MY KIND OF TOWN,
CHICAGO IS
Harry Cohn, o já aqui citado homem forte da Columbia Pictures,
deixara escapar Marilyn Monroe entre os dedos e viria pouco tempo depois a
torcer a orelha sem deitar sangue. Porque estava a começar o tempo em que as
loiras platinadas e peitudas faziam entrar dinheiro no box-office, Jayne
Mainsfield, Mammie Van Doren, Diana Dors. Harry Cohn teria de inventar uma
loira para fazer face à concorrência.
E inventou. Chamou-lhe Kim Novak. Kim Novak que por acaso também
serviu para substituir uma Rita Hayworth a entrar na decadência.
Kim Novak estava a concorrer pela Columbia
de Harry Cohn com as tais platinadas de outros estúdios, Jayne Mainsfield,
Diana Dors, Mammie van Doren, a própria Marilyn. Concorria, digamos, mas só
pelo cabelo, porque pelo peito não era concorrência de maior para as outras.
Era bonita rapariga, lembro-me bem, mas também não se poderia dizer dela que
fosse actriz de mão cheia. Não era grande actriz, está bem, mas conseguiu certa
performance de um género sempre muito
apreciado pelos mandões dos estúdios: 3.500 cartas de fans por semana. Não era grande actriz, está bem, mas Hitchcock fez
dela alguém em Vertigo, não esquecer.
Porque se dizia que Kim Novak era como um
vazio no écran, os espectadores podiam projectar nela as emoções que lhes
apetecesse.
E Kim Novak, farta até aos cabelos de Harry
Cohn, começa a deitar os mirones para possíveis outros (e melhores) contratos. Harry
Cohn está atento. Não
gosta muito dela mas não a quer perder nem por nada.
Quando Kim Novak entra no filme O Homem
do Braço de Oiro, por sinal com Sinatra, cobra 100.000 dólares a Cohn e Cohn
fica rôxo de raiva quando essa soma aparece escarrapachada num número da
revista Time de 1957.
É nessa época, 57, que a Novak conhece o cantor
e dançarino negro feio como um corno que trabalhava em night clubs e dava pelo
nome de Sammy Davis. Foram Tony Curtis e a sua mulher dessa época, Janet Leigh,
quem os apresentou:
– Tenho
imenso prazer em conhecê-lo… adoro tudo o que você faz - terá dito Kim
Novak a Sammy Davis no momento das apresentações.
Sammy Davis… Sammy Davis…
No pós-guerra, Sammy apresentara-se em tournée pela
América em números de cabaret com o pai e com o tio. Em 51 o trio
desfez-se. O público pagava sobretudo para ver o puto Sammy sapatear e não
ligava meia aos outros dois. Sammy, a solo, tem sorte no Ciro’s, de Los
Angeles. É visto por gente grada do espectáculo e por alguns artistas
conhecidos que o apreciam. Bogart, Bacall, Gable, por exemplo, faziam questão
de o aplaudir como se ele fosse um branco. E a carreira dele arranca.
Tanto Novak como Sammy tinham muitas
queixas do mundo artístico. E passaram a noite mesma em que foram apresentados
a trocar lamentações. Sammy chorava-se pela carreira, que não atava nem
desatava só pelo facto de ele ser negro; Kim Novak queixava-se do patrão, Harry
Cohn, um brutamontes que parecia querer estrangular-lhe a carreira. Sammy Davis
tinha umas poucas de coisas na vida contra ele na América democrática, racista
e puritana dos anos 50. Era negro. Era ainda meio judeu. E para ajudar ainda era
bissexual – fora violado e humilhado repetidas vezes pelos soldados seus
camaradas durante a II Guerra, que lhe batiam, que lhe partiram o nariz, que o
obrigavam a beber cerveja misturada com urina; soldados brancos, está bem de
ver. Ele não tinha desgostado, alargara as suas sensações, e tornara-se
bissexual. E para cúmulo dos cúmulos Sammy Davis era zarolho – num desastre de
automóvel, um dos seus olhos ficara espetado no espigão do emblema da Cadillac
que havia no volante… brrr!
Depois do desastre em que perde o olho
Sammy recupera, continua a ter êxito no Ciro’s,
apesar de se deixar magoar muito quando ouve insultos do público a chamar-lhe
negro sujo. Quanto mais fortes eram os aplausos mais sonoros eram os insultos –
desde a história de O Padrinho tenho
estado a falar da democracia americana, não sei se repararam...
Mas estava escrito. Davis deve uns
dinheiros à Mafia através do que pedia emprestado aos donos das boites onde
trabalhava, todos eles mafiosos em maior ou menor grau. E trabalhava muito para
ir pagando as dívidas. E contraía novas dívidas para pagar as primeiras,
prática clássica que bem conhecemos do que se tem passado no formidável boom económico português…
- Podes andar
com mafiosos e podes mesmo fazer-te amigo deles, como também podes
distanciar-te respeitosamente deles. O que não podes é dever-lhes dinheiro –
conselho dado por um
agente artístico a Sammy Davis.
