quinta-feira, 23 de abril de 2020


                               
                                 A PESTE

 

       Tebas agitava-se em estertor, debatia-se num abismo de desespero e “o negro Hades de gemidos e lamentos se enriquecia” com a terrível peste. O povo sentava-se à beira dos altares, nas praças públicas, defronte dos templos de Palas, ao pé das cinzas proféticas de Ismeno.

       O rei Édipo, de todos bem-amado, escuta as súplicas de um sacerdote por algum socorro para a cidade, fosse ele através da invocação da palavra dos deuses, fosse ele por artes humanas. Fosse com fosse, ele, Édipo, de todos bem-amado, que reerguesse a cidade, para que o reinado dele não viesse a ser celebrado como uma ascensão logo seguida de uma queda.

       “Se continuares a governar esta terra, melhor é que a governes povoada que deserta”.



       O entendimento religioso de um miasma sobre a cidade levava a acreditar-se na presença entre os habitantes de um criminoso impune.

Édipo governava a cidade convocando a voz de Apolo. Estava casado com Jocasta, a rainha viúva do anterior monarca, Laio. E mostrava-se um governante seguro de si, um bom rei, um bom político construtor de aparências apolíneas, em constante e premeditada ignorância da eventual realidade dionisíaca. Uma cegueira, por assim dizer, psíquica; ou isso mesmo: apolínea. A cegueira apolínea que o destino faria mais tarde redundar numa cegueira real, física, auto-infligida, precisamente no tempo em que a verdade dionisíaca se desvendava.

“Que homem de ventura mais possuía do que a aparência de a ter, e, uma vez tida, de cair no ocaso?”



Creonte, o cunhado, irmão da rainha Jocasta, aparece, depois de ter consultado o Oráculo. Imperioso era expulsar a mancha que recaíra sobre Tebas: rezara o Oráculo a Creonte. E Édipo quer saber que tipo de expiação seria devida pela natureza do mal. O exílio, responde Creonte. Ou a remissão da morte pela morte.

O exílio. O exílio de quem? A morte, sim, mas a morte de quem? Responde Creonte que outrora, antes de Édipo, reinara Laio. Laio morrera assassinado num cruzamento de três caminhos e a ordem claramente expressa pelo deus apontava para alguma mão vingadora que se abatesse sobre os assassinos de Laio.

Os assassinos de Laio? Mas quem são esses assassinos de Laio? Onde estão? Como será possível descobrir a “pegada incerta” desses assassinos?



Neste mundo, sentenciara Apolo, “o que se procura facilmente se obtém e só nos escapa quando se descura a pesquisa”.

Muito bem. Édipo promete investigar o caso até às origens. O povo lhe assistiria em breve ao triunfo ou à queda. E manda publicar um édito. Àquele que haja conhecimento das circunstâncias da morte do rei Laio era ordenado que tudo revelasse. E se alguém conhecera um estranho, um indivíduo natural de outra região como assassino, que não guardasse silêncio.

Corre entretanto na cidade que Laio foi morto por uns viajantes. E é quando aparece um célebre adivinho cego e hermafrodita, Tirésias, o que “conhece o presságio das aves”.

Tirésias começa por lamentar a inutilidade do saber quando esse mesmo saber não acrescenta vantagens a quem o possui. Então, ele que fale – ordena Édipo. Nada feito. Tirésias não quer falar. Tirésias recusa contar aquilo que sabe.



Édipo, o impetuoso, irascível, violento e intempestivo nas palavras e nas acções, ameaça Tirésias. Ao que Tirésias adianta que os factos se revelarão por si mesmos.

Édipo acusa impensadamente o próprio Tirésias de ser o mandante dos assassinos de Laio. E Tirésias não se fica: pois então, rei Édipo, que a partir deste dia não dirijas a palavra a ninguém, pois desta terra foste tu mesmo a poluição sacrílega.

Cada vez mais irado, Édipo ordena a Tirésias que repita o que acabou de dizer. E Tirésias repete. E vai ainda mais longe: o assassino que tu, rei Édipo, intentas descobrir, afirmo eu que és tu mesmo. E acrescenta que o rei vive infames relações com os seus íntimos sem querer ver a condição desgraçada a que chegou. Ou acaso saberás tu, rei, de quem procedes?



Pois era. Ao certo, ao certo, Édipo não sabia.

Uma versão diz-nos que Laio, consultado um Oráculo, foi avisado de que viria a morrer às mãos do filho que tivesse. E quando Jocasta, a mulher, teve esse filho, imediatamente Laio o arrancou dos braços da ama, lhe furou os pés e lhos amarrou e mandou que o abandonassem secretamente no Monte Citérion – sem prever que alguém descobrisse a criança, a salvasse e a criasse.

Gosto mais de outra versão. A que diz que Laio não abandonou o filho recém-nascido na montanha e que em vez disso o meteu numa arca para ser atirado ao mar – semelhanças com o caso de Moisés? E essa arca flutuou na corrente e foi parar a uma praia nos domínios de Pólibo, rei de Corinto, cuja mulher viu a criança e a tomou nos braços, retirando-se para umas moitas, e aí fingindo dores de parto, uma encenação para as lavadeiras que com ela estavam na praia. Mas ao marido, Pólibo, a rainha, Mérope, contou a verdade. E Pólibo ficou radiante. Não tinha outro filho e assim criaria a criança como seu filho.



Já espigadote, Édipo vem a confrontar-se com uma rapaziada lá de Corinto que lhe atira em cara as nenhumas parecenças dele com os (supostos) pais. Confundido, ei-lo que corre a Delfos a consultar o Oráculo. Lá chegado, nem o deixam entrar no templo. A pitoniza, horrorizada, grita-lhe “arreda, arreda, vai-te, desgraçado… um dia hás-de matar o teu pai e deitar-te com tua mãe!”

Custou-lhe ouvir tal predição. Como era possível tal horrível coisa se ele amava os pais com verdadeira e profunda ternura?

