terça-feira, 23 de janeiro de 2018


                                   OS CARVOEIROS


 
Estás disposto a pegar numa carabina, revólver, punhal ou bomba e esperar onde quer que seja o tirano do povo para nele executares justiça sumária?
 
 
 
Desejo comunicar com a invisível Carbonária.
Entra, e não te assustes.
 
 
Primo Presidente, ser-me-á permitido falar com os homens que tudo sabem e que tudo vêem? Acompanha-me um amigo que deseja ser iniciado.   
E como pôde esse homem pensar em ser iniciado nos segredos da Carbonária?
Presidente, este homem é da minha confiança.
 
 
Vários tipos de fraseologia de iniciação na Carbonária. Mas os pormenores de encenação também são significativos, e simbólicos. A mesa da presidência forrada a negro; o triângulo invertido; as velas acesas; o machado. Assim dentro de casa. Podia ser ao ar livre, na floresta, na sombra de uma árvore, de onde pendiam os símbolos carbonários e maçónicos.
 
 
Dois tostões de jóia pagos ao proponente. Uma fotografia do neófito, junto com os dados biográficos. Olhos vendados. Uma sala às escuras. Cuidado, meus primos, que todas as precauções sejam tomadas. O cano de um revólver encostado ao ouvido do candidato. No cano de revólver que sentes no teu ouvido está a garantia de que nada poderás contra nós. Nunca penses em nos atraiçoar.
 
 
O candidato era algemado. O grilhão que te aperta os pulsos significa que é um escravo dos inimigos do povo todo aquele que não pertence à Carbonária. E o candidato era inquirido. Sobre o seu passado. Sobre as associações a que pertencia. Sobre a religião – a que não poderia responder afirmativamente sob pena de ser imediatamente expulso. Sobre o seu grau de instrução. Sobre as ideias que tinha a respeito da regeneração nacional. Ninguém te sugestiona para entrares nesta organização? Vens livre e espontaneamente, sem coacção?
 
 
Os deveres: proteger os sócios que precisassem de auxílio; obedecer às ordens dos corpos superiores; ter a força de guardar um segredo; informar a associação de tudo o que possa interessar; ser tanto ou mais dedicado à associação como à pessoa que mais estima. Conformas-te?
 
 
Quem presidia à sessão podia vestir um balandrau e pôr um capuz com orifícios na boca, nos olhos, no nariz e nas orelhas. Era assistido por bons primos, dois secretários, dois vogais, chamados pelos nomes de árvores, primo choupo, primo carvalho, primo olmo, havia um de vigia que tomava conta do local e avisava se algo nas redondezas acontecesse de suspeito.
 
 
Era proibido pertencer a qualquer outra organização política de tipo secreto, exceptuando, obviamente a maçonaria. Era proibido mencionar nomes de outros consócios, bem como as casas onde se reuniam ou os mistérios da iniciação. Era proibido transmitir as palavras de ordem. Nem aos próprios filiados era permitido referir o que se passava na organização, assim como era proibido dar-se a conhecer como carbonário até a outro membro da Carbonária.
 
 
Dedicação. Segredo. Obediência. Em que incorre o que não cumprir o perceituado? Será perseguido. E o que não obedecer? Será punido. E insistes em pertencer á organização? Pensa bem. Ainda estás a tempo de desistir. O candidato diz que sim. Tiram-lhe as algemas. Era-lhe recomendado que apagasse da memória a casa onde estava e o timbre das vozes que ouvira.
 
 
O que é que mais desejas? A consolidação da república. Qual o ideal que nos une? O ideal da Carbonária que está acima de todos os ideais. Qual é o ideal da Carbonária? O bem estar do povo. Onde trabalha a Carbonária? Em toda a parte. Que voz ressoa na floresta contra os traidores? A voz lúgubre da justiça. Porque a Carbonária está em toda a parte, faço votos para que nunca no teu espírito se acoite a ideia de nos atraiçoar. Faça-se luz. Em cima da mesa podia haver uma folha de papel atravessada por um punhal.
 
 
Podiam perguntar ao candidato se se sentia com força para verter o seu sangue pela república, ou em plena revolução, e se seria ou não capaz de recuar no caso de uma sentença de morte lhe ser incumbida, claro está que para bem da sociedade ou fazendo parte do castigo de um traidor. Está visto que o candidato já sabia ao que ia e dizia a tudo que sim, e jurava tudo, incluindo a sentença da sua própria morte, se por um desvario, uma desobediência ou uma traição a viesse a merecer.
 
