shakespeare 400 –
franco zeffirelli
Liz Taylor tinha adoptado um
macaquinho. E tinha-o o levado para a suite de um hotel na Irlanda, onde o
macaquinho não parava de fazer macaquices e destruir tudo o que apanhava à mão,
pendurava-se nos cortinados, devastava as prateleiras da casa de banho,
arranhava a cara da criada. Richard Burton e Zeffirelli, no salão, discutiam o
projecto shakespeariano que tinham em mãos. Liz aparece-lhes, furibunda, aos
guinchos para o marido:
- Não queres fazer o favor de parar de
falar desse teu maldito Shakespeare e vir ajudar-me com o macaco!?
Burton bate com o copo de whisky no
tampo da mesa e barafusta por seu turno:
- E tu não queres fazer o favor de
parar com as tuas parvoíces e deixares esse abominável animal e vires falar do
nosso projecto com este homem? É um grande director shakespeariano que aqui
está! E tu devias dar-te por feliz por trabalhar com ele… ou, ao menos, podias
ser amável com ele…
- Mas que me importa o que esse senhor
pensa de mim… eu quero é que me venhas ajudar com o macaco!
Zeffirelli
estava a perceber que as dificuldades que pudessem existir para associar o
casal ao projecto de A Fera Amansada
não partiriam de certeza de Burton, porque Burton estava capaz de vender a alma
ao diabo só para voltar ao grande repertório clássico. O problema era Liz.
Liz encara Zeffirelli com o seu
hipnótico olhar de safira:
- E você, não é capaz de me ajudar com
o macaco? Não consigo entender as pessoas que não gostam de animais…
E ele foi. Ajudá-la com o macaco. E
pelo caminho foi-lhe falando dos cães e dos gatos que tinha em casa.
Pois para A Fera Amansada, e muito antes de Taylor e Burton, Zeffirelli tinha
pensado no casal Sophia Loren/Marcelo Mastroianni. Numa primeira escolha seriam
esses o casal ideal, Petruccio e Catarina.
Só passados tempos lhe chegou a revelação interior, o ideal.
Petruccio e Catarina só poderiam ser Elisabeth Taylor e Richard Burton.
Mas…
Taylor e Burton a serem dirigidos por alguém sem grande nome cinematográfico, e
logo em Shakespeare? Mas Burton ansiava por regressar ao seu idolatrado
Shakespeare. E foi o que valeu.
Isto foi em 1966, mas a aventura, longa aliás, de Zeffirelli
com o mundo shakespeariano começaria muito antes. E no teatro.
Zeffirelli teve quatro anos de inglês e
assim que se começou a desengomar melhor na língua interessou-se pela História
e pela poesia, e quando o domínio da língua cresceu mais atirou-se, obviamente,
ao dono dela, o seu Shakespeare. E vieram as comparações com Dante, porque, diz
ele, estava na idade em que se fazem comparações por tudo e por nada, entre
tudo e nada, quem é melhor, Verdi ou Puccini, Leonardo ou Miguel Ângelo…
Como Michael Benthall, director-geral
do Old Vic, o teatro dos teatros da época, tinha visto e gostado da encenação
de Cavalleria Rusticana e Palhaços,
pensou em qualquer coisa para ele e Zeffirelli assustou-se deveras.
Shakespeare? Não era concebível a probabilidade, mesmo remota, de um italiano
encenar Shakespeare, em inglês, e na própria casa de Shakespeare.
Romeu e Julieta? Horror! Não, calma, pede
Benthall. A ideia não repor as velhas tradições, os maneirismos vitorianos.
Renovar, isso sim. Refrescar, pois então. Tal como ele fizera na lírica com Cavalleria Rusticana e Palhaços. Não
era para ser um espectáculo à inglesa. Pretendia-se um certo sabor italiano
para a desgraçada história dos jovens amantes. Amantes de onde? De Verona. Ora
aí estava. Para o outono de 1960.
Para começar, avistar-se com o outrora
seu mentor, Luchino Visconti, com quem, por acaso, tinha andado de candeias às
avessas. Visconti intimida-o (fazia parte do número habitual dele):
- Lembra-te de que nunca fizeste uma
encenação de teatro declamado…
- Então não fiz?