E Tirésias ainda lá está a vociferar. Esse homem que mandas procurar, o assassino de Laio, esse homem está aqui. Diziam-no estrangeiro, mas virá a saber-se que é natural daqui, de Tebas.

Jocasta intervém a favor do irmão, Creonte, a que Édipo chamara de traidor conluiado com Tirésias. Nenhum homem tem o dom da adivinhação, afirma Jocasta. E tem provas do que afirma. E que provas tens tu, mulher? Tinha. Por exemplo, o Oráculo dissera um dia a Laio que morreria às mãos de um filho nascido dele e dela. Ora Laio veio a ser morto por assaltantes desconhecidos numa encruzilhada de três caminhos. E mesmo antes disso, tinha a criança uns escassos três dias quando Laio a fizera desaparecer.

A encruzilhada de três caminhos…

Édipo lembrava-se disso. O desfiladeiro de Delfos para Dáulide. Uma caravana. Ele parado diante da caravana. O chefe da caravana, instalado num carro luxuoso a ordenar-lhe que se afastasse para deixar passar os carros. Afastar-se, porquê? Porque como pobre peão devia obedecer a quem lhe era superior.

Sim, Édipo lembrava-se da resposta colérica que dera ao velho chefe da caravana. Que superiores só reconhecia os deuses e os pais. O outro gritava-lhe. Pior para ti! Lembrava-se bem disso. E o velho mandara avançar os carros.

O chefe da caravana era Laio, o rei de Tebas, o Laio que ia a Delfos, ao Omphalos, a pedra de origem desconhecida, o centro da terra. Laio queria interrogar novamente o Oráculo. E desta vez interrogá-lo quanto ao modo de libertar Tebas da peste causada pela Esfinge, a deusa tripla, cabeça de mulher, corpo de leão, cauda de serpente e asas de águia…



A encruzilhada dos três caminhos. Édipo lembrava-se. E perguntava a Jocasta há quanto tempo tal cena acontecera. E respondia-lhe Jocasta que acontecera pouco antes de ele aparecer em Tebas. E ele perguntava pela estatura de Laio. E ela dizia-lhe que era alto, não muito diferente do aspecto dele.

Édipo lembrava-se. A Esfinge que assolava a cidade. Que propunha um enigma que ninguém conseguira decifrar.

Qual é o ser que com uma única voz ora caminha a quatro pernas, ora a duas, ora a três, e que é tanto mais fraco quantas mais pernas tem?



Aos que avançavam a tentar a solução do enigma e não conseguiam a Esfinge dava cabo deles, estrangulava-os, devorava-os. Mas Édipo não hesitou. É o homem; o que em criança gatinha a quatro pernas, o que em jovem caminha erecto sobre duas pernas, o que se apoia num bordão quando é velho.

Édipo lembrava-se do uivo da Esfinge ao despenhar-se no desfiladeiro. E os de Tebas fizeram dele rei e esposo da rainha viúva de Laio, Jocasta.



E de novo a peste. Expulsem da cidade o assassino de Laio!, clamou o Oráculo. E Édipo logo amaldiçoou o assassino.

Fitando Jocasta, pergunta como viajava Laio na encruzilhada dos três caminhos. Decerto com um séquito numeroso, sendo ele um rei. Sim, cinco homens. E Laio? Laio seguia num carro. E quem teria contado o caso a Jocasta? Um Servo que regressara a Tebas ileso. Esse Servo ainda estaria ao serviço do palácio? Não. Porque não? Porque quando esse Servo te viu, a ti, Édipo, rei pela morte de Laio suplicou-me que o mandasse trabalhar para o campo a pastar os rebanhos.

Édipo lembrava-se de um carro puxado a cavalos a avançar para ele, a querer afastá-lo da estrada à força. Lembrava-se da ira que o acometera. Do velho que lhe vibrara uma chicotada. Da ira dele, ripostando com um golpe de bastão na cabeça do velho, deixando-o morto na estrada…

Existiria alguma afinidade entre esse estrangeiro e Laio? Alguma afinidade entre esse estrangeiro e ele próprio, Édipo? Oh, se assim fosse ninguém seria mais odioso aos deuses do que ele.



O pastor dos rebanhos vem para afirmar terem sido salteadores os assassinos de Laio. A questão estaria então no número. Se o pastor mantivesse o plural, salteadores, não seria ele o assassino. O único e o múltiplo não se identificam. Se o pastor se referisse a um homem isolado era ele o assassino.

E apresenta-se um Mensageiro para ser recebido pelo rei Édipo. Vem de Corinto. Traz boas novas. Boas novas? Sim, Édipo será em breve proclamado rei de Corinto. Como? Por morte do pai, o venerável Pólibo.

Jocasta estremece. Que me dizes, Mensageiro? Morreu o pai de Édipo? O pai, de quem Édipo fugiu por medo de o matar, conforme lhe predisse o Oráculo, morreu então de morte natural?

Édipo: oh, oráculos desprezíveis! Como acreditar nas profecias de Píton ou nas aves que grasnam nas alturas?

Cidadãos, meu pai está morto, e eis-me aqui perante vós sem ter pegado numa espada. Só lhe restava uma prova para se sentir culpado pela morte do pai, Pólibo, e era no caso de terem sido as saudades dele, seu filho, a matá-lo.



Jocasta brada aos céus: mas porque há de o homem temer se está sujeito às leis do acaso e nunca lhe será concedida presciência clara acerca de nada?

O acaso. Só com as leis da necessidade poderiam os oráculos trabalhar. Nunca com os acasos. Melhor te é viveres à deriva. E não vivas tu no temor das núpcias com tua mãe, e porque muitos já foram os mortais que em sonhos a sua mãe se uniram. Édipo objecta mesmo assim que sua mãe, Mérope, ainda está viva. Será portanto melhor conservar os receios.



