domingo, 18 de março de 2018


                  A MORAL DO ATENTADO


Era uma época tremenda em que a moral do atentado se impunha aos oprimidos por um Estado esmagador. Aos oprimidos ou àqueles que lhes interpretavam as dores sociais, os bombistas, os carvoeiros, os anarquistas.
 
 
Era uma questão de moral abater um tirano. Na maior parte dos casos, eventualmente, para lá pôr outro. Não me admira que o aspirante a tirano quisesse ver destituído o tirano que o precedeu para ocupar um lugar a que se acha com direito.
 
 
Um povo ou uma clique poderosa só se poderia ver livre de um príncipe ou de uma dinastia deles pela morte; ou pelo menos era esse o caminho mais fácil e seguro para inaugurar novas eras e fazer correr a História. Dessa época de atentados, os meus olhos caem sobre uma lista de vítimas – ainda que incompleta – entre fins do sec XIX e primeiros anos do sec XX.
 
                                                             
 
O czar Alexandre II das rússias fora assassinado. Mais: Sidi Carnot, presidente francês, morto em Lyon, 1894; o político búlgaro Stambuloff, no ano seguinte; o Xá da Pérsia, no ano seguinte, 1896; e no outro ano o conservador espanhol Canovas del Castillo; em 1890 a imperatriz Isabel da Áustria; Umberto I de Itália em 1900; o presidente americano Mac Kinley, em 1901; o político russo Spyaguine, em 1902; o rei e a rainha da Sérvia, em 1903; outro russo Plehev, em 1904; o grão duque Sérgio, também russo, em 1905. Para não ir mais longe e falar no assassinato em Sarajevo do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, que abriria caminho ao rebentar da I Guerra Mundial.
 
 
Em 1906 também o rei de Espanha, Afonso XIII, sofre um atentado, e logo no dia do casamento. E escapa. E D. Carlos e seu filho D. Luis Filipe de Portugal estavam presentes.
 
                                                               
 
Para dizer que o atentado a um rei em 1908 não era um acto extraordinário e que andasse assim tão fora da consciência tanto das autoridades e das polícias como do povo. O que menos torna compreensível a negligência de João Franco em não reforçar a segurança naquele dia 1 de Fevereiro. Negligência... se negligência foi.
 
 
Será de presumir que D. Carlos suspeitasse da sede com que alguns sectores lhe andavam – quanto mais não fosse por manter na chefia do governo o homem que lhes era odioso; é de presumir que D. Carlos conjecturasse poder ser assassinado um dia desses, a qualquer  momento.
 
                                                                             
 
Não se daria conta certamente da actividade febril havida nos esconsos mais secretos da vida política e que planeavam o seu apeamento fosse de que maneira fosse. D. Carlos planeava por seu lado uma vista ao Brasil para Março desse ano de 1908. Continuava, pelo menos para consumo alheio, a ter uma visão optimista a respeito da crise; continuava a confiar numa saida airosa, por cima, para si e para o seu homem forte.
 
 
O descarrilamento da Casa Branca. Agora pergunto-me eu – escreve D.Manuel. – Aquele descarrilamento foi um acaso? Ou foi premeditado para que houvesse um atraso e se chegasse mais tarde? Não sei. Hoje fico na dúvida. Depois do horror do que se passou fica-se duvidando de muita coisa.
 
                                                             
 
Mas no geral acreditou-se que o descarrilamento não tivera relação com o atentado, porque descarrilamentos na época, tal como assassínios de reis e políticos eram comuns.
Que a acção foi preparada e contou com várias participações, cabendo a acção apenas ao Buiça e ao Costa, parece não ter deixado dúvidas. Falou-se em 18 elementos espalhados pelo Terreiro do Paço e pelo itinerário previsto do cortejo real até às Necessidades. Seis ou sete homens no Terreiro do Paço e outros acocados em Santos e em Alcântara.
 
 
Segundo outras opiniões, 18 conspiradores seria gente a mais numa operação que exigia o máximo dos secretismos. Alguns diriam que os preparativos se restringiam ao Terreiro do Paço, com cinco ou seis homens estrategicamente dispostos e prontos a disparar.
Uma das mais sinistras incógnitas do regicídio está na ausência ou escassez de segurança ao cortejo real. Onde estava a polícia? A polícia não se vê, quanto mais segurança específica por se tratar do rei. Quem negligenciou este ponto? O rei não queria segurança em volta dele? Admitia-se. Mas no mínimo, um mínimo de protecção policial. Além do mais, o rei, no dizer do filho mais novo, não se opunha de modo nenhum à vigilância policial.
 
