A PESTE
Tebas agitava-se em estertor, debatia-se num
abismo de desespero e “o negro Hades de gemidos e lamentos se enriquecia” com a
terrível peste. O povo sentava-se à beira dos altares, nas praças públicas,
defronte dos templos de Palas, ao pé das cinzas proféticas de Ismeno.
O rei Édipo, de todos bem-amado, escuta
as súplicas de um sacerdote por algum socorro para a cidade, fosse ele através
da invocação da palavra dos deuses, fosse ele por artes humanas. Fosse com fosse,
ele, Édipo, de todos bem-amado, que reerguesse a cidade, para que o reinado
dele não viesse a ser celebrado como uma ascensão logo seguida de uma queda.
“Se continuares a governar esta terra,
melhor é que a governes povoada que deserta”.
O entendimento religioso de um miasma
sobre a cidade levava a acreditar-se na presença entre os habitantes de um
criminoso impune.
Édipo governava a cidade convocando a voz de
Apolo. Estava casado com Jocasta, a rainha viúva do anterior monarca, Laio. E
mostrava-se um governante seguro de si, um bom rei, um bom político construtor
de aparências apolíneas, em constante e premeditada ignorância da eventual
realidade dionisíaca. Uma cegueira, por assim dizer, psíquica; ou isso mesmo:
apolínea. A cegueira apolínea que o destino faria mais tarde redundar numa
cegueira real, física, auto-infligida, precisamente no tempo em que a verdade
dionisíaca se desvendava.
“Que homem de ventura mais possuía do que a
aparência de a ter, e, uma vez tida, de cair no ocaso?”
Creonte, o cunhado, irmão da rainha Jocasta,
aparece, depois de ter consultado o Oráculo. Imperioso era expulsar a mancha
que recaíra sobre Tebas: rezara o Oráculo a Creonte. E Édipo quer saber que
tipo de expiação seria devida pela natureza do mal. O exílio, responde Creonte.
Ou a remissão da morte pela morte.
O exílio. O exílio de quem? A morte, sim, mas
a morte de quem? Responde Creonte que outrora, antes de Édipo, reinara Laio.
Laio morrera assassinado num cruzamento de três caminhos e a ordem claramente
expressa pelo deus apontava para alguma mão vingadora que se abatesse sobre os
assassinos de Laio.
Os assassinos de Laio? Mas quem são esses
assassinos de Laio? Onde estão? Como será possível descobrir a “pegada incerta”
desses assassinos?
Neste mundo, sentenciara Apolo, “o que se
procura facilmente se obtém e só nos escapa quando se descura a pesquisa”.
Muito bem. Édipo promete investigar o caso
até às origens. O povo lhe assistiria em breve ao triunfo ou à queda. E manda
publicar um édito. Àquele que haja conhecimento das circunstâncias da morte do
rei Laio era ordenado que tudo revelasse. E se alguém conhecera um estranho, um
indivíduo natural de outra região como assassino, que não guardasse silêncio.
Corre entretanto na cidade que Laio foi morto
por uns viajantes. E é quando aparece um célebre adivinho cego e hermafrodita,
Tirésias, o que “conhece o presságio das aves”.
Tirésias começa por lamentar a inutilidade do
saber quando esse mesmo saber não acrescenta vantagens a quem o possui. Então,
ele que fale – ordena Édipo. Nada feito. Tirésias não quer falar. Tirésias
recusa contar aquilo que sabe.
Édipo, o impetuoso, irascível, violento e
intempestivo nas palavras e nas acções, ameaça Tirésias. Ao que Tirésias
adianta que os factos se revelarão por si mesmos.
Édipo acusa impensadamente o próprio Tirésias
de ser o mandante dos assassinos de Laio. E Tirésias não se fica: pois então,
rei Édipo, que a partir deste dia não dirijas a palavra a ninguém, pois desta
terra foste tu mesmo a poluição sacrílega.
Cada vez mais irado, Édipo ordena a Tirésias
que repita o que acabou de dizer. E Tirésias repete. E vai ainda mais longe: o
assassino que tu, rei Édipo, intentas descobrir, afirmo eu que és tu mesmo. E
acrescenta que o rei vive infames relações com os seus íntimos sem querer ver a
condição desgraçada a que chegou. Ou acaso saberás tu, rei, de quem procedes?
Pois era. Ao certo, ao certo, Édipo não
sabia.