Fala o Mensageiro: foram então esses teus temores que te trouxeram ao exílio aqui em Tebas? E sugere o regresso de Édipo ao palácio de Corinto. Mas não, Édipo não voltará a Corinto. Mas se é por isso que foges, o melhor será regressares. Não. Édipo persiste em manter-se em Tebas. Os receios infundidos pela profecia não o largam.

O Mensageiro medita por uns momentos e assegura a Édipo que nada deverá temer se regressar a Corinto. Assim como assim, o rei Pólibo não te era nada pelo sangue. Que dizes? Tu não foste gerado por ele. Dizes, Mensageiro, que não fui gerado por ele? Então porque me chamava de filho?

Seguindo a hipótese dos pés furados e do abandono no Monte Citérion, teria sido aquele mensageiro, que nesse tempo pastoreava rebanhos, a recolher a criança abandonada. E a libertar-lhe os pés das ataduras que o prendiam. Por isso lhe dera o nome, Édipo, o dos pés inchados. Recolhera-o, é certo, mas não fora ele a encontrá-lo. Não. Fora outro, outro pastor.

Jocasta grita: não indagues mais! Não indagues mais e procura esquecer quanto aqui foi dito. Oh, desgraçado! Oxalá nunca venhas a saber quem és!

É o tal Servo da casa de Laio que se apresenta. O Mensageiro reconhece-o e insta-o a falar. Estará ele lembrado de lhe ter passado para as mãos um menino para que ele o criasse? O Servo sente-se confundido. Porquê aquela história? Porquê, perguntas tu? Porque esse menino ei-lo aqui diante de ti. Quê? O rei Édipo? Sim, o rei Édipo.



Édipo ordena ao Servo que fale. A bem ou a mal. O Servo admite que a esse menino não o tinha por seu. Recebera-o de outro. E fica-se por aqui. Édipo ameaça-o de morte se não contar o que sabe. Pois bem então, esse menino era da casa de Laio, diz o Servo, encarando Édipo. E acrescenta mais: e a tua esposa, que há pouco se retirou lá para dentro é quem melhor te poderá esclarecer do que se passou. Porquê a minha esposa? Porque foi ela quem me entregou o menino. E porque te entregou ela o… para que eu o matasse. A própria mãe? E porquê? Por medo dos oráculos funestos que haviam sentenciado que aquele menino mataria o próprio pai e casaria com a mãe.



Tudo se tornava claro para Édipo.

Ó luz, seja esta a última vez que te encaro, eu, nascido de quem não devia, unido a quem não devia. E retira-se.

O Mensageiro, que foi atrás dele, reaparece para anunciar a morte da rainha Jocasta. Enforcada pelas próprias mãos. E mais anuncia que Édipo, arrancando das vestes reais as fivelas de ouro, com elas dilacerara os próprios olhos. As trevas doravante o impediriam de ver quem não devia.



Uma vez cego depois de ver a luz; uma vez mendigo andrajoso depois de ser rico, amparado a um bordão demandará terra estrangeira como irmão e pai das próprias filhas, filho e marido da mulher que o gerou.



O rei, como a lei o obrigava, puniu o assassino de Laio punindo-se a si mesmo.

Apolo, o deus ex-machina…



Apolo, o deus associado tanto à peste de Tebas como ao saneamento da mesma peste, à cura.

Apolo, o deus que “acertava ao longe”. As flechas de Apolo atacavam eficazmente a pestilência como podiam lançar de novo a epidemia sobre a cidade. Dependia do castigo dos assassinos de Laio, como vimos antes.



E Apolo deve ter prosseguido a missão regenerativa de disparar sobre algumas particulares regiões e países as suas flechas infectadas a ver se alguns criminosos eram descobertos e punidos. A peste negra, a peste bubónica, a gripe espanhola, a SIDA o ébola, e assim…



Até que, pelo ano de 2020, muito depois de Cristo, Apolo se lembrou de lançar uma peste sobre o mundo inteiro. Uma poluição sobre outra poluição, a que emporcalhava as cidades, os campos, os mares, subvertia os climas, contaminava os ares. Era, digamos, uma peste assassina a largo termo, mas, de todo o modo, assumida e entendida pelo capitalismo selvagem e pela globalização como necessária, ou mais ainda, vital para o progresso, para o desenvolvimento económico, para o enriquecimento dos homens (alguns) e das nações. O que irritou Apolo. O que obrigou moralmente Apolo a desencadear uma praga universal, coisa nunca vista, e que pela magnitude cósmica só poderia ter sido da autoria de um deus.

Alguns vagabundos da memória e do tempo notavam que o rosto perfeito de Apolo se ia modificando na correria dos séculos, a tez ia amarelando, a estatura do deus ia diminuindo, os olhos iam-se rasgando e amendoando.



Mas a verdade é que esta última proeza pestífera de Apolo em alguma coisa contradizia a que noutros tempos ele fizera alastrar sobre Tebas. A última peste de Apolo tinha a virtualidade de poder purificar os ambientes do mundo e precipitar nos abismos a sanguinária Esfinge dos sistemas bancários que estrangulava e devorava todo aquele que não pudesse ou não quisesse decifrar os insondáveis enigmas do capital financeiro – a que outros também chamam progresso.

E a verdade é que a camada de ozono da Antártida começou a recuperar; que já há peixinhos e alforrecas a circular pelos canais de Veneza; que um urso foi visto a vaguear nas ruas de uma vila do norte de Itália; que há menos 90% de aviões no ar; que os desastres na estrada diminuíram 70%; que os ares das cidades reduzidas ao confinamento aterrorizado dos habitantes foram-se tornando um pouco mais respiráveis; que os silêncios e as ausências humanas foram abraçando as paisagens restituindo-lhes certas belezas primordiais.

Mas… e Laio, quem seria? A Terra, talvez.

E os assassinos, quem seriam? Os homens, sei lá…



 

 

 

 

 

sexta-feira, 3 de abril de 2020



                   EXISTENCIALISTAS 4

 

Com os substanciais direitos de autor ganhos com o Segundo Sexo Beauvoir comprou um gira-discos e um automóvel. E escreveu ao seu amado Nelson Algren o seguinte: como o amor é proibido, decidi entregar o meu coração sujo a algo menos grosseiro do que um homem: entreguei-me a um belo carro preto.



