terça-feira, 30 de julho de 2013


            AS AVENTURAS DA HERESIA




Isto hoje em dia não deve ter interesse nenhum, porque a preocupação máxima é a crise, mas não é possível esquecer que a Palestina, já no tempo de Jesus, e tal como hoje, era uma zona de grande instabilidade social e grande agitação politica.


Foi cerca de um século antes  do nascimento de Jesus que a Palestina baqueou diante das legiões romanas. Mas como Roma tinha muito mais que fazer no mundo, deixou a Palestina entregue a uma linha de reis, os Herodes, que não passavam de testas de ferro dos interesses do império. Reis esses, os Herodes, que ainda por cima nem eram judeus, eram árabes, e a governar sob leis que eram de Roma.


Tinha Jesus feito seis anos quando três mil patriotas revolucionários da Judeia eram sumariamente crucificados, o Templo era saqueado, e o IRS lá deles fortemente aumentado pelos romanos. Havia tortura e suicídios. Pilatos, ao contrário do sugerido na Bíblia, era bera como a ferrúgem, cruel, venal e corrupto.


Os grupos revolucionários na Judeia brotavam a cada esquina, fariseus, zelotas – por vezes confundidos com os essénios, e talvez por alguma razão ou afinidade de princípios e práticas associados a eles. No contexto do status vigente pode dizer-se que eram esses zelotas que marcavam a agenda política.



Em 66 (mas já depois de Cristo), a luta armada desencadeou-se.

                               

O povo da Judeia esperava por alguém, alguém que o liderasse na luta contra o ocupante, e a esse alguém chamariam de messias. Mas a questão é que a figura de um messias nada tinha a ver com a divindade do sujeito. Messias que, em grego, se diz Christo, quer dizer ungido, reportava à figura e à dignidade de um rei: David fora um ungido; fora um messias; fora um Christo. Fora um rei. E todos os da sua casa o seriam.
    Para os zelotas do tempo de Cristo e dos anos que se seguiram, o verdadeiro messias era o descendente perdido da casa de David e o seu aparecimento estava por dias. Mas era como entidade política e não religiosa que o aguardavam.


Pode o leitor não ter interesse nenhum nisto e já estar verde de saber isto, mas, ainda assim, digo-lhe que a designação Jesus de Nazaré é já de si duvidosa. E nem se sabe se a cidade de Nazaré já existia no tempo de Jesus. É como lhe digo, leitor. Nazaré não figura nos mapas do tempo nem nos documentos romanos – aliás, nem sou eu que lhe digo, são os entendidos. Nazaré nem aparece no judaico Talmud. Nem Flávio Josefo fala alguma vez na cidade de Nazaré. É só depois da revolta do ano de 66 que Nazaré aparece como cidade.


Jesus, pobre carpinteiro? Também é duvidoso. Ele era um homem culto e parecia preparado para ser um rabi. E… pois não, também não alinhou só com gente pobre, também alinhou com ricos e poderosos, casos de Nicodemos, José de Arimateia. E Maria Madalena era irmã de Lázaro, e aquilo era gente de posses e com muitos amigos na política, quer dizer, na corte de Herodes.
O desacordo factual entre os evangelhos conhecidos e consagrados, mas na verdade compilados muito tempo depois dos eventos e ao arbítrio da conveniência político-eclesiástica, deixam os investigadores às aranhas. Para  o evangelista Mateus, Jesus era membro da aristocracia e com justificadas pretensões ao trono dos judeus; para Lucas, a família de Jesus, conquanto herdeira da estirpe de David, era uma família modesta. E com Marcos, Jesus era finalmente filho do pobre carpinteiro.
                 
                                

Ou aquilo que hoje conhecemos sob a simplificada designação de Jesus era referido a mais do que uma pessoa, duas, três; ou a história da vida de Cristo seria  a crónica ficcionada, ou metafórica, da ideologia e das acções de  uma seita politico-religiosa?
Para Lucas, Jesus nasceu sob as vistas de uns humildes pastores. Mateus põe sábios a assistir-lhe ao nascimento. Em Lucas, a família de Cristo vive pobremente em Nazaré; em Mateus, a família de Jesus tinha de ser, e era, de Belém – além de Jesus não ter nascido num estábulo, ou numa mangedora, mas numa casa normal. Mateus propõe ainda que é a perseguição de Herodes que leva a família a fugir para o Egipto e só no regresso a virem morar para Nazaré.
No evangelho dito de João a crucificação foi na Páscoa judaica. Mateus, Marcos e Lucas estão em maioria no dizer que foi no dia a seguir.


Para Lucas, Jesus é um humilde, um cordeirinho dócil. Para Mateus é um homem importante.
Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste: últimas palavras que Mateus e Marcos atribuem a Jesus na cruz. Pai, na tua mão entrego o meu espírito, afirma Lucas que Ele disse por último.
Tudo está consumado, segundo o evangelho de João –ou atribuido a alguém que assinou João.


Nos evangelhos, e quanto ao estado civil de Jesus, o silêncio é de ouro. E no entanto, muitos dos seus discípulos eram casados, a começar por Pedro. E nem Jesus em algum momento terá defendido o celibato; e se não o defendia nem o pregava, porque razão haveria de  praticar?
Os costumes judaicos não estavam com contemplações e impunham o casamento aos homens. Um homem judeu era potencialmente um pai, um pai que se via constrangido a encontrar mulher que fosse mãe para o seu filho.
Admitindo que Jesus não fosse casado e se fizesse maioritariamente acompanhar só por homens, e sendo o que eram os costumes e a cultura dos judeus, o que é que impede os malsins de conjecturar que ele pode ter sido condenado e morto em consequência disso?
Mas admitindo como mais do que certo que Jesus fosse casado, quem poderia ser a mulher de Jesus?