 
No dia 31 de Janeiro de 1908, em vista da agitação política, o major Dias, da polícia, pedia a João Franco o reforço da guarda e do policiamento no trajecto que a família real precorreria no dia seguinte, ao chegar de Vila Viçosa. João Franco perguntava ao major se estava doido. Ó Dias, isso é Rocambole. El-rei irá desembarcar como de costume e não se há-de dizer que entra em Lisboa sob prisão.
Ao jornalista francês que o entrevistara, insinuando-lhe que se poderia até poupar uma revolução desde que se pudesse suprimir a ditadura, João Franco retorquira: nem todos os atentados obtém êxito. E depois, eu tenho nos meus projectos tanto em conta uma morte violenta como a febre tifóide ou a difteria. Bem sei que um dia terei de morrer.
 
                                                                                   
 
Nem todos os atentados obtém êxito.
Alguém ouvira um caixeiro da praça de Lisboa espalhar pela baixa: amanhã mata-se um porco.
Mas João Franco acabará por fazer concessões. 16 guardas secretos, à paisana, claro, para o Terreiro do Paço – era costume serem 40. Mas que não se mostrassem, que ficassem escondidos na Câmara Municipal. O que é estranho, porque da Câmara não se vê o Terreiro do Paço.
 
 
Quem terá, por assim dizer, encenado, organizado, o cortejo real naquele dia? Porque há um pormenor (ou por maior) que atenta contra a inteligência, ou a boa fé, de quem organiza a saida das carruagens e que coloca na mesma viatura o rei e o seu herdeiro. Se houvesse uma bernarda podiam morrer os dois e o trono tremeria.
Quem organizou a viagem pensou nisso, porque era mesmo essa a ideia?
Quem organizou a viagem não pensou nisso por incompetência? Criminoso em qualquer dos casos: incompetência ou conspiração subterraneamente urdida a partir do próprio palácio real?
 
 
As capotas das carruagens. Alguns disseram que o rei mesmo tinha mandado descer a capota da carruagem. O coronel encarregado dos equipamentos nega essa hipótese. Então, alguém terá dado essas ordens. E, se alguém as deu, o próprio rei consentiu.
         Um atentado não traria apenas vantagens a quem o cometesse com sucesso. Poderia trazer vantagens políticas a quem o sofresse e dele saísse com vida.
 
 
Sim. Parece-me que sim. A moral do atentado é ambígua. O atentado pode funcionar como faca de dois gumes. É arriscado. Claro que é. Quando o prosseguimento de uma política impopular também é arriscado, um atentado falhado contra a vida de um tirano, do autor de uma política impopular… ah, coitado, também não há o direito de se matar um homem só por causa da porcaria da política, que ele até teve coisas boas… enfim, pode, pelo menos a prazo, trazer dividendos ao tirano e transformar temporariamente em popular uma política impopular,ou sinistra que seja.
Um atentado falhado pode legitimar moralmente uma ditadura. Terá sido por acaso que Salazar se fez atentar em 1936, e depois disso nunca mais?
 
                                                            
 
Salazar pode-se ter feito “atentar” em 1936, na Avenida Barbosa du Bocage, saindo desse atentado falhado como vítima moral e reforçando as legitimidades também morais para uma política.
Quantas vezes De Gaulle – que nem era um ditador, mas quase - se fez atentar? Algumas foi de verdade; outras talvez nem tanto.
 
 
E aqui a opinião de alguns, Rocha Martins incluído, de que quer o rei quer João Franco concordaram em que as capotas haveriam de seguir descidas e que a viagem, ainda longa, haveria de ser feita totalmente a descoberto. Por motivos exclusivamente políticos. Por uma questão de imagem e propaganda do governo – o que pode constituir sustentáculo moral de uma política.
Um trajecto de rei em carruagem totalmente aberta em situação politica perigosa mostraria ao povo que nada havia a esconder-lhe e que o rei ali estava desprotegido e inocente, em consciência, à mercê dos fados e da iniciativa de um louco ou de um inimigo. E tanto o rei como o seu governo ganhariam bons pontos no favor popular.
 
