A MORAL DO ATENTADO
Era uma época
tremenda em que a moral do atentado se impunha aos oprimidos por um Estado
esmagador. Aos oprimidos ou àqueles que lhes interpretavam as dores sociais, os
bombistas, os carvoeiros, os anarquistas.
Era uma questão
de moral abater um tirano. Na maior parte dos casos, eventualmente, para lá pôr
outro. Não me admira que o aspirante a tirano quisesse ver destituído o tirano
que o precedeu para ocupar um lugar a que se acha com direito.
Um povo ou
uma clique poderosa só se poderia ver livre de um príncipe ou de uma dinastia
deles pela morte; ou pelo menos era esse o caminho mais fácil e seguro para
inaugurar novas eras e fazer correr a História. Dessa época de atentados, os
meus olhos caem sobre uma lista de vítimas – ainda que incompleta – entre fins
do sec XIX e primeiros anos do sec XX.
O czar
Alexandre II das rússias fora assassinado. Mais: Sidi Carnot, presidente
francês, morto em Lyon, 1894; o político búlgaro Stambuloff, no ano seguinte; o
Xá da Pérsia, no ano seguinte, 1896; e no outro ano o conservador espanhol
Canovas del Castillo; em 1890
a imperatriz Isabel da Áustria; Umberto I de Itália em
1900; o presidente americano Mac Kinley, em 1901; o político russo Spyaguine,
em 1902; o rei e a rainha da Sérvia, em 1903; outro russo Plehev, em 1904; o
grão duque Sérgio, também russo, em 1905. Para não ir mais longe e falar no
assassinato em Sarajevo do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, que
abriria caminho ao rebentar da I Guerra Mundial.
Em 1906
também o rei de Espanha, Afonso XIII, sofre um atentado, e logo no dia do
casamento. E escapa. E D. Carlos e seu filho D. Luis Filipe de Portugal estavam
presentes.
Para dizer
que o atentado a um rei em 1908 não era um acto extraordinário e que andasse
assim tão fora da consciência tanto das autoridades e das polícias como do
povo. O que menos torna compreensível a negligência de João Franco em não
reforçar a segurança naquele dia 1 de Fevereiro. Negligência... se negligência
foi.
Será de
presumir que D. Carlos suspeitasse da sede com que alguns sectores lhe andavam
– quanto mais não fosse por manter na chefia do governo o homem que lhes era
odioso; é de presumir que D. Carlos conjecturasse poder ser assassinado um dia
desses, a qualquer momento.
Não se daria
conta certamente da actividade febril havida nos esconsos mais secretos da vida
política e que planeavam o seu apeamento fosse de que maneira fosse. D. Carlos
planeava por seu lado uma vista ao Brasil para Março desse ano de 1908.
Continuava, pelo menos para consumo alheio, a ter uma visão optimista a
respeito da crise; continuava a confiar numa saida airosa, por cima, para si e
para o seu homem forte.
O
descarrilamento da Casa Branca. Agora
pergunto-me eu – escreve D.Manuel. – Aquele
descarrilamento foi um acaso? Ou foi premeditado para que houvesse um atraso e
se chegasse mais tarde? Não sei. Hoje fico na dúvida. Depois do horror do que
se passou fica-se duvidando de muita coisa.
Mas no geral
acreditou-se que o descarrilamento não tivera relação com o atentado, porque
descarrilamentos na época, tal como assassínios de reis e políticos eram
comuns.
Que a acção
foi preparada e contou com várias participações, cabendo a acção apenas ao
Buiça e ao Costa, parece não ter deixado dúvidas. Falou-se em 18 elementos
espalhados pelo Terreiro do Paço e pelo itinerário previsto do cortejo real até
às Necessidades. Seis ou sete homens no Terreiro do Paço e outros acocados em
Santos e em Alcântara.
Segundo
outras opiniões, 18 conspiradores seria gente a mais numa operação que exigia o
máximo dos secretismos. Alguns diriam que os preparativos se restringiam ao
Terreiro do Paço, com cinco ou seis homens estrategicamente dispostos e prontos
a disparar.