Duas mulheres o acompanhavam com frequência Maria (da terra de Migdal, ou Magdala) Madalena, era uma delas.
Prostituta, Madalena? Não é que, nos evangelhos, essa condição lhe seja assim tão flagrantemente assacada. Talvez ela fosse pecadora, mas também  parece certo que era mulher de teres e haveres, que tinha amigos influentes, e que, com alguma probabilidade, pudesse ter tido uma vida sexual mais folgada do que o permitia a ortodoxia…
Jesus é ungido por uma mulher. Mas teve que ser uma mulher com bastante de seu. Porquê? Por causa dos custos. Dos custos do óleo de nardo com que era feito o ritual da unção. E o óleo de nardo nesse tempo, IVA incluido, custava os olhos da cara.


É por essa unção que Jesus assume o estatuto de messias. E, em ritual tão solene, a mulher que o ungiu não podia ser uma mulher qualquer.
O tratamento dado por Jesus a Madalena é de modo a provocar ciúmes nos outros seus seguidores. E pode bem ser que Maria Madalena tenha sido difamada pelos discípulos mais invejosos, que lhe começaram a chamar nomes a verem que Cristo a tratava carinhosamente e que, inclusivé, a beijava na boca.
Mas outra mulher se apresenta como possível esposa de Jesus, outra Maria, irmã de Marta e de Lázaro. Maria Betânia - não essa, a do Brasil, uma outra, da Judeia (ou Maria de Betânia), e seus irmãos. Tudo gente que tinha de seu.   

Há mulheres que os evangelhos colocam em situações e lugares diferentes e que podiam não passar de ser uma e única mulher. A tradição popular assim o diz. E os estudiosos da actualidade concordam. Se Maria Madalena estava presente na crucificação, porque não o estaria Maria de Betânia, discípula tão dedicada que ela era do Mestre. Ou estava e os evangelhos lhe chamam Maria Madalena?


O eventual casamento de Jesus com Maria Madalena podia transcender o mero matrimónio entre cidadãos. Poderia ter revestido uma forma de aliança entre famílias com  vista a finalidades dinásticas, políticas. A consequência física desse casamento seria uma linhagem real a prosseguir a linhagem real de David.
Porque há evidências (dizem) de que Maria Madalena também era de linhagem régia, da tribu de Benjamin.
Jesus era da linha de David, e se tinha pretensões ao trono dos judeus estas eram legítimas. E como David, da tribu de Judá, usurpara o trono ao benjamita Saúl, Jesus, casado com uma benjamita, cumpria uma formalidade dinástico-política importantíssima ao unir as duas casas reais, unificando a linha de descendência e de pretensão ao trono. Dessa forma, melhor podia mobilizar o país, liderar uma revolução, expulsar o ocupante romano, restaurar a monarquia salomónica. E seria então ele, de todo o direito, o rei dos judeus.


Maria Madalena e Jesus, ambos com sangue real? Convenhamos, não eram uns quaisquer. E casados mais perigosos se tornavam, porque neles se fundiam as duas mais ilustres estirpes da realeza judaica.
Mas por favor… não se segue daqui que eu esteja pessoalmente convencido desta ou daquela verdade. Não me interpretem mal.  Estamos no domínio do fabuloso, do especulativo, do misterioso e do romanesco. E da heresia e das suas aventuras. Mas não sou eu o herege – pelo menos por isto. Limito-me a reproduzir aquilo que li e em que pessoalmente nem acredito nem deixo de acreditar.
Falta uma semana para a crucificação quando Jesus entra triunfalmente em Jerusalém montado num burro. Assim o mandava o Velho Testamento àquele que se reclamasse do estatuto de messias.
O problema foi o burro. Era preciso achar um burrinho e não havia ali á mão burrinho nenhum – o que também me soa um bocado estranho. Jesus manda então alguns dos discípulos a Betânia, diz-lhes que em tal parte assim-assim acharão um jumento. E assim acontece. E o caso levou foros de milagre. Um burrinho ali, logo, à mão de semear, como que por encomenda.


Mas os comentadores permitem-se duvidar de tal milagre. Preferem pensar que toda a cena estava minuciosamente planeada para seguir o guião (chamemos-lhe assim) estipulado no Antigo Testamento.
    Quem é o homem que fornece o burro para a triunfal entrada de Jesus, o Cristo, em Jerusalém na qualidade de messias escolhido e ungido? Pode ter sido Lázaro. Amigo e seguidor secreto de Jesus, assim como outros, dispunha de fortuna e influência – porque alguns dos discípulos declarados poderiam estar fora do segredo. Lázaro estava dentro do segredo e pode ter ele sido o director de cena e o chefe contra-regra da representação ritual de Jesus como messias.


Dizem alguns que havia em redor de Jesus, para além dos apóstolos evidentes – que seriam os soldados rasos -, um círculo secreto e realmente poderoso e influente de seguidores. E pode ter sido sob a direcção de Lázaro que o ritual de uma crucificação e de uma ressurreição iniciática de Jesus pode ter acontecido.
Quem em primeira instância condena Jesus à crucificação é o Sinédrio, o grande conselho dos velhos judeus. Depois de o condenarem levam-no a Pilatos. Exigem de Pilatos um claro pronunciamento contra ele.
   Mas parece que tal coisa não faz historicamente qualquer sentido.
Se Jesus é condenado pelo Sinédrio na noite da Páscoa, é preciso dizer que o Sinédrio estava proibido de reunir durante a Páscoa. E então… como é isto arranjado?
Preso e julgado ante o Sinédrio à noite. Mas, azar!, o Sinédrio não reunia à noite…
       (E já agora, entre parêntesis, deixem-me que vos diga que não sei onde é que os investigadores e académicos historiadores vão buscar tantas certezas de uma época tão remota, mas enfim…)


Parece ser verdade que o Sinédrio não dispunha de poderes e autoridade para proferir sentenças de morte por crucificação. Só por apedrejamento. E aqui é que está o busílis. É por causa disso que Jesus é levado perante Pilatos. Mas porque razão então o Sinédrio não condenou Jesus no âmbito das suas competências, ou seja, ao apedrejamento?