 
D. Carlos fazia questão em ir de carruagem descoberta, a passo. Não queria nem em sonhos que pensassem que tinha medo do seu próprio povo.
Mas quem de facto pretendiam os atiradores atingir?
 
 
Para lá do óbvio, não se sabe ao certo, evidentemente. Apenas o rei?
O atentado foi só contra el-rei, diz D. Tomás de Melo Breyner, médico da corte. Creio até que nem queriam matar o príncipe real.
 
                                                                                              
 
E para quê matar apenas o rei se não era para pôr fim à dinastia e criar as máximas condições para a implantação da república?
Talvez os conspiradores se temessem de uma futura e demasiada carga moral, humana e historicamente culposa. Podiam não ter querido que os seus braços armados pusessem um fim brusco ao secular regime monárquico e seus valores tão arreigados, e quando essa acção pudesse espertar o exército e desencadear furiosas reacções populares, obstaculizando aquilo que em última análise pretendiam: a instauração da república.
 
 
Talvez que, eliminando D. Carlos, só quisessem pôr de sobreaviso quem lhe sucedesse.
Até se murmurava nos corredores da política que o mais avisado seria D. Carlos abdicar no filho mais velho e retirar-se para o exílio – já Afonso Costa, nas cortes, o recomendara.
Mas então por que foi morto D. Luis Filipe? Porque em má hora se levantou do lugar na carruagem de pistola em punho para defender o pai?
 
 
Empoleirado no estribo da carruagem real, que impediria o Costa de acabar rapidamente com toda a família? Não o fez. Porquê? Porque não seria esse o objectivo? Porque entretanto era atingido? Porque as flores da raínha a fustigar-lhe a cara o terão desorientado?
Há também quem diga que D. Carlos, que nada tinha de parvo, confidenciara a amigos a sua certeza de mais dia menos dia poder ser assassinado. Mas também se devia sentir amarrado à trágica mitologia do poder real. O pior que podia fazer era deixar-se estar encafuado num palácio ou andar rodeado de beleguins. A ideia monárquica estava em crise em toda a Europa e jogava fortemente a sua sobrevivência.
 
 
Será que nos pressupostos da ambiguidade perigosa de uma moral do atentado, o atentado de Lisboa do dia 1 de Fevereiro de 1908 era um atentado desejado?
Desejado, com certeza, mas por quem? Para quê? Ou sob que pressuposto moral?
Desejado pelo governo – ou até pelo rei – como manobra de propaganda e para reforçar medidas de repressão excepcionais?
Desejado nesse caso para falhar, mas para, de qualquer dos modos, justificar essas excepcionais medidas?
Desejado pelos republicanos para derrubar a monarquia e implantar a república  no dia seguinte?
Desejado pelos monárquicos para se vingarem no rei da ditadura de João Franco ou por qualquer outra razão ou conjunto de razões menos claras?
Desejado pelos monárquicos para mudarem de dinastia, desarmar os republicanos e prolongar a vida do regime monárquico?
Desejado simultaneamente por uns e por outros, deixando as consequências ao critério do acaso – e dado haver espalhados por ali mais atiradores do que os dois que actuaram e cada um, ou cada grupo deles, com seus desígnios?
Desejado separadamente por uns e por outros e convergindo as várias motivações para o mesmo dia e hora, com tudo ao molho e fé em Deus – ou no diabo?
 
 
D. Carlos, ao saber do pequeno atentado a João Franco naquela tarde eleitoral em Alcântara ficara satisfeito. O atentado fora uma boa coisa e daria mais força ao governo. E escreveu-lhe.  A minha opinião é que coisa alguma de maior sorte poderia ter sucedido ao governo em prol das ideias que desejamos levar avante.
O atentado, ainda que não desejado, poderia ter sido facilitado pelas autoridades, evidentemente sob directivas superiores, e, também evidentemente, tendo em vista as vantagens morais que podem beneficiar quem é vítima de um atentado – desde que os estragos pessoais sejam controlados.
 