Bem, mas tudo isto para dizer que a Kim
Novak e o Sammy Davis enrolaram-se e começaram a sair juntos.
Davis interessava-se mesmo,
sentimentalmente, sexualmente, pela Novak? Ou saía com ela por cálculo, para
aparecer nas revistas e aproveitar-se da popularidade dela, que era uma estrela
ascendente, loura, branca, bonita, e lhe poderia ser útil à carreira como
publicidade. Sei lá eu…
Mas quem não sabe fica a saber: no mundo
artístico, tudo, a certa altura, começa a ser feito ou não feito e dito ou não
dito em função da carreira.
Está bem. E a Novak, estaria interessada
mesmo amorosamente no negro zarolho e feio como uma noite de trovões? Ou
servia-se dele para evidenciar a sua independência face ao patrão da Columbia,
Harry Cohn?
Sammy Davis virá um dia a dizer que o que sustentava a relação
deles era o desafio.
Grande admirador de Mussolini, Harry Cohn, patrão da Columbia,
era ávido, caprichoso e sem escrúpulos – segundo cronistas da época e do lugar,
era ele o homem com mais condições pessoais para ser produtor de cinema. E comparando
Harry Cohn com Al Capone, um jornalista da Associated Press considerava Capone
uma excelente pessoa.
A Columbia parecia ir com os negócios de vento em pôpa. Parecia.
Em 57 produzira 47 filmes e encaixara 10 milhões. Mas a realidade das contas
não sorria aos administradores tão luminosa. A contabilidade prenunciava riscos
terríveis para o ano seguinte. Uma das maiores fontes de lucro para a Columbia
em 57 fora A Ponte do Rio Kwai, filme que Harry Cohn nunca quisera
fazer.
E num certo jantar, alguém se chega a Harry Cohn e lhe bichana
qualquer coisa ao ouvido. Cohn levanta-se, alterado sai da sala e sofre uma
crise cardíaca.
Que terá acontecido de tão grave para o homem ter um ataque
cardíaco?
Essa primeira crise cardíaca de Cohn também não durou muito.
Duas ou três horas depois já ele estava fino, ao telefone, a comunicar ao seu
assistente o que acabara de lhe chegar aos ouvidos, que Kim Novak ia para a
cama com esse ciclope negro chamado Sammy Davis. E no dia seguinte nova
crise cardíaca acometia Harry Cohn.
Em Janeiro de 58, o conselho de administração da Columbia
encosta à parede o restabelecido Harry Cohn e intima-o a pôr fim à relação
entre a loiríssima Kim Novak e o negríssimo Sammy Davis. Pôr fim à relação,
sim, seja por que meios for. E antes que esse affaire caia no domínio
público.
O que Cohn pensou, e disse, foi que a Mafia se encarregaria de
arrancar a Sammy Davis o olho que lhe restava. O conhecido mafioso Frank
Costello telefona a outro conhecido mafioso, Mickey Cohen. O patrão da Columbia
tinha prestado alguns serviços à organização e agora pedia uma contrapartida. E
a contrapartida seria assassinar essa imundície negra (as palavras são deles)
chamada Sammy Davis – serviço contra serviço, troca de favores, tráfico de
influências coisa de tipo maçónico, não sei se me faço entender...
Mas afinal o que é que tinha de mais Kim Novak ser amante de
Sammy Davis – para além do picante de ser um negro com uma platinada? Tinha.
Tinha porque estávamos na América de 1958 – que não era exactamente a mesma
América dos nossos dias, que até já consegue eleger um presidente negro. Tinha, pois tinha...
A relação Kim Novak/Sammy Davis era um enlace
escandaloso para os critérios morais e
raciais do público americano de então, sim, isso de se vir a saber que uma
puríssima loira que era figura pública, loiríssima deusa eleita pela tribu do
cinema, se deitava com um negro, ainda que fosse ele também estelar figura
pública. Era mau para a popularidade da estrela loira, e era por consequência,
e acima de tudo, mau para os negócios cinematográficos da Columbia, cujas
finanças já não eram saudáveis.
Por outro lado, os mafiosos desconfiaram que independentemente
das razões comerciais alegadas por Harry Cohn, também haveria ali ciúmes em
jogo, e que Harry Cohn poderia estar apaixonado pela sua estrela.
E como Sammy Davis fazia parte do círculo maçónico chegado dos
amigos de Frank Sinatra, é a ele, Sinatra, que a Mafia recorre numa primeira
fase. Ele que convencesse Sammy a largar a loiraça.
