O SENSO, DE VISCONTI, OU O
MELODRAMA OITOCENTISTA ITALIANO
ENQUANTO AGENTE DA HISTÓRIA
O
melodrama ficou com má reputação quando os seus defensores o abandonaram a
interpretações esquemáticas e convencionais. Mas em Itália o género acha uma
natural disposição do povo, embora se adapte bem a um público europeu, pela sua
estrutura unitária e muito directa. Amo o melodrama porque ele se situa
exactamente fronteira entre a vida real e o teatro. Palavras do próprio Luchino
Visconti.
Senso, o filme, funciona como transposição para o
cinema justamente daquela categoria estética que irá ter desempenho decisivo
enquanto veículo ideológico e elemento dinamizador e propagandístico de uma
nova ordem política: o melodrama, fosse ele em prosa, em verso ou em música.
Melodrama esse alimentado pela História, e restituidor dessa História a actuar
sobre o real imediato.
Porque nos achamos em pleno ano de
Verdi, diria que os traços do melodrama verdiano são mais do que evidentes em Senso, e com a linha melodramática a prosseguir sob a
música de Bruckner, de modo embora menos directo, e desde o momento em que, na
concepção do realizador, era forçoso que a música sustentasse o desenvolvimento
dramático e assim conferisse às personagens um recorte que era realista, bem entendido, mas que não
deixava de ser romântico. Ou melodramático.
As sequências iniciais do filme Senso estavam para ser rodadas na Praça
de S. Marcos. A mudança para o interior do La Fenice relevaria do simbolismo da
associação de Veneza a um espaço teatral, a um jogo de espelhos, realidade e
ficção, que do interior do La Fenice se iria expandir pela cidade alargando as
significações, tornando a cidade mesma um lugar de representação, espaço de
melodrama, cenário de uma teatralidade de transgressão, visto ser da
transgressão a diversos títulos que trata o filme – a subversão contra o ocupante; a condessa
descendente de uma família tradicional veneziana que se apaixona por um oficial
do exército inimigo; a traição da condessa entregando ao amante os valores que
lhe foram confiados para ajudar a causa da luta contra o inimigo ocupante; a
transgressão do oficial perante a moral militar subornando uma junta médica que
o dá como inapto para o combate; a transgressão da condessa à moral dos amantes
quando, por vingança, denuncia ao alto comando austríaco o oficial seu amante
como desertor, condenando-o ao fuzilamento.
A pintura de uma paixão trágica,
melodramática, centrada directamente num episódio colectivo ou patriótico, mas
num caso particular, sobre uma história privada. É o contexto histórico que,
por assim dizer, universaliza o adultério da condessa Livia Serpieri e todas as
demais transgressões envolvidas num stendhaliano amour fou, a paixão amorosa que melodramaticamente rompe os
limites do razoável.
Note-se ainda, historicamente, o
momento crucial e contextualizante do filme, a apontar o princípio de
decadência efectiva da aristocracia italiana enquanto força cultural e
socialmente preponderante. Morte e loucura enquadram, melodramaticamente, esse
momento histórico de aniquilação.
Todo o cinéfilo se lembra da cena
inicial. O momento mais heróico do Trovador,
de Verdi a ser cantado no palco perante uma plateia de oficiais austríacos
ocupantes e nobres venezianos com eles de certo modo confraternizantes. No
momento da cabaletta Di quella pira, quando o tenor e o coro
gritam às armas, a ordem pública é alterada e a outra parte do público, os
patriotas venezianos da galeria, levanta-se num clamor patriótico e lança
panfletos sobre a plateia.
O Teatro La Fenice, que foi um
símbolo da resistência patriótica dos italianos ao ocupante estrangeiro nos
dias do Rissorgimento. É uma verdade.
