A REPÚBLICA ROMÂNTICA
DE MANUEL LARANJEIRA
Manuel
Laranjeira, médico, publicista, poeta, dramaturgo, viveu em Espinho a sua crise
mental e cívica e as dores da conjuntura da passagem do século ao figurino
parisiense, como se estivesse a vivê-la nos círculos intelectuais da Rive
Gauche.
O
Ultimatum inglês e a implantação da república foram datas marcantes da vida
portuguesa na crise cultural da transição do século XIX para o século XX, e
nela, e no correlativo pessimismo, tiveram relevância os nossos intelectuais.
Naturalmente. Muito naturalmente. Quando as nossas problemáticas estéticas eram
directamente importadas de Paris.
Manuel
Laranjeira chamava à crise de afectiva, uma terra de ninguém moral, um mundo
que se esvaía e outro cujos contornos civilizacionais, as promessas ou as
ameaças, não se descortinavam facilmente, e que por isso mesmo desencadeava nas
almas o sobressalto e as mais fundas das incógnitas. Manuel Laranjeira assinala
o mal estar, o mal estar vago como o das crises da adolescência, diz. O
Homem que esboçava um novo e outro Homem. Um sentido da vida que se afigurava
enigmático, inquietante, doloroso. Pessimismo. Tristeza. O tédio dos tempos.E
na verdade era a desumanização do próprio Homem o mais que haveria a temer.
Desumanização temida e paradoxalmente saudada pelas perspectivas do chamado progresso,
progresso científico, tecnológico. Os idealistas temiam o mundo artificial que
se anunciava, temiam a velocidade do tempo e da vida, sentiam-se a perder as
noções do místico e do fantástico que secularmente os tinham habitado, o mundo
que, nas palavras de Joel Serrão chegava por
entre brumas românticas de afectividade difusa.
Crise mental. Instabilidade política. Ditadura. Vícios
eleitorais. Caciquismo. Fraude. Desconfiança do parlamentarismo monárquico. Desconfiança
do sistema económico-financeiro… o novo século que despontava em
portuguesíssimas e ameaçadoras realidades…
E Laranjeira, inteligência penetrante e desperta,
racionalista e místico ao mesmo tempo, perambulando pelos cafés de Espinho em
intermitências de fé e descrença no ideal, advertia nos seus os dramas do país.
A sombra incerta da revolução constantemente no ar
e constantemente adiada. A miséria social circundante. A decadência do
sentimento religioso. Os partidos políticos que dividiam entre si poder e
sinecuras. O analfabetismo…
A alma colectiva. O mal da sociedade
portuguesa é apenas este: a desagregação da personalidade colectiva - palavras do próprio
Laranjeira; alma metida à permanente crise, transportado nos balanços da
bruxuleante esperança como do mais arreigado pessimismo.
Sim, sim, releio Manuel Laranjeira e –
dentro das proporções devidas, e específicas - tenho a sensação doente de estar
a ler uma crónica do jornal de hoje – ainda tempo de transição de séculos,
aliás. E é o que eu por vezes penso: não há como ler jornais velhos para se
estar actualizado. Actualizado, quero eu dizer, e já com as distâncias
históricas balizadas como deve ser, prontinhas para arriscar juízos. Juízos
morais, já se sabe.
Os
partidos políticos da transição. Ah, dizem-nos incipientes, desestruturados,
sem fundamento programático, sem base ideológica, erráticos de doutrina, ao
sabor das circunstânciais opiniões dos seus notáveis, visando o escopo único: o
poder, e respectiva distribuição de privilégios pelos seus. Daí as muitas
viradas de casacas desse tempo. Mudava-se de campo partidário como quem mudava
de camisa, ao sabor do vento das conjunturas. Os caciques nacionais e regionais
a distribuir favores, empregos, isenções fiscais, títulos, dispensação de serviço
militar…
Nenhum
planeamento económico. Estratégia de educação nacional zero. Atraso intelectual
profundo. Debilidade económica. Só o poder e a exploração da mão-de-obra
interessava aos notáveis, aos senhores, aos nossos senhores…
Fala
Manuel Laranjeira em 1908: Portugal não pode continuar nesta estagnação,
nesta miséria de espírito. Ou nos educamos, ou seremos dentro de pouco tempo um
povo morto. A selecção natural não espera, age: ou aperfeiçoa, ou elimina.