Os autores dos evangelhos – autores e revisores e censores -, escrevendo para audiências romanas quiseram eximir Roma ao crime da morte de Jesus. E é por isso que Pilatos aparece na cena dos evangelhos a dizer que nada tem com o caso, que não vê naquele homem culpa alguma. A verdade é que pode não ter sido essa.
A multidão incita Pilatos a condenar Jesus. Pilatos não quer, mas já que a multidão clama por isso, ele cede.
Não cabe na cabeça de ninguém que um pro-cônsul romano da época fosse homem para ceder à multidão de um território estrangeiro ocupado a ferro e fogo… mas, escritos como foram os evangelhos, a ficção tornar-se-ia aceitável para Roma. E era em Roma que a Igreja de Cristo teria de ser fundada. Uma questão de marketing  político


Pilatos chama a Jesus “Rei dos Judeus”; na cruz é afixado um dístico a dizer o mesmo – isto segundo os evangelhos conhecidos do vulgo.


Mas que Rei dos Judeus? A que título “Rei dos Judeus” conferido a um homem que ia ser tratado com toda a intolerância e crueldade?
Rei dos Judeus? Era gozo? Era presunção pateta do próprio Cristo? Ou seria pretensão legítima? Não se sabe. Os evangelhos não no-lo esclarecem.
Mas não tinham vindo três reis magos visitar um menino recém-nascido? Três reis logo de uma assentada, e dos verdadeiros… três reis em busca do menino nascido rei dos judeus
E de quem tinha afinal Herodes tanto medo? E porquê?
Teria Herodes medo daquele que representasse uma linha mais legítima e um mais legítimo direito de sucessão ao trono de Israel?
Se Cristo não violou a lei romana – como o próprio Pilatos se descaíu a dizer -, porque foi então castigado segundo os métodos de Roma: crucificação; crucificação exclusivamente usada para réus de crimes contra Roma?
O Cristo crucificado à ordem de Roma seria o Cristo que nada tinha a ver com os conflitos políticos do tempo?
    

    
      Se Cristo era absolutamente apolítico como querem os evangelhos, porque concitou então contra ele o braço da justiça imperial?
Na cruz, suspenso pelas mãos, um homem ficava inibido de respirar. Só se lhe prendessem, ou pregassem, também os pés para aliviar a pressão nos pulmões. Desse modo, um crucificado poderia levar uma semana a morrer. Só no caso de lhe partirem as pernas o processo de morte seria naturalmente acelerado por asfixia. As pernas de Jesus não foram partidas.
Quando o soldado romano lhe aplica a lançada no lado, Jesus já está morto. E tem apenas poucas horas de crucificado.


A morte de Cristo na cruz ocorre no instante preciso, e só para evitar que os soldados lhe partissem as pernas. E porque era preciso cumprir até à última a profecia do Velho Testamento.
Poderia ter Jesus organizado toda a sua vida e trajectória em função da profecia velho-testamentária que anunciava para essa época a chegada de um messias?
Jesus diz que tem sede. O soldado romano estende-lhe a lança com a esponja embebida em fel e vinagre. Não, não era um acto de sadismo. Porquê? Porque o vinagre é um estimulante, servia para reanimar, por exemplo, os escravos exaustos que remavam nas galés. Jesus, ao cheirar ou ao sorver o vinagre da esponja, experimentaria uma renovação temporária das energias. Pois. Mas não foi isso que aconteceu. Logo que lhe chegam a esponja à boca, Jesus diz as últimas palavras e morre. Fisiologicamente, cientificamente, é uma morte no momento errado, a reacção do corpo de Cristo está errada segundo a ciência.
Aos lábios de Cristo pode ter chegado uma droga, um calmante ópiáceo, aloés, beladona. Usava-se na época.


Mas se assim foi, porque foi?
Faria parte do plano provocar na vítima uma morte apenas aparente?
Estaria Jesus ainda vivo – embora inconsciente - depois da esponja e das últimas palavras?
Se a crucificação era um acto público, um espectáculo de multidões, os evangelhos, pelo contrário, descrevem a de Jesus de  modo bem diverso.
Segundo Mateus, Marcos e Lucas, os assistentes estariam a observar de longe. Alguns autores especulam que a crucificação poderia ter acontecido num lugar privado, talvez o jardim de Gethsemani,  propriedade de um dos do círculo mais íntimo e mais fechado de Jesus. Uma crucificação num recinto privado pode dar margem a mistificações.
As testemunhas não eram neutras. E estavam longe. Longe o suficiente para lhes ser difícil distinguir quem era o homem que estava de facto a ser crucificado. E menos ainda se o crucificado estaria a certa altura verdadeiramente morto. Mas para toda a encenação acontecer era preciso que a autoridade romana fechasse os olhos. Pilatos era o responsável pela ordem. Pilatos era um tirano. Pilatos era corrupto. Mas Pilatos entrega o corpo de Jesus a José de Arimateia, quando, pela lei, o crucificado não tinha direito a sepultura e o corpo ficava-lhe na cruz, a ser corrompido pelo sol e pela chuva, a ser devorado pelas aves de rapina.


José de Arimateia solicita a Pilatos o corpo de Jesus e Pilatos entrega-lho. Que direito tem José de Arimateia a receber o corpo de Jesus? Só por ser um dos do círculo secreto? Mas se o círculo era secreto, Pilatos não devereia ter nada que saber dele…


José de Arimateia era um homem riquísimo e membro do Sinédrio. Era influente. Talvez fosse até ainda aparentado com a família de Jesus. Jesus tinha amigos influentes e institucionalmente bem situados. Tinha mesmo que os ter se aspirava de facto à dignidade máxima de rei, e se de facto lhe corria nas veias o sangue real da Judeia. Inclusivé teria relações entre o poder romano e os saduceus. E  terão sido esses os que conspiravam na sombra para lhe frustrar a subida ao trono a que legitimamente aspirava.