 
Assim que, por este ritual, ao candidato fosse arrancada a venda dos olhos, o espectáculo para ele seria terrificante, pois sentiria encostados ao peito os bicos de vários punhais de duplo gume, apontadas para si várias pistolas e pendente sobre a cabeça um machado de lenhador. Se faltares ao teu juramento, serás morto sem remissão.
Rocha Martins opinou que o ritual podia ser grotesco, todavia muito necessário, como ele diz, como medida de precaução para ferir as imaginações.
 
 
Fala do mestre sublime Luz de Almeida, transcrita pelo Prof. António Ventura no seu livro A Carbonária em Portugal, a que devo boa parte deste texto: no lôbrego subterrâneo de uma loja de trapeiro, na Rua da Cruz dos Poiais, pertencente a um Bom Primo que era conhecido como o trapeiro de Paris, fizeram-se sensacionais iniciações de rachadores e de mestres. O candidato numa dessas iniciações era dono de uma carvoaria e fanático admirador dos panfletos de João Chagas. A iniciação foi rapidíssima e aquele Bom Primo e mestre viu-se obrigado a embarcar para a Califórnia e completar a sua choça com enfarruscados carvoeiros de verdade.
 
 
Pois algumas iniciações, como se viu, decorriam mesmo em carvoarias. Uma mesa enegrecida para o presidente. Montes de carvão pelos cantos. Uma lanterna pendente do tecto. Molhos de carqueja encostados às paredes. Um cepo nodoso com um machado enterrado. Nalguns destes casos não eram precisas máscaras nem balandraus. Bastavam as camisolas cobertas de pó de carvão, com o qual os circunstantes também enegreciam as caras ficando assim irreconhecíveis.
 
 
José Nunes, um dos nomes que mais ressaltam quando se fala de movimentos clandestinos da sazão ardente de 1907/1908, conta que dentro do cemitério dos Prazeres, um dos iniciados, torneiro no Arsenal da marinha, foi vendado e e em seguida precipitado na vala comum, ao mesmo tempo que lhe ordenavam que se desvendasse. E teve esta frase lapidar dirigindo-se aos cadáveres pelos quais trepou até ao nível do solo: ainda não é desta que vocês cá me apanham.
 
 
A um outro, conta ainda José Nunes, fizeram estar horas vendado e sentado à porta de um jazigo nos Prazeres. Como não ouvisse vivalma, aborrecido, desvendou-se, olhou em volta, e com um sangue frio admirável, sossegadamente, procurou a saída.
 
 
Machado Santos, o herói da república e um dos sumo-sacerdotes da Alta Venda carbonária – em 1921 vilmente assassinado na rua por esquadrões da morte -, deixou escrito o acto da sua própria iniciação.
Uma noite, Luz de Almeida conduz-me à Rua do Benformoso, depois de me obrigar a dar várias voltas, conseguindo eu perceber que pelo caminho trocava sinais com vários indivíduos estrategicamente postados.
 
 
Depois de me demorar uma meia hora numa casa de espera, conduz-me vendado, à sala onde se ia proceder á minha iniciação; e aí se consumou o acto, parece que a contento de todos os mascarados. Ia quase protestando à entrada, quando me chamaram pagão, não porque me sentisse em estado de graça para com a santa madre igreja católica, mas porque era tão irritante o tom da voz que estive quase para responder – pagão será você!
 
 
Feito o juramento, não se pense que os mestres e chefes aceitavam assim, sem mais nem ontem, o candidato. Teria de prestar provas várias. De dedicação,de coragem, de solidariedade e de segredo. Também não lhe confiavam os segredos mais relevantes. Era o qe faltava. Nem lhe era permitido assistir às sessões onde matéria mais delicada se tratasse.
 
 
Um certo juíz, já aqui anteriormente falado, o conhecido Veiga, chegara a dizer que só havia atentados  anarquistas em Lisboa quando João Franco estava no poder.
Porque foi com a chegada de João Franco ao poder, e sequente instauração da ditadura, que a Carbonária assumiu maior militância e se tornou uma força temível e extremamente activa de resistência, aumentando o número de iniciados por todo o país e fundando choças onde era possível. Numa choça de Évora chegou a estar planeado o rapto da família real quando estivesse em Vila Viçosa.
 
 
Mas também parece evidente que os acontecimentos revolucionários falhados, as explosões acidentais, as expectativas de revolução republicana e as prisões que foram consequência de tudo isto, alguma coisa enfraqueceram a Carbonária, pondo a polícia em estado de alerta máximo quanto a conspirações secretas. Em todo o caso, não foi, nem nada que se parecesse, suficiente para anular a operacionalidade da organização.
 
