice del Dongo ao atravessar as linhas da batalha de Waterloo sem nada compreender, testemunha da História mas impossibilitado de intervir, porque impossibilitado de compreender essa mesma História, a que estava a viver e à qual ainda daria o nome de realidade presente e não de facto histórico.
A censura interveio, indignadíssima, ainda em fase de escrita do argumento: aquele nome da batalha, Custoza, era para esquecer; a própria História italiana era para ser apagada naquele lance do tempo.
Visconti declara que na sua obra prefere contar as derrotas, falar das almas solitárias, dos destinos interrompidos… falo de personagens de que conheço bem a história, e talvez cada um dos meus filmes oculte outro, o meu verdadeiro filme, nunca realizado, sobre os Visconti de ontem e de hoje.
Visconti interessava-se pela atitude do Homem quando colhido pela História, superando-se ou sujeitando-se. As suas histórias são fragmentos da História de homens que vivem entre as coisas. Apoderando-se dela, História, um homem tenta transformar-lhe o curso aparentemente pré-determinado.
Quando se é colhido pela História abre-se o espaço à consciência individual.
A família aristocrática, a família Visconti, em desagregação e decadência, mas absolutamente imprescindível no que respeita aos valores éticos e aos afectos, será substituída na vida e na obra do artista Luchino Visconti por um extracto social de que Visconti se achava social e culturalmente distante, mas com o qual se irmanava, e no qual acreditava como depositário dos valores dominantes de um devir histórico, após as catástrofes burguesas das I e II Guerras. Esse extracto social emergente como força histórica dominante era o povo, eram as classes trabalhadoras, que numa abordagem marxista sucederiam à burguesia historicamente esgotada, uma burguesia admissivelmente detestada por Visconti enquanto classe portadora e veiculadora de valores que ele recusava e que não eram os da sua própria e aristocrática História familiar.
De duas, uma (para a concepção viscontiana da vida e do  mundo): ou o refinamento e a dominação efectiva e senhorial dos seus; ou os despojamentos, a indefesa institucional e a nudez cultural dos operários agrícolas, dos descamisados do sul, dos pescadores da Sicília, sobre os quais repousaria doravante a nobreza de carácter e a moral reescrita por eles da própria História. Nada a ver com o burguês eventualmente endinheirado, instalado, ignorante, pretensioso, sem estética porque sem valores nobres a defender. 
Visconti acompanhava as análises teóricas dos partidos comunistas de então: o fascismo, ou o nazismo, representariam a fase final do capitalismo no mundo, a luta de classes chegada ao seu ponto extremo, e a essa fase, muito científica e naturalmente, se seguiria a formação da sociedade socialista.
Mas a História não deu razão a Visconti. Nem a ele nem a muitos outros dos seus companheiros.
Não foi a classe operária nem a classe camponesa, não foi o povo que sucedeu à burguesia, nem a sociedade socialista se instalou em lugar da sociedade capitalista em ordem a uma sequência teórica da História e a uma reposição de valores humanos. Não foi o povo que sucedeu à burguesia no comando do gosto e da vida. A História traiu Visconti. O povo o que quis foi também ele ser burguesia – de preferência com dinheiro, capitalista, decadente.
É com Jean Renoir, em Paris, em tempos politicamente agitados do Front Populaire a anteceder a invasão nazi, que Luchino Visconti, o jovem e elegante aristocrata milanês criador de cavalos, o rico e diletante Luchino, frequentador da suite do Ritz onde vive a amiga Coco Chanel, toma consciência das realidades políticas e da sua pessoal situação histórica.

                                                                


E Visconti vem a tomar partido na luta de classes. Visconti está presente na acção colectiva. Integra-se na resistência italiana. Chega a ser preso. É libertado – seguramente devido ao nome.
A consciência individual é o elemento propulsor de uma acção. E Visconti tomou consciência. Ele, o proustiano Visconti, o conde Visconti, o melodramático Visconti, o progressista Visconti, o decadente Visconti…


A História traiu Visconti. A convicção materialista-histórica de Visconti quanto ao desenvolvimento da luta de classes estava errada. Nada se passou como, teoricamente, deveria ter-se passado. É aí, nesse falhanço, nessa decepção, nessa amargura profunda, nesse crepuscular e nostálgico esteticismo, nessa decadência ideológica, que está muito da beleza do cinema de Visconti.
 