Um dia Harry Cohn está nas corridas de cavalos de Hollywood Park
e também lá está um senhor negro chamado Sammy Davis… Senior. Pai do outro, já
se percebeu. E Cohn faz o sacrifício de ir ter com ele para lhe dizer
claramente que tem ordens para mandar limpar o sebo ao filho. O velho fica
apavorado, como seria de esperar, e corre à procura de um telefone.
Mas havia uma escapatória. E essa escapatória seria o filho casar
com uma mulher negra. Eram magnânimos, eles, e davam-lhe 24 horas para o fazer.
Nesse entretanto, num dos intervalos de um show em Las
Vegas em que participava com os amigos, Dean Martin e Frankie (the Rat Pack),
Sammy Davis andava por ali, pelos corredores dos camarins, a fumar um cigarro,
quando dois fulanos anónimos e sorridentes, malta porreira, se chegam a ele,
lhe pedem lume e lhe dizem:
- Tu és zarolho, és
judeu, és preto… não tens ponta por onde se te pegue… e se voltas a
encontrar-te com essa loira vais continuar a ser judeu e preto, mas vais ficar
zarolho total, dos dois olhos… - estavam a ir-se embora mas voltaram
atrás, a rir. – Ah, é verdade não sei
se sabes, mas tu vais-te casar com uma mulher negra este fim de semana… tens
que te despachar e tratar de arranjar a tua futura mulher… já não faltam muitos
dias para o fim de semana…
Depois desta cena há quem jure ter ouvido gritarias vindas do
camarim de Sinatra e de ter ouvido Sinatra ao telefone a pedir que lhe ligassem
a Fischetti, o contacto directo dele com a Mafia, o rapaz que lhe tomara conta
da carreira e que o levara a Havana ao beija-mão do padrinho Lucky Luciano.
Sammy Davis estava desfeito, fora de si, sem saber o que fazer.
Sinatra fala a Sam Giancana. Mete uma cunha.
- Quem, esse sonso
desse preto? – pergunta o capo
mafia –, interessas-te por ele?
Davis também quer falar ao “doutor” – Sam Giancana fazia-se
chamar de Dr. Goldberg em Las Vegas. Giancana diz a Sammy Davies que talvez o
pudesse proteger em Las Vegas e em Chicago, mas que não o podia fazer em
Hollywood.
- E olha, rapaz, ouve o que eu te
digo, o melhor é não voltares a Los Angeles antes de fazeres as pazes com o
Harry Cohn.
No camarim, Sammy dá´voltas e mais voltas à cachimónia à procura
de uma saída. Passa em revista o seu carnet de contactos em busca de uma
rapariga negra que não se importe de casar com ele de hoje para amanhá.
E encontra. Uma corista chamada Loray White.
Casam a 10 de Janeiro desse ano de 1958. Vem na imprensa o
casamento da vedeta negra. Estava salva a pátria.
A noite de núpcias é passada no Hotel Sands de Las Vegas, suite
presidencial. Noite de núpcias só porque era de noite, posto que núpcias não as
houve, o casamento nunca foi consumado, foi só no papel e para consumo dos
media.
Giancana telefona no outro dia:
- Pronto, rapaz, já fui
informado de que o assunto se regularizou. Podes andar descansado.
O divórcio foi dois meses depois. A esposa negra recebeu 25.000
dele em cash e mais 10.000 em
vestidos e sapatos.
Mais tarde, especialistas no assunto, afiançaram que a vida de
Sammy Davis nunca estivera propriamente em risco. Com todos os handicaps físicos e rácicos que tivesse,
a Mafia não o desprezava tanto quanto desprezava o patrão da Columbia, Harry
Cohn. E não tanto pelo lindo olho de Sammy Davis. Quando mais não fosse porque
a Mafia era proprietária dos night clubs e casinos onde Sammy actuava, e dava lucro, e
por isso a vida dele era mais valiosa do que a do homem da Columbia.
Kim Novak chegara a ser chamada ao gabinete de Harry Cohn.
Provavelmente ameaçada. Notara que ele estava acompanhado por elementos da
Mafia. Mas não me perguntem mais nada sobre a disposição da estrela quanto ao
desenlace do caso porque eu não estive lá. Além do mais, Kim Novak nem fazia
parte da maçonaria de Sinatra.
Sei é que Harry Cohn, tal como vinha a prometer, morre de ataque
cardíaco a 27 desse mês de Janeiro de 1958, dois meses depois de ter sido
informado do romance da sua estrela com um negro. E a mulher dele passará o
resto da vida a acusar Kim Novak de ter sido a causadora da morte do marido.
Na ficha de polícia, Sam Giancana passava por psicopata, mal
educado, sarcástico, desequilibrado e sádico. (Porra, não lhe faltava nada!)