Mas essa cena do filme talvez não tenha acontecido. Ou antes: aconteceu
realmente, pelo menos uma vez, mas não com o Trovador. De certeza, sabe-se que o levantamento patriótico no La
Fenice se deu numa récita de Macbeth,
do mesmo Verdi, no momento em que o coro cantava as palavras la patria tradita, piangendo m’ínvita… a
pátria traída e chorosa incita os irmãos oprimidos a correr a salvá-la. Os
austríacos presentes no teatro ficaram aterrados. E esse foi o dia da primeira
insurreição veneziana contra os austríacos. 6 de Fevereiro de 1848. Houve
arruaças pelos canais. Os notáveis venezianos mais patriotas que assistiam à
récita, e também o barítono Felice Varesi que cantara o protagonista, vão-se
aos armazéns de adereços, sacam inofensivas espadas de teatro e correm para as
ruas e para a Praça de S. Marcos a ameaçar os austríacos, que apesar de tudo
não estavam a achar graça nenhuma e alguma coisa se temeram…
O filme Senso decorre na atmosfera daqueles anos de brasa da vida italiana,
é certo, mas estiliza os factos, mediatiza-os, não se refere de forma
estrutural e deliberada aos aspectos políticos e sociais, deixando embora a
descoberto as pontas de algumas questões implícitas, como os dilemas entre o
compromisso e a atitude frontal: a alta burguesia que comerciava em causa comum
com o inimigo ocupante estrangeiro, e alguma jovem aristocracia que conspirava,
dava a cara e pegava em armas.
No que se refere à dívida que a
História italiana tem para com a actividade teatral italiana da primeira metade
do sec. XIX, Visconti dedica-lhe eloquentíssima alusão, não somente pela
desordem no Teatro La Fenice, como também pelo estilo melodramático de
representação e expressão corporal e gestual dos seus actores, tão marcadamente
enfáticos e teatrais – reparar em especial na expressão dos olhares, nas
atitudes corporais e no gestual da criada da condessa, interpretada pela grande
actriz de teatro Rina Morelli, numa expressividade marcadamente teatral, diria
mesmo operática, a ir ao encontro dos pressupostos estéticos estabelecidos por
Visconti...
O princípio de sublevação
patriótica da cena de abertura do filme, será uma cena de passagem, mas marcará
o tom operático e verdiano do filme.
Uma historicização, digamos, do
tempo, da acção dramática e das personagens no Senso impeliu Visconti na
senda do melodrama italiano, já de si tão carregado de memórias de vida e de
História. A quinta-essência do espectáculo era o melodrama, no pensamento de
Visconti. E assim por considerar o melodrama a mais harmónica fusão e o modo
mais eficaz de integração dos elementos dos diversos géneros de espectáculo que
lhe interessavam.
Uma síntese, o melodrama. Uma
síntese de todas as artes. O espectáculo total e integrador de todas as artes,
que foi a ópera, em Oitocentos, que seria o cinema, em Novecentos – que será a
televisão e o computador no terceiro milénio que vivemos. Um cinema, forma
espectacular nova à qual Visconti ambicionou integrar o elemento mais
distintivo da grande cultura retintamente italiana. Como escreveria Suso Cechi d’Amico, colaboradora de sempre: era isso que procurava o decadente Visconti,
o proustiano Visconti, o conde Visconti – enfim, diria eu, o oitocentista
Visconti, herdeiro de um nome pelo qual já de si parte da História de Itália
perpassava.
A contribuição teatral para o
processo histórico que desembocaria na unificação – processo e período
históricos a que se chama de
Rissorgimento – foi uma contribuição indirecta de divulgação de ideias
libertárias e de ideais patrióticos. Foi elemento capital na criação de uma
atmosfera geral e nacional de paixão política e de militância que logrou até a
reunião de entidades politicamente divididas.
Não obstante a vigilância
censórea, cada espectáculo corria entre invectivas ao opressor estrangeiro,
incitamentos populares à rebelião, à liberdade, chamamento à morte pela pátria,
gritos de invocação a uma Itália unida e fadada para um grande destino.
A tragédia patriótica era o prato
forte da produção teatral daqueles anos da mais alta coragem cívica na Itália
do meado do século XIX.
As personagens antigas e
mitificadas incorporavam os anseios nacionais. As récitas eram comícios e
manifestações revolucionárias. Obras teatrais houve que se celebrizaram nem que
fosse por um único dito, uma única cena, tornados válidos e significativos no
presente histórico e mobilizadores para a luta política.