 
Antes de o cortejo se pôr em marcha, alguém terá ouvido D. Carlos perguntar a João Franco: vai agora ao Paço, Segue-nos. Asseguras-me de que tudo vai correr bem?
Correr bem o quê? Não haveria novidade? Ou haveria uma novidade, um acontecimento devidamente controlado que, aleatório em si mesmo, era todavia possível de descambar para o torto? Não se pode esquecer que as eleições estavam marcadas para daí a dois meses. E, ontem como hoje, não se pode esquecer que os políticos estão dispostos a vender a alma a Satanaz se preciso for só para ganhar votos.
 
                                                            
 
Terá João Franco, ou outrem a mando dele, sido enganado por alguém? Terá ele, João Franco (ou outrém a mando dele), e até de acordo com o rei, combinado a encenação de um atentado convencido de que era fingido, de que era para falhar, acabando por descambar num atentado real?
Dos cinco operacionais que estavam no Terreiro do Paço, terão sido por acidente escolhidos para o assalto os que estavam de fora da combinação, sem que os agentes de João Franco tivessem tido tempo ou ocasião para modificar as coisas?
 
 
Ou teriam o Buiça e o Costa acedido a um compromisso de falso atentado só para que a polícia descansasse e lhes deixasse o campo livre para o verdaderio atentado que tinham em mente?
É que tanto o Buiça como o Costa, anormalmente nestes casos, falaram tanto do que iam fazer, foram tão pouco discretos, deixaram tantas pistas, que dá para desconfiar de qualquer coisa…
Ou terá João Franco sido traído?
Ou saberia João Franco de alguma coisa e tenha querido poupar o rei, não o informando como devia ser de todo o plano, falso ou real que ele fosse? Ou tudo isto em simultâneo.
 
                                                              
 
Especulações. Evidentemente. Teorias de conspiração em que ninguém gosta de acreditar.
Não se pode minimizar um pequeno pormenor – o qual, aliás, D. Carlos enfatiza, repito, na carta que escreve a João Franco: ser vítima de um atentado é uma vantagem para quem o sofre e consegue escapar ileso. Uma vantagem política. Para o homem e para o grupo que haja por detrás dele.
É como digo, ser vítima compensa quase sempre. Até na política. Ou sobretudo na política. E dir-se-ia, conforme os acontecimentos futuros no-lo demonstrariam, que os homens políticos desta época poderiam ir mesmo à procura do perigo, do atentado. Com alguma sorte escapariam e poderiam capitalizar politicamente o facto.
 
 
Haveria para os homens politicos daquele tempo senhores de uma coragem física que não tem comparação com a dos meninos doutorzecos de copo-de-leite de hoje, uma certa moral no atentado. 
Facilitar um atentado, provocar arranhões insignificantes, ou mesmo fazer abortar na hora esse atentado: podiam ter sido directivas dadas à polícia. João Franco seria sabedor. Mas D. Carlos também seria sabedor? Ou teria sido sabedor na hora de pôr pé na carruagem, e daí a pergunta dele ao seu ministro, asseguras-me de que tudo vai correr bem? Ou, enfim, não saberia de nada?  
 
 
No seu livro de memórias, João Franco escreverá que nunca a nenhum membro do governo passara pela cabeça a probabilidade de um atentado contra o rei. Nunca se teria ouvido a alguém da polícia ou da administração falar, ou sequer aludir, à eventualidade de um atentado. Em nenhuma das inúmeras cartas anónimas que o governo recebia se aventava essa hipótese.
Ah, engano, aventou-se numa carta devidamente assinada por um cidadão respeitável...
Mas como, pelo que diz João Franco, nenhuma carta anónima apontava para a eventualidade de um atentado, ignoravam-se os sinais que a situação não parava de dar; ignorava-se a frustrada revolução do 28 de Janeiro; ignoravam-se uma quantidade de circunstâncias gritantes.
 
                                                            
 
O que estamos presenciando não pode continuar. Isto terminará fatalmente com um crime ou com uma revolução – já em tempo o dissera Júlio de Vilhena, chefe do Partido  Regenerador.
Será crível que rei, família real, chefe do governo, corte, notáveis, chefes monárquicos fossem tão amadores quanto nos parecem à distância de um século?
De quem foi a culpa, a culpa moral e histórica? Será que em Portugal, já nesse tempo, ninguém importante tinha culpa de nada? Coisa que tão cara é aos portugueses, e ao mesmo tempo tão difícil lhes é de discernir: a culpa. A culpa…