Uma versão diz-nos que Laio, consultado um
Oráculo, foi avisado de que viria a morrer às mãos do filho que tivesse. E
quando Jocasta, a mulher, teve esse filho, imediatamente Laio o arrancou dos
braços da ama, lhe furou os pés e lhos amarrou e mandou que o abandonassem
secretamente no Monte Citérion – sem prever que alguém descobrisse a criança, a
salvasse e a criasse.
Gosto mais de outra versão. A que diz que
Laio não abandonou o filho recém-nascido na montanha e que em vez disso o meteu
numa arca para ser atirado ao mar – semelhanças com o caso de Moisés? E essa
arca flutuou na corrente e foi parar a uma praia nos domínios de Pólibo, rei de
Corinto, cuja mulher viu a criança e a tomou nos braços, retirando-se para umas
moitas, e aí fingindo dores de parto, uma encenação para as lavadeiras que com
ela estavam na praia. Mas ao marido, Pólibo, a rainha, Mérope, contou a
verdade. E Pólibo ficou radiante. Não tinha outro filho e assim criaria a
criança como seu filho.
Já espigadote, Édipo vem a confrontar-se com
uma rapaziada lá de Corinto que lhe atira em cara as nenhumas parecenças dele
com os (supostos) pais. Confundido, ei-lo que corre a Delfos a consultar o
Oráculo. Lá chegado, nem o deixam entrar no templo. A pitoniza, horrorizada,
grita-lhe “arreda, arreda, vai-te, desgraçado… um dia hás-de matar o teu pai e
deitar-te com tua mãe!”
Custou-lhe ouvir tal predição. Como era
possível tal horrível coisa se ele amava os pais com verdadeira e profunda
ternura?
E Tirésias ainda lá está a vociferar. Esse
homem que mandas procurar, o assassino de Laio, esse homem está aqui. Diziam-no
estrangeiro, mas virá a saber-se que é natural daqui, de Tebas.
Jocasta intervém a favor do irmão, Creonte, a
que Édipo chamara de traidor conluiado com Tirésias. Nenhum homem tem o dom da
adivinhação, afirma Jocasta. E tem provas do que afirma. E que provas tens tu,
mulher? Tinha. Por exemplo, o Oráculo dissera um dia a Laio que morreria às
mãos de um filho nascido dele e dela. Ora Laio veio a ser morto por assaltantes
desconhecidos numa encruzilhada de três caminhos. E mesmo antes disso, tinha a
criança uns escassos três dias quando Laio a fizera desaparecer.
A encruzilhada de três caminhos…
Édipo lembrava-se disso. O desfiladeiro de
Delfos para Dáulide. Uma caravana. Ele parado diante da caravana. O chefe da
caravana, instalado num carro luxuoso a ordenar-lhe que se afastasse para
deixar passar os carros. Afastar-se, porquê? Porque como pobre peão devia
obedecer a quem lhe era superior.
Sim, Édipo lembrava-se da resposta colérica
que dera ao velho chefe da caravana. Que superiores só reconhecia os deuses e
os pais. O outro gritava-lhe. Pior para ti! Lembrava-se bem disso. E o velho
mandara avançar os carros.
O chefe da caravana era Laio, o rei de Tebas,
o Laio que ia a Delfos, ao Omphalos, a pedra de origem desconhecida, o centro
da terra. Laio queria interrogar novamente o Oráculo. E desta vez interrogá-lo
quanto ao modo de libertar Tebas da peste causada pela Esfinge, a deusa tripla,
cabeça de mulher, corpo de leão, cauda de serpente e asas de águia…
A encruzilhada dos três caminhos. Édipo
lembrava-se. E perguntava a Jocasta há quanto tempo tal cena acontecera. E
respondia-lhe Jocasta que acontecera pouco antes de ele aparecer em Tebas. E
ele perguntava pela estatura de Laio. E ela dizia-lhe que era alto, não muito
diferente do aspecto dele.
Édipo lembrava-se. A Esfinge que assolava a
cidade. Que propunha um enigma que ninguém conseguira decifrar.
Qual é o ser que com uma única voz ora
caminha a quatro pernas, ora a duas, ora a três, e que é tanto mais fraco
quantas mais pernas tem?
Aos que avançavam a tentar a solução do
enigma e não conseguiam a Esfinge dava cabo deles, estrangulava-os, devorava-os.
Mas Édipo não hesitou. É o homem; o que em criança gatinha a quatro pernas, o
que em jovem caminha erecto sobre duas pernas, o que se apoia num bordão quando
é velho.
Édipo lembrava-se do uivo da Esfinge ao
despenhar-se no desfiladeiro. E os de Tebas fizeram dele rei e esposo da rainha
viúva de Laio, Jocasta.