Vittorio Alfieri, um dos grades
dramaturgos da época, chegou a escrever: os
homens é no teatro que devem aprender a ser livres, fortes, generosos, transportados por uma verdadeira
virtude, contrários a toda a violência, amantes da pátria, conscientes dos
próprios direitos ardentíssimos, rectos e magnânimos em todas as suas paixões.
Depois do melodrama em prosa e em
verso, chegará a hora do melodrama lírico como protagonista na luta pela
independência e pela liberdade de Itália.
O melodrama lírico é o canto, e o
canto pode dizer-se o limite da expressão vocal humana. E o melodrama é viver a
vida nos limites. Melodrama é o viver da vida ao máximo e a cada momento. O
que, por sinal, se relaciona com a vivência de uma revolução. O revolucionário
arrisca os seus limites a cada dia.
Ao entrar o ano de 1848 o ideal da
independência é já uma vaga de fundo muito espalhada em toda a Itália, deixando
de ser uma espécie de propriedade ideológica de elites intelectuais e
burguesas. E é então que a linguagem da tragédia em verso decai e os favores do
público se transferem pouco a pouco para o melodrama lírico. Ou seja, o
melodrama na plena acepção do termo – o melos a multiplicar a eficiência
expressiva do drama.
O melodrama, enquanto elemento
estético, pode ser uma fronteira da realidade. E o melodrama lírico falava às
almas de modo mais abstracto, é certo, por meio da música, exactamente nessa
justa fronteira da realidade. Porém, um dado motivo musical devidamente
popularizado poderia ser adoptado pela rua, entoado repetidamente,
obsessivamente, pelo povo e ser-lhe assim acrescentado um sentido subversivo,
revolucionário.
E pela música – que na verdade, em si mesma nada significa a
não ser música, mas na qual é sempre possível pôr os sentidos que se queiram –
a comunicação da mensagem subversiva de resistência torna-se mais ampla. E se,
num inicial fôlego do primeiro Rissorgimento,
certas frases das tragédias passavam de boca em boca, no segundo Rissorgimento bastava um curto motivo
melódico para inflamar as almas patrióticas.
Na récita da Norma no Scala, na noite de 10 de Janeiro de 1859, há um pé de
vento no teatro apinhado de oficiais austríacos a fazer lembrar precisamente o
do filme, do Senso. Ao chegar o
momento do coro Guerra, guerra le galiche
selve (um incitamento à revolta das Gálias contra o ocupante romano), o
público levantou-se e multiplicou a intensidade das vozes que vinham do palco,
cantando com os coristas e provocando uma manifestação que levou os militares
austríacos fulos a enfrentar a massa ululante que gritava e cantava guerra,
guerra…
Mas, como se sabe, o grande
emblema patriótico da cena lírica italiana do tempo, será Giuseppe Verdi. Ao
triunfal e muito político sucesso de Nabucco,
Verdi acrescenta-lhe outros êxitos. Eram filas (bichas) sem fim nas bilheteiras
dos teatros; era uma loucura de público conspirativo amontoado em camarotes e
galerias a festejar cada ária, cada concertante, vivas a isto, vivas áquilo.
Era o grande público militante do melodrama.
A acção no melodrama verdiano é
rápida e concisa, nos primeiros tempos, com larga incidência sobre a voz
colectiva, os coros. Alguns definem esse período patriótico verdiano como uma
poética do uníssono, a alegria de cantar sem divisões nem dissonâncias. O
célebre caso de Nabucco, é sabido,
com o famoso e popular coro dos escravos hebreus, que passa a ser o hino das
aspirações itálicas – como o foi ainda há dois anos, na Ópera de Roma, em
protesto contra o fecho dos teatros e o corte das verbas para a cultura, na
presença do então 1º ministro Berlusconi.
O melodrama, hoje ainda, século
XXI, a funcionar sobre o real imediato…
E é mesmo Visconti quem o diz de Senso: é um filme romântico, onde
transparece a verdadeira seiva da ópera italiana, onde as personagens fazem
declarações melodramáticas. Eu quis transferir os sentimentos da ópera Trovador,de Verdi, da ribalta lírica para uma
história cinematográfica de guerra e rebelião.
