O NAZISMO ÁRABE 3
Hassan Al Banna é assassinado em 1949, mas a
Irmandade Muçulmana não afrouxa nos propósitos de envolver todo o mundo árabe
numa causa comum e vai combater os nacionalistas de Nasser.
O ideal era fundar
um Estado sobre a base da lei corânica, a Charia. É o que pretende Sayyd Qutb,
o herdeiro político de Al Banna quando desencadeia os sangrentos motins de 1952
contra o ocupante inglês.
A base. A base
teórica do islamismo. A Base. Al Qaeda – que quer dizer isso mesmo, a Base. Al
Qaeda, a Base, que nasce dos movimentos insurrecionais e vai, muito mais tarde,
criar o seu campo de acção globalizado e aplicar no terreno as teorias
interpretativas radicais do Corão caras aos seus antepassados
anti-colonialistas.
Mas só em 1980. E no Afeganistão. Um
Afeganistão em armas contra outros ocupantes, os soviéticos.
Está declarada
guerra ao exército vermelho, mas é claro que os afegãos não têm quaisquer
hipóteses. A desproporção de meios e de forças é monstruosa e era óbvio que
alguém teria de se chegar à frente e auxiliar a depauperada força islâmica que
combatia o ocupante russo. E quem haveria de ir em socorro dos mujahedin para
combater o inimigo russo, para além dos estados árabes mais poderosos, e quando
o inimigo do meu inimigo, meu amigo é? Os EUA, está bem de ver. 600 milhões de
dólares anuais de ajuda. Conselheiros militares às carradas. Armamento moderno
em barda, com o protagonismo nos famosos mísseis terra-ar Stinger.
Os militantes da Irmandade infiltram
facilmente os guerrilheiros afegãos. São os tais wahhabi. Vêm da Arábia Saudita
e trazem com eles outros dos países do Golfo, da Palestina do Magreb. Trazem
até com eles uma quantidade de voluntários americanos e franceses acabadinhos
de converter à leitura fundamentalista do Corão, à Base.
Mas os chefes da resistência afegã, com o
notório comandante Ahmed Massoud à frente, não vêem com bons olhos tanta
mistura, quer dizer, a rede internacionalista que acorre às montanhas afegãs
para prestar uma ajuda que podia trazer certa água no bico.
Nasce aí o fundamentalismo islâmico, do qual
temos hoje tantas e tão desgraçadas notícias. É a Base. Al Qaeda.
O Afeganistão vai tornar-se naqueles anos 80
um campo de experiências político-militares. Morrem muitos. Mas isso é o menos.
O fundamentalismo interpretativo das leis corânicas não se comove com mortos e
feridos e vê mais longe. A Charia tem que ser imposta aos países da vizinhança
e às repúblicas islâmicas da Ásia Central. A força teórica dominante chega do
Paquistão, e os mais radicais dos teóricos sectários são intelectuais, engenheiros,
médicos, a maior parte deles egípcios.
Entretanto, os soviéticos começam a apanhar
pela medida grande e já só mal e porcamente conseguem pôr meios aéreos em
acção. Os misseis americanos, os tais
Stinger, que a CIA ofereceu em 1986 dão cabo da aviação russa.
O Afeganistão é um imenso campo de treinos
militares. E o nefando e enjoativo lugar-comum do bolo e da cereja aplica-se
aqui à maravilha quando chega ao Afeganistão o sheik Abdul Rahman para dar o
toque final nas recomendações teóricas e operacionais básicas. “Meus queridos
irmãos da minha alma, fiquem sabendo que de hoje em diante todos vocês estão
autorizados a executar barbaramente também os vossos irmãos muçulmanos que
tenham a infeliz ideia de começar a fazer fora do nosso penico ideológico. É
tudo em nome da jihad. E nós, no Egipto, pela nossa parte, já começámos, ao
fazer a folha ao Anwar Sadate.”
Era um tabu violado. Era uma cortina rasgada,
uma proibida fronteira transposta. Era uma guerra santa. Que nem poupava os
próprios irmãos de raça e fé. Era uma estratégia de sacrifício. Era uma ética
gloriosa de martírio. Era a Al Qaeda.
O Islão sentia-se ameaçado. O sacrifício
seria tanto mais glorificado quando mais contribuísse para a salvação dos
valores sagrados do Islão. O
militante deixaria de dispor do seu corpo, da sua vontade, da sua liberdade.