E de novo a peste. Expulsem da cidade o
assassino de Laio!, clamou o Oráculo. E Édipo logo amaldiçoou o assassino.
Fitando Jocasta, pergunta como viajava Laio
na encruzilhada dos três caminhos. Decerto com um séquito numeroso, sendo ele
um rei. Sim, cinco homens. E Laio? Laio seguia num carro. E quem teria contado
o caso a Jocasta? Um Servo que regressara a Tebas ileso. Esse Servo ainda
estaria ao serviço do palácio? Não. Porque não? Porque quando esse Servo te viu,
a ti, Édipo, rei pela morte de Laio suplicou-me que o mandasse trabalhar para o
campo a pastar os rebanhos.
Édipo lembrava-se de um carro puxado a
cavalos a avançar para ele, a querer afastá-lo da estrada à força. Lembrava-se
da ira que o acometera. Do velho que lhe vibrara uma chicotada. Da ira dele,
ripostando com um golpe de bastão na cabeça do velho, deixando-o morto na
estrada…
Existiria alguma afinidade entre esse estrangeiro
e Laio? Alguma afinidade entre esse estrangeiro e ele próprio, Édipo? Oh, se
assim fosse ninguém seria mais odioso aos deuses do que ele.
O pastor dos rebanhos vem para afirmar terem
sido salteadores os assassinos de Laio. A questão estaria então no número. Se o
pastor mantivesse o plural, salteadores, não seria ele o assassino. O único e o
múltiplo não se identificam. Se o pastor se referisse a um homem isolado era
ele o assassino.
E apresenta-se um Mensageiro para ser
recebido pelo rei Édipo. Vem de Corinto. Traz boas novas. Boas novas? Sim,
Édipo será em breve proclamado rei de Corinto. Como? Por morte do pai, o
venerável Pólibo.
Jocasta estremece. Que me dizes, Mensageiro?
Morreu o pai de Édipo? O pai, de quem Édipo fugiu por medo de o matar, conforme
lhe predisse o Oráculo, morreu então de morte natural?
Édipo: oh, oráculos desprezíveis! Como
acreditar nas profecias de Píton ou nas aves que grasnam nas alturas?
Cidadãos, meu pai está morto, e eis-me aqui
perante vós sem ter pegado numa espada. Só lhe restava uma prova para se sentir
culpado pela morte do pai, Pólibo, e era no caso de terem sido as saudades
dele, seu filho, a matá-lo.
Jocasta brada aos céus: mas porque há de o
homem temer se está sujeito às leis do acaso e nunca lhe será concedida
presciência clara acerca de nada?
O acaso. Só com as leis da necessidade
poderiam os oráculos trabalhar. Nunca com os acasos. Melhor te é viveres à
deriva. E não vivas tu no temor das núpcias com tua mãe, e porque muitos já
foram os mortais que em sonhos a sua mãe se uniram. Édipo objecta mesmo assim
que sua mãe, Mérope, ainda está viva. Será portanto melhor conservar os
receios.
Fala o Mensageiro: foram então esses teus
temores que te trouxeram ao exílio aqui em Tebas? E sugere o regresso de Édipo ao
palácio de Corinto. Mas não, Édipo não voltará a Corinto. Mas se é por isso que
foges, o melhor será regressares. Não. Édipo persiste em manter-se em Tebas. Os
receios infundidos pela profecia não o largam.
O Mensageiro medita por uns momentos e
assegura a Édipo que nada deverá temer se regressar a Corinto. Assim como
assim, o rei Pólibo não te era nada pelo sangue. Que dizes? Tu não foste gerado
por ele. Dizes, Mensageiro, que não fui gerado por ele? Então porque me chamava
de filho?
Seguindo a hipótese dos pés furados e do
abandono no Monte Citérion, teria sido aquele mensageiro, que nesse tempo
pastoreava rebanhos, a recolher a criança abandonada. E a libertar-lhe os pés
das ataduras que o prendiam. Por isso lhe dera o nome, Édipo, o dos pés
inchados. Recolhera-o, é certo, mas não fora ele a encontrá-lo. Não. Fora
outro, outro pastor.
Jocasta grita: não indagues mais! Não
indagues mais e procura esquecer quanto aqui foi dito. Oh, desgraçado! Oxalá
nunca venhas a saber quem és!
É o tal Servo da casa de Laio que se
apresenta. O Mensageiro reconhece-o e insta-o a falar. Estará ele lembrado de
lhe ter passado para as mãos um menino para que ele o criasse? O Servo sente-se
confundido. Porquê aquela história? Porquê, perguntas tu? Porque esse menino
ei-lo aqui diante de ti. Quê? O rei Édipo? Sim, o rei Édipo.