As pretensões de Jesus eram tão legítimas que não havia maneira de lhes evitar as consequências senão matando-o sob um pretexto qualquer. Não seriam porém os adeptos da verdadeira mensagem de Cristo a preparar-lhe uma crucificação fictícia. A quem daria jeito uma crucificação fictícia seria aos que estavam interessados na preservação da linhagem real de David, familiares de Jesus, gente da aristocracia judaica, iniciados do círculo secreto do Mestre.
Os sermões de Jesus, os milagres que lhe saõ atribuídos, seriam parte de uma operação de propaganda e de um programa político de tomada do poder?
A crucificação pode ter sido encenada como uma manobra política. Um substituto pode ter tomado o lugar de Cristo. Ou Cristo, assumindo o seu lugar na cruz, pode não ter morrido nessa altura.
Basilídio de Alexandria, grande heresiarca da década de 120 a 130, comentou profusamente os evangelhos e, ao fazê-lo, deixou para o mundo a heresia das heresias. Ei-la: a crucificação foi um embuste; Cristo não morreu na cruz; quem morreu de facto na cruz foi um seu substituto, Simão, o Cireneu. E acontece que o Corão, no século VII , afirmaria precisamente o mesmo.


     Ao cair da noite, o presumido corpo de Jesus é removido para uma sepultura próxima – e ao que tudo indica em propriedade privada. E três dias depois esse corpo desaparece.


Nos mistérios e nas escolas ritualísticas da Palestina daquele tempo, o rito encenado de uma morte e de uma ressurreição simbólicas não era coisa invulgar. O iniciado era enclausurado num túmulo, esse túmulo adquiria o simbolismo de um ventre, um ventre que tempos depois devolvia o iniciado à claridade do dia, como num novo nascimento. Ritual e simbolismo, aliás, a que hoje poderíamos dar o nome de baptismo, baptismo como o praticado por João nas águas do rio Jordão, em que o neófito era ritualísticamente mergulhado nas águas, emergindo a seguir, o que tornava simbolicamente unos o iniciado e o oficiante.


Para onde foi então o corpo primeiramente depositado naquela sepultura?
Se o corpo não estava morto e era o do próprio Jesus, e desapareceu, para onde foi? Para o Oriente, para Caxemira, onde viria a morrer já consideravelmente velho?
Para a colina-fortaleza de Massada, onde ainda assistiria ao assédio dos romanos no ano de 74 depois dele, morrendo por essa época, com 80 anos?


Documentos de relativamente recente descoberta dão-no como vivo no ano de 45, depois dele. Vivo? Onde? Não se sabe.


Vivo? Em Alexandria, possivelmente. No Egipto, que era para onde fugiam os perseguidos judeus. E teríamos assim um Cristo vivo em Alexandria e na precisa época em que aí se formava um sincretismo de ensinamentos cristãos e pré-cristãos ancestrais, o corpo doutrinário do que veio muito mais tarde a ser conhecido como Rosa-Cruz.
       A tradição e os antigos homens da Igreja não deixam margem para equívocos: Lázaro, Maria Madalena, Marta e José de Arimateia foram levados num barco para Ocidente, para a Gália, para o sul de França, para um lugar que hoje é a cidade de Marselha.


       E Maria Madalena, grávida, traria dentro dela o Santo Graal, o sangue real.


domingo, 28 de julho de 2013

                

                  

                  

                      MONÓLOGO DAS CINZAS


E  por isso te digo, irmão: mesmo que o não queiras ver-te-às forçado a admirar-lhes a convicção, ou o  tranquilo desespero, ou a teatralidade contida. A admirar-lhes a candura perversa, quando se trata de te dar a ideia de que são eles, naquele justo momento, a inventar a vida que tu mesmo haverás de viver.
Não sei, irmão, se vês e ouves neles o mesmo que eu, as areias esbranquiçadas do vento mais antigo, os sussurros de uma prédica de antanho; não sei se lhes reconheces os sorrisos em cicatriz…
Ainda há ideias novas no areópago? 
Ainda há modos bons de persuasão dos povos? 
Ainda há estratagemas disponíveis? 
Ainda haverá maquinaria de deuses a trabalhar no antigo terreiro da tragédia que os bárbaros devastaram? 
Restarão ainda no bolso fundo algumas magías nunca apresentadas ao povo do circo?
Executa a aritmética que te ensinaram teus mestres de pensar.


Daquele tempo para a lua de hoje, quantos anos te sobram? Quarenta? Quarenta anos de canseiras e sacrifícios em que, descaindo sobre a tua sinistra ou ameaçando-te à dextra, anafados ou esquálidos, secos e calvos fossem eles, ou ressumantes,  ungidos pelo santo gel, nas chuvas e nos estíos, em invectivas de punho alçado ou em amarguras de piedade catequista… tu, meu irmão, e eu, ao vê-los, acreditámos. 
Quarenta anos do caminho de espinhos do acreditar.


Que divisas tu na sepulcral distância? Que som?
Esta noite… espera, irmão… ouço ao longe a voz das cinzas…
E tu, meu irmão? Nas vozes de hoje não escutas as cinzas de uma melodia que outras vozes entoaram?
Não pressentes a imitação das lengalengas?
Não temes as apóstrofes?
Não desprezas os impossíveis sermões a que o tempo devassou os adjectivos?
Estás a ouvir a falsa nova que os breves mensageiros trazem à cidade?
Obedece-lhes, segue-os, se quiseres, esquecendo o que aprendeste, esquecendo o que te inculcaram acerca de um círculo que não pode ser quadrado.
Ouve a voz dos profetas das cinzas e crê neles, se quiseres. E renega-os depois. E arranca os cabelos da tua cabeça  e corta as tuas barbas e rasga as tuas vestes às portas da cidade.
Uma doce e enganosa melopeia atravessa pela tarde aquelas montanhas brancas e inacessíveis que tens na memória.
Pode ser que o vento só te traga a cinza da palavra que outrora te inflamou e que  hoje apenas brandamente te conduz à tristeza de um conceito que feneceu, de uma verdade ainda opaca, de uma cópia desmaiada.
Será este som o  clone de uma ideia gasta, fabricado em laboratório de brincar, ao fundo do quintal?