A História, antes de ser escrita e teorizada é vivida, e este é o filme de um homem que viveu intensamente a sua História e a História do seu país, uma História que pode ser vivida e escrita nos campos de batalha, nas ruas, nos gabinetes, mas também sobre as tábuas de um palco ou na plateia de um teatro…. ou num écran de cinema.


Por menos que pensemos no assunto, ou por mais que as vicissitudes da vida corrente nos façam esquecer dela, a verdade é que desde o nosso nascimento até à morte, estamos a vivê-la, a História, as mais das vezes sem podermos intervir nela por não a estarmos a compreender.





domingo, 26 de maio de 2013

       DESOBEDIÊNCIA


         Lembro-me de há anos,  já um rôr deles, ao ser questionado sobre o seu passado de militância num partido da extrema esquerda revolucionária, o Dr. Durão Barroso, actualmente empregado numa empresa de Bruxelas, replicou aos jornalistas (e cito de memória) que quem não era revolucionário aos 18 anos dificilmente seria um bom social-democrata aos 40 – uma resposta que já não era nenhuma originalidade, posto que copiava um dito do chanceler alemão Willy Brandt.
Quererá então isso dizer que um homem  nunca será zeloso guardião das instituições e do normal funcionamento delas se, no devido tempo da sua vida, não praticou com igual zêlo os seus actos de transgressão e desobediência às mesmas instituições e à ordem vigente?


Quererá isso dizer que dificilmente se será um bom e disciplinador pai se não se tiver cultivado enquanto filho alguma desobediência, alguma contestação à autoridade paterna?
Quererá isso dizer, ainda, que a experiência do Mal que se encerra numa desobediência pode ser um rito indispensável de passagem para a condição de defensor dos bons valores?
Já li nalgum lado que antigamente as crianças da aristocracia, por mais que prevaricassem e desobedecessem, eram bastante poupadas no capítulo dos castigos corporais, porque se dizia que esse tipo de punição era mais adequado ás crianças das classes servis. Para os nobres haveria sempre a honra, o acicate da honra, e era desse discurso da honra de que os nobres se serviam quando era de zurzir a prole desobediente. Para a nobreza, só como último dos recursos era de admitir o castigo corporal dos filhos depois de estes chegarem a uma idade que lhes permitisse raciocinar. Num descendente da nobreza, com a razão vinha sempre o orgulho e a soberba próprios de um sangue tomado como excepcional. E era a honra, a sua e a de sua família, o que estava em jogo se algum mestre-escola mais atrevido os castigasse fisicamente por não saberem as lições.
Mas o exemplo de Felipe II parece desmentir tudo isto. Felipe II, que não foi dos mais assanhados revolucionários que a História tivesse conhecido, antes de, em idade adulta, dominar metade do mundo com mão de fogo, teria sido, por volta dos seus 4 aninhos de idade, um estafermo de um puto desobediente,  sujeito a vergastadas e a castigos corporais de vária ordem, e mais que muitos, aplicados com uma barbaridade que punha em alvoroço o coração das mulheres da corte quando viam açoitar tão desapiedadamente aquela doce criaturinha – que, pelos vistos, aos 4 anos já devia ser uma boa prenda…
Mas agora, ainda no balanço de um ano de Wagner, ocupo-me de deuses. Aliás, deuses, semi-deuses e estranhas criaturas chamadas valquírias, cavaleiras da obediência absoluta às vontades paternas e divinas – o que era a mesma coisa, pois eram filhas de Wotan, o deus.


Siegmund pereceu no combate com Hunding, só porque Wotan, respeitador dos pactos feitos coma mulher, Fricka, fez despedaçar a espada mágica (Nothung), deixando Siegmund, o eleito do seu coração, desamado, à mercê do sanguinário Hunding. E na hora de agir em campo de batalha segundo os ditames do deus seu pai, a posição de Brünhilde era delicada, para não dizer insustentável. Sabia o quanto representava para Wotan e para a estirpe dos deuses o ser que a amante e irmã gémea de Siegmund, Sieglinde, tinha no ventre – Siegfried. E como sabia isso decidiu protegê-la após a derrota e morte de Siegmund, o pai da criança que haveria de nascer, não ignorando por certo que iria cair sob a terrível alçada disciplinar do pai.
Brünhilde encaminha Sieglinde para a floresta densa e perigosa, e que por ser densa e perigosa pode ser o lugar que oferece melhor protecção. E depois Brünhilde corre o campo de batalha a recolher os pedaços dispersos da espada mágica. Mete-os no bornal de Sieglinde e anuncia-lhe que aquele filho que ela traz no ventre terá de nascer dê lá por onde der, e ainda que nas condições mais adversas. Anuncia ainda a Sieglinde que aquela espada agora destroçada haverá de ser reconstituída, e que com ela o filho que Sieglinde dará à luz, e que se chamará Siegfried, virá a ser o herói independente que Wotan sonhava para continuar a obra dos deuses. Sieglinde exprime a sua gratidão à valquíria e interna-se na floresta.