Era o tempo dos prometidos compromissos políticos. Manifestos, comícios, campanhas a favor disto e contra aquilo (a favor do casal Rosenberg), posições públicas (a questão da Argélia), apoios (Fidel Castro).



Claro que sim, claro que um certo radical chique, digo eu, uma certa militância caviar. Até às indecisões e às estupefacções – Maio de 68, vamos lá, entre maoístas e feministas. E também num tempo de eleições presidenciais, com Sartre por Giscard d’Estaing e Beauvoir por Mitterrand. E quando chegarem os anos 70 é Beauvoir que sai a terreiro contra as leis antiaborto.



Muito antes disso, em 45, Beauvoir passa umas semanas em Portugal. Conferências a convite do Instituto Francês. Comparado com a França desses anos de imediato pós-guerra, Portugal até parecia um país rico. Havia que comer. Havia que vestir. E Beauvoir enche a barriga de bacalhauzadas e sardinhadas, e abastece-se de sapatos e roupas. Bebe vinho verde, passeia pelo norte e por Sintra, vai aos fados, vai aos touros, vê raparigas andrajosas que remexem nos caixotes do lixo. De 7 milhões de portugueses há 70 mil que se alimentam sem privações; as pessoas aqui são tristes porque têm fome.

Numa passagem do romance Os Mandarins pode ler-se o seguinte fragmento de diálogo: mas ainda tenho imensas perguntas a fazer: que impressões levas tu de Portugal? Henry encolheu os ombros. É uma nojice. Porquê? Por tudo.



Por falar nisso, A Convidada, Os Mandarins… a obra romanesca de Beauvoir faz-me lembrar o dito do poeta Alexandre O’Neil sobre os romancistas… contar a vidinha, não é? E assim estava Beauvoir. Pelava-se por contar a vidinha nos romances – já não falando das memórias, que, claro está, era para isso mesmo que serviam. Em 54, sai Os Mandarins, e ela volta a contar a vidinha. E mal disfarçada. Com personagens que se estava mesmo a perceber que eram Sartre, Camus, Arthur Koestler, Algren, as afinidades, as desavenças domésticas e intelectuais, as dissensões ideológicas, amores, traições, ciúmes. Dedica o livro a Nelson Algren. E vence – acho que já o disse- o Goncourt desse ano.



E Sartre fascina-se com o Partido Comunista e com Moscovo e zanga-se com Camus. Anos passados, quando faz os 70, recorda Camus com afecto.


Foi provavelmente o último bom amigo que tive. As simpatias do pós-guerra pela URSS viriam dar razão muitos anos depois aos chamados Novos Filósofos franceses, que lhe apontaram essa circunstancial simpatia pela União Soviética como a loucura de um estalinista confundido.

Sai a Crítica da Razão Dialéctica. Os indivíduos tinham cada vez menos poder nas sociedades modernas. Só na acção revolucionária de grupo poderiam recuperar a liberdade - estava ele a preparar o espírito para os maoístas que o irão seduzir na velhice.



Nessa fase soviética é constantemente convidado para conferências em Moscovo, e é quando, mais uma vez, como já disse, se apaixona loucamente. Por Lena Zonina, a intérprete russa que a União dos Escritores Soviéticos lhe tinha destinado, a voz grave, os seios macios (é ele que o diz), a pele aveludada, os ombros nus, os cabelos negros, o sorriso.


A Zonina achava que ele estava apaixonado por uma fantasia e recusava ser para ele uma espécie de ícone da Mãe Rússia. Ser amante dele (atenção: às escondidas do Partido) ainda vá que não vá, mas nunca a amante soviética. E foi um caso sério, outro, de paixão. O homem andava na fase dos casamentos e também queria dar à russa uma melhor vida em Paris e casar com ela.



Chega a novidade do julgamento e da deportação dos jovens escritores Siniavsky e Daniel, por terem publicado no Ocidente obras contra o regime, e essa novidade apanha Sartre e Beauvoir em mais uma visita a Moscovo. Pedia-se a libertação dos dois intelectuais, e a amante russa Zonina estava num dilema levado de seiscentos diabos e um bocado esquerda com Sartre. Amara-o pela sua liberdade individual e percebera que ele não era tão livre como queria parecer. E Sartre até concordava com ela. Estava a ficar velho, as obrigações acumulavam-se-lhe na vida, e à medida que envelhecia menos livre se sentia.



Não sei se estão lembrados daquela Wanda, a irmã da outra Olga, a que o leva a cortar as relações sexuais com a Beauvoir. Pois não sei se já o disse, também ela tinha, como a irmã, apanhado o vício do palco e não queria outra vida. Alguém que lhe escrevesse textos e a impusesse como actriz, tivesse ela o talento que tivesse. E Sartre vá de escrever peças para ela, As Mãos Sujas (“suponho que sejas meio cúmplice, meio vítima, como toda a gente”).


 Kean (“pergunto a mim próprio se os sentimentos verdadeiros não serão, simplesmente, sentimentos mal representados”)


 O Diabo e o Bom Deus (“a desordem é o que melhor serve a ordem estabelecida”).


Em Junho de 51. Wanda, sob o nome de Marie Olivier, actua ao lado de três monstros sagrados do teatro francês, nem menos que Pierre Brasseur, Jean Vilar e Maria Casarés. Um triunfo. Olga, a irmã, a primeira que dera em actriz, pobrezita, nessa altura estava tuberculosa e já não tinha forças para subir a um palco.



Andavam a beber muito, eles, Sartre e Beauvoir, a beber e a preocuparem-se com a situação do mundo e da Humanidade. E a preocuparem-se com a quantidade de bebida um do outro. Sartre, sempre escasso de tempo para tanta vida, tantos amores, tanto pensar, tanto escrever, descambava nas anfetaminas. Noites em claro, café, álcool, bebedeiras de cair, precisava de deitar mão a tudo o que o compelisse a pensar.