 
Nas contas da polícia, o número de carbonários activos em começos do sec XX andaria pelos 8 mil, 10 mil. Mas pelo testemunho de Luz de Almeida haveria pelos anos de 1907/1908 34.000 filiados, subindo aos 40.000 até ao limiar da república. Acho muito, mas enfim, catar documentos de uma sociedade secreta deve ser missão impossível para um historiador.
 
Fidalgos e burgueses, juntando-se ao povo, não pregavam sua liberdade económica. Iam, como José Relvas e Anselmo Braancamp Freire, guardando a integridade de suas fortunas pingues – prosa do celebrado Rocha Martins. As bombas iam-se fabricando em larga escala nos antros lisboetas da clandestinidade.
 
 
Na verdade, os anarquistas actuavam em ligação com alguns elementos monárquicos dissidentes, José de Alpoim entre eles, os quais também teriam alguma coisa a ver com republicanos mais radicais. E havia boa gente de dinheiro a financiar a fabricação e a aquisição das bombas e de outro material de guerra.
 
 
Se os maçons eram os pedreiros, ditos livres, os carbonários seriam os carvoeiros, certamente não menos livres. Viviam, pensavam e conspiravam associados, sendo embora os carvoeiros, como braço armado dos pedreiros, os mais secretos.
A ligação umbilical, pode dizer-se, entre Carbonária e Maçonaria, é fora de dúvidas. A Carbonária funcionaria como um braço executor, operacional, armado, dos superiores desígnios maçõnicos, com especial destaque para a Loja Montanha - nas palavras de Aquilino a milícia secreta da república.
 
 
A Carbonária teria a seu cargo os golpes duros, executados por militantes cujas actividades e nomes não soavam muito nos meios sociais e políticos. E acredita-se com facilidade nas fileiras carbonárias de homens com profissões liberais ou oficiais do exército e da marinha, mas o caso é que, associados às acções violentas e ao fabrico de explosivos, e por isso presos, segundo o livro do Prof. António Ventura, as profissões são banais, são humildes até, caldeireiros, ferro-velhos, carpinteiros, canalizadores, sapateiros, tanoeiros, droguistas, calceteiros, taberneiros, cortadores, um guarda-portão, um bordador…
 
 
E quanto a hierarquias militares, o mais que se encontra são sargentos. Raramente um oficial subalterno, e mais raramente ainda um oficial superior. Está bem que na Carbonaria fossem aceites homens de todas as classes sociais e profissões, mas para as acções arriscadas vê-se bem quem avançava.
 
Cada canteiro englobava cinco chamados rachadores. A choça compunha-se de quatro canteiros, e havia um mestre de choça. E cinco choças davam uma barraca; e cinco barracas constituíam ma venda, A Carbonária designada como Jovem Portugal tinha os graus de rachador, aspirante, mestre e mestre sublime. A Alta Venda, já se disse, era o estado-maior da Carbonária, composto por cinco mestres.
 
 
Os carbonários chamavam-se entre si de primos - irmãos eram os maçons. Só se conheciam entre si até ao número de cinco – mas os chefes conheciam todos. Tratavam-se por tu nas sessões. Trocavam sinais próprios e palavras de passe. Carbonário podia ser qualquer um, evidentemente que depois de proposto e iniciado. Havia um ramo militar que podia incluir de oficiais superiores a soldados rasos.
Organização secreta, iniciática, ritualista, naturalmente que primava pelas simbologias. Uma estrela de cinco pontas representava a figura de pé de um Bom Primo, pernas afastadas, braços abertos, cabeça erecta. O que significava: pronto para a luta contra as tiranias.
 
 
Claro que vem tudo do italiano, carbone, que é carvão; carbonaria que é carvoaria; e visto que foi em Itália que o movimento foi criado como maçonaria florestal.
Os primeiros lugares de reunião dos maçons florestais italianos era no meio dos bosques, nas choças dos carvoeiros – os que rachavam a lenha.
Outras simbologias revertem à tradição: as barracas, as vendas de carvão, o cepo, a lenha, a raíz, o ramo, a corda de nós,o carvão, o machado, o punhal, as cadeias de ferro, as estrelas, o sol.
 
 
         E muitos dos nomes que aparecem quando se fala de acontecimentos portugueses do final da monarquia só nos sugerem nomes de ruas de Lisboa, o almirante Reis, o Feio Terenas, o Brancaamp Freire, o Azedo Gneco, o Heliodoro Salgado.
 