Enquanto nos comités de avaliação do exército, na ficha dele, lá vinha o
psicopata à cabeça. Mas Giancana dizia a isso que tinha feito uma fita
desgraçada para se livrar da tropa.
O filho do actor Yul Brynner também botou opinião sobre Sam
Giancana. Que era de tal maneira feio que dava medo olhar para ele, e que tanta
feiura seria o reflexo perfeito da alma dele.
Nariz de fuínha, cabeça de gárgula, medonho: opinião de Peter
Lawford acerca de Giancana. E diz mais:
- Eu não o suportava,
mas Frankie idolatrava-o. Era o mais eficaz assassino da Mafia e Frank gostava
de conversas sobre crimes de morte e sobre os tipos que tinham sido eliminados
e como o tinham sido.
Sim, Sinatra considerava Sam Giancana como o seu mentor.
Principalmente no capítulo dos negócios. Giancana não se cansava de dar
conselhos a Sinatra.
O mafioso judeu Meyer Lansky é que dizia de Giancana que era o
único italiano que fazia nascer dinheiro como um judeu.
E lembrem-se da conhecida canção de Sinatra My
Kind of Town Chicago is. Quando
a cantava, e se Giancana estava na assistência, fazia sempre um pequeno sinal
cabalístico convencionado entre ambos e que significava gratidão.
A reunião em Las Vegas de
Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis, e também Peter Lawford, o clã de Sinatra,
que passou à história do showbizz
como Rat Pack, foi em 1960.
Subiam ao palco depois do blackjack,
cantavam, dançavam, diziam piadas,
faziam habilidades. Para muitos, estes espectáculos eram hinos ao álcool e boa
publicidade aos bares e boites controlados pela Mafia.
Entre starlettes,
estrelas de cinema, artistas, políticos e mafiosos havia de tudo na
assistência.
Peter Lawford e Pat Kennedy, sua mulher, compraram os direitos
de um romance cujo tema era a vida dos casinos. E decidiram fazer dele um filme
- em português Os 11 do Oceano, produzido pela Warner. George Raft
também estava presente e a ideia era esvaziar os cofres de quatro ou cinco
casinos de Las Vegas – isto no filme, claro. Eles faziam o show e não se deitavam para aproveitarem o tempo e começarem a
filmar ao nascer do dia.
Angie Dickinson, a actriz, que também participava, viria a dizer
que o filme pretendia transmitir a onda de optimismo que varria a América, e
respectiva democracia exemplar, sob a perspectiva de um novo presidente jovem e
dinâmico.
Johnny Formosa, um dos consiglieri de Giancana, tempos
depois - no ponto mais alto da perseguição do procurador geral Robert Kennedy
ao crime organizado – desconfia muito de Sinatra e é de parecer que o passo
seguinte seja eliminar o cantor. Giancana afasta a ideia.
- Seja como for, temos que mostrar a
esses idiotas de Hollywood que eles não podem andar por aí a exibir-se como se
não nos conhecessem, como se nada se tivesse passado entre nós.
Dean Martin e Peter Lawford também se habilitavam a apanhar pela
medida grande. E também ninguém na Mafia, tempos depois da reunião do Rat Pack,
daria nada pelo outro olho de Sammy Davis.
- Não Johnny, não concordo. Frankie
não. Frankie é diferente deles todos, dos outros parasitas de Hollywood.
Frankie é um tipo fixe, às direitas – replicava Giancana.
Giancana chega a dizer a alguém, um dia, que se não fosse a
afeição que tinha por Sinatra há muito que o cantor estava morto.
Mas é Bobby Kennedy, que já havia jurado pela pele à Mafia, quem vai para cima de Sinatra quando ordena
uma investigação rigorosa às ligações dele com o crime organizado. A
investigação produz um relatório de 19 páginas.
Mr. Sinatra frequentou gangsters
e vigaristas durante muito tempo. A natureza do seu trabalho é propícia a pô-lo
em contacto com personalidades suspeitas. Mas por aí pouco se pode apurar
de concreto, tirando os possíveis laços
de amizade ou relações de tipo financeiro como os que têm figurado nas listas
do Departamento de Justiça. Fontes dignas de crédito indicam que não apenas
Sinatra terá relações de negócios com os suspeitos, donde será possível
concluír pela existência de uma comunidade de interesses a ligar Sinatra aos
gangs de Los Angeles, do Illinois, de Indiana, de New Jersey, da F lorida e do
Nevada.
E ficamos assim, por agora, quanto a Sinatra e respectivos amigos. Mas não sei
se um destes dias não diga alguma coisa a respeito de uma família não menos
mafiosa do que estas que por aqui tenho feito desfilar. Mafiosa família, não
italiana, irlandesa, e muito respeitada – os Kennedy, é evidente, a família real americana. Andava tudo
ligado.