quinta-feira, 16 de julho de 2020


                  PIERRE AUGUSTE RENOIR,

                 ESSE MESMO, O BARÍTONO

 




        O Baile do Moulin de la Galette, O Almoço dos Remadores, As Banhistas, esse, artista total, o que dava de conselho ao filho deixar-se ir na vida como uma rolha a vogar na corrente da vida, uma guinada para a esquerda, outra para a direita, sim, mas sempre sem perder a noção da corrente principal.

        É a corrente da vida de Pierre Auguste Renoir, aos vinte anos, e consabida que era a vocação dele para a pintura, que o começa a levar para a música.

        A descoberta da música e do canto em criança poderia ter lançado a rolha-Renoir numa corrente de vida bem diferente da que faria dele um imortal. Cantava muito bem na escola. Cantava muito bem na igreja de Saint Eustache, no coro e a solo. Era bom no solfejo e quando mudou a voz descobria-se nele um timbre de barítono brilhante – ou um baryton-martin na classificação francesa.



        E houve quem o tenha estimulado fortemente e encaminhado para uma carreira musical. O mestre de capela de Saint Eustache. Que não era um qualquer. Que se chamava Charles Gounod e que tomou o jovem Pierre Auguste como discípulo dileto, que lhe deu lições particulares, que lhe ensinou mesmo, além do canto, alguns rudimentos de composição.



        Quando solista na igreja preferia esconder-se e cantar atrás do órgão por ter horror à exibição pessoal – um ponto que deve ter sido determinante na guinada que a rolha lançada na corrente da vida musical viria a dar noutro sentido; ou quando essa corrente musical viesse a dar lugar a outra.

        Gounod oferecia ao jovem Renoir e à família bilhetes para a Òpera – que ainda não era o Palais Garnier que é hoje; que devia ser o Théatre des Italiens – hoje Opera-Comique, ou Salle Favart. E Renoir e família assistiram pela primeira vez a uma ópera, a Lucia di Lamermoor. Maravilhados. Maravilhados excepto a irmã pragmática de Pierre Auguste, Lisa, que no fim sentenciou que nada daquilo que vira na Òpera era verdade, porque na vida as pessoas não cantavam, apenas falavam.



        Pierre Auguste amava o teatro, amava a música, mas deu em pensar no que a irmã tinha dito. E hesitava.

        Sabedor da hesitação do seu aluno favorito, Gounod manda o padre da igreja como embaixador a casa dos Renoir. Propunha ministrar àquele seu aluno uma preparação musical completa. E sim, era tudo muito bonito, mas Pierre Auguste precisava urgentemente de ganhar a vida. Ora, isso arranjava-se. Gounod conseguiria com toda a facilidade que o seu discípulo ingressasse nos coros da Ópera. E não tinha a mais pequena dúvida de que Pierre Auguste viria a ser um grande cantor.

        A proposta deu que pensar. Mas com um senão. E um senão de monta para Pierre Auguste: ópera implicava teatro; teatro implicava palco; palco implicava expressão e exibição pessoal. Horror!



        Claro que não. Aquilo não era para um tímido do calibre de Pierre Auguste. E ponderava nas mais que prováveis forças destruidoras escondidas por detrás de uma profissão exposta ao público. Como era? Acaso viesse a ser um grande cantor lírico, um barítono (e por decorrência um actor), lá teria que, a certa altura da corrente, noite após noite, perante centenas de olhos, deixar de ser ele próprio para ser por umas horas um Dom João, um Fígaro?

        A proposta de Gounod era tentadora, era sim senhor, apesar dos contras que nela antevia. Mas não era a única proposta de vida, não era a única escapatória que a corrente oferecia àquela rolha. Se fosse a única, Renoir, apoiado pelos pais, teria embarcado, ter-se-ia deixado ir. Talvez. Mas aquela proposta de ganho de vida confrontava-se com a de um tal Monsieur Lévy, que tinha uma oficina de porcelanas e estava disposto a recebê-lo como aprendiz.

Porcelana para Pierre Auguste queria dizer Limoges. E Limoges era de onde a família do pai era oriunda. Uma guinada, e a rolha a deixar-se levar por outro braço da corrente, a pintura em porcelana.

        Gounod sabe disso, e quando, emocionado, Renoir se vai despedir dele acena-lhe com uma última tentação: “você sabe que o tenor que você ouviu no outro dia cantar a Lucia ganha dez mil francos por ano?” E cá estava outra coisa a favor da rolha na corrente: Renoir pouco ou nada ligava ao dinheiro.