Uma das mais
sinistras incógnitas do regicídio está na ausência ou escassez de segurança ao
cortejo real. Onde estava a polícia? A polícia não se vê, quanto mais segurança
específica por se tratar do rei. Quem negligenciou este ponto? O rei não queria
segurança em volta dele? Admitia-se. Mas no mínimo, um mínimo de protecção
policial. Além do mais, o rei, no dizer do filho mais novo, não se opunha de
modo nenhum à vigilância policial.
No dia 31 de
Janeiro de 1908, em vista da agitação política, o major Dias, da polícia, pedia
a João Franco o reforço da guarda e do policiamento no trajecto que a família
real precorreria no dia seguinte, ao chegar de Vila Viçosa. João Franco
perguntava ao major se estava doido. Ó
Dias, isso é Rocambole. El-rei irá desembarcar como de costume e não se há-de
dizer que entra em Lisboa sob prisão.
Ao jornalista
francês que o entrevistara, insinuando-lhe que se poderia até poupar uma
revolução desde que se pudesse suprimir a ditadura, João Franco retorquira: nem todos os atentados obtém êxito. E
depois, eu tenho nos meus projectos tanto em conta uma morte violenta como a
febre tifóide ou a difteria. Bem sei que um dia terei de morrer.
Nem todos os atentados obtém êxito.
Alguém ouvira
um caixeiro da praça de Lisboa espalhar pela baixa: amanhã mata-se um porco.
Mas João
Franco acabará por fazer concessões. 16 guardas secretos, à paisana, claro,
para o Terreiro do Paço – era costume serem 40. Mas que não se mostrassem, que
ficassem escondidos na Câmara Municipal. O que é estranho, porque da Câmara não
se vê o Terreiro do Paço.
Quem terá,
por assim dizer, encenado, organizado, o cortejo real naquele dia? Porque há um
pormenor (ou por maior) que atenta contra a inteligência, ou a boa fé, de quem
organiza a saida das carruagens e que coloca na mesma viatura o rei e o seu
herdeiro. Se houvesse uma bernarda podiam morrer os dois e o trono tremeria.
Quem
organizou a viagem pensou nisso, porque era mesmo essa a ideia?
Quem organizou
a viagem não pensou nisso por incompetência? Criminoso em qualquer dos casos:
incompetência ou conspiração subterraneamente urdida a partir do próprio
palácio real?
As capotas
das carruagens. Alguns disseram que o rei mesmo tinha mandado descer a capota
da carruagem. O coronel encarregado dos equipamentos nega essa hipótese. Então,
alguém terá dado essas ordens. E, se alguém as deu, o próprio rei consentiu.
Um atentado não traria apenas
vantagens a quem o cometesse com sucesso. Poderia trazer vantagens políticas a
quem o sofresse e dele saísse com vida.
Sim.
Parece-me que sim. A moral do atentado é ambígua. O atentado pode funcionar
como faca de dois gumes. É arriscado. Claro que é. Quando o prosseguimento de
uma política impopular também é arriscado, um atentado falhado contra a vida de
um tirano, do autor de uma política impopular… ah, coitado, também não há o
direito de se matar um homem só por causa da porcaria da política, que ele até
teve coisas boas… enfim, pode, pelo menos a prazo, trazer dividendos ao tirano
e transformar temporariamente em popular uma política impopular,ou sinistra que
seja.
Um atentado
falhado pode legitimar moralmente uma ditadura. Terá sido por acaso que Salazar
se fez atentar em 1936, e depois disso nunca mais?
Salazar
pode-se ter feito “atentar” em 1936, na Avenida Barbosa du Bocage, saindo desse atentado falhado como vítima
moral e reforçando as legitimidades também morais para uma política.
Quantas vezes
De Gaulle – que nem era um ditador, mas quase - se fez atentar? Algumas foi de
verdade; outras talvez nem tanto.
E aqui a
opinião de alguns, Rocha Martins incluído, de que quer o rei quer João Franco
concordaram em que as capotas haveriam de seguir descidas e que a viagem, ainda
longa, haveria de ser feita totalmente a descoberto. Por motivos exclusivamente
políticos. Por uma questão de imagem e propaganda do governo – o que pode
constituir sustentáculo moral de uma política.
Um trajecto
de rei em carruagem totalmente aberta em situação politica perigosa mostraria
ao povo que nada havia a esconder-lhe e que o rei ali estava desprotegido e
inocente, em consciência, à mercê dos fados e da iniciativa de um louco ou de
um inimigo. E tanto o rei como o seu governo ganhariam bons pontos no favor
popular.