Ouve o que eles te pregam, compreende o que eles te dizem, regozija-te se podes, e medita, e espera, se queres, que seja verdade o que te prometem: regeneração! Regeneração para ti, que estás cansado e desenganado. Para ti, que de tão jovem já estás velho e por demais ouviste, e também tão pouco, em quarenta anos de jornada.


Como irão transfigurar-te esses pregadores que não trazem lume nos cabelos nem podem, com o gesto, governar o raio e o trovão?
Que tempo é este em que cinzas e apenas cinzas se movem na montanha?






sábado, 27 de julho de 2013

      NADA EXISTE MAIS DO QUE AQUILO   
                       QUE NÃO EXISTE




O Dan Brown anda por aí outra vez. Com o seu último, Inferno. Que eu não li. Como não li os que se seguiram ao Código Da Vinci.
Mas agora lembrei-me desse mesmo, do Código Da Vinci.


Os códigos e as mensagens e os sinais e os signos ocultos que manuseamos ou frequentamos na nossa vida de todos os dias, que alguns pretendem estar disfarçados de outras coisas nas grandes obras de arte, os subtextos poéticos ou arquitectónicos que significariam mais (e maior) do que o próprio texto e ao qual só poucos iniciados têm acesso pleno… tudo isso… existe?, não existe? Oh, já houve evidências de tanta coisa que existia e que nós supúnhamos não existir. Será que não estamos preparados para identificar muita coisa de maior na nossa pequena vida menor de todos os dias? Será?  Não sei. Mas às tantas, vai-se a ver e nada existe mais do que aquilo que não existe…


Que códigos podem estar ocultos nas simples quatro notas em tonalidade de Dó menor da Quinta de Beethoven? Que quis Beethoven realmente dizer-nos com aquelas  quatro imperativas notas logo à cabeça da sua obra. Um aviso? Uma premonição? Talvez revelar-nos o valor de PHI, a proporção divina…
Uma coisa que há anos começou a acontecer e que muito me satisfaz pessoalmente foi o êxito de vendas de certos livros cujos conteúdos erudito-esotéricos, vamos lá, são literariamente vertidos em forma de romance de acção e mistério. Lembremo-nos do Nome da Rosa, do Prof. Umberto Eco, o primeiro, ou o mais celebrizado, achado técnico-narrativo do género, e até por acaso adaptado menos mal ao cinema. E mais O Pêndulo de Foucault, do mesmo Eco. Para não falar de outros de menos elaboração intelectual ou de inferior qualidade literária.
E, mais recentemente, à entrada do milénio, na esteira do pioneirismo de Umberto Eco, eis que nos aparece o Código Da Vinci, da autoria de um certo Dan Brown de quem eu nunca tinha tido notícia até O Código Da Vinci ser um sensacional best seller internacional. E a impressão que então me ficou foi de que TODA A GENTE tinha lido o Código Da Vinci.
O que é que cada um tirou dele, e porque é que gostou, ou não, dele… isso já é outro assunto…
Toda a gente leu o Código Da Vinci  e seus derivados, visto que a espécie de boom editorial quanto aos tais assuntos esotéricos não deixou de estar em moda, e esses produtos vendem, dão bom dinheiro a ganhar.
E entre os derivados do Código Da Vinci (que, como digo, já era um derivado das coisas sérias do Eco) estão alguns livros que só foram dele derivados por uma questão de oportunismo editorial, posto que foi de alguns deles que Dan Brown retirou grande parte do material para o romance.
        (A Flauta Mágica. O que é que Mozart quis dizer ao mundo e às Idades com esta obra? Que mistérios Mozart terá desvendado na armação dos acordes maçónicos da Flauta Mágica? Terá ele morrido por revelar por música segredos maçónicos impronunciáveis?)
Gosto que estes êxitos literários aconteçam, estava eu a dizer. Tal significa que grande número de pessoas pode começar a espiritualizar-se. O que não é mau.
As pessoas podem, por estes livros, ter ideia de alguma realidade eventualmente oculta, ou vislumbrar que a realidade absoluta nem sempre (ou até raras vezes) está ao nosso alcance, e de que essa realidade (verdade) não nos será nunca revelada nas histórias que nos são impingidas pela televisão, e que outras realidades poderão existir menos evidentes… porque nada existe mais do que aquilo que não existe, e porque às vezes parece que o que não existe na televisão não existe mesmo… quando afinal existe.


Grande parte do público talvez se tenha começado a desinteressar da política tal como ela é feita nestes nossos dias. E tal pode estar a acontecer, em boa medida, pela intuição dos públicos de que muita coisa importante lhe passa por debaixo do nariz, que nem tudo vem no jornal – nem sequer o mais importante -, e os sinais dessa intuição dos públicos pode ser o crescendo universal de interesse por este tipo de best sellers onde se acena ao público com a probabilidade de que a realidade mais real possa andar por paragens com que o respeitável público nem sonha.
Sim, o grande público pode estar a aperceber-se de que o suco da verdade da organização do mundo é oculto, está codificado e só é perceptível por signos.