Édipo ordena ao Servo que fale. A bem ou a
mal. O Servo admite que a esse menino não o tinha por seu. Recebera-o de outro.
E fica-se por aqui. Édipo ameaça-o de morte se não contar o que sabe. Pois bem
então, esse menino era da casa de Laio, diz o Servo, encarando Édipo. E
acrescenta mais: e a tua esposa, que há pouco se retirou lá para dentro é quem
melhor te poderá esclarecer do que se passou. Porquê a minha esposa? Porque foi
ela quem me entregou o menino. E porque te entregou ela o… para que eu o
matasse. A própria mãe? E porquê? Por medo dos oráculos funestos que haviam
sentenciado que aquele menino mataria o próprio pai e casaria com a mãe.
Tudo se tornava claro para Édipo.
Ó luz, seja esta a última vez que te encaro,
eu, nascido de quem não devia, unido a quem não devia. E retira-se.
O Mensageiro, que foi atrás dele, reaparece
para anunciar a morte da rainha Jocasta. Enforcada pelas próprias mãos. E mais
anuncia que Édipo, arrancando das vestes reais as fivelas de ouro, com elas
dilacerara os próprios olhos. As trevas doravante o impediriam de ver quem não
devia.
Uma vez cego depois de ver a luz; uma vez
mendigo andrajoso depois de ser rico, amparado a um bordão demandará terra estrangeira
como irmão e pai das próprias filhas, filho e marido da mulher que o gerou.
O rei, como a lei o obrigava, puniu o
assassino de Laio punindo-se a si mesmo.
Apolo, o deus ex-machina…
Apolo, o deus associado tanto à peste de
Tebas como ao saneamento da mesma peste, à cura.
Apolo, o deus que “acertava ao longe”. As
flechas de Apolo atacavam eficazmente a pestilência como podiam lançar de novo
a epidemia sobre a cidade. Dependia do castigo dos assassinos de Laio, como
vimos antes.
E Apolo deve ter prosseguido a missão
regenerativa de disparar sobre algumas particulares regiões e países as suas
flechas infectadas a ver se alguns criminosos eram descobertos e punidos. A
peste negra, a peste bubónica, a gripe espanhola, a SIDA o ébola, e assim…
Até que, pelo ano de 2020, muito depois de
Cristo, Apolo se lembrou de lançar uma peste sobre o mundo inteiro. Uma
poluição sobre outra poluição, a que emporcalhava as cidades, os campos, os
mares, subvertia os climas, contaminava os ares. Era, digamos, uma peste assassina
a largo termo, mas, de todo o modo, assumida e entendida pelo capitalismo
selvagem e pela globalização como necessária, ou mais ainda, vital para o
progresso, para o desenvolvimento económico, para o enriquecimento dos homens
(alguns) e das nações. O que irritou Apolo. O que obrigou moralmente Apolo a
desencadear uma praga universal, coisa nunca vista, e que pela magnitude
cósmica só poderia ter sido da autoria de um deus.
Alguns vagabundos da memória e do tempo notavam que o
rosto perfeito de Apolo se ia modificando na correria dos séculos, a tez ia
amarelando, a estatura do deus ia diminuindo, os olhos iam-se rasgando e
amendoando.
Mas a verdade é que esta última proeza
pestífera de Apolo em alguma coisa contradizia a que noutros tempos ele fizera
alastrar sobre Tebas. A última peste de Apolo tinha a virtualidade de poder
purificar os ambientes do mundo e precipitar nos abismos a sanguinária Esfinge
dos sistemas bancários que estrangulava e devorava todo aquele que não pudesse
ou não quisesse decifrar os insondáveis enigmas do capital financeiro – a que
outros também chamam progresso.
E a verdade é que a camada de ozono da
Antártida começou a recuperar; que já há peixinhos e alforrecas a circular
pelos canais de Veneza; que um urso foi visto a vaguear nas ruas de uma vila do
norte de Itália; que há menos 90% de aviões no ar; que os desastres na estrada
diminuíram 70%; que os ares das cidades reduzidas ao confinamento aterrorizado
dos habitantes foram-se tornando um pouco mais respiráveis; que os silêncios e
as ausências humanas foram abraçando as paisagens restituindo-lhes certas belezas
primordiais.
Mas… e Laio, quem seria? A Terra, talvez.
E os assassinos, quem seriam? Os homens, sei
lá…