D. Carlos
fazia questão em ir de carruagem descoberta, a passo. Não queria nem em sonhos
que pensassem que tinha medo do seu próprio povo.
Mas quem de
facto pretendiam os atiradores atingir?
Para lá do
óbvio, não se sabe ao certo, evidentemente. Apenas o rei?
O atentado foi só contra el-rei, diz D.
Tomás de Melo Breyner, médico da corte. Creio
até que nem queriam matar o príncipe real.
E para quê
matar apenas o rei se não era para pôr fim à dinastia e criar as máximas
condições para a implantação da república?
Talvez os
conspiradores se temessem de uma futura e demasiada carga moral, humana e
historicamente culposa. Podiam não ter querido que os seus braços armados
pusessem um fim brusco ao secular regime monárquico e seus valores tão
arreigados, e quando essa acção pudesse espertar o exército e desencadear
furiosas reacções populares, obstaculizando aquilo que em última análise
pretendiam: a instauração da república.
Talvez que,
eliminando D. Carlos, só quisessem pôr de sobreaviso quem lhe sucedesse.
Até se
murmurava nos corredores da política que o mais avisado seria D. Carlos abdicar
no filho mais velho e retirar-se para o exílio – já Afonso Costa, nas cortes, o
recomendara.
Mas então por
que foi morto D. Luis Filipe? Porque em má hora se levantou do lugar na
carruagem de pistola em punho para defender o pai?
Empoleirado
no estribo da carruagem real, que impediria o Costa de acabar rapidamente com
toda a família? Não o fez. Porquê? Porque não seria esse o objectivo? Porque
entretanto era atingido? Porque as flores da raínha a fustigar-lhe a cara o
terão desorientado?
Há também
quem diga que D. Carlos, que nada tinha de parvo, confidenciara a amigos a sua
certeza de mais dia menos dia poder ser assassinado. Mas também se devia sentir
amarrado à trágica mitologia do poder real. O pior que podia fazer era
deixar-se estar encafuado num palácio ou andar rodeado de beleguins. A ideia
monárquica estava em crise em toda a Europa e jogava fortemente a sua
sobrevivência.
Será que nos
pressupostos da ambiguidade perigosa de uma moral do atentado, o atentado de
Lisboa do dia 1 de Fevereiro de 1908 era um atentado desejado?
Desejado, com
certeza, mas por quem? Para quê? Ou sob que pressuposto moral?
Desejado pelo
governo – ou até pelo rei – como manobra de propaganda e para reforçar medidas
de repressão excepcionais?
Desejado
nesse caso para falhar, mas para, de qualquer dos modos, justificar essas
excepcionais medidas?
Desejado
pelos republicanos para derrubar a monarquia e implantar a república no dia seguinte?
Desejado
pelos monárquicos para se vingarem no rei da ditadura de João Franco ou por
qualquer outra razão ou conjunto de razões menos claras?
Desejado
pelos monárquicos para mudarem de dinastia, desarmar os republicanos e
prolongar a vida do regime monárquico?
Desejado
simultaneamente por uns e por outros, deixando as consequências ao critério do
acaso – e dado haver espalhados por ali mais atiradores do que os dois que
actuaram e cada um, ou cada grupo deles, com seus desígnios?
Desejado
separadamente por uns e por outros e convergindo as várias motivações para o
mesmo dia e hora, com tudo ao molho e fé em Deus – ou no diabo?
D. Carlos, ao
saber do pequeno atentado a João Franco naquela tarde eleitoral em Alcântara
ficara satisfeito. O atentado fora uma boa coisa e daria mais força ao governo.
E escreveu-lhe. A minha opinião é que coisa alguma de maior sorte poderia ter sucedido
ao governo em prol das ideias que desejamos levar avante.
O atentado,
ainda que não desejado, poderia ter sido facilitado pelas autoridades,
evidentemente sob directivas superiores, e, também evidentemente, tendo em
vista as vantagens morais que podem beneficiar quem é vítima de um atentado –
desde que os estragos pessoais sejam controlados.
Antes de o
cortejo se pôr em marcha, alguém terá ouvido D. Carlos perguntar a João Franco:
vai agora ao Paço, Segue-nos.
Asseguras-me de que tudo vai correr bem?