- Sim, pronto, fizeste uma, está bem.
Que não teve êxito nenhum. Mas nunca tocaste em Shakespeare. Nem em italiano,
quanto mais em inglês. E no Old Vic! O Old Vic é uma referência mundial do
teatro, meu filho, não te esqueças disso. Tens muito poucas hipóteses de
sucesso. Se falhas, será um handicap para toda a tua carreira e nunca mais
levantas cabeça…
Atira-se ao trabalho. Estuda o assunto
em profundidade. Como outras, o Romeu e
Julieta de Shakespeare não era uma obra original. Reportava-se a uma
história antiga de um certo Matteo Bandello, e em que Romeu não era aquele
jovenzinho imberbe, era um jovem, sim, mas já bem vivido e maduro sentimental e
sexualmente e que ao conhecer Julieta a toma logo como amante.
Dando uma vista de olhos pelas outras
personagens, Zeffirelli nota que muitas daquelas a que Shakespeare conferira
alguma importância na história desse Bandello não a tinham assim tanto, e
vice-versa. Um pormenor: ao dançar, Julieta reconhecia o carácter do seu par
pelo toque da palma da mão; Messer Mercuzzo tinha um toque frio e frouxo; a mão
de Messer Romeo, ao contrário, era quente e “doce”.
Nota ainda o profundo amor do poeta por
Itália, onde possivelmente nunca havia posto os pés. Para um isabelino, Itália
era o lugar dos sonhos, tanto quanto para um italiano do século XIX a
Inglaterra o era no que tocava às liberdades democráticas. E indo mais fundo no
estudo salienta que nos tempos renascentistas havia um intenso intercâmbio
comercial entre Veneza e Londres e os marinheiros venezianos podiam passear-se
pelos cais e embebedar-se nas tabernas das margens do Tamisa. Shakespeare terá
retocado algumas das suas peças “italianas” com expressões ouvidas a
marinheiros italianos.
Sim, Shakespeare pilhava histórias
antigas aqui e ali e transformava-as num sentido preciso: a linguagem, o
apuramento da língua inglesa. Mas não seria pelo primor da declamação inglesa
que Benthall tinha recorrido a Zeffirelli. Shakespeare era, evidentemente,
considerado por esse mundo como o maior dramaturgo de todos os tempos, e isso
significava para Zeffirelli que na obra teatral fora antes de mais à componente
dramática que Shakespeare se ativera, e não tanto aos refinadíssimos aspectos
poéticos.
À muito jovem e quase estreante Judi
Dench é distribuído o papel de Julieta, e a John Stride o de Romeu.
O estilo de encenação seria qualquer
coisa como um sonho italiano. Mostra aos actores quadros de época, cores,
ambientes. Não quer maquilhagem. Não quer varandas ornadas de glicínias nem
colunatas de ouro. Quer contar ma história verdadeira num cenário verosímil de
cidade medieval à entrada do período renascentista. E nada de cabeleiras. Todos
deveriam deixar crescer naturalmente os cabelos. Era o ano de 1960: ainda não
há Beatles – mas vai passar a haver
depois daquele Romeu e Julieta do Old
Vic.
Os actores eram olhados com estranheza na rua e no Metro, envergonhavam-se dos cabelos compridos e tentavam ocultá-los com barretes e gorros.
Os actores eram olhados com estranheza na rua e no Metro, envergonhavam-se dos cabelos compridos e tentavam ocultá-los com barretes e gorros.
Em resumo: um êxito estrondoso de
público; um arraso de crítica. Visconti tinha razão, pensa Zeffirelli.
Quer abandonar o projecto. Benthall
dissuade-o. Seria imperdoável dar ouvidos à imbecilidade dos críticos de vistas
curtas. Mas vem um crítico salvá-los. Kenneth Tynan, o papa da crítica teatral
londrina. “Uma revelação… talvez uma revolução… uma produção magistral…”
Aquele Romeu e Julieta vinha a calhar num particular momento da História
do espectáculo. Anunciava uma nova era da estética e da sociedade, make love not war, o advento dos Beatles, as flores no cabelo, o
movimento hippie. E com respeito ao
teatro shakespeariano abria-se a Zeffirelli um futuro prometedor.