A nossa organização nacional é mentirosa, sem estabilidade,
encobrindo um parasitismo desenfreado e inquietante. O mal nacional está aí á
vista: somos um povo intelectualmente atrasado um século, economicamente
falido, moral e civicamente por educar, em que o sentimento de pátria e de vida
nacional não se sobrepõe aos sentimentos do interesse individual.
Romântico,
e por inerência desesperado, e adoentado, este Manuel Laranjeira. Mas homem
muito lúcido, cuja voz não era conveniente ouvir aos interesses instalados.
Apontava
ele directamente à educação como causa primeira dos nossos males, e,
acrescentando no anticlericalismo em voga, o que chamava de influência
corruptora da educação jesuítica.
Por esses liceus fora, e até pelos cursos superiores, não se
aprende: decora-se. O aluno não assimila, repete automaticamente. Assimila
apenas o envólucro verbal das ideias. Não adquire conhecimentos mas a forma
externa dos conhecimentos. A educação concebida e realizada neste espirito está
sendo mais perigosa do que útil.
No
plano político, para o esperançado pessimismo de Manuel Laranjeira, o
rotativismo de poder entre os partidos Regenerador e Progressista era uma linha
de continuidade num programa exclusivamente de interesses, parecidos um com o
outro como duas gotas de água, sem sombra de antagonismo doutrinário, uma
máscara de modernismo – dizia – que se enfia para encobrir a fisionomia
antiga e fradesca. E assim, os partidos, segundo ele, devoravam a alma
portuguesa. A ficção constitucional, existindo à custa da nossa ignorância e
do nosso indolente desmazelo, recebe a força desse binário socialmente pelintra
que é o nosso rotativismo político.
A inteligência era, em Portugal, um capital inútil. O
único capital produtivo era a falta de vergonha e de escrúpulos. O sentido da
vida em Portugal classificava-o ele como de fúnebre, arrastados por um mau
destino para a falência em que nos afundamos definitivamente.
Mas não nos podemos esquecer de que nesta época ainda
havia uma revolução para fazer – ou uma revolução possível de fazer. Neste mar de lama está em perigo de
perecer sem brio e sem vergonha todo um povo que foi grande e forte.
A
medida das incapacidades de um regime e dos seus corifeus e que marcava mais
intensamente o fim da monarquia estava na questão dos adiantamentos à casa
real. Mas também a imagem negativa e trapaceira dos políticos. Mas também as
pensões pagas a familiares dos mesmos políticos e parlamentares. Não eram
sintomas de corrupção de um regime, Laranjeira entendia tudo isso como sintoma
mais grave de uma decadência colectiva, da agonia de uma nação e de uma raça.
Eram
pagas pensões não só às viúvas de antigos ministros como aos descendentes
deles. Exigem de nós a paga de todos os maus serviços que esses estadistas
nos prestaram. E que o país sofresse os serviços que lhe prestaram esses estadistas
enquanto vivos já era ruinosa desgraça. Que o país lhos pague depois de mortos,
isso sim, é o supremo descalabro.
As
chegadas do 1º ministro a qualquer lado passariam a ser vaiadas. Os percursos
passaram a ser feitos em carruagens fechadas e a grandes velocidades, por causa
das pedras. E a polícia tratava os manifestantes à bastonada, a sabre e a tiro.
E o gabinete emitia ordem de expulsão e degredo para quem se lhe opusesse. Era
o século XX português que entrava.
Saio para a rua onde se festeja funebremente a aclamação do rei,
sob a claridade parda e abafadiça. Tudo me cheira a morte e a crepes velhos e
sujos. O povo, na sua profética inconsciência, chama a isto as exéquias do novo
rei.
Era
o mal estar dos idos de Março de 1908, com novo rei posto, D. Manuel II, órfão
de pai assassinado um mês antes.
Manuel
Laranjeira aguardava esperançoso a redenção nacional. A redenção republicana
da pátria decaída, num Portugal adiado
pela força das coisas.
O
analfabetismo nacional era avaliado como tragédia indecorosa, afectando 4/5 da
população. A república era ansiosamente esperada para libertar este povo às
portas da falência intelectual e moral.
Mas
vá lá, digo eu, que ainda havia em que depositar esperanças.