O público que leu o Código da Vinci  ficou a pensar o quê do que leu?
Bom, na maioria dos casos, entreteve-se com a intriga a atirar para o policial, gostou da estória. Quanto ao mais, deixou-se estar indiferente. Ou não? Um livro que deixa o público indiferente quanto à sua intenção não dará com certeza um êxito colossal de vendas. E eu diria que, na maioria dos casos, o público leu e aderiu. Que é como quem diz, acreditou, mesmo que fosse tudo apenas imaginação. Ou se não acreditou passou a pôr uma quantidade de coisas em causa. Ou pensou que, se não acreditou poderia mais tarde vir a acreditar. E assim o livro passou – terá passado – a constituir um perigo. Um perigo para quem?
Também houve quem o tivesse lido e não tivesse gostado nada. E tanto assim que em sites e blogs da Internet começaram a aparecer as contestações. E algumas delas quase violentas, e até, a meu ver, despropositadas, que diabo, O Código da Vinci  é apenas um romance, uma obra de imaginação. A menos que haja alguma verdade concreta nele, e por detrás dele esbracejem alguns interesses pouco claros…
E cuidado com as teorias da conspiração, nem seria preciso dizê-lo …
Mas pertence à Opus Dei o mais brutal e estúpido assassino que figura no romance, é verdade…
Mas vamos lá a a ver… o livro onde Dan Brown bebeu (quase diria que copiou) para romancear a questão do Graal e do Priorado de Sião foi começado a escrever pelos anos 70 e foi dado à estampa em 1982. Chama-se The Holy Blood and The Holy Grail  - que ficou, na versão portuguesa da editora Livros do Brasil, como O Sangue de Cristo e o Santo Graal – da autoria de três investigadores, dois dos quais eu, por deles ter lido outros trabalhos, muito aprecio, Michael Baigent e Richard Leigh, aqui associados a Henry Lincoln. Um livro sem ficção que acho incomparavelmente mais empolgante do que o Código Da Vinci.
Acentua-se no Código da Vinci a força política e financeira de uma confraria, a Opus Dei, a organização católica com a mais elevada taxa de crescimento em todo o mundo e a que mais suspeições concita sobre si.
Votos de castidade na Opus Dei? Sim, e depois? Pagamento de dízimos e duras penitências, auto-mortificações, cilícios? Evidentemente. Que temos nós com isso? Já não nos chega a nossa vidinha?
Corriam boatos desagradáveis sobre a Opus Dei. Alguns poderiam mesmo ousar chamar-lhe a Máfia de Deus. Constou até que um grupo drogara alguns noviços com mescalina,de forma a induzir-lhe estados eufóricos que se pudessem confundir com transes religiosos; um homem do FBI, preso por ser agente duplo e membro da congregação, filmava em vídeo as suas práticas sexuais e mais umas quantas coisas estranhas…


A impressão que me deu, que me dá, é de que o escopo fundamental das contestações aparecidas entretanto não pretendem mais do que limpar a  histórica folha da Opus Dei.


Por exemplo, quanto a equilíbrios de masculino/feminino no interior da Opus Dei: as mulheres seriam compelidas a limpar as residências dos homens, enquanto estes se entregavam a tarefas da ordem do superior ou do espiritual; as mulheres poderiam dormir em tarimbas de pau, enquanto os homens, vá lá, pelo menos ainda poderiam deitar o cadáver em enxergas de palha. Mas estes seriam os numerários, os profissionais a tempo inteiro da confraria, por assim dizer, porque os havia supra-numerários, gestores, banqueiros, gente importante com vidas normalíssimas de mulher e filhos e alto conforto de vida e altos negócios de finança.
O autor do Código da Vinci apresenta-nos muito  evidentemente um antagonismo: Opus Dei versus uma organização multi, multi secular que teve vários nomes, que foi a Ordem de Sião e que nos chegou sob o nome de Priorado de Sião, ordem ultra secreta que supostamente teve como grão mestres algumas das maiores figuras universais da política, da aristocracia, das artes, das ciências e das letras de todos os tempos.


Uma ordem ultra secreta, o Priorado de Sião, que teria em seu poder um segredo arrepiante de gravíssimas e profundas consequências mundiais se fosse revelado.

       
                                      
Digam-me lá: quem acreditaria num maduro – ou grupo secreto de maduros - que viesse a público com meia dúzia de papiros ou velinos na mão a dizer que afinal Jesus Cristo era um homem, um simples mortal (excepcional, mas humano), um pai de família, casado com uma senhora chamada D. Maria Madalena que no momento em que lhe crucificaram o marido estava grávida de uma menina que haveria de se chamar Sara?
Ninguém acreditaria. Tal verdade nunca poderia existir.


Se o povo acreditasse seria o colapso de uma civilização, o fim da nossa consciência histórica, que é uma das poucas coisas que cada um tem de verdadeiramente seu nesta vida.
E no entanto, pode ser verdade. Mesmo que os detractores do Código da Vinci  não queiram que seja verdade.
A verdade? Qual verdade? A verdade da política? A verdade da economia e dos negócios? A verdade da própria vida? A verdade da alma? Será que a verdade existe mesmo? Cada vez tenho mais dúvidas…é verdade…


E porque hei-de eu acreditar piamente que Cristo era filho de Deus, solteiro, bom rapaz,  místico, taumaturgo, mártir, ressuscitado dos mortos... e sem nunca ter tido contactos carnais?