 
Pois tomemos o Heliodoro Salgado. Foi um dos grandes ideólogos da Carbonária. Terá sido ele o criador da loja dos Obreiros do Futuro, por voltas de 1899. Heliodoro Salgado esteve sempre em contacto com os seus primos italianos, napolitanos, dos quais bebeu os ensinamentos organizativos, segundo os quais fundaria a sua loja. Os rituais eram copiados dos dos célebres revolucionários italianos Mazzini e Garibaldi.
 
 
Começara por não iniciar quem na sua biografia não denotasse rigorosos princípios anarquistas, só mais tarde aceitando todos os credos políticos, menos os monárquicos
 
 
Com disposições revolucionários mais objectivas, a Carbonária (agora chamada Carbonária Portuguesa, e síntese de outras organizações cabonárias pré-existentes) recebe novos alentos nos fins do sec. XIX,  por influência de Luz de Almeida.
Luz de Almeida, o grande animador da ideia carbonária era venerável da loja Montanha do Grande Oriente Lusitano Unido; era bibliotecário; era magro, baixo e pálido; era metido consigo e songamonga; vestia sempre de preto e usava uma lavalliére. Morreu em 1939.
 
 
Pelos anos de 1907/1908, a Carbonária vai ter um papel absolutamente decisivo no desenvolver da sazão ardente do fim da monarquia, até à chegada da república. Cãndido dos Reis (o almirante Reis da avenida), Machado Santos e António Maria da Silva virão a ser alguns dos seus chefes supremos.
No dia 6 de Agosto de 1907, ás 9 da manhã, no nº 17 da Rua de Sto. António à Estrela dá-se uma violenta explosão.
 
 
Fora um acidente. Os homens que fabricavam bombas teriam errado nalguma coisa e as bombas rebentaram-lhes nas mãos. Um estava maneta; outro estava com as tripas de fora; outro estava zarolho; outro ficava com o peito rebentado. Todavia, vivos. Em estado lastimoso, mas vivos. Um ainda fugiu e foi preso. O rei estava a águas. Atribuía o desastre aos anarquistas cujos atentados estavam então muito em moda na Europa.
 
 
Estreitamente implicada dos rebentamentos estava a Loja Obreiros do Futuro, onde a maioria dos congregados eram operários. Avisados da explosão,alguns primos dessa loja – os mais famosos a dar pelos nomes de António Alcochetano e Carlos Antunes – correram de madrugada à sede e fizeram desaparecer material explosivo que chegava para carregar 1.500 bombas. Mas não tardaria muito que pelas prisões feitas e pela fuga de alguns membros, a loja Obreiros do Futuro desaparecesse do mapa da insurreição lisboeta.
 
 
E foi com o restante pessoal clandestino dos Obreiros do Futuro que se congregou a chamada Carbonária Portuguesa, organizada por Luz de Almeida.
 
 
Mas o povo das províncias aclamava el-rei por onde quer que ele andasse. El-rei não dava mostras de temer pela vida, não obstante o exemplo que tinha na família: Umberto I de Itália, seu tio, morto num atentado sete anos antes. Os rebentamentos da Estrela eram considerados pelo rei obra de marginais e sem relevãncia para o curso da política.
Meu querido João, quanto aos anarquistas, não me admira que neste momento alguns apareçam, mas é para isso que cá estamos e por certo nem a ti nem a mim será o medo que nos fará mudar de caminho.  
 
 
E não mudaram mesmo de caminho. Ao entrar o ano de 1908, dá-se a frustrada revolução do 28 de Janeiro em que os principais cabecilhas são ridiculamente apanhados por um polícia de giro num elevador. Os Náufragos do Elevador, chamei-lhes eu.

 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018


                           POR 19 CONTOS DE REIS


No mundo, digamos que é em 1906 que Staline entra para o Comité Central do Partido Bolchevique.
 
 
Que Cézanne morre.
 
 
E que nasce  Humberto Delgado.
 
 
Digamos que é em 1907 que Pavlov estuda os reflexos condicionados.
 
 
 E que Picasso pinta as Démoiselles d’ Avignon.
 
 
Evidentemente: em 1907, aos republicanos competia empolar qualquer coisinha que pudesse ferir de morte a monarquia. Mas não só os republicanos. Também os dissidentes da mesma monarquia,os Alpoins, os Ribeira Brava e respectivos apoiantes. E uma das mais candentes controvérsias eram os adiantamentos à casa real. Os monárquicos situacionistas arguiam que os opositores esgrimiam essa questão à falta de outros argumentos mais substanciais, de outras razões de queixa e de outros meios de combate à monarquia.
 