Estranhos
tempos: quando após o regicídio se esperavam repressões sem fim sobre os
republicanos militantes elas não aconteceram.
Dir-se-ia
que tanto republicanos como monárquicos tinham desejado aquele regicídio.
O
espírito era de reconciliação. Era de esquecimento da sangrenta tragédia. Em
vez da repressão, a tolerância. Em vez da repressão, a permissividade e o
perdão. Talvez fosse mais cómodo assim. Manuel Laranjeira nota judiciosamente: se
o Partido Republicano aplaudia o atentado não fazia mais do que ser da
mesmíssima opinião da grande maioria dos monárquicos.
Criminoso
ou heróico, não era permitido a ninguém julgar o acto fatal do Buíça e do
Costa. Só à História competiria o julgamento moral. E Manuel Laranjeira
acreditava piamente na História.
Há 40.000 bocas a proclamarem que esses criminosos foram grandes
como apóstolos. Há 40.000 espíritos para quem os regicidas não foram dois
assassinos vulgares, mas dois grandes poetas da acção.
Rei
morto, rei posto, e depois do rei posto afluxos esperançosos ainda acodem à
mente dos mais cépticos, entre os quais, evidentemente, estava Manuel
Laranjeira.
Incalculáveis energias armazenadas existem ainda no povo
português. Há muita vida, muita saúde á espera de aplicação útil.
A
esperança nos destinos nacionais tomava foros de messianismo. Uma das tintagens
da mitologia nacional, claro está, do sebastianismo, por alguns à época chamado
de sebastianismo vermelho. Na antecâmara da revolução e da consequente mudança
radical de regime, a república, viam muitos desenhar-se a silhueta cavaleira do
Desejado. Até ele. Até ele, sim, ele, Manuel Laranjeira, crítico aceso do
sebastianismo, que denunciava como tara, de igual modo que outros vultos do
republicanismo progressista, como António Sérgio. Mal se sabia para o que se
estava guardado.
Estava-se
guardado para outra crise, outra crise associável à crise mental da passagem do
século. Estava-se guardado para novas e quiçá mais profundas desilusões, por
entre a mais feroz e promissora agitação política.
Manuel
Laranjeira era um sincero e esperançoso republicano. Porém, e não obstante toda
a sanha reformadora e antimonárquica dos seus escritos e do seu testemunho
pessoal, não seria nunca um notável da república. Leio até que quando os
jornais publicavam nomes de republicanos desaparecidos já depois do 5 de
Outubro o seu raramente aparecia. Claro, ele era um puro, um desinteressado dos
bens materiais, que nunca se bateu a honrarias ou a proventos. Claro, Manuel
Laranjeira era um solitário – ainda por cima pessimista e suicida – e teria o
destino político e social dos solitários. Claro, era um desassombrado. Claro,
era um crítico. E era o que faltava que a república, como qualquer outro
regime, ou partido, se congratulasse com um solitário independente e crítico a
militar nas suas mais destacadas fileiras.
Escreveu
João de Barros, em 1943, que Manuel Laranjeira homem rebelde e livre, está
ainda pagando as consequências da sua atitude, do seu desprezo pelas fórmulas
feitas, da sua falta de respeito pelas consagrações indevidas.
Um Portugal narcótico, chamava-lhe ele, ainda
antes do advento da república. E desse Portugal narcótico ansiava ele – ou pelo
menos escrevia-o ao seu amigo Amadeu de Sousa Cardoso – fugir, tomar por
esse mundo um grande banho de energia que me estimule a dar fruto.
De
resto, ainda antes da implantação da república Manuel Laranjeira não era o que
se pudesse chamar de um favorito dos seus correlegionários reviralhistas. Caiu
no desagrado das correntes republicanas um saborosíssimo artigo que escrevera
no jornal portuense O Norte, e a propósito dos emigrados para o Brasil,
os chamados “brasileiros”.
O patriotismo dessa gente é um patriotismo falsificado e com
joanetes. Esse era, para Laranjeira, o
patriotismo de todos aqueles que fazem o êxodo da fome, desarreigados do solo
da pátria, detestando a terra que os viu nascer e não os acarinhou.
Era
o patriotismo do que no Brasil é desprezivelmente um galego e que em
Portugal é desdenhosamente chamado de “brasileiro”.