Senso é como uma ópera. É um filme de
acordes visuais e dramatúrgicos sucessivos, de melodias continuas. A melodia de
fundo, evidente, objectivada pela música de Bruckner; como a melodia sugerida no tom operático,
melodramático, que cruza o filme nas frases, nos corpos, nos gestos, nos
cenários, desde o primeiro enquadramento da cena do Trovador, de Verdi, até ao ritual do fuzilamento do tenente
austríaco e aos passos desesperados e demenciais da enlouquecida condessa Livia
Serpieri.
Segundo Visconti estaria no Verdi
e na correspondência histórico-temporal do Trovador,
o elemento que era melodramático mas que também era realista de Senso.
Transpôr a estética e as regras do
melodrama para a possível vida real – escopo de um Visconti herdeiro da grande
tradição cultural italiana, esteticamente imbuída desse mesmo estilo
melodramático: a ópera vivida sobre o quadro da realidade.
Na verdade, as relações de
Visconti com o melodrama eram muito chegadas, vinham de família, o tio Guido
Visconti fora um dos refundadores do Teatro Scala de Milão. Aliás, no ano de
estreia de Senso, 1954, no dia 7 de
Dezembro, o Scala inaugura a temporada com uma encenação de Visconti (julgo que
a primeira encenação operática que faz) para um melodrama dos tempos napoleónicos
– La Vestale, de Spontini.
A unificação política de Itália é
uma realidade, pode dizer-se que nascida sob os bons auspícios do melodrama, na
vertente poética como na vertente lírica.
Íntima correspondência entre
realidade histórica e realidade cénica: intimo conflito no seio do binómio das
realidades, a realidade que é, e a realidade que não é, mas que pode ser mais
real do que a que é: assim se caracterizou para muitos a essência da chamada tragédia
rissorgimentale e do melodrama lírico
italiano até à metade do sec. XIX.
Numa arriscada tentativa de
analogia chamo à conversa Marc Ferro, crítico de cinema, quando diz
que a funcionalidade
histórica do cinema se desdobra entre a apreciação do filme sob o ponto de
vista da História, ou a apreciação do filme enquanto visão de um passado, uma
leitura da História feita através do cinema.
Foi nesta dualidade funcional do
cinema que a obra de Visconti precisamente se afirmou, em Senso, como no Leopardo,
como, num particular lance da História italiana da época contemporânea, em Rocco e os Seus Irmãos – ou, se
quisermos, com Ludwig, na História
dos balanços ainda hoje conflituais entre indivíduo, Estado e cultura.
Senso
remete assim para o período histórico em que a Itália se faz, o Rissorgimento, quando os destinos
individuais se vão cruzar com as conjunturas políticas que a História registou.
Em certo sentido (senso), e de algum modo evocando o
anteriormente citado de Marc Ferro, Senso
incorpora factores históricos a duas valências, a do passado, de que dá
testemunho, e a do tempo histórico-cultural circunstancial da sua concepção e
feitura, em plena guerra fria.
No segundo caso estão as
intervenções censóreas dos poderes políticos e militares, num ambiente dominado
pelos ditames do único partido de governo no pós-guerra italiano, a
democracia-cristã, bem como as condicionantes relacionadas directa ou
indirectamente com o anteriormente dito e que lhe afectam as condições de
produção e de comercialização.
Por exemplo, Visconti não previa
terminar o seu filme com aquele final algo apressado em que a condessa Serpieri denuncia o amante e em que o amante é presente
ao pelotão de execução e fuzilado. No final primeiramente escrito (e rodado), a
condessa vagueava pelas ruas entre soldados austríacos bêbedos, em que um deles
cantava, chorava e dava vivas a Áustria e ao império austro-húngaro (também ele
em decadência acentuada, prestes a desaparecer da História). E não havia
fuzilamento. O tenente austríaco, depois da cena canalha, era deixado no
apartamento com a rapariga e não se queria saber mais dele, era abandonado à
sua sorte ficcional, o destino dele não interessava a mais ninguém. Livia
caminharia pelas ruas no meio dos soldados e das raparigas da vida como se mais
uma delas ela fosse.