E também os sentimentos de culpa. As mulheres. As mulheres da vida dele. As mulheres a quem ele ia pagando as despesas. Era como Beauvoir já havia pensado: as relações entre os dois sexos eram mais fáceis para as mulheres do que para os homens. E aí entrava o estatuto secundário atribuído às mulheres, estatuto que levaria os homens a sentirem-se culpados quando as deixavam. E lá estava Sartre a ilustrar-lhe a ideia.



Ele odiava cenas de ciúmes e com as mentirolas que pregava não fazia senão provocá-las. Teve de se haver com muitíssimas, e duras algumas. As mulheres, diz Beauvoir, encurralavam-no, e ele levava a vida cheio de pesos na consciência. Sentia-se em dívida quando uma mulher o amava. Até se perguntava até que ponto não seria ele o causador da infelicidade delas. E as amantes parisienses, vivendo a dez minutos de caminho umas das outras, raramente se viam, e nenhuma sabia a verdade, toda a verdade, da vida dele.



E até vem ao caso falar na carta que ele recebe de uma jovem franco-argelina de 19 anos, estudante de Filosofia, em trabalhos com uma dissertação sobre Fenomenologia a que gostava que Sartre desse uma vista de olhos. Sartre aceita. Passam a encontrar-se aos domingos à tarde. Sartre dá a esses encontros uma ambiência de psicanálise – ele, que via a psicanálise como uma violência e aderira ao movimento anti-psiquiatria.

E com essa franco-argelina, da psicanálise à mancebia não tardou muito. Mas também durou pouco, meses. A rapariga, chamada Arlette Elkaim, passiva, toda ela problemas íntimos e familiares, má estudante, sem jeito para nada (mais uma), desperta a Sartre sentimentos paternais. Fosse por isso, vem a ser outra a depender financeiramente dele. E tão dependente era ela que ele a adoptou como filha.



Saía a sorte grande à rapariga. Uma vez declarada oficialmente, legalmente, filha de Sartre, ficava com direitos morais e legais que Sartre nunca na vida pensara em dar a qualquer outra das suas mulheres – e se não os dera a Beauvoir fora por causa da proximidade das idades. Seria então a Elkaim a herdeira oficial e a gestora da propriedade literária de Sartre. Não faltaria muito para ser uma mulher rica.

Ora isto foram facadas para as do círculo mais próximo das amantes e ex-amantes, que se sentiram excluídas da secreta família. Estupefacções e mágoas; pranto e ranger de dentes. Quando soube do caso, Wanda, a actriz (Marie Olivier), espatifou o mobiliário do apartamento que Sartre lhe tinha oferecido e Michelle (a ex de Boris Vian) ameaçou matar-se.



Beauvoir não se conformava com aquilo de Sartre sustentar, e prodigamente, a franco-argelina parasita. Beauvoir não gostava nada dela, é verdade, sentia que a rapariga se roía de inveja dela, o que também devia ser verdade. Teria você aceitado que alguém o sustentasse quando você tinha 20 anos? Sartre argumentou com Van Gogh, que tinha sido sustentado pelo irmão. Pois sim, mas Van Gogh fazia alguma coisa, pintava. Dar dinheiro às pessoas por toda a vida e sem nenhuma reciprocidade? Não acha que isso deturpa as suas relações com elas?



Já falei das anfetaminas. Foi assim mesmo. A fama espicaçou-lhe a criatividade e a já de si enorme capacidade de trabalho, e o momento estava a pedir uma intensificação dos estimulantes. Anfetaminas. Pouco ou nenhum cinema à noite, como antigamente. Acabavam-se as passeatas. Poucas leituras. Todo o tempo era de menos para pensar e escrever e não havia tempo para luxos de liberdade individual.

Nas anfetaminas, os campeões parece que eram, nesse tempo, segundo leio, os jornalistas, metade de um comprimido por dia, ou, no limite, conforme a pressão, um comprimido inteiro. Pois Sartre chegaria a tomar quatro. E sem água a empurrar, mastigados. Chegaria aos quatro e, tempos depois, chegaria aos 20 diários. Estava-se a matar. Mais dois maços de cigarros sem filtro por dia. Mais uns litros de chá e café. A noite era para mandar abaixo meia garrafa de whisky e emborcar outras quatro pastilhas, mas estas para dormir. Andava-se a matar. Basta! Você anda-se a matar! – berrava-lhe Beauvoir.



E no meio disto, o rapaz chegava à conclusão de que a escrita era ocupação fútil, irrelevante. Havia crianças a passar fome. Havia injustiças a mais no mundo. A literatura não levava a lado nenhum de jeito. A política, isso sim, a política sim.

Faz 44 anos e não se conforma. A Beauvoir. Ah, o amor. Relegada para o que chamava de terra das sombras. Virou-se para o que tinha sido amante em tempos, o então jovem Bost. Dá em nada. O rapaz andava a dormir com Marguerite Duras. Nelson Algren outra vez? Pois era, mas estava do outro lado do mundo, longe do Café de Flore e não parecia muito interessado. Sartre… vá lá, amigo, vamos matar saudades e reatar… não, Sartre andava nessa altura doido com Michelle, a mulher de Boris Vian, e até queria ter um filho dela.



E ela, Beauvoir, a sensação que tinha era de estar amputada. Detesto a ideia de mulheres de corpos envelhecidos a agarrarem-se ao amor. Pois detestava. Detestava quando era mais nova. Aos 44 anos continuaria a detestar, mas não via alternativa a ser uma dessas mulheres. Já reflectira sobre isso no Segundo Sexo, as mulheres a perderem a capacidade de atracção antes de perderem o desejo sexual. E para ajudar à infortunada festa descobria um caroço numa mama e entregava-se ao desespero.