O passo seguinte era Othello. E no lugar sagrado de
Stratford-on-Avon. Com John Gielgud em Othello e Ian Bannen em Iago. Uma
obra-prima com escasso apelo às românticas
rêveries da italianidade.
Um desastre.
Na interessante concepção de Zeffirelli,
Othello era um homem refinado, uma espécie de representante de uma aristocracia
negra e um veneziano por adopção, mais civilizado do que muitos europeus do
tempo. Nada a ver com o africano primitivo. Homem da Renascença, porque, por
alguma razão Shakespeare lhe confiara tiradas magníficas. Zeffirelli pensava na
elegância natural dos núbios. A selvejaria ancestral só se lhe manifestou ao
deixar-se tocar pela vilania dos civilizados europeus, pela corrupção da raça
branca. Quem destrói o refinado Othello é o primitivo Iago.
A representação sumptuosa de John
Gielgud, a soberba declamação, não combinavam bem com a concepção teatral de
Zeffirelli. Zeffirelli era um pragmático teatral, um visual, não tinha nada do
teórico que tudo prevê antecipadamente, e isso não agradava nada a Gielgud.
E depois, os actores da produção não se
falavam, a montagem cénica deixava a desejar, as mudanças rápidas de cena
podiam ser catastróficas com colunatas a tombar e praticáveis a deslizar.
Diz Zeffirelli de uma atitude
tipicamente inglesa (e não sei se exclusivamente inglesa): quando um fulano tem
sucesso ninguém lhe liga meia; quando falha, toda a gente se precipita para o
ajudar.
Uma noite, em Roma (filmavam os
interiores de A Fera Amansada na
Cinecittà), Zeffirelli levou o casal Burton ao Teatro Quirino para assistirem a
uma representação de La Lupa, de
Giovanni Verga, que Zeffirelli tinha montado para Anna Magnani. No fim do
espectáculo foram convidados para a casa da princesa Pignatelli, onde
encontraram o casal Ethel e Robert Kennedy, e com quem foram acabar a noite a
um night club.
Incomodado com o barulho, Richard
Burton quis ir embora, todos concordaram e resolveram acompanhar os Kennedy ao
hotel. E então acontece um duelo do mais extraordinário a que Zeffirelli alguma
vez assistira. Entre Burton e Bob Kennedy. Qual dos dois seria homem para
recitar (de memória, claro) o maior número possível de sonetos de Shakespeare.
O carro estacionou diante do hotel
(previsivelmente o Excelsior, na Via Veneto) e a compita nunca mais parava –
grande repertório e grande memória, digo eu, devia ter Bob Kennedy para se
bater com tão celebrado actor shakespeariano.
E saíram do carro e a recitação
competitiva continuou no hall do
hotel. Até que Burton vibra o coup de
grace no adversário e atira-lhe com o 15º soneto impecavelmente declamado
ao contrário, do fim para o princípio, começando na última palavra e terminando
na primeira.
Toda a gente de boca aberta. Kennedy dá-se por vencido. Liz,
que não tinha mostrado o mínimo interesse pela contenda, toma a palavra,
indicando o marido:
A
Fera Amansada sai, é um sucesso, e Zeffirelli começa a trabalhar no
próximo projecto cinematográfico, Romeu e
Julieta, apesar do pessimismo dos produtores, que persistiam em pensar que
Shakespeare era um autor que vendia mal e que o sucesso de A Fera Amansada fora unicamente devido à presença do casal Burton.
O certo é que no ano seguinte, 1967,
sai Romeu e Julieta, com actores
desconhecidos e na linha estética do que tinha sido a produção do Old Vic sete
anos antes, e regista um formidável triunfo
mundial que faz de Zeffirelli um homem rico de uma semana para a outra.
Em todo o caso, e com toda a possível
sinceridade, Zeffirelli admite lucidamente que o jovem público do mundo inteiro
se emocionou com o seu Romeu e Julieta
por nada de mais do que o esplendor do guarda-roupa.