Mas a soberana e sublime vontade de Wotan havia sido miseravelmente dobrada por sua esposa, Fricka. Visto isso, Wotan nunca poderá perdoar a Brünhilde a desobediência. Wotan não perdoará Brünhilde o ter querido ajudar Siegmund contra Hunding, o ter arranjado maneira de proteger e encaminhar Sieglinde grávida pela floresta, ter-lhe metido no farnel os pedaços da espada. Mas onde e que já chegámos? Wotan, o deus dos deuses, quer ajustar contas com aquela filha tão predilecta e tão desobediente, e então, iracundo, corre as montanhas bradando o nome da filha, até aparecer no lugar onde estão reunidas as valquírias, as irmãs, que procuram esconder a foragida da raiva do deus dos deuses.


- Onde é que está essa atrevida? – grita Wotan- - E vocês… ousam escondê-la de mim? Tende tento, insolentes, e afastai-vos da que foi rejeitada para sempre, tal como ela rejeitou a sua honra.
Digamos então que Brünhilde, no mesmo acto, obedeceu e desobedeceu simultaneamente. Desobedeceu à razão de Estado que impunha ao pai, Wotan, a morte daquele que até então, e desveladamente, tinha protegido, Siegmund. Desobedeceu á razão de Estado que obrigava à morte daquela, Sieglinde, que trazia nas entranhas o frutos dos amores incestuosos, fruto que uma vez nascido, e quando já espigadote, seria o único com condições de salvar da perdição a estirpe dos deuses.
Mas Brünhilde também no mesmo gesto obedeceu. Obedeceu à razão humana e à mais íntima das vontades do pai, que era a de salvar Siegmund e Sieglinde, uma vontade que a guardiã da decência, dos bons costumes e da moral conjugal, Fricka, a mulher dele, conseguira anular.
O capricho e a instabilidade de pareceres e de vontades pode ser atributo dos deuses, assim como, não sei, alguma irracionalidade. Um  capricho ou uma irracionalidade capazes de acometer de vez em quando quem tenha nas mãos o mando, um mando qualquer, a vontade absoluta, o poder absoluto sobre alguém.
Já em novo, para assegurar a posse de Fricka como esposa, Wotan fora obrigado a privar-se acidentalmente de um olho. E há quem interprete esse simples detalhe como significativo de uma quebra de lucidez por parte do deus dos deuses, uma limitação da capacidade de apreender o mundo que criara, o dos outros e o seu, uma limitação, enfim, da sua capacidade e da sua vontade de poder.
- Foi ela que nos procurou – justificam-se as valquírias.- Foi ela que buscou a nossa protecção. Pai, acalma a tua ira. Ouve as razões dela.