        E lá vai ele para as pinturas em porcelana. Mas bom barítono haveria ele de ser toda a vida. Um tipo e uma cor específica de voz nasce e morre com a pessoa.

E quando se é um artista da estatura de Renoir é-se artista em tudo o que se faça na vida. Como ele dizia – já depois de velho. “O filho de um rei depois de raptado pelos ciganos roubará galinhas como os outros ciganos, mas talvez haja algum toque de majestade no modo como ele roubará as galinhas.” Ou como em tempos ouvi a um capitão de Artilharia a propósito de quem poderia ter mais habilidade para isto do que para aquilo: quando um homem é mesmo bom, é bom em tudo, nem que seja a vender chuchas.

E lá ia a rolha na corrente das pinturas em porcelana.

Não era muito mais do que imitações de Limoges e de Sévres, jarras embelezadas, pratos engrinaldados, pastores e pastoras Luís XV. Depois vieram os retratos históricos. Diz ele que não era nada de extraordinário mas que era honesto.

Pratos de sobremesa pagos a dois soldos cada, ou a três soldos se fosse o perfil de Maria Antonieta. Renoir pintou marias antonietas às centenas. Ganhava dinheiro, bom dinheiro. Um miúdo a ganhar tanto não era muito conveniente pelos critérios do patrão. Falou em contratá-lo ao ano, 120 soldos por mês. Enfim, a rolha a navegar.

Nisto, chegaram as máquinas. Que produziam marias antonietas mais depressa do que as mãos, já de si rápidas, de Renoir, e todas iguais, absolutamente iguais. Sentia-se derrotado pelo chamava, cinquenta anos passados, de amor pela monotonia que dominava os homens daquele tempo.

Onde é que a rolha o iria levar? A chefe de fila da revolução impressionista, não?



A música é que nunca o abandonou. Cantava. Trauteava Mozart. Cantarolava ao pintar. Sempre, até à velhice – um barítono será sempre um barítono. Era admirador e amigo de casa de Offenbach. Chabrier ia lá jantar e tocava ao serão no piano de Aline (mulher de Renoir), que quase partiu uma noite ao tocar España. E se gostava de Bach era porque a música dele nada tinha de intelectual, não era sentimental, não contava uma história, era pura, pura como a pintura que ele queria fazer.

Quando morava na Rua Saint-George fez amizade com um juiz de instrução, ao qual se meteu em cabeça introduzi-lo ao gosto por Wagner. E conseguiu. E Renoir ficou um militante wagneriano, ele, um homem calmo e ponderado, que segundo constou teria chegado a esgrimir insultos e bengaladas em defesa do Wagner. “Faz bem uma pessoa apaixonar-se de quando em quando por uma coisa diferente.”

E vai daí, o tal juiz de instrução apresenta Renoir a Wagner. Nem menos. O retrato. Nada de especial, na minha profana opinião a respeito de pintura.

Três quartos de hora de pose. Só. Wagner não concedia mais, era um génio desagradável, célebre e atarefado. Engraçadas deviam ter sido as conversas deles durante esses três quartos de hora. “Tinha opiniões que me punham os cabelos em pé” – comentário de Renoir depois da sessão. “Vocês, franceses, só gostam de música de judeus alemães” – acusa Wagner durante a sessão. “Adoro Offenbach” – contrapõe Renoir. (Wagner começava a enervá-lo.) “Não é má música” – acede Wagner. E acrescenta: – “Se não fosse judeu, Offenbach seria um Mozart”. “Também sou dessa opinião” – obtempera Renoir. “Quando eu digo judeus alemães estou a referir-me ao vosso Meyerbeer” – esclarece Wagner.



Renoir passaria a fazer parte do selecto grupo da intelectualidade europeia que tinha lugar reservado nos festivais de Bayreuth. Diria ele depois de assistir a uma representação da Valquíria que não havia direito de encerrar as pessoas no escuro por quatro horas, era um abuso de confiança. Roía as unhas de impaciência. Também não havia direito de esmagar as pessoas àquele ponto. Só tinha vontade de gritar: basta de génio!

Pois era, Renoir por vezes considerava-se um homem do século XVIII. E como se sabe, boa parte da revolução wagneriana tinha que ver com a obscuridade da sala enquanto decorria a função, o que hoje para nós é coisa comum, adquirida, mas que ao tempo era uma revolução, uma violência mesmo. Renoir, avesso a uma data de modernices, não se conformava. “É-se obrigado a olhar para um único ponto luminoso, o palco, uma tirania!” Não havia meio de se poder olhar para uma linda mulher que estivesse num camarote, que absurdo!