Isso do caroço, que me conste, e tanto quanto percebi, parece que não foi nada de mais. Foi operada. E atirou-se a um intelectual judeu, Claude Lanzmann – que mais tarde viria a realizar um longo documentário sobre o Holocausto: Shoah, era o título. Atirou-se a ele e jurou que o amaria para todo o sempre. E ainda viveram mais ou menos juntos por esse todo o sempre, que foram sete anos. E mesmo vivendo com ele incitava-o, qual Sartre em 1929, a sair com outras mulheres, a procurar os tais amores contingentes. E ele obedeceu. E uma irmã dele, Evelyne, vai parar à cama de Sartre e com essa Sartre torna-se sombriamente ciumento.




  A existência continuava a ser uma alegria, apesar de tudo. Uma alegria para esse Claude Lanzmann, que no meio da relação com Beauvoir se apaixona por outra mulher, bela e rica, e deixa Beauvoir às aranhas, inconsolável, lavada em lágrimas – a dizer mal aos amores contingentes, acho eu. Mas recompõe-se. Ok, estava disposta a partilhar Lanzmann com a bela ricaça. Três dias com uma e três dias com outra.

Mas ai… aquele amor era mesmo contingente. Lanzmann é enganado pela outra, que lhe dissera ter 30 anos e que quando ele foi a ver tinha 45. Deixa-a. Quer reconstruir a relação com Beauvoir, mas numa base de amizade – ai… e, digo eu, como tudo isto me parece tão imaturo, coisa de garotos, com homens e mulheres feitos e durázios, e cuja experiência de vida talvez não fosse tanto de vida e mais de literatura.



Ora a França, do império já perdera a Indochina, e em 1955 era a Argélia a estar na ordem do dia e a sobressaltar a consciência politicamente activa e militante de Sartre e Beauvoir.


Os campos começaram a extremar-se radicalmente em vista de uma ameaça muito real de derrocada do império ultramarino francês. Sartre e Beauvoir tomam posições a favor da independência da Argélia. E são apontados como anti-franceses, anti-patriotas.
 

Haverá bombas a rebentar no apartamento da Rue Bonaparte, que era a casa da mãe e onde Sartre estava a morar. Primeiro foi em 61, e um segundo atentado dá-se em Janeiro de 62 e destrói totalmente o apartamento.



Talvez inspirado pelas circunstâncias, Sartre escreve outra peça (a última), e de novo para as ex-amantes, desta vez Wanda e Evelyne (a tal irmã de Lanzmann), Os Sequestrados de Altona. As duas a contracenar com a estrela da companhia, Serge Reggiani. Sobe à cena em 1959. Quem não faz tudo, não faz nada. Quem não faz nada não é ninguém.



As posições de Sartre tinham eco no próprio teatro das operações, em Argel. Os militares em campanha temiam-lhe os artigos que publicava na imprensa de Paris. No filme A Batalha de Argel ouve-se um alto comando operacional dizer que pessoalmente não gosta de Sartre e que não gostava nada de o ter como inimigo. Daí que um batalhão de veteranos da guerra da Argélia a desfilar nos Campos Elísios peçam o fuzilamento de Sartre.



Sartre, com outros intelectuais, assinara o Manifesto dos 121, a exigir a independência da Argélia já!, e mais a amnistia para os militares franceses desertores, e com uma sugestão aos soldados no terreno para se insubordinarem – havia de ser bonito estes manifestos e tomadas de posição acontecerem com intelectuais de cá quando rebentou a guerra em Angola…



Já havia acusações formais contra os signatários do Manifesto. Já havia gente a perder o emprego. E já havia julgamentos e já havia prisões. E Sartre e Beauvoir habilitavam-se ao mesmo e à ira dos veteranos de guerra se no regresso de uma viagem a Cuba e ao Brasil aterrassem em Paris. Não aterraram. Avisados por amigos, não aterraram, foram aterrar em Barcelona e chegaram a Paris por via terrestre. E foram para o apartamento da Beauvoir, e por muito tempo não puderam sair de casa.



E não há outro remédio senão darem uma conferência de imprensa mesmo no apartamento para desafiarem as autoridades a formarem uma acusação contra eles. E as autoridades não formaram acusação alguma. É De Gaulle, a propósito, que se sai com esta: não se pode aprisionar Voltaire. E é quando De Gaulle começa a falar em independência para a Argélia e a concitar, também ele, os ódios da direita colonialista francesa.

Agora era o Prémio Nobel da Literatura que estava na calha para Sartre. Aceitar? Não aceitar? E porquê? Porque não aceitar? Qual era o óbice? Assunto longamente debatido com Beauvoir. O óbice? Se aceitasse, queria dizer que capitulava aos pés da burguesia, ele, o rapaz problemático que finalmente entrava na linha. Então e as 250.000 coroas suecas? Bom dinheiro. Que bem tinha onde empregar – comprar novos apartamentos para as amantes, por exemplo.


A rapaziada da revista que ele tinha fundado, Les Temps Modernes, faz claque para ele aceitar, sim, sim, aceita, aceita, não sejas parvo. Outros amigos acham que não, você não deve aceitar essa merda desse prémio. Sartre nunca mais seria Sartre se aceitasse – não se estava mesmo a ver o cariz político-ideológico do prémio quando dado a Boris Pasternak, e apenas com o fim politico de comprometer a União Soviética?

Sartre escreve à Academia Sueca. Muito respeito por eles, sim senhor, mas eles que fizessem a fineza de não o incluir no rol dos nobelizáveis. E já agora, antecipadamente, e com os melhores cumprimentos, os informava de que se teimassem na ideia de lhe dar o prémio ele não o aceitaria.



No dia 24 de Outubro de 1964, Sartre é declarado vencedor do Prémio Nobel da Literatura. E lá vai ele esconder-se dos repórteres no apartamento da Beauvoir.