Wotan considera-as no fim de contas umas cobardolas, ao vê-las condoídas pela sorte da irmã.
- E eduquei-vos eu na bravura e no combate. E dei-vos eu corações duros e impiedosos! Nunca esperei que se pusessem a choramingar quando na minha justa cólera decido castigar uma infiel.
E o deus dá-se a maçada de explicar às suas filhas guerreiras o sentido da malfeitoria de Brünhilde:
- Ela conhecia como ninguém os meus desejos mais profundos. Conhecia a própria nascente da minha vontade. O meu desejo era nela que se encarnava. Mas ela rompeu a nossa aliança sagrada. Rebelou-se contra a minha vontade. Escarneceu das minhas leis soberanas. Voltou contra mim a arma que lhe confiei…
Não me digam que na desobediência familiar não está integrado um forte sentido de sacrilégio, quando os actos fundamentais da vida de família, nascimento, casamento (fidelidade ou adultério), morte, comportaram em todos os tempos, e ainda hoje, um carácter social e ritual; e quando os laços estabelecidos e os estados que desses laços decorrem determinam uma consagração a poderes superiores. É aí que toda a desobediência no quadro da família representa um atentado contra esses poderes superiores.
A organização social tradicional alguma coisa repousou em dois vértices importantes: um, o parentesco; e outro, os grupos de idade. Estabeleciam-se direitos, deveres, obrigações; normas definidas, prescrições estreitas. Era bom acalentar dentro da família certos sentimentos relativamente a certas personalidades integrantes do grupo. Por assim dizer, uma normativização dos sentimentos que levasse ao respeito e à deferência mais por uns do que por outros. E era preciso ajudar mais uns do que outros, os de mais idade, ou os de superior posição social. A obediência é um patamar cimeiro da boa ordem natural da família.
        E Brünhilde aparece.
        - Aqui estou, pai. Qual é o teu castigo?
        Não. Wotan adianta que nem será ele a punir a desobediente. Será ela a autora do seu próprio castigo.
        - Não existirias se não fosse essa a minha vontade. E tu ergueste-te contra a minha vontade.
        Brünhilde alega:  tinha-se limitado a executar as ordens que recebera do pai;  até ao dia em que, movida por sentimentos ainda não arregimentados a vontades estanhas, dera a si própria uma ordem que contrariava as prescrições paternas.
        - Eras a minha filha segundo o meu coração, e ergueste o teu coração contra mim…
         Não me digam que desobedecer não é infringir as altas vozes das instituições, dos poderes, os estatais, os familiares. Não me digam que desobedecer não é muitas das vezes subalternizar, e desafiar,  o apelo da tradição e da estirpe, e das normas, e até do que se chama honra.
E quantas vezes desobedecer não é também obedecer?
Obedecer a uma outra voz, muito íntima, sibilina, a voz que nos chama ao cumprimento da nossa soberania pessoal.


Por vezes cedo demais, é certo, e destemperadamente, segundo a vontade e o parecer dos mais velhos, pelo menos, dos outros, do mundo.


- Confiei-te o cuidado de decidires a sorte dos combates, e tu decidiste um combate contra mim. Encarreguei-te de encorajar os heróis, e tu agitaste um herói contra mim. O que tu eras outrora disse-to eu mesmo. O que passarás a ser a partir de hoje serás tu a dizê-lo. Mas por certo não serás mais o que ainda és agora. Não, não serás mais a enviada de Wotan. Não mais levarás os vencidos ao meu palácio. No íntimo banquete dos deuses não mais serás tu a estender-me afectuosamente a taça. Não, não receberás mais de mim o beijo paternal. Foste expulsa do exército celeste. Foste excluída da raça dos imortais. A nossa aliança quebrou-se…
Ser revolucionário é querer a perdição das instituições aos 18 para ser um bom governante aos 40. Revolução é para as almas novas. Governação é caso para cabeças avisadas.
Mas não será verdade que em todos os tempos a  vida humana se fundou sobre a proibição? E não será verdade que a proibição é o que acrescenta aquele sentido embriagante de liberdade que enche a boca a tribunos, a legisladores, a panfletistas, a políticos?
Sim, a políticos, depois de chegados aos 40, e depois de saberem por experiência o que significa a danação dos 18.

Será por isso que as ditaduras tenham sido bons alfobres de democratas do mais alto coturno (os que lhe estiveram contra, claro), e o todo-poderoso e inflexível e infalível Estado tenha sido então uma escola de libertários…
E se a vida humana assenta muito numa cadeia de proibições, então é porque assenta também  numa grande e naturalíssima vontade de transgressão. E então a transgressão passa a ser o grande meio de salvação do Homem, porque a capacidade de transgredir um destino formatado e inelutável é que preside à transformação do primata num homem…
Wotan decreta a expulsão de Brünhilde do número das valquírias. A virginal flor que era seu atavio fanar-se-á como por encanto. Um homem, um vulgar esposo, obterá dela os favores de mulher, e a esse esposo ela passara ingloriamente a obedecer como a um senhor, sentada diante da lareira a fiar a roca, a fazer os trabalhinhos domésticos – a ver a novela, a lavar a loiça, a preparar o lanche para os miúdos levarem para a escola – a sujeitar-se às zombarias que os homens usam fazer abater sobre a condição feminina. As outras valquírias que fujam dela, que desapareçam depressa daqueles lugares.