                       
                                                                                                  
 
         Os jornais haviam pegado no caso e cada um em seu tom fustigava a ditadura de João Franco a propósito do decreto dos adantamentos. Ao ponto de os que defendiam o governo ditatorial se sentirem desacatados com esse decreto. Mas não nos adiantemos aos adiantamentos. Vejamos a questão um pouco mais de perto.
 
Porque o governo, quer-se dizer, o Estado, também era devedor da Casa Real. Devedor de alguns rendimentos de propriedades que pertenciam à família Bragança. E também nos adiantamentos do Estado à família real se incluíam verbas para despesas de representação em caso de visitas oficiais a Portiugal de soberanos ou presidentes estrangeiros, despesas essas a cargo do governo e não da Casa Real. Ora destrinçar esas verbas no deve e no haver dava, ao que dizem, uma baralhada levada dos diabos.
 
 
Uma das decisões de João Franco enquanto chefe do governo é anunciar no parlamento que o problema dos adiantamentos à Casa Real ia, por iniciativa dele, ser finalmente deslindado. O rei desaconselhava. E os republicanos agarraram a deixa e fizeram dela cavalo de batalha propagandístico.
Meu querido João, estamos perante uma fogueira que desejamos apagar, e não se apaga fogo deitando-lhe lenha. Há um mês achava relativamente fácil pôr a questão, mesmo em ditadura. Agora os factos mudaram. Houve repressões violentas, embora justificadas. Tivemos de suspender jornais. Se agora viessemos lançar a público a questão dos adiantamentos haveria quem malsinasse esse facto e, com as facilidades de desvairamento da opinião pública, seria campo fácil de explorar contra o governo.
 
                                                                                                
 
Porque razão João Franco se fora lembrar de um assunto que estava em águas de bacalhau e que o momento político desaconselhava de todo trazer à liça?
Os grandes partidos, Regenerador e Progressista, haviam sido os autores desses adiantamentos, deixando relaxar o caso do acerto das contas, e João Franco pretenderia assim mostrar serviço e desassombro ao tratar um assunto proibido. O problema era ter sido o próprio o João Franco, enquanto ministro das Finanças, em 1890, a fazer o primeiro adiantamento à Casa Real do tempo de D. Carlos.
 
                                                                              
 
        Reagem os republicanos no parlamento pela voz do famoso Afonso Costa. Assim: o povo ordena que apenas esteja tudo pago, o sr. presidente do conselho diga ao rei o seguinte: “senhor, faça o favor de sair do país para não vir a ser preso em nome da lei. Foi um escândalo. O escândalo que o próprio Afonso Costa queria provocar, arrebatando a assembleia, há quem diga que para se evidenciar perante um prestigiadíssimo rival do seu campo político chamado António José de Almeida.
 
                                                                                                       
 
Rebenta o tumulto no areópago e nas galerias. Chamado à ordem pelo presidente do parlamento, Afonso Costa não se cala, ainda não tinha despejado todo o seu saco.
 
 
Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos, rolou no cadafalso a cabeça de Luis XVI – vociferava de novo Afonso Costa, aumentando o despropósito.
Ou o senhor Afonso Costa retira o que disse ou terei de lhe aplicar o regimento – disse o presidente. Mas Afonso Costa recalcitrava… por muito menos rolou no cadafalso a cabeça de Luis XVI.
Evacuadas as galerias e as tribunas. A sessão era suspensa. Afonso Costa recusava-se a abandonar a sala.
 
 
Entraram em cena soldados de Caçadores 5 com baioneta calada. Afonso Costa grita-lhes: soldados! Não tendes o direito de tocar num representante do povo! António José de Almeida salta para cima da bancada e grita por seu turno: Soldados! Com as vossas baionetas e com a minha voz, vamos proclamar a república e fazer uma nova pátria.
Até que por fim lá conseguiram os soldados arrastar Afonso Costa para fora do hemiciclo.
 
 
Inaugurava-se o regime da fatal ditadura de João Franco. Estranhamente, a 30 de Agosto, parlamento dissolvido, João Franco faz promulgar um decreto que declara solucionada a questão dos adiantamentos à Casa Real através de um encontro de contas.
João Franco e o rei acabariam por chegar a um acordo quanto a tão explosiva matéria, apesar das cartas antes trocadas.
 
 
Mais tarde, João Franco escreverá as suas memórias, alegando nelas que agira sempre ás ordens de el-rei. Mas como explicar que el-rei tenha mudado tão depressa de opinião quanto ao delicadíssimo caso dos adiantamentos? Quem manipulou quem? E porquê? E com que fundamentação?
 