É tardíssimo, já passa das duas da manhã, quando ele resolve fazer uma declaração: o escritor não pode permitir que o transformem numa instituição. Os círculos da direita iriam interpretar uma aceitação do prémio como sinal de que tinha sido perdoado pelos pecadilhos esquerdóides do passado.

Aos 55 anos, Beauvoir está novamente a braços com o terror do envelhecimento. Do envelhecimento e do celibato que lhe corresponderia. Será que se lembrou de Ovídio? Peguei num punhado de poeira e segurando-o na mão pedi insensatamente tantos anos de vida quantos grãos de poeira eu tinha na mão: Esqueci-me de pedir que fossem anos de juventude.



Não sei se se lembrou desta. Sei o que ela escreveu, e que foi: Odeio a minha aparência de agora: as sobrancelhas descaídas, os papos debaixo dos olhos, as faces demasiadamente cheias e aquele ar de tristeza em volta da boca que as rugas sempre provocam. O que é que ela queria, menina eternamente mimada e egocêntrica… o que é que ela queria aos 55 anos de copos e de vidas? Que o envelhecimento fosse só para as outras? Conclui que é chegada a hora de dizer nunca mais. Nunca mais a uma quantidade de coisas. Nunca mais um homem…




E começa a identificar-se com uma jovem intelectual apaixonada pela vida. Jovem… sim, 33 anos, e eu reconhecia nela as minhas qualidades e os meus defeitos. Tinha um dom muito raro: sabia ouvir. De seu nome Silvie Le Bon. Depois de breve passagem pela cama de Sartre, nem seria preciso dizer, vão as duas em lua-de-mel à Córsega, em 1965.



Uma infecção no fígado, o ventrículo esquerdo cansado. Sartre envelhecia. Repouso. Mas o médico diz a Beauvoir que o deixasse trabalhar um pouco e sem pressas. A não ser assim, não lhe dava mais de seis meses de vida.



E nisto cai o Maio de 68, e Sartre e Beauvoir declaram-se ao lado dos estudantes.


Sartre participava em sessões públicas e os conselhos que tinha para dar àquela gajada eram nenhuns, não, não tinha conselhos a dar aos estudantes, tinha era muito que aprender com a rapaziada. Notava com gosto que os guedelhudos revoltosos não reclamavam poder, reclamavam liberdade. Se um homem não for contestatário não é nada. 
 
  

Mas também chegou o mês de Agosto desse ano e os carros de combate russos entravam na Checoslováquia.


E Sartre afastava-se da União Soviética e chamava aos russos criminosos de guerra. Não, não voltaria a pôr os pés na União Soviética. Aproximava-se do movimento maoísta a reboque dos estudantes. Iria a Praga com Beauvoir em visita de solidariedade e ambos começariam a andar pelas ruas de Paris a distribuir o jornal maoísta La Cause du Peuple.


O que lhes valeu irem dentro à mistura com 16 hirsutos estudantes. Não aqueceram o lugar na cela. Foram prontamente libertados. Mas os 16 estudantes ficaram lá dentro.



Beauvoir, é preciso dizê-lo, não ia muito com maoístas. Achava-os dogmáticos e violentos e não acompanhava Sartre nessa aventura. O melhor era virar-se para a militância feminista.


Depois de O Segundo Sexo, passara a ser um símbolo dessa luta, enquanto Sartre andava a sentir-se à margem do ambiente intelectual da época, um ambiente que considerava anti-humanista.




A tal Wanda vem a cair nas drogas. E das mais duras. A meter tráficos, desfalecimentos na via pública, perdas de consciência. Era uma paranoica violenta que odiava a irmã, Olga. E não só. Odiava muita gente, toda a gente, mas no top da lista dos ódios pessoais dela morava, destacada, uma figura, Beauvoir. Por causa da Beauvoir andou Wanda pelo vudu, a espetar alfinetes em bonecas, a riscar raivosamente alguma foto de Beauvoir que aparecesse na imprensa. Até que comprou uma pistola. E comunicou-o a Sartre. E disse-lhe da finalidade da pistola, acabar com a raça dessa Beauvoir. E Sartre, excelso intelectual, ficou-se nas covas.



Bom, quem passou à acção foi a nova amiga de Beauvoir, a Silvie Le Bon, que arrebanhou um grupo de comandos com raparigas lá da École Normale e montou um golpe de mão ao apartamento de Wanda, elas disfarçadas de jornalistas da revista Elle que desejavam entrevistar a famosa actriz Marie Olivier. Encantada, Wanda abre-lhes a porta e é imediatamente manietada, enquanto a outra secção do comando lhe vai às gavetas. Queriam a pistola e queriam as cartas que Sartre tinha escrito a Wanda. Encontraram a pistola, mas de cartas, nada. Eramos muito loucas naquela época radical. Não me orgulho deste episódio - confessará Silvie muitos anos depois.



Beauvoir adere ao Movimento das 343, a favor da legalização do aborto. As signatárias – as que alguma vez na vida recorreram a abortos clandestinos: Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Giselle Halimi, Simone Signoret, Marguerite Duras, mais as mulheres do clan Sartre/Beauvoir, mais a própria Beauvoir - a quem se punha a questão de nunca na vida ter feito um aborto. Mero pormenor.

Toda a vida Beauvoir sofrera de quebras físicas e morais, choros, ansiedades, angústias, medo da morte e do vazio metafísico. Admitia no entanto que a assombração que mais temia era a inevitabilidade da morte de Sartre. E quando um dia Sartre lhe entra casa dentro com o braço direito paralisado, a boca à banda e as palavras a saírem-lhe distorcidas, Beauvoir precisa de muita força de vontade para dissimular o pânico. Um enfarte. Proibido pelos médicos de andar. Impossível conversar com ele. O cigarro constantemente a cair-lhe da boca. É preciso ajudá-lo até a comer.
Mas Beauvoir ainda terá mais algumas ocasiões para ficar aterrorizada com a saúde de Sartre, entre recuperações e recaídas. Conta Silvie Le Bon que nessa época Sartre não tinha dinheiro nem para comprar um par de sapatos, enquanto as ex-mulheres mudavam calmamente de apartamento. Em particular a filha adoptiva, a tal Arlette Elkaim, asmática, a quem ele comprara uma casa na Côte d’Azur para ela fugir à poluição da capital.