Correr bem o
quê? Não haveria novidade? Ou haveria uma novidade, um acontecimento
devidamente controlado que, aleatório em si mesmo, era todavia possível de
descambar para o torto? Não se pode esquecer que as eleições estavam marcadas
para daí a dois meses. E, ontem como hoje, não se pode esquecer que os
políticos estão dispostos a vender a alma a Satanaz se preciso for só para
ganhar votos.
Terá João
Franco, ou outrem a mando dele, sido enganado por alguém? Terá ele, João Franco
(ou outrém a mando dele), e até de acordo com o rei, combinado a encenação de
um atentado convencido de que era fingido, de que era para falhar, acabando por
descambar num atentado real?
Dos cinco
operacionais que estavam no Terreiro do Paço, terão sido por acidente
escolhidos para o assalto os que estavam de fora da combinação, sem que os
agentes de João Franco tivessem tido tempo ou ocasião para modificar as coisas?
Ou teriam o
Buiça e o Costa acedido a um compromisso de falso atentado só para que a
polícia descansasse e lhes deixasse o campo livre para o verdaderio atentado
que tinham em mente?
É que tanto o
Buiça como o Costa, anormalmente nestes casos, falaram tanto do que iam fazer,
foram tão pouco discretos, deixaram tantas pistas, que dá para desconfiar de
qualquer coisa…
Ou terá João
Franco sido traído?
Ou saberia
João Franco de alguma coisa e tenha querido poupar o rei, não o informando como
devia ser de todo o plano, falso ou real que ele fosse? Ou tudo isto em
simultâneo.
Especulações.
Evidentemente. Teorias de conspiração em que ninguém gosta de acreditar.
Não se pode
minimizar um pequeno pormenor – o qual, aliás, D. Carlos enfatiza, repito, na
carta que escreve a João Franco: ser vítima de um atentado é uma vantagem para
quem o sofre e consegue escapar ileso. Uma vantagem política. Para o homem e
para o grupo que haja por detrás dele.
É como digo,
ser vítima compensa quase sempre. Até na política. Ou sobretudo na política. E
dir-se-ia, conforme os acontecimentos futuros no-lo demonstrariam, que os
homens políticos desta época poderiam ir mesmo à procura do perigo, do
atentado. Com alguma sorte escapariam e poderiam capitalizar politicamente o
facto.
Haveria para
os homens politicos daquele tempo senhores de uma coragem física que não tem
comparação com a dos meninos doutorzecos de copo-de-leite de hoje, uma certa
moral no atentado.
Facilitar um
atentado, provocar arranhões insignificantes, ou mesmo fazer abortar na hora
esse atentado: podiam ter sido directivas dadas à polícia. João Franco seria
sabedor. Mas D. Carlos também seria sabedor? Ou teria sido sabedor na hora de
pôr pé na carruagem, e daí a pergunta dele ao seu ministro, asseguras-me de que tudo vai correr bem?
Ou, enfim, não saberia de nada?
No seu livro
de memórias, João Franco escreverá que nunca a nenhum membro do governo passara
pela cabeça a probabilidade de um atentado contra o rei. Nunca se teria ouvido
a alguém da polícia ou da administração falar, ou sequer aludir, à
eventualidade de um atentado. Em nenhuma das inúmeras cartas anónimas que o
governo recebia se aventava essa hipótese.
Ah, engano,
aventou-se numa carta devidamente assinada por um cidadão respeitável...
Mas como,
pelo que diz João Franco, nenhuma carta anónima apontava para a eventualidade
de um atentado, ignoravam-se os sinais que a situação não parava de dar;
ignorava-se a frustrada revolução do 28 de Janeiro; ignoravam-se uma quantidade
de circunstâncias gritantes.
O que estamos presenciando não pode continuar.
Isto terminará fatalmente com um crime ou com uma revolução – já em tempo
o dissera Júlio de Vilhena, chefe do Partido
Regenerador.
Será crível
que rei, família real, chefe do governo, corte, notáveis, chefes monárquicos
fossem tão amadores quanto nos parecem à distância de um século?
De quem foi a
culpa, a culpa moral e histórica? Será que em Portugal, já nesse tempo, ninguém
importante tinha culpa de nada? Coisa que tão cara é aos portugueses, e ao
mesmo tempo tão difícil lhes é de discernir: a culpa. A culpa…