 
O rei concede uma entrevista ao jornal parisiense Le Temps. Tudo estava calmo em Lisboa e no resto do país. Só os políticos se agitavam. Discute-se muito – diz o rei. Faz-se muito barulho. É como no parlamento. Na última sessão legislativa a situação tornou-se impossível. Era preciso acabar com aquilo. Foi então que dei a João Franco os meios para governar. Fala-se da ditadura de João Franco? Mas os outros partidos, os que mais gritam, também me pediram a ditadura.
 
                                                                                   
 
Para conceder uma ditadura, D. Carlos exigia firmeza. E encontrara em João Franco o homem ideal. Um homem que tinha fé em si próprio e na sua estrela. O rei e ele estavam em tudo de acordo. O rei estava satisfeito com o seu homem. As coisas estavam a correr bem, entendia o rei. E estavam para durar. No interesse do país.
Teremos eleições no momento oportuno, mas sem obediência às intimações que nos dirigem. Teremos seguramente a maioria. Restabeleceremos o equilíbrio orçamental e extinguiremos o déficit – palavras do rei D. Carlos em 1907.
Surgiriam depois as críticas à entrevista do rei. Que o rei fizera de João Franco a primeira figura da vida política. Que dissera ao jornal francês tudo o que a João Franco interessava que ele dissesse. Seria D. Carlos, apesar das bravatas e da coragem física, um fraco? A verdade é que para os mais insignificantes passos a dar, até na vida mais privada, ir para Sintra, ir fazer ginástica, o rei escrevia a João Franco a perguntar se ele não via inconveniente nisso. Ou estaria tecida em torno do rei uma teia sinistra de interesses tal que ele, ainda que o querendo, nunca mais se poderia ver livre de João Franco?
 
                                                                                           

                    
                                                                                           
 
Dizia-se que o caso dos levantamentos não era uma questão ética ou de moralidade pública, régia, institucional. Que era apenas um problema rasteiro, de dinheiros e nada mais. O decreto governamental pretenderia regularizar uma dívida da casa real ao Estado de forma a que, na voz de Brito Camacho, o devedor pagasse sem dispender um vintém e o credor se considerasse pago sem receber um real.
 
 
Era indiscutívelmente uma questão material, de dinheiro, mas para muitos opinadores era, no fundo, uma questão de moral. Questão de moral em si mesma, independentemente das importâncias envolvidas. E era uma questão profunda de moral que o governo tinha decidido solucionar por simples decreto.
 
 
Denunciavam-se factos comprometedores. Os depósitos vultosos que o real senhor regularmente faria em bancos ingleses – dinheiro que recebia do erário público.
Chasqueava-se com a “miséria” da família real que gastava ao Tesouro mil contos de reis por ano.
 
 
Dizia-se que o rei comprava prédios em Lisboa e quintas na outra banda; que mandava vir de Londres quadros caríssimos para enriquecer a sua colecção; que comprava automóveis por grosso. E isto a despeito das queixas de andar sempre a tinir.
 
                                                                                             
 
 Conhecida a letra do decreto sobre os adiantamentos (também chamados de lista civil), a imprensa agitou-se. Brito Camacho, no seu jornal A Luta, escrevia: o soberano não possuía nada, além da casa de Bragança. Tudo o resto lhe era concedido para seu uso. Desde que não o utilizava, não devia alugar, porque isso constituía elemento da lista civil, pois recebia o seu ordenado e ainda as rendas que a nação lhe emprestava e que em vez de reverterem em proveito dela entravam nos réditos régios.
Mas o Supremo Tribunal estipulara que a função legislativa poderia ser exercida pelo governo e a ninguém caberia o direito de considerar esse procedimento como inconstitucional ou abusivo. Nesse estado das coisas, ao próprio governo podia dar na veneta e decretar que os bens da Coroa já não eram pertença da nação e seriam incorporáveis à fortuna particular do rei, sobre a qual fortuna era aplicável o direito comum.
Eram assacadas às leis que tinham autorizado uma venda de diamantes e a conversão das verbas resultantes em acções na Junta de Crédito Público a origem das dificuldades financeiras da família real. Foram autorizados empréstimos sobre os papeis do Crédito Público e fora autorizada a venda desses papeis, como diz Rocha Martins, para manter o real decoro. E tudo isso porque a vida mudara muito e estava pela hora da morte. Estou a falar de 1907.
 
                                                                                  
 
Havia em jogo montantes na ordem dos 600 contos de reis. Falava-se de expedientes financeiros que será maçudo esmiuçar aqui. Falava-se de adiantamentos a descoberto autorizados pelo governo. Falava-se de lautas dívidas a privados e a estabelecimentos particulares, e também na ordem das centenas de contos de reis – que em 1907 devia ser dinheiro graúdo.
 