Zeffirelli fez um Hamlet
em versão italiana com um dos mais prestigiados actores teatrais italianos da
época, Giorgio Albertazzi. O espectáculo foi apresentado em Paris e Londres e
premiado no Festival do Teatro das Nações.
Fazia uma leitura de Hamlet um tanto ou quanto freudiana, o
desejo louco de Hamlet pela mãe, e assim.
Considerava Hamlet
um supremo cume da dramaturgia ocidental pelas virtualidades explosivas do
texto, entre a loucura e a violência, entre o fingimento e a verdade. Sentia na
origem da história os laivos da tragédia grega, da Orestreia, personagens criadas pelos deuses e incapazes de mudar o
próprio destino. Com a excepção, aliás, do próprio Hamlet ao desafiar o destino
que lhe estaria reservado, dado que, mesmo condicionado por uma cultura
medieval de passividade, ele interroga o seu destino, pergunta pelo sentido da
vida e perfila-se como uma personalidade renascentista.
Para Zeffirelli, Hamlet prefigura igualmente a juventude
iconoclasta e incorruptível que recusa pertencer ao mundo criado pelos
antepassados.
Shakespeare escreveu Hamlet
em princípios do século XVII, e como de costume foi buscar o assunto a um autor
do passado distante, Saxo Grammaticus, do século XII, História dos Dinamarqueses, com Amleth, o príncipe da Jutlândia a
vingar o pai assassinado pelo irmão. Um mundo brutal e sanguinário de vikings
que Shakespeare povoa dos costumes e maneirismos das cortes italianas da
Renascença e que no século XIX os vitorianos decoraram com outros maneirismos,
os de uma peça romântica, que era a ideia generalizada da corte dos Tudor e dos
tempos isabelinos.
Zeffirelli via um ambiente nocturno e brumoso, um interminável
inverno nórdico que gelava até as almas. Via Elsenor como um rochedo bruto, um
lugar de pedra e ferro com fogos a crepitar no interior de enormes, húmidos e
inóspitos salões. E em volta, sons. Passos pesados e ameaçadores. Latir furioso
de cães perdidos. Lá estava a podridão do reino da Dinamarca a que Hamlet se
refere.
Hamlet não pode admitir que Cláudio, o tio, tenha assassinado
o irmão (o rei, pai de Hamlet) com a cumplicidade da mãe. Admitindo tal era o
mesmo que admitir que o pai era um fraco e a mãe uma velhaca.
Hamlet julga conhecer a verdade. Mas Hamlet não pode aceitar a
verdade que julga conhecer. O espectro do pai não pode ser o espectro de um
lamentável e rancoroso cornudo que exige ao filho um acto que ele mesmo não
teve coragem de cometer: matar Cláudio. Hamlet tem que manter do pai uma imagem
idealizada.
E idealiza do mesmo modo a mãe. Não pode vê-la como uma mulher
ardilosa, luxuriosa, capaz de não importa o quê para atingir os seus
objectivos. Hamlet vê nela o que quer ver, um ser frágil e indeciso, vítima de
circunstâncias armadas pelo malvado do cunhado.
Na verdade, e com licença de Freud, Hamlet deseja secretamente
a mãe e é por isso que não pode envolver-se com Ofélia.
Elsenor é um lugar sem moral. Quem é que se insurge quando um
rei é assassinado quando logo a seguir o assassino casa com a rainha? Ninguém.
E porque é que Hamlet não compactua com a realidade dos factos, ele que será
rei qualquer dia?
Aquele castelo exsuda corrupção. A traição e a espionagem são
o pão-nosso-de-cada-dia em Elsenor e a corte vai-se perpetuando no subtil
equilíbrio das iniquidades de cada um.
Hamlet, para Zeffirelli, é um herói do nosso tempo. Aliás, do
tempo do próprio Zeffirelli, que não é ainda este tempo do presente que
vivemos. Hamlet e o solitário que faz soar o alarme quando todos os que o
rodeiam vivem numa perigosa letargia.