Fugiram, debandaram, e só se resignam a voltar triunfantes,
sobranceiros, com dinheiro para humilhar. Trá-los o desejo de gozar, o egoísmo
sentimental de ser alguém na aldeola onde nunca foram nada.
O emigrante de outros países volta á sua pátria para dotar
universidades, fundar escolas e bibliotecas. O nosso adorável “brasileiro”
torna a Portugal para subsidiar irmandades e confrarias religiosas e para
fundar serralhos aldeãos com a virgindade barata e duvidosa de algumas hetairas
de pernas sujas. Na sua grosseira compreensão das grandezas humanas compra a
peso de dinheiro um título de conde, barão ou comendador.
Pois
aquilo que Laranjeira não era, seguramente, era um escrevinhador politicamente
correcto. E se não era, como é que o poder, qualquer poder, o iria distinguir,
ou até lembrar-se dele depois da morte?
Como
é que os progressistas republicanos, na viragem do século português olhariam de
boa catadura para o homem que escreveu: dizem-me hoje que o meu artigo d’O
Norte está provocando escândalo. Houve republicanos que o acharam
impolítico. Como se eu fosse obrigado moralmente a escrever aquilo que os republicanos
acham político e não aquilo que eu penso ser a verdade. Adoráveis republicanos
estes! Até parecem jesuítas. Que imbecis! E de modo indirecto iam-me aplicando
uma corrigenda. Mas então porque publicaram aqueles idiotas o artigo? A
estupidez tem escaninhos insondáveis.
Evidentemente
que era um idealista incorrigível este Manuel Laranjeira. Um idealista do
calibre dele, atreito a ataques de lucidez desassombrada, dificilmente é bom
político. E sem dúvida que muito do que aconteceu em Portugal após a tão
desejada redenção pátria do 5 de Outubro não acolheu ele como bom.
Em
Abril de 1911, ainda a república era uma criança de colo, já Laranjeira andava
de candeias às avessas com ela. E já então escrevia ao seu célebre amigo D. Miguel
de Unamuno: o mal da minha terra, amigo, não é a demagogia: é a inépcia.
Isto não dá vontade senão de estar calado. Em Portugal não há demagogia. Falta-nos fanatismo cívico para
isso. Em Portugal o que há é uma inverosímil colecção de idiotas. A demagogia é
um mal que pode ser combatido. A imbecilidade, essa é que é um inimigo
invencível.
Sobre
a realidade da revolução republicana (e avaliando-lhe demasiado imediatamente
embora, as consequências) Laranjeira perguntava-se se ela tinha sido realmente
uma revolução – isto faz-me lembrar os tempos que imediatamente se seguiram ao
25 de Abril.
Não,
Laranjeira, em 1911, já não acreditava na validade da revolução feita em 1910.
Não fora uma revolução. Foi – diz ele a Unamuno – apenas um povo que
mudou de traje. Por dentro estamos na mesma. A revolução política para ser
fecunda tinha de ser acompanhada de uma revolução intelectual, que não se fez –
e aqui não é possível deixar de criticar Manuel Laranjeira: uma revolução
intelectual é acção de todos os dias, de todas as horas; pode levar meio século
ou mais a fazer, e Laranjeira queria vê-la aparecer já pronta num ano. Enfim.
Mas no essencial, o homem é capaz de ter razão, ter razão quanto à revolução
prioritária que sempre haverá a fazer, e sabendo nós o que sabemos hoje a
respeito de revoluções portuguesas.
A
revolução intelectual, diz ele, não se fizera nem havia indícios que estivesse
para se fazer. Tão convictos andam todos que para civilizar um povo basta
fazer-lhe mudar de gravata.
E
aqui, na actualidade mentirosa, toda ela aparências e correcção política, de
2017, eis-me pessoalmente irmanado com o que Laranjeira escreveu a Unamuno há
um século: eis precisamente o nosso mal: é ninguém sentir necessidade de
fazer cultura; é ninguém compreender que a inteligência é o grande capital dos
povos modernos e a cultura a mais fecunda das revoluções.
Não
há como ler coisas antigas para se estar actualizado. E porque é que não se
faz, nem se vê jeitos de se fazer, a revolução na cultura? Ora adeus! O capital
quer é produtividade no trabalho e retorno rápido do investimento; e o pessoal
quer é dinheiro para ir passar férias num ressort
da Republica Dominicana. Fora disso nada mais interessa ao viver
contemporâneo.