Sim, mas este final foi
considerado perigoso pela censura italiana de 1954. O vilão (estrangeiro,
ocupante) não era castigado, e a heroína aristocrática, italiana, ficaria por
demais exposta à ignomínia, à desonra. Era perigoso. E a cena foi cortada. E o
negativo foi queimado. E o novo final, o que se vê, o do fuzilamento, foi
filmado tempos depois, já não em Verona mas em Roma, num castelo de Sant’Angelo
que nada tinha a ver com a história – aquela história, claro.
Porque a estreia de Senso cai em plena guerra fria, com a
democracia cristã eternizada no poder desde 47, e a cumprir aquilo a que alguém
(se não me engano Moravia) chamou uma ditadura democrática. E Senso funcionaria de algum modo como
bandeira política que confrontava culturalmente aquele tempo italiano dos anos
50, tal como os acontecimentos narrados questionavam a desgraçada situação italiana
do século anterior.
A apresentação do filme dá polémica. Porque Senso circulava por uma das mais duras e
vergonhosas derrotas militares da Itália. E daí as outras cenas (as de batalha)
serem cortadas pela censura por ofensivas da dignidade do exército italiano.
Também se viu e discutiu muito o
filme no estético plano das dicotomias do realismo. Foi apreciado como produto,
ainda, de um neo-realismo esteticamente ultrapassado; foi por outro lado apreciado
precisamente como obra que superava as limitações do mesmo neo-realismo, e que
alguns sintetizaram como uma nova fórmula que tinha em vista a passagem da mera
crónica à História.
O compromisso entre realizar um
filme histórico ou um filme intimista tecido de histórias individuais é
comentado pelo próprio Visconti: não quis
fazer um filme histórico como algo de diferente do que foi a minha obra até
aqui, o que quer dizer que não abandonei nem abandonarei a linha do realismo
cinematográfico que até hoje tenho seguido. Não perderei o contacto com as minhas personagens só porque elas vestem
roupas oitocentistas.
A aventura amorosa de Senso e respectivas circunstâncias
aludem perfeitamente ao momento crepuscular da História de Itália no tempo da
acção do filme. A adúltera condessa de Serpieri e o tenente austríaco desertor,
traidor à honra militar e aos valores pátrios, prefiguram-se com simbólicas da
decadência de um dado mundo – ou, se se quiser, prenúncios de uma nova viragem
da História.
Um cínico sem escrúpulos,
moralmente degradado e uma aristocrata romântica, deprimida e vingativa são
figuras de um tempo histórico e social determinado, de um mundo e de uma
cultura perdidos para sempre. São, enfim, personagens de melodrama teatral,
desta vez desligadas da lógica das marcações e convenções do palco; desta vez
revistas e actualizadas pelo realismo cinematográfico de Visconti. Teatralidade
e nobreza espectacular, como quis André Bazin, conciliadas com o refinamento
estilístico aplicado à realidade em estado bruto.
Haveria então um deliberado
sentido de História na concepção de Senso,
quanto mais não fosse pelo título primeiramente pensado, Custoza, o nome da tal desditosa batalha da qual, no filme, se faz
uma stendhaliana reportagem, e que resultou numa derrota aviltante para as
cores italianas.
E por falar em Stendhal, e em
batalhas, tem que se dizer que Visconti pensou muito em Stendhal. E teve mesmo
como projecto de filme uma adaptação da Cartuxa
de Parma. E disso há ecos neste filme, Senso,
nomeadamente no modo confuso como são filmadas as sequências de batalha,
evocando o jovem herói stendhaliano Fabrice del Dongo ao atravessar as linhas
da batalha de Waterloo sem nada compreender, testemunha da História mas impossibilitado
de intervir, porque impossibilitado de compreender essa mesma História, a que
estava a viver e à qual ainda daria o nome de realidade presente e não de facto
histórico.
A censura interveio,
indignadíssima, ainda em fase de escrita do argumento: aquele nome da batalha,
Custoza, era para esquecer; a própria História italiana era para ser apagada
naquele lance do tempo.
Visconti declara que na sua obra
prefere contar as derrotas, falar das almas solitárias, dos destinos
interrompidos… falo de personagens de que
conheço bem a história, e talvez cada um dos meus filmes oculte outro, o meu
verdadeiro filme, nunca realizado, sobre os Visconti de ontem e de hoje.