Porque não hei-de acreditar, se me apetecer, que ele foi um homem normal, embora de intelecto e poderes superiores, casado e pai de filhos?
É isso. Tantas provas me podem apresentar de uma coisa como de outra. Ou seja: ninguém me pode apresentar provas absolutamente indesmentíveis seja de uma coisa seja de outra.
Ah, e desconfiem sempre que nalguma obra musical ou literária lhes apareça uma rosa, a flor mais esotérica que existe, um dos códigos que pode encerrar mais sentidos ocultos. É na rosa que se esconde o Segredo… qual segredo? Não sei, juro…
Não, senhores, não sou um defensor do Código da Vinci. Literariamente achei-o uma boa merda. Mas… mas quanto à substância mística, faço como no Totobola e jogo numa tripla (ou quádrupla, ou quíntupla), pobre de mim, que sei eu, quem sou eu para poder palpitar para um lado ou para o outro? Sim, sim, acho-o, como romance e do ponto de vista estrictamente literário, com reduzido valor, sem valorizar excepcionalmente o tom e o ritmo policial da prosa, mesmo a pedir adaptação cinematográfica, e que lhe explica muito do sucesso comercial. É bem certo que o Código da Vinci  não vive só disso, vive, e muito, da originalidade romanesca do assunto e da mitologia marginal que lhe está implícita, eu sei. Mas pisca demasiado o olho ao comercial…
E reparemos que foi no virar de milénio que o Código da  Vinci  apareceu, e com o retumbante sucesso que teve – e com ele outros livros, como disse, que de uma forma ou de outra lhe desenvolvem a temática - além de serem já banalidades os programas inteiros de televisão sobre a mesma coisa, priorados, ordens secretas, maçonarias, o Graal, os cátaros, os Templários, o neo-paganismo, os nazis…
Precisamente: o centro histórico da questão são os Templários. Sempre os Templários. Mas da existência histórica real e do destino dos Templários decorrem muitos mistérios. O Priorado de Sião, um; o papel de Maria Madalena, outro; a sobrevivência de Cristo ao martírio da cruz, outro; as razões reais da extinção de ordem tão poderosa, outro. E todos interligados.
É a partir da personagem de Jesus Cristo que se desenvolvem os mistérios iniciáticos mais em voga neste ainda começo de milénio.
A Bíblia, e em particular o Novo Testamento, são reavaliados à luz da ciência, da arqueologia, da História e da conjuntura política dos tempos, e o que é essencial com respeito à fé e aos valores cristãos começa a ser posto em causa.
A vida de Cristo entre os seus 14 e 29 anos, a aprendizagem, a trajectória pessoal, o estado civil, a crucificação, a ressurreição… o cristianismo, em suma, e seus ensinamentos e princípios morais, enfim, tudo isso  pode  ser desacreditado, e com ele, cristianismo, por consequência, todo o poder e toda a força das infalibilidades da Igreja de Roma.
Os procedimentos de ordem histórico-política, militar, e até económica, deste início de milénio também poderiam significar qualquer coisa. A mundialização, a crise financeira e a barbárie capitalista que se lhe vai seguir, a confusão e o imoralismo que se instituem como quem não quer a coisa na vida comunitária, o terrorismo, as novas crises no Médio Oriente, a guerra religiosa declarada, indesmentível e sem fim à vista, entre o Islão e o Ocidente. Por exemplo.
Por exemplo, a urgência de fazer incluir a matriz cristã no preâmbulo da constituição europeia. Aparências de alguma coisa que a gente não sabe se se passou, se se está a passar, se estará para se passar…
Com o descrédito da mitologia de Cristo muita coisa - senão tudo – da nossa moral fundamental está a descredibilizar-se, a desmoronar-se mesmo. A favor de quê? De quem?
Se estamos no limiar da queda dos valores cristãos, que outra moral e que outra civilização se preparam em seu lugar?
Porque nem sempre as coisas são o que parecem ser.
Há homens iluminados que ao longo dos séculos pareceram querer dizer algo de perturbante ao mundo, que insistiram em avisar o mundo, cuidado, as coisas raramente são aquilo que parecem, cuidado porque a vida mais aparentemente simples e todas as coisas mais corriqueiras são sempre passíveis de várias leituras…


Em Shakespeare (que sabia muito mais dos mistérios da verdade do que parecia saber) estamos com Macbeth, no título deste texto: nada existe mais do que aquilo que não existe. Isto é de quem sabe qualquer coisita a mais do que o normal dos viventes…


O livro que efectivamente me interessa não é o Código da Vinci. É precisamente o The Holy Blood and The Holy Grail  - em português O Sangue de Cristo e o Santo Graal  - onde Dan Brown foi buscar o material para romancear. Mas os contestatários ferozes do Código também o são – naturalmente  - desse  O Sangue de Cristo e o Santo Graal, e consideram-no falso como Judas. O Priorado de Sião nunca terá de facto existido ao largo dos séculos. O Priorado de Sião não seria nada o pai secreto da Ordem dos Templários.
E que terá feito esse senhor Pierre Plantard em cuja honestidade e boa fé os autores do O Sangue de Cristo e o Santo Graal  acreditaram?
Esse senhor, e mais dois ou três outros terão depositado na Biblioteca Nacional de Paris um acervo documental, os chamados Documentos Secretos, que supostamente provariam a existência e actividades do Priorado de Sião desde cerca do ano de 1088 até aos dias de hoje. Documentos esses que os detractores do Código da Vinci  e do O Sangue de Cristo e o Santo Graal  consideram falsificações.
E quero que se perceba uma coisa: não tenho a mais pequena intenção de intervir parvamente na contenda esotérica – quem sou eu, ignaro agnóstico? -, só, quando muito,  estaria interessado em estimular, como Leonardo (e passe a descarada imodéstia), algumas pessoas a abrir os olhos para certos assuntos que não figuram nos telejornais nem se lêem nas primeiras páginas da imprensa. É essa a principal questão de moral, para mim.