Continua
Laranjeira para Unamuno na sua insatisfação pela revolução que era a sua meta
salvífica: o terrível é não sentirmos desejo de sermos civilizados e
contentarmo-nos só em parecê-lo.
E como acontece a quase todos os enfermos, o meu espírito tem
intercadências de abatimento e entusiasmo, de fé e desânimo, de crença e
descrença.
Quando penso que sobre nós pesa a herança trágica, secular, duma
ignorância pobre e duma corrupção criminosa, o meu espírito enegrece e sinto-me
adentrado dum pavor indizível. Mais que saber se vamos para a vida ou para a
morte me preocupa saber se morreremos nobre ou miseravelmente.
O espírito moderno, trazido pelo novo século,
passara a induzir a preocupação do morrer ou não morrer – e de preferência não
morrer. O espírito romântico de Laranjeira, remanescente do passado
século, pode questionar a própria morte, a moral da morte inevitável, pondo com
gritante agudeza essa questão para nós supérflua da forma de morrer, se nobre,
se miseravelmente, e quando tal cuidado aristocrático estava em vias de ser
irrelevante. Sobreviver fosse como fosse, era essa a nova ordem. E morrer por
morrer… tanto fazia…
Manuel
Laranjeira era um sobrevivente do absoluto dos românticos, mesmo se não
assumido como tal. Quem vive o absoluto, soçobra perante o real. O que deveria
ser não se compagina com o que pode ser. E Laranjeira afronta o conflito, quer
dizer, abraça o desespero de todas as impossibilidades. Dramatiza.
Dramatiza-se. Torna-se um esteta do fracasso, um monge da derrota.
Não
era um pensador estruturado e rigoroso, não, um filósofo no mais alto sentido
da condição, não era, era antes de tudo um espírito naturalmente inquieto,
dramático. E todavia lúcido na apreciação do real. Hamlet frustrado realizador
de sonhos. Um artista, isso sim.
Perante
a tirania da realidade, o nosso herói dizia-se um Dom Quixote de braços cruzados,
envolvido nos lodaçais do tédio, investindo sobre o real intangível,
esgravatando a verdade, colhendo decepções.
Desmanchar ilusões – palavras dele a Miguel de
Unamumo – é reduzir o coeficiente de felicidade e diminuir a possibilidade
de chegar á terra prometida. O Homem só adquire a verdade à custa de uma
desilusão. E foi pela rude confrontação com a verdade insuportável,
inelutável, que Manuel Laranjeira teve o fim que teve.
Vivemos fervorosamente o nosso mundo ideal, o mundo maravilhoso
que existe dentro de nós, e sentimos uma subtil crispação de nojo ao encarar as
defeituosas coisas da realidade - escreveu ele ao seu amigo
pintor António Carneiro.
De
acordo com a música dos tempos, essa estridente e dissonante música que
acompanhava a mudança do século e as transformações perigosas, Laranjeira era
um solipsista. Um dos narcísicos apocalípticos que a nova arte criava, ia
criando, ia impondo aos mais finos espíritos. Eu sou um homem para quem só
existe um livro de leitura proveitosa e é o livro que leio dentro de mim mesmo.
Manuel
Laranjeira sofria. E gostava de sofrer. Talvez assim se sentisse mais vivo. E
mais orgulhoso. Orgulhoso dos seus singulares sofrimentos. E tão orgulhoso que
nem sentia pena dele mesmo, respondendo, segundo dizia, com o riso a cada
desilusão das que incessantemente procurava e que encontrava ao virar de cada
esquina. O sofrimento tinha para ele um sabor exótico, o sabor, como ele dizia,
de certos tóxicos. E o prazer maior era o de considerar-se acima da própria
dor.
E
vivia em Espinho. Vivia o clima e o ambiente provinciano da Espinho da viragem
do século. E através das brumas, dos temporais e dos dias cinzentos e ronceiros
e opressivos dessa Espinho viveu ele o país inteiro, as dores nacionais
inteiras, os desenganos patrióticos inteiros, sonhando com Paris, a Paris de
onde jorravam as crises mentais e culturais do novo tempo.