Como o tempo passa. Foi em cheio no verão quente de 1975 que apareceram por cá os dois, a ver como era para contar como foi. Ver como era o 25 de Abril, a revolução, claro está.



Houve um colóquio com estudantes, e Sartre e Beauvoir ficaram para morrer com a falta de participação do auditório. Faziam perguntas: vocês querem uma sociedade socialista, ou acham melhor uma coisa assim a meio caminho, uma democracia burguesa? Resposta: silêncio. O que os leva a concluir que este pessoal de Lisboa não tinha feito revolução nenhuma e que se tinha conformado com uma revolução que alguém fizera por eles. O que era a mais pura das verdades.



Sartre gostou mais dos operários em auto-gestão. E falou com eles. E falou com escritores que não sabiam o que fazer à vida em revolução e lhe perguntaram como Lenine: que fazer? Isto é o que Beauvoir conta na obra final A Cerimónia do Adeus



Beauvoir põe-se à escrita de um novo livro. Sobre a velhice. Os críticos aproveitam o ensejo para ironizar com piada: depois do segundo sexo, vem a terceira idade.



É num tempo de grandes polémicas, centradas nos movimentos maoistas, que Sartre fica cego. Aceita a ideologia maoista que os da velha guarda sartriana, a começar por Beauvoir, rejeitam. Sartre estaria capaz de pensar sem ver? Beauvoir tem dúvidas. Trata dele como esposa amantíssima e dedicada. No tal último livro que escreve, A Cerimónia do Adeus – quem o leu fala dele como uma obra-prima – descreve os últimos tempos de um Sartre definitivamente velho, incontinente, empobrecido.


No leito de morte, Sartre pede-lhe um último beijo. E dedica-lhe as últimas palavras: je vous aime beaucoup, mon petit Castor. Ou mais ainda: você irá na sua caixinha, de onde nunca mais sairá, e eu vou na minha caixinha, e mesmo que nos enterrem lado a lado, das minhas cinzas aos seus restos não haverá nenhuma passagem.

E reparamos como mesmo os génios do pensamento e da razão a certa hora da vida e da morte, como todos nós,  também se podem tornar chéchés…



Pois é, não se tratavam por tu. Nunca se trataram por tu. Diz Beauvoir: achei sempre muito difícil dirigir-me às pessoas em tom familiar. Não sei porquê.

Se calhar ela até sabia. Mas já aos 10 anos, com a grande amiga de infância, Zaza, usava o formalismo do você. Não gostava de familiaridades, pronto. Dirijo-me a quase toda a gente de maneira formal, à parte uma ou outra pessoa que me impôs um tratamento mais familiar.

Uma dessas pessoas foi Claude Lanzmann. Insistiu em tratá-la por tu, porque não podia ser amante de uma mulher que o obrigasse a tratá-la por você. Sartre dizia a isso: Castor não gosta de dizer tu. E não se pense que isso causava alguma distância entre nós. Nunca estive tão próximo de uma mulher como de Castor. Mas não, nunca nos tratámos por tu.




E chega a primeira morte. Em 1980. Para Sartre. Edema pulmonar derivado da hipertensão ou insuficiência cardíaca. Notícia de primeira página em todo o mundo. O presidente Giscard d’EStaing passa uma hora junto ao caixão. Quereria Sartre um funeral nacional? É certo que nunca quisera honras nacionais, mas o governo gostaria de pagar as despesas do funeral – alguma informação o presidente teria da situação financeira de Sartre, que não deixava dinheiro que chegasse para pagar o enterro. Os amigos agradecem ao presidente, mas recusam. Quem pagaria? Alguém havia de pagar.

Há fotógrafos por todo o cemitério de Montparnasse. Beauvoir lança uma rosa vermelha sobre a pedra tumular. O funeral resulta em festa e manif de juventude.


Em Beauvoir vê-se uma viuvez pública. Com grandeza. Sem lágrimas. A filha adoptiva, Arlette Elkaim, a asmática, está nesse momento a esvaziar de mobílias e de tudo o apartamento do falecido.



Na mesma linha de Sartre, Beauvoir adopta uma filha. Quem havia de ser? Silvie Le Bon, última companheira, tornada Silvie Le Bon de Beauvoir. Beauvoir que vem a morrer em Abril de 86.



A publicação da correspondência do casal causa um estrondo escandaloso. Previsível, aliás. Finalmente, o mundo era conhecedor dos meandros do famoso pacto, dos trios, das descrições de Sartre quanto à operação de tirar a virgindade às namoradas que ainda a tinham, as ligações lésbicas de Beauvoir. Um estendal de voyeurismo, de exibicionismo, de mentiras – e de existencialismo, vamos lá, se quiserem.

Falou-se muito disso na época. Bernard-Henry Lévy classificou a relação Sartre/Beauvoir como uma sorte de Liaisons Dangereuses do século XX. E um belo romance de amor, em todo o caso.

Foram inseparáveis, na vida, no pensamento, na escrita. Leram-se obsessivamente um ao outro antes de publicarem o que quer que fosse. A crítica americana arriscou dizer que a parte substancial do pensamento de Sartre lhe vinha de Beauvoir. Não sei se acredite.



Há várias mulheres na minha vida, sabe – uma entrevista ao Nouvel Observateur em 1975. – Embora, num certo sentido, Simone de Beauvoir seja a única.

E como consegue lidar com todas essas suas mulheres?

Minto-lhes.

Mente a todas?

A todas.

Mesmo a Beauvoir?

Particularmente a Beauvoir.

Beauvoir que viria a declarar: Houve um sucesso indiscutível na minha vida: a minha relação com Sartre. Em mais de 30 anos só uma vez nos fomos deitar zangados.




                                    FIM