- Mas, pai,  será tão desgraçada e vergonhosa a minha culpa para ser punida desse modo também tão vergonhoso?
- Ordenei-te que combatesses por Siegmund…
- Pois foi…
- Mas depois não voltei atrás com a ordem?
- Porque Fricka te influenciou! Só por isso… só por isso, tu, pai, te tornaste inimigo de ti mesmo.
(Atenção: Fricka não era mãe de Brünhilde; e assim se percebe que a valquíria meta veneno ao pai contra a madrasta.)
- Não me compreendeste então. Foi o desafio que me fizeste que castiguei. Porque me julgaste cobarde e estúpido e incapaz de vingar a tua traição…
- Oh, pai, eu sabia que tu amavas Siegmund, sabia o conflito que te minava o coração. O teu coração estava dividido, amargamente dividido. Partilhar com Siegmund a vitória ou a morte: só essa seria uma atitude digna de mim.
- Sabias tudo isso… e continuaste a protegê-lo…
Quando, na proximidade da hora do combate, Brünhilde falara com Siegmund e lhe anunciara a morte como vontade suprema de Wotan, exactamente quando ele mais contava com a protecção divina, a valquíria sentira vergonha pela vontade tão caprichosa de seu pai. Nesse momento, Brünhilde deixara-se tocar por uma infinita compaixão, perante a angústia e a confusa perplexidade do rapaz. O coração dela bateu então muito forte, a sua visceral humanidade varreu-lhe da cabeça os deveres de obediência cega, institucional.
Não sei se Brünhilde teria 18 anos. Era capaz de não andar muito longe disso. Era ainda muito jovem, de qualquer das maneiras. Ainda tinha a mania de acordar todas as manhãs muito cedo lá no Walhalla, a residência dos deuses, e desatar aos gritos de guerra pelos corredores, muito bem disposta. Jovem e generosa, Brünhilde seguira a voz da sua compaixão. Esquecera os deveres de Estado.


Wotan ouve-lhe as humaníssimas razões e vai aplacando a própria ira.
O conflito pessoal de Brünhilde, ditado talvez pela sua juventude, situava-se nos limites da humanidade presente na consciência da que fora treinada (uma SS?) para a inflexibilidade e para a obediência. Pisara por isso o risco vermelho da insubmissão. Forçara as fronteiras impiedosas e definidas pelas palavras sagradas do pai, a instituição.
Brünhilde metera-se a interpretar em actos a subjectividade sagrada do pensamento do pai quando este lhe ordenara a morte do ser que ele próprio amava. Interpretando a subjectividade, Brünhilde cumpre nesse acto uma objectividade. Tem de assumir por inteiro a objectividade desse acto. E também por isso Brünhilde desobedece e obedece: obedece objectivamente à sua soberania pessoal; desobedece às regras imprecisas do subjectivo. Entra portanto em choque com a manifestação máxima do sagrado: a sua subjectividade.
- Comprazias-te nas doçuras da pura felicidade e vazavas a taça do amor, enquanto eu me mortificava na minha divina angústia.
Wotan já não era criança nenhuma; já estava um deus maduro. Mas mesmo quando se arma em durão lá bem no fundo não pode deixar de compreender as razões da filha. O que faz é reflectir sobre a sua própria impotência perante o contrato leonino que Fricka, a mulher, lhe impusera. A Wotan só lhe apetece desaparecer entre as ruínas do universo que criara.
- Não compreendes, pai, que só tive como  lema de vida amar aquilo que tu amavas? Ouve, pai, não podes deixar cair na desonra aquela que eternamente é parte de ti mesmo. Não podes desprezar a metade de ti próprio. Um deus não esquece…
- Sucumbiste aos poderes do amor, foi o que foi. Deixaste-te conduzir por um espírito leviano. Desligaste-te de mim. E também eu me devo afastar de ti. Já não tenho o direito de partilhar contigo os meus mais secretos desígnios.