A mulher. Um caso. Houve – sobretudo feministas – quem tivesse lido e relido o Código da Vinci e tivesse passado um pouco por alto as terrificantes perspectivas mundiais que nele se contêm e se tivesse fixado numa única das questões levantadas. A condição feminina. A condição de Maria Madalena. Prostituta. Ou santa. Ou mãe. E mãe de quem? Aí está: mãe da descendência de Jesus Cristo nem menos. E é aqui que entra Leonardo da Vinci, e daqui decorre o título do livro.
Quem olha para o famoso quadro da Mona Lisa poderá alguma vez dizer que uma montagem subliminar está para além dos significados óbvios do imediatamente visível e que pode explicar 2000 anos de organização do mundo?
Mas quem poderá ler essas mensagens senão os eruditos – desde que iluminados?
Claro que é preciso cuidado, porque os eruditos muito se divertem com a Razão, com a Cultura, com a História. E com o silêncio dos objectos.
Mona Lisa: dizia-se que era o retrato de uma senhora, uma dama florentina (Mona) chamada Lisa, mulher de um abastado comerciante. Mas o dito Código Da Vinci avança outras variantes interpretativas…
A Mona Lisa, além de, admissivelmente, poder ser um auto-retrato do próprio Leonardo vestido de mulher, também, sem deixar de o ser, pode ser um informe sobre a própria condição feminina.
As mulheres estariam em dívida eterna para com o mundo dos homens. O pecado original ninguém o limparia do corpo delas. O pecado original eram elas. A Opus Dei, fundamentalista, esforçar-se-ia por regressar à suposta pureza arcaica dos princípios…
Mas… e se os princípios do cristianismo não tivessem sido rigorosamente esses, nomeadamente quanto à subalternização – para não dizer humilhação – da mulher?
Um dos objectos simbólicos de que se fala no livro é um pentáculo. Um instrumento que era usado já 4.000 anos antes de Cristo. É a natureza que está em associação estreita com o pentáculo num universo de antigos saberes em que se concebia o mundo dividido em duas partes, masculino e feminino, Yin  e Yang. Não há bicho careta hoje em dia que não saiba disto. E só na condição de masculino e feminino se acharem equilibrados é que haveria harmonia no mundo.
Logo no início do romance apresentam-nos uma personagem que acaba de ser atingida com um tiro e que tem um segredo da máxima importância mundial a transmitir – ou a falsificar conforme o interlocutor que lhe apareça. De qualquer das maneiras um segredo cifrado, codificado, de que essa personagem era guardiã. O homem que mata a personagem é um monge da Opus Dei e, nas vascas da agonia, a personagem moribunda transmite-lhe o segredo de um lugar onde se esconde um outro e importante segredo. Mas dá-lhe uma pista falsa. Há de facto um segredo importantíssimo escondido, mas para lhe chegar haverá que decifrar códigos culturais que são charadas complicadíssimas. O que quer dizer que, por alguma razão, os homens da Opus Dei não têm o direito de saber a verdade do segredo.
Leonardo. Visionário. Genial. Homossexual – coisas que no seu tempo não significavam exactamente o que hoje possam significar de orgulho gay. Muito pelo contrário. Adorador da ordem da natureza. Tipo altamente enigmático, problemático, duvidoso para a ordem  vigente. Excêntrico. Um pecador contra o status a vários e desgraçados carrinhos.
Pode dizer-se, conforme no-lo vinca o autor, que Leonardo trazia com ele uma espécie de aura demoníaca. Exumava cadáveres, calculem, para os estudar. Escrevia os seus diários ao contrário, ou seja, uma escrita invertida, indecifrável. Desenhava e produzia instrumentos de tortura e máquinas militares de grande poder mortífero. Era um marginal, e no entanto, um marginal tolerado e protegido pelos poderosos do tempo. Talvez porque sabia uma verdade crucial.
Leonardo venerava a sua própria obra - o quadro de Mona Lisa em concreto. Só por ver nela o ácume da sua mestria artística? Talvez não. Da Vinci levava consigo o pequeno quadro de Mona Lisa para onde quer que se deslocasse mas por uma razão não imediatamente estética, por uma razão secreta. Mona Lisa arrecadava nas suas simbologias e nas técnicas do sfumato com que a executara o incomensurável segredo de que alguém, ou algum grupo,  eram depositários. 
A linha do horizonte do fundo do quadro é desigual. A linha do lado esquerdo ficava mais baixa que a do lado direito e isso continha uma mensagem, era uma ponta do segredo. Mas para aceder nem que fosse à pontinha mais básica do segredo, o vulgo teria  de saber o que de certeza não sabia e que era o seguinte: tradicionalmente, aos conceitos de masculino e feminino são atribuídos lados opostos, o direito ao masculino, o esquerdo ao feminino. Da Vinci, sei lá se pelas suas ditas tendências sexuais, privilegiava o feminino, o lado esquerdo, e pela organização do espaço pictórico, ao rebaixar o fundo esquerdo faria a figura parecer mais importante, justamente do lado esquerdo, do lado feminino.


Todavia, o essencial era o equilíbrio, a proporção, a harmonia, não já aqui em termos artísticos mas humanos, históricos e filosóficos. Não existiria alma humana que se pudesse dizer iluminada se não possuísse e activasse em si as duas forças contrárias, embora concomitantes e equilibradoras, o masculino e o feminino. A linha interpretativa iniciática de Mona Lisa entroncaria então na androgenia, na fusão de elementos opostos.


E outro dos muitos aspectos crípticos contido no romance vem dos lados da mitologia mais arcaica. Há o deus egípcio da fertilidade masculina que se chama Amon, um corpo de homem e uma cabeça de carneiro; e há Isis, a deusa, a mulher modelo dos egípcios. Amon. Isis. Isis que no antigamente das vidas era grafado L’Isa. Dá Amon L’Isa. Eis  o anagrama, a técnica primeira de todos os códigos. Amon L’Isa, por anagrama, igual a Mona Lisa: união de duas forças mitológicas opostas, masculino, feminino.


Nada existe mais do que aquilo que não existe.

  Gershwin, sim, um caso: dizem que também ele era um iniciado nestas coisas do Segredo, ele e, entre muitos outros, Walt Disney – que nunca terá feito outra coisa nos seus desenhos animados senão contar de várias maneiras a história do impressionante segredo de Maria Madalena. Dizem.
Mas entretanto ficámos a saber que um dos maiores especialistas mundiais sobre as questões do Priorado de Sião é um jovem português. É um dos que desmascara o senhor Pierre Plantard, o dito inventor do Priorado de Sião, o que registou num cartório de província o Priorado, mas só em 1957; o mesmo que, efabulando a partir de uma história que atravessava a própria História europeia, se reclamou como última vergôntea da desaparecida linhagem merovíngia, ou seja: legítimo pretendente ao trono de França.

                                                                                                   

E como nada existe mais do que aquilo que não existe, a experiência ensina-nos que é sempre de esperar que o que hoje é considerado falso pode muito bem, amanhã, vir a revelar-se verdadeiro. E vice-versa… mas, tanto para o vice como para o versa, há mistificações que podem render muito dinheiro… e poder… e é isso que nestes tempos nos pode fazer desconfiar até da própria sombra…