 
Depois havia que atender às despesas de representação dos soberanos. Havia, só como exemplo, a compra do iate real, que importara em 306 contos de reis e que fora incorporado na real marinha, apesar de estar em exclusivo ao serviço do rei. Mas também havia os donativos feitos pela família real ao Tesouro, 400 contos para aqui, 600 contos para ali, 200 contos a débito por isto, 300 contos a crédito por aquilo, e o ministro da Fazenda suara as estopinhas para equilibrar o deve/haver de el-rei e respectiva família. Para a Fazenda Pública eram transferidas as despesas de representação e o custo da manutenção dos palácios, tal como acontecia na França republicana.
 
 
O decreto de João Franco acabaria de uma penada com as dívidas da família real ao erário. Em boa verdade, tornava-se suspeito. Parecia tráfico de favores, tu deixas-me governar a meu bel prazer e eu dou por liquidadas as tuas dívidas ao Estado, aproveitando a falta de fiscalização parlamentar. Podia não ser cambalacho. Mas parecia. Parecia muito. 
Remanescia o caso bicudo dos dois prédios secretamente adquiridos pelo rei ali para a Calçada das Necessidades. Dois prédios para o manhoso, sem graça nenhuma, sem nobreza – pelo que vi em fotografia. É ainda o jornalista Brito Camacho que escreverá n’A Luta a peça mais sonante a respeito.
 
 
Pois foi. Em 1901, o rei comprara em segredo dois prédios, a pouca distância do Museu Oceanográfico, onde passava boas horas da noite dedicado à sua paixão pelo mar e por tudo o que ao mar respeitasse. Ora num desses prédios habitava certa senhora com quem o rei, pronto, mantinha um confidencial affaire. Tinham-se conhecido na Quinta da Terragem, ali a Paço d’Arcos. Era uma mulher muito bonita e muito amiga de S.Majestade. E nem no paço se sabia deste capricho de el-rei.
 
 
À noite, el-rei terminava os seus trabalhos no Museu Oceanográfico, atravessava discretíssimamente uma rua, entrava no prédio, lá fazia o que tinha a fazer, e, madrugada dentro, voltava ao palácio, descalçando os sapatos para não acordar a criadagem. Dormia as suas quatro horas. E logo de manhã era o primeiro a aparecer no jardim a fumar, em jejum, o primeiro charuto do dia.
A compra dos prédios por parte do rei era tão sigilosa que ele nem mandatou algum administrador da Casa de Bragança para lhe concluir o negócio. Quem ele mandatou foi o então famoso juíz Veiga, do Tribunal Criminal.
 
 
Escreveu Brito Camacho: como se explica que para o negócio banalíssimo da compra de dois prédios o rei encarregasse disso, pasando-lhe procuração bastante,o juíz de instrução criminal? Compreendia-se que o rei comprasse dois prédios urbanos se fosse conveniente adquiri-los para os anexar a outros que tivesse na vizinhança. Mas tal não era o caso.
Sim, e se o rei tivesse necessidade dos prédios por indispensáveis àquilo que era oficialmente designado por decência e recreio da casa real, pois então teria pedido ao governo uma proposta de aquisição às Cortes, tudo conforme ao articulado constitucional. O governo comprava-os e o rei poderia dá-los de arrendamento, aumentando assim as receitas próprias – embora ficasse somente como usufrutuário desses bens e não como proprietário. Mas não. O rei encarregou o juíz de lhe comprar os prédios como se de uma diligência policial se tratasse. E ainda por mais bizarria, a contribuição do registo fora paga pelos que lhe tinham vendido os prédios. E vendido, de resto, por valores irrisórios: 19 contos de reis. Mas, como digo, era a questão moral que se avantajava.
 
 
Escreve Brito Camacho: não sendo presumível que S. Majestade adquirisse aqueles prédios para ali se montar um colégio, um hotel, um animatógrafo ou uma garagem, e sendo eles demasiadamente modestos para a sua alta dignidade, forçoso é crer que os adquiriu por necessidade da sua dupla paixão de oceanógrafo e ornitologista.
E com uma ironia resvalante do fino para o grosseiro, do crítico para o insultuoso, e sabedor do que o rei procurava num daqueles prédios. Brito Camacho remata: num desses prédios, ao que consta, S. Majestade instalará o seu museu oceanográfico, que fez boa figura em Marselha e em Milão. No outro instalará um aviário, onde principalmente cultivará… pêgas.
 
