PIERRE
AUGUSTE RENOIR,
ESSE MESMO, O BARÍTONO
O Baile do Moulin de la Galette, O Almoço
dos Remadores, As Banhistas, esse, artista total, o que dava de
conselho ao filho deixar-se ir na vida como uma rolha a vogar na corrente da
vida, uma guinada para a esquerda, outra para a direita, sim, mas sempre sem
perder a noção da corrente principal.
É
a corrente da vida de Pierre Auguste Renoir, aos vinte anos, e consabida que
era a vocação dele para a pintura, que o começa a levar para a música.
A
descoberta da música e do canto em criança poderia ter lançado a rolha-Renoir
numa corrente de vida bem diferente da que faria dele um imortal. Cantava muito
bem na escola. Cantava muito bem na igreja de Saint Eustache, no coro e a solo.
Era bom no solfejo e quando mudou a voz descobria-se nele um timbre de barítono
brilhante – ou um baryton-martin na
classificação francesa.
E
houve quem o tenha estimulado fortemente e encaminhado para uma carreira
musical. O mestre de capela de Saint Eustache. Que não era um qualquer. Que se
chamava Charles Gounod e que tomou o jovem Pierre Auguste como discípulo
dileto, que lhe deu lições particulares, que lhe ensinou mesmo, além do canto,
alguns rudimentos de composição.
Quando
solista na igreja preferia esconder-se e cantar atrás do órgão por ter horror à exibição
pessoal – um ponto que deve ter sido determinante na guinada que a rolha
lançada na corrente da vida musical viria a dar noutro sentido; ou quando essa
corrente musical viesse a dar lugar a outra.
Gounod
oferecia ao jovem Renoir e à família bilhetes para a Òpera – que ainda não era
o Palais Garnier que é hoje; que devia ser o Théatre des Italiens – hoje
Opera-Comique, ou Salle Favart. E Renoir e família assistiram pela primeira vez
a uma ópera, a Lucia di Lamermoor.
Maravilhados. Maravilhados excepto a irmã pragmática de Pierre Auguste, Lisa,
que no fim sentenciou que nada daquilo que vira na Òpera era verdade, porque na
vida as pessoas não cantavam, apenas falavam.
Pierre
Auguste amava o teatro, amava a música, mas deu em pensar no que a irmã tinha
dito. E hesitava.
Sabedor
da hesitação do seu aluno favorito, Gounod manda o padre da igreja como
embaixador a casa dos Renoir. Propunha ministrar àquele seu aluno uma
preparação musical completa. E sim, era tudo muito bonito, mas Pierre Auguste
precisava urgentemente de ganhar a vida. Ora, isso arranjava-se. Gounod
conseguiria com toda a facilidade que o seu discípulo ingressasse nos coros da
Ópera. E não tinha a mais pequena dúvida de que Pierre Auguste viria a ser um
grande cantor.
A
proposta deu que pensar. Mas com um senão. E um senão de monta para Pierre
Auguste: ópera implicava teatro; teatro implicava palco; palco implicava
expressão e exibição pessoal. Horror!
Claro
que não. Aquilo não era para um tímido do calibre de Pierre Auguste. E
ponderava nas mais que prováveis forças destruidoras escondidas por detrás de
uma profissão exposta ao público. Como era? Acaso viesse a ser um grande cantor
lírico, um barítono (e por decorrência um actor), lá teria que, a certa altura
da corrente, noite após noite, perante centenas de olhos, deixar de ser ele
próprio para ser por umas horas um Dom João, um Fígaro?
A
proposta de Gounod era tentadora, era sim senhor, apesar dos contras que nela
antevia. Mas não era a única proposta de vida, não era a única escapatória que
a corrente oferecia àquela rolha. Se fosse a única, Renoir, apoiado pelos pais,
teria embarcado, ter-se-ia deixado ir. Talvez. Mas aquela proposta de ganho de
vida confrontava-se com a de um tal Monsieur Lévy, que tinha uma oficina de
porcelanas e estava disposto a recebê-lo como aprendiz.
Porcelana
para Pierre Auguste queria dizer Limoges. E Limoges era de onde a família do
pai era oriunda. Uma guinada, e a rolha a deixar-se levar por outro braço da
corrente, a pintura em porcelana.
Gounod
sabe disso, e quando, emocionado, Renoir se vai despedir dele acena-lhe com uma
última tentação: “você sabe que o tenor que você ouviu no outro dia cantar a Lucia ganha dez mil francos por ano?” E
cá estava outra coisa a favor da rolha na corrente: Renoir pouco ou nada ligava
ao dinheiro.