A sentença era deixar Brünhilde profundamente adormecida no pico da montanha. E que adormecida ficasse até que o primeiro que por ali andasse a vaguear a despertasse e a tomasse como esposa. Brünhilde rebela-se contra esse castigo.
- Se preferiste o amor, então sujeita-te áquele que te encontrar e ao qual terás de amar…
- Pai, tu deste orígem a uma nobre estirpe. O mais valente dos heróis, sim, esse perpetuará a linhagem dos Wälse.
- Já não quero saber da linhagem dos Wälse. Assim como me separei de ti também dela me afastei. A inveja acabará por dar cabo dela…
- Mas pai, Sieglinde erra na floresta. Tem no ventre o sagrado fruto da tua raça de deuses…
- Não procures mais junto de mim  protecção para essa mulher nem para o fruto daquele amor incestuoso.
- É essa mulher que tem os restos da espada encantada que ofereceste a Siegmund!
- Sim, mas que depois despedacei com a minha lança!
Em presença daquela inflexível vontade de pai e de deus, e na perspectiva da desonra que seria para uma valquíria ficar magicamente adormecida à disposição do primeiro que passasse, Brünhilde abraça-se aos joelhos de Wotan e implora-lhe uma última mercê. 
- Prefiro, pai, que me destruas. Prefiro morrer na ponta da tua lança do que sofrer o castigo que me destinaste – pelo rosto da valquíria perpassa um fulgor de inspiração heróica. -  Manda ao menos que um fogo alteroso se ateie em redor da montanha. E que esse fogo consuma o cobarde temerário que tenha o arrojo de se aproximar.
Ouvindo isto, uma funda comoção assalta o deus dos deuses ao olhar a filha ajoelhada a seus pés.
        - Adeus, soberba e valente criança. Adeus. Se me vejo forçado a abandonar-te, se nunca mais poderás cavalgar a meu lado, se nem no banquete dos deuses poderei voltar a receber de ti a taça do hidromel… então que a chama de um fogo nupcial te envolva como nenhum outro se acendeu para uma noiva… e que todo o cobarde fuja do rochedo de Brünhilde, e que a noiva seja liberta por um ser mais livre do que eu próprio, o deus…


            Estava mesmo a dizer: esse ser seria Siegfried.
        Já se sabe que o mais certo é o princípio da desobediência afirmar-se como um dos mais poderosos e inconcebíveis motores da História, e será a perspectiva de uma desobediência o fantasma mais temido de todo o poder, de toda a autoridade. E para que precisávamos nós de autoridade se a desobediência não fosse um estado puro e natural da condição humana?
        Wotan continua a despedir-se da filha:
        - Esses olhos brilhantes, que tantas vezes, sorrindo, eu beijei quando o estrondo da batalha te valeu um beijo… quando, com voz de criança, os teus lábios pronunciavam o louvor dos heróis… esses olhos que tantas vezes na tempestade brilharam para mim… esses olhos… oh, que seja hoje a última vez que o meu coração com eles se regozije…
        E com um último beijo, Wotan retira de Brünhilde a essência divina.


        Wotan enfrentara uma desobediência mais perigosa do que a simples rebeldia filial, uma desobediência que lhe vinha de quem não era seu inimigo jurado, de quem não era seu adversário declarado e natural. Wotan confrontara-se com a insubmissão de alguém cujo sentido da vida e a consequente lógica de sopro divino residiam exactamente na obediência ao deus e ao pai; alguém, aliás, cuja vida, ou cuja essência divina não tinha qualquer sentido fora da obediência.


    Uma língua de fogo cresce nas silvas, aumenta, aumenta…
        Com a lança, Wotan desenha no espaço o círculo de fogo que haverá de rodear o sono de Brünhilde. Em breve aquele lugar se tornará infrequentável para um simples mortal.
  Depois, Wotan, magnífico, cabelos iluminados pela labareda, exibe os restos do seu poder, proclamando em terrível voz:
        - Que  aquele que temer a minha lança jamais possa franquear este círculo de fogo!
        O acto de insubmissão de Brünhilde à vontade do pai foi a marca de uma razão natural a perturbar o curso do determinismo e do arbítrio dos poderosos deuses. Foi a liberdade de um gesto humano a transgredir os descricionários códigos do poderio. O crepúsculo dos deuses avizinhava-se. Nem o salvamento do herói Siegfried poderia evitá-lo.
                                 
                                                

        Mas quando soar a última nota da última das óperas da tetralogia, o Crepúsculo dos Deuses, justamente, é como se Wagner, a alma gémea de Wotan, o demiurgo, o mistagogo, tivesse deixado em aberto a escrita do resto da História da Humanidade.

                                         
        
           E se há coisa em que acredito é nisso: a insubmissão aos 18 anos é o sal da nossa vida; só essa rebeldia poderá humanizar a  nossa idade madura, o resto dos nossos dias.

                                     
       
        (Só foi pena eu, ao falar de deuses, semi-deuses, demiurgos, ter apontado logo no princípio para a medíocre figura de D. Barroso. Poderia ter encontrado melhor do que um acinzentado funcionário, do que um burocrata obediente e carreirista.)