                                                                          
 
Escandaloso, inconveniente, mas de uma prosa inatacável e sem dar margem  aos beleguins do governo para lhe fecharem o jornal – como era costume João Franco ordenar assim que um jornal abusava das frases insultuosas para o governo, para as instituições, ou para a sua própria figura de ditador.
O caso é que João Franco também estava na ignorância quanto àquele caso dos prédios e ficou muito abalado, mesmo fulo, quando leu o artigo de Brito Camacho. Quando ele julgava que o seu decreto acabaria com as polémicas acerca da lista civil aparece-lhe aquele embrechado a estragar-lhe os planos e a fornecer belas munições a republicanos e dissidentes. E por uma ninharia de 19 contos de reis. Não falando da questão de moral,é claro.
         Por uma questão de moral que valia 19 contos de reis, na opinião pública crescia a indisposição contra a monarquia e contra as manigâncias políticas. Ateava-se mais o fogo da sazão ardente.
 
 
      Em 1908 o imperador austríaco Francisco José anexa a Bósnia-Herzegovina.
 
                                                                                              
 
       É criado nesse ano o Congo Belga, e abre-se a primeira linha de montagem de automóveis do mundo para a produção do Ford T.
 
 
      Ao entrar o ano de 1908 a inquietação apoderara-se dos espíritos portugueses. Pelas ruas de Lisboa a boataria circulava à rédea solta. Vem aí uma revolução. Vão matar o João Franco. Vão matar o rei. Agitadores continuavam a ser presos. Muitos jornais eram fechados. Os ânimos exaltavam-se por tudo e por nada.
 
 
     Os ataques à família real e à situação usavam todos os meios, incluindo formas literárias. Saíra um romance intitulado O Marquês da Bacalhoa, e subtitulado Escândalos da Corte do Rei D. Carlos. Era uma prosa para o sórdido em que os marqueses da Bacalhoa eram D. Carlos e D. Amélia (proprietários, aliás, da quinta do mesmo nome) e em que D. Amélia levava roda de lésbica. Era um livro paradoxalmente proibido mas que se continuava a vender livremente e em grande.
 
 
     D. Carlos tinha todo o espectro político contra si: os monárquicos (regeneradores e progressistas), os republicanos (naturalmente) e os anarquistas. Não falando das organizações clandestinas e sociedades secretas, que muitas nesse tempo  havia por cá. E, ora bem, tendo toda a gente contra si, em quem é que D. Carlos havia de ir buscar arrimo? Em João Franco.
      Enquanto João Franco fazia declarações a outro jornal francês Le Matin: esta batalha não me é pessoalmente desagradável. Quanto mais valiosos forem os adversários mais brilhante será o meu triunfo. 
 
                                                                                  
 
      João Franco diz ter a opinião pública por si. Mas no pensar do monárquico progressista António Cabral, a opinião pública portuguesa alimentava-se dos dizeres dos jornais partidários e a eles vivia enfeudada e sem raciocinar, sem reflectir no que lhe diziam aqueles que tantas vezes a tinham enganado, corrompido, pervertido. Estou a falar de 1907.
     Conta Rocha Martins que a época era de rancores fundos. Os políticos e os jornalistas exorbitavam, e todavia o país mantinha-se apático, dir-se-ia, apesar do charivari que os políticos faziam.
      À opinião pública daqueles dias não passava pela cabeça matar o seu rei. Talvez nem fazer uma revolução. Quem o pensava e o queria fazer era a classe política, sem dúvida nenhuma, dizendo embora que o faria em prol do bem comum – mentira, claro. Em que medida substancial a vida do povo miúdo melhorou com a morte do rei e com a implantação da república?
 
 
      A opinião pública dos nossos dias até já nem sabe que opinião ser, que opinião ter. Nem lhe passa pela cabeça matar ninguém. Já não há rei. Mas há múltiplos reizinhos. A ditadura não é de um homem, pode ser de uma maioria, e não será menos ditadura por isso – embora encapotada e moralmente legitimada. E nem sei se a imoralidade relacionada com verbas será menor nesta república do que naquela monarquia. Mas tudo continua a ser supostamente feito, ou não feito, em nosso nome, em nome da nossa pública opinião. Que não pode ser outra senão a opinião que nos é injectada pelos homens de partido que escrevem nos jornais e nos falam na televisão, e cada um deles com os seus interesses pesoais ou de grupo para defender.
 
 
      Na sombra e no (relativo) segredo dos primeiros dias de 1908 trabalhavam entretanto os carvoeiros. Quem eram de facto estes carvoeiros e como exerciam o contra-poder e o quão ameaçadores se tornavam para o status quo nacional?