E
lá vai ele para as pinturas em porcelana. Mas bom barítono haveria ele de ser
toda a vida. Um tipo e uma cor específica de voz nasce e morre com a pessoa.
E quando
se é um artista da estatura de Renoir é-se artista em tudo o que se faça na
vida. Como ele dizia – já depois de velho. “O filho de um rei depois de raptado
pelos ciganos roubará galinhas como os outros ciganos, mas talvez haja algum
toque de majestade no modo como ele roubará as galinhas.” Ou como em tempos ouvi
a um capitão de Artilharia a propósito de quem poderia ter mais habilidade para
isto do que para aquilo: quando um homem é mesmo bom, é bom em tudo, nem que
seja a vender chuchas.
E lá ia
a rolha na corrente das pinturas em porcelana.
Não era
muito mais do que imitações de Limoges e de Sévres, jarras embelezadas, pratos
engrinaldados, pastores e pastoras Luís XV. Depois vieram os retratos
históricos. Diz ele que não era nada de extraordinário mas que era honesto.
Pratos
de sobremesa pagos a dois soldos cada, ou a três soldos se fosse o perfil de
Maria Antonieta. Renoir pintou marias antonietas às centenas. Ganhava dinheiro,
bom dinheiro. Um miúdo a ganhar tanto não era muito conveniente pelos critérios
do patrão. Falou em contratá-lo ao ano, 120 soldos por mês. Enfim, a rolha a
navegar.
Nisto,
chegaram as máquinas. Que produziam marias antonietas mais depressa do que as
mãos, já de si rápidas, de Renoir, e todas iguais, absolutamente iguais.
Sentia-se derrotado pelo chamava, cinquenta anos passados, de amor pela
monotonia que dominava os homens daquele tempo.
Onde é
que a rolha o iria levar? A chefe de fila da revolução impressionista, não?
A música
é que nunca o abandonou. Cantava. Trauteava Mozart. Cantarolava ao pintar. Sempre,
até à velhice – um barítono será sempre um barítono. Era admirador e amigo de
casa de Offenbach. Chabrier ia lá jantar e tocava ao serão no piano de Aline
(mulher de Renoir), que quase partiu uma noite ao tocar España. E se gostava de Bach era porque a música dele nada tinha de
intelectual, não era sentimental, não contava uma história, era pura, pura como
a pintura que ele queria fazer.
Quando
morava na Rua Saint-George fez amizade com um juiz de instrução, ao qual se
meteu em cabeça introduzi-lo ao gosto por Wagner. E conseguiu. E Renoir ficou
um militante wagneriano, ele, um homem calmo e ponderado, que segundo constou teria chegado
a esgrimir insultos e bengaladas em defesa do Wagner. “Faz bem uma pessoa
apaixonar-se de quando em quando por uma coisa diferente.”
E vai
daí, o tal juiz de instrução apresenta Renoir a Wagner. Nem menos. O retrato.
Nada de especial, na minha profana opinião a respeito de pintura.
Três
quartos de hora de pose. Só. Wagner não concedia mais, era um génio
desagradável, célebre e atarefado. Engraçadas deviam ter sido as conversas
deles durante esses três quartos de hora. “Tinha opiniões que me punham os
cabelos em pé” – comentário de Renoir depois da sessão. “Vocês, franceses, só
gostam de música de judeus alemães” – acusa Wagner durante a sessão. “Adoro
Offenbach” – contrapõe Renoir. (Wagner começava a enervá-lo.) “Não é má música”
– acede Wagner. E acrescenta: – “Se não fosse judeu, Offenbach seria um
Mozart”. “Também sou dessa opinião” – obtempera Renoir. “Quando eu digo judeus
alemães estou a referir-me ao vosso Meyerbeer” – esclarece Wagner.
Renoir
passaria a fazer parte do selecto grupo da intelectualidade europeia que tinha
lugar reservado nos festivais de Bayreuth. Diria ele depois de assistir a uma
representação da Valquíria que não
havia direito de encerrar as pessoas no escuro por quatro horas, era um abuso
de confiança. Roía as unhas de impaciência. Também não havia direito de esmagar
as pessoas àquele ponto. Só tinha vontade de gritar: basta de génio!
Pois
era, Renoir por vezes considerava-se um homem do século XVIII. E como se sabe,
boa parte da revolução wagneriana tinha que ver com a obscuridade da sala
enquanto decorria a função, o que hoje para nós é coisa comum, adquirida, mas
que ao tempo era uma revolução, uma violência mesmo. Renoir, avesso a uma data
de modernices, não se conformava. “É-se obrigado a olhar para um único ponto
luminoso, o palco, uma tirania!” Não havia meio de se poder olhar para uma
linda mulher que estivesse num camarote, que absurdo!