Visconti interessava-se pela
atitude do Homem quando colhido pela História, superando-se ou sujeitando-se.
As suas histórias são fragmentos da História de homens que vivem entre as
coisas. Apoderando-se dela, História, um homem tenta transformar-lhe o curso
aparentemente pré-determinado.
Quando se é colhido pela História
abre-se o espaço à consciência individual.
A família aristocrática, a família
Visconti, em desagregação e decadência, mas absolutamente imprescindível no que
respeita aos valores éticos e aos afectos, será substituída na vida e na obra
do artista Luchino Visconti por um extracto social de que Visconti se achava
social e culturalmente distante, mas com o qual se irmanava, e no qual
acreditava como depositário dos valores dominantes de um devir histórico, após
as catástrofes burguesas das I e II Guerras. Esse extracto social emergente
como força histórica dominante era o povo, eram as classes trabalhadoras, que
numa abordagem marxista sucederiam à burguesia historicamente esgotada, uma
burguesia admissivelmente detestada por Visconti enquanto classe portadora e
veiculadora de valores que ele recusava e que não eram os da sua própria e
aristocrática História familiar.
De duas, uma (para a concepção
viscontiana da vida e do mundo): ou o
refinamento e a dominação efectiva e senhorial dos seus; ou os despojamentos, a
indefesa institucional e a nudez cultural dos operários agrícolas, dos
descamisados do sul, dos pescadores da Sicília, sobre os quais repousaria
doravante a nobreza de carácter e a moral reescrita por eles da própria
História. Nada a ver com o burguês eventualmente endinheirado, instalado,
ignorante, pretensioso, sem estética porque sem valores nobres a defender.
Visconti acompanhava as análises
teóricas dos partidos comunistas de então: o fascismo, ou o nazismo,
representariam a fase final do capitalismo no mundo, a luta de classes chegada
ao seu ponto extremo, e a essa fase, muito científica e naturalmente, se
seguiria a formação da sociedade socialista.
Não foi a classe operária nem a
classe camponesa, não foi o povo que sucedeu à burguesia, nem a sociedade
socialista se instalou em lugar da sociedade capitalista em ordem a uma
sequência teórica da História e a uma reposição de valores humanos. Não foi o
povo que sucedeu à burguesia no comando do gosto e da vida. A História traiu
Visconti. O povo o que quis foi também ele ser burguesia – de preferência com
dinheiro, capitalista, decadente.
É com Jean Renoir, em Paris, em
tempos politicamente agitados do Front Populaire a anteceder a invasão nazi,
que Luchino Visconti, o jovem e elegante aristocrata milanês criador de
cavalos, o rico e diletante Luchino, frequentador da suite do Ritz onde vive a
amiga Coco Chanel, toma consciência das realidades políticas e da sua pessoal
situação histórica.
E Visconti vem a tomar partido na
luta de classes. Visconti está presente na acção colectiva. Integra-se na
resistência italiana. Chega a ser preso. É libertado – seguramente devido ao
nome.
A consciência individual é o
elemento propulsor de uma acção. E Visconti tomou consciência. Ele, o proustiano Visconti, o conde Visconti, o
melodramático Visconti, o progressista Visconti, o decadente Visconti…
A História traiu Visconti. A
convicção materialista-histórica de Visconti quanto ao desenvolvimento da luta
de classes estava errada. Nada se passou como, teoricamente, deveria ter-se
passado. É aí, nesse falhanço, nessa decepção, nessa amargura profunda, nesse
crepuscular e nostálgico esteticismo, nessa decadência ideológica, que está
muito da beleza do cinema de Visconti.
A História, antes de ser escrita e
teorizada é vivida, e este é o filme de um homem que viveu intensamente a sua
História e a História do seu país, uma História que pode ser vivida e escrita nos campos
de batalha, nas ruas, nos gabinetes, mas também sobre as tábuas de um palco ou
na plateia de um teatro…. ou num écran de cinema.
Por menos que pensemos no assunto,
ou por mais que as vicissitudes da vida corrente nos façam esquecer dela, a
verdade é que desde o nosso nascimento até à morte, estamos a vivê-la, a
História, as mais das vezes sem podermos intervir nela por não a estarmos a
compreender.