Às vezes apetecia-lhe descer a ladeira de Montmartre e ir fumar um cigarro a casa de Offenbach. Ao fim das tardes, que era quando a casa do compositor começava a dar sinais de vida. Offenbach comia qualquer coisa a correr e saía todas as noites para o teatro onde se representasse uma peça dele.

Fala o filho de Renoir, o mais famoso, Jean: “estava eu ao piano a tentar decifrar uma peça de Mozart quando o meu pai me interrompeu e me perguntou de quem era aquela música. De Mozart, pai”. Renoir suspirou de alívio. “Ah, com tanto sentimento que lhe estás a pôr, por momentos pareceu-me que era qualquer coisa do palerma do Beethoven.”



Renoir era um feroz adversário dos românticos, fosse em que arte fosse. Para ele, Beethoven expunha-se demasiadamente. “Indecentemente, diria mais. Não nos poupa às suas penas de amor, às suas digestões difíceis. Só me dá vontade de lhe dizer ‘que me importa que você seja surdo’!” Mozart não. Mozart tinha o pudor de ocultar as preocupações da vida. “Mozart quer divertir-me ou enternecer-me com notas que ele acha que não me falam dele. E no entanto, nessas notas fala-me mais dele do que o Beethoven com tantos suspiros ruidosos”.

 O romantismo, o romantismo! Confissões, lágrimas, agonias. Só exercícios de cabotinismo. Pensava ele que o artista que pretendesse desvelar-se por completo junto do público acabaria por não revelar mais do que uma personagem convencional, que nem sequer era ele mesmo.

Certa tarde, numa sessão de pose, o modelo era a dama e grande mecenas das artes da época, Misia Sert. Paris enlouquecia com os Ballets Russes e a dama Misia Sert, que financiava Diaghilev, falava entusiasticamente de Stravinski – “ele está para a música como o mestre está para a pintura”.

Nessa noite estreava-se no Teatro Châtelet a Petrouchka e a dama e o marido, um certo Edwards podre de rico, que tinham ficado para jantar em casa dos Renoir, lembraram-se de levar toda a família Renoir nessa noite ao Châtelet.



Alvoroço. Renoir estava em plena crise de reumatismo, mal podia andar, e não pareceu muito para aí virado. Insistências. Por outro lado, aquele tão gabado Stravinski começava a interessá-lo. A rolha a deixar-se ir na corrente que passava no momento.

Outro problema: as roupas. Aline, a mulher, lá arranjou um vestido que se prestava mais ou menos à ocasião. Gabrielle, empregada e prima dos Renoir, e modelo de tantos retratos, foi ao guarda-roupa do atelier e lá descobriu um vestido fora de moda mas que divertiu imenso o casal de mecenas. Jean, o filho, ia com a farda do colégio…

O caso mais intrincado era o do próprio Renoir, que ainda estava com a roupa de trabalho (jaqueta pintalgada, laço às pintinhas azuis, boné na cabeça por causa dos resfriamentos) e não estava com muita vontade de mudar. Veste-se-lhe o fato preto, aventavam as mulheres da casa. Não. Dava muito trabalho, pedia muito esforço. Misia Sert põe ponto final na questão: vai como está e acabou-se. Vai como está? Ao Châtelet? Assim…



Chegaram ao teatro. Renoir olha para escadaria esplêndida que tinha para trepar e quer desistir. Nunca, diz o marido de Misia Sert, o tal Edwards. E não faz mais nada, pega em Renoir ao colo e sobe com ele solenemente as escadas luxuosas, ante a estupefacção da mais fina flor do tout Paris. Ia ali, ao colo, o grande Renoir, mas a maior parte dos socialites nem sabia quem era aquele velhote decrépito – “nem que fosse Tiziano em pessoa eles saberiam quem era”, ajuntava Misia Sert.

E ao que eu também acho pilhas de piada é ao comentário de Gabrielle à forma como o patrão ia vestido, um desconsolo para aqueles da assistência que sabiam que aquele velhote era Renoir. Vir ao Châtelet numa noite de grande gala de jaqueta com nódoas de tinta e um boné de ciclista na cabeça… que iria aquela gente pensar dos Renoir…



Renoir ficou encantado. Viveu uma grande noite. Viu dançar o grande Nijinski, viu o grande Nijinski atravessar o palco como um pássaro. Não, melhor, como uma pantera.