Às vezes
apetecia-lhe descer a ladeira de Montmartre e ir fumar um cigarro a casa de
Offenbach. Ao fim das tardes, que era quando a casa do compositor começava a
dar sinais de vida. Offenbach comia qualquer coisa a correr e saía todas as
noites para o teatro onde se representasse uma peça dele.
Fala o
filho de Renoir, o mais famoso, Jean: “estava eu ao piano a tentar decifrar uma
peça de Mozart quando o meu pai me interrompeu e me perguntou de quem era
aquela música. De Mozart, pai”. Renoir suspirou de alívio. “Ah, com tanto
sentimento que lhe estás a pôr, por momentos pareceu-me que era qualquer coisa
do palerma do Beethoven.”
Renoir
era um feroz adversário dos românticos, fosse em que arte fosse. Para ele,
Beethoven expunha-se demasiadamente. “Indecentemente, diria mais. Não nos poupa
às suas penas de amor, às suas digestões difíceis. Só me dá vontade de lhe
dizer ‘que me importa que você seja surdo’!” Mozart não. Mozart tinha o pudor
de ocultar as preocupações da vida. “Mozart quer divertir-me ou enternecer-me
com notas que ele acha que não me falam dele. E no entanto, nessas notas
fala-me mais dele do que o Beethoven com tantos suspiros ruidosos”.
O romantismo, o romantismo! Confissões,
lágrimas, agonias. Só exercícios de cabotinismo. Pensava ele que o artista que
pretendesse desvelar-se por completo junto do público acabaria por não revelar
mais do que uma personagem convencional, que nem sequer era ele mesmo.
Certa
tarde, numa sessão de pose, o modelo era a dama e grande mecenas das artes da
época, Misia Sert. Paris enlouquecia com os Ballets
Russes e a dama Misia Sert, que financiava Diaghilev, falava entusiasticamente
de Stravinski – “ele está para a música como o mestre está para a pintura”.
Nessa
noite estreava-se no Teatro Châtelet a Petrouchka
e a dama e o marido, um certo Edwards podre de rico, que tinham ficado para
jantar em casa dos Renoir, lembraram-se de levar toda a família Renoir nessa
noite ao Châtelet.
Alvoroço.
Renoir estava em plena crise de reumatismo, mal podia andar, e não pareceu
muito para aí virado. Insistências. Por outro lado, aquele tão gabado
Stravinski começava a interessá-lo. A rolha a deixar-se ir na corrente que
passava no momento.
Outro
problema: as roupas. Aline, a mulher, lá arranjou um vestido que se prestava
mais ou menos à ocasião. Gabrielle, empregada e prima dos Renoir, e modelo de
tantos retratos, foi ao guarda-roupa do
atelier e lá descobriu um vestido fora de moda mas que divertiu imenso o
casal de mecenas. Jean, o filho, ia com a farda do colégio…
O caso
mais intrincado era o do próprio Renoir, que ainda estava com a roupa de
trabalho (jaqueta pintalgada, laço às pintinhas azuis, boné na cabeça por causa
dos resfriamentos) e não estava com muita vontade de mudar. Veste-se-lhe o fato
preto, aventavam as mulheres da casa. Não. Dava muito trabalho, pedia muito
esforço. Misia Sert põe ponto final na questão: vai como está e acabou-se. Vai
como está? Ao Châtelet? Assim…
Chegaram
ao teatro. Renoir olha para escadaria esplêndida que tinha para trepar e quer
desistir. Nunca, diz o marido de Misia Sert, o tal Edwards. E não faz mais
nada, pega em Renoir ao colo e sobe com ele solenemente as escadas luxuosas,
ante a estupefacção da mais fina flor do tout
Paris. Ia ali, ao colo, o grande Renoir, mas a maior parte dos socialites nem sabia quem era aquele
velhote decrépito – “nem que fosse Tiziano em pessoa eles saberiam quem era”,
ajuntava Misia Sert.
E ao que
eu também acho pilhas de piada é ao comentário de Gabrielle à forma como o
patrão ia vestido, um desconsolo para aqueles da assistência que sabiam que aquele
velhote era Renoir. Vir ao Châtelet numa noite de grande gala de jaqueta com
nódoas de tinta e um boné de ciclista na cabeça… que iria aquela gente pensar
dos Renoir…
Renoir
ficou encantado. Viveu uma grande noite. Viu dançar o grande Nijinski, viu o
grande Nijinski atravessar o palco como um pássaro. Não, melhor, como uma
pantera.