Dos seus valores e obediências familiares, até. O compromisso com a causa do
Islão teria de ser total e absoluto.
Há um militante wabbita que se destaca da
massa dos outros e se impõe – pelo seu dinheiro, pelos pergaminhos e pedigree familiares. Chama-se Osama Bin
Laden. Cortou relações com o regime da sua terra natal, a Arábia Saudita, a
ímpia.
Bin Laden tem condições para federar as
diversas redes operacionais do Afeganistão. Tem carisma pessoal que chegue. Tem
larga fortuna pessoal. É um orador veemente. Tem aliança com os serviços
secretos do Paquistão.
Paquistão onde fiéis fartamente endinheirados
abrem os cordões às bolsas e financiam as operações da jihad. É um esquema
financeiro clandestino que inclui comerciantes de todas as áreas,
super-mercados, restaurantes, madrasas – viveiros inesgotáveis de recrutamento
de operacionais e mártires.
Em 96 os talibans tomam o poder em Kabul,
embora sem uma estrutura de Estado constituída. Os wahhabitas instalam campos
de treino no inóspito território. Só com uma excepção, que é o vale de Panchir,
onde pontifica o renitente comandante Massoud. Mas não há um projecto nacional.
O território está politica e militarmente à mercê de quem tenha força e meios
financeiros para fazer dele um santuário da causa islâmica. E Bin Laden tem
isso tudo. E é a Al Qaeda que se agiganta. O Afeganistão será a base da Base.
Mas a realidade é complexa. Os chefes
talibans continuam porém a desconfiar dos sectarismos do internacionalismo que
tomou conta do território e que não presta atenção de maior às prementes
questões tribais. Os talibans reservam-se então o direito a uma identidade
político-religiosa, fundada na pureza dos seus códigos de virtude – há um
ministério do Vício e da Virtude. O pessoal da Al Qaeda quer instaurar o seu
quero-posso-e-mando no todo ou em parte do território, preparando a jihad com
todos os matadores – aqui com toda a propriedade – e exportando a jihad para
outras paragens sempre que seja conveniente. As duas posições podem
conciliar-se aqui e ali, e podem divergir neste ou naquele ponto. E logo se
verá.
E logo se veria. E logo se veria porque –
diferentemente dos nazis, e segundo o investigador Olivier Roy – a Al Qaeda não
tinha qualquer projecto político. Não se conhecia a alternativa de Bin Laden à
ordem estabelecida. Era uma organização islamita que Bin Laden governava sem o
mínimo projecto de sociedade. Pelo menos publicado.
O mullah Omar é o artista principal das
estratégias talibans. Não quer chatices com a comunidade internacional, quando
só três países (Paquistão, Emirados Árabes e Arábia Saudita) reconhecem o
governo taliban. Ao passo que Bin Laden quer ir às últimas consequências no seu
projecto exportador da jihad, e pode mesmo adoptar para tanto uma lógica
suicidária num movimento político-militar com as suas discordâncias intestinas,
a actuar numa táctica de grupos estanques, táctica semelhante à da guerra
contra os soviéticos.
À sombra do regime dos talibans, a Al Qaeda
assume um perfil meio clandestino. Bin Laden varia de esconderijo entre Kandaar
e Jalalabad. As adesões à causa crescem e multiplicam-se. Chegam, são
doutrinados e instruídos militarmente, e partem. Globalizar a Charia, eis a
questão. Contra a vontade dos talibans, a Al Qaeda destrói as gigantescas
estátuas de Buda. E é criticada por isso. E criticada até pela comunidade
muçulmana.
O regime taliban está isolado. Era o que se
pretendia. Era preciso isolar o Afeganistão do resto do mundo, de forma a
alargar ainda mais as bases de treino da Base e a constituir-se como modelo de
jihad.
E entra o mês de Setembro de 2001. É o passo
mais grandioso da Al Qaeda. E é um princípio de declínio. O mundo toma, enfim,
consciência aguda da realidade terrorista à inusitada escala mundial.
O mundo
compreende enfim o quanto está indefeso perante a ameaça e sua variedade
táctica que até então não chegara a encarar com a devida seriedade. A CIA cai
em si e na sua competência muitíssimo relativa para lidar com o fenómeno que
não previu – só dois homens da CIA compreendiam o pashtun, a língua tribal em
que se desenvolviam as comunicações dos terroristas. A CIA nem compreendeu o
significado da morte do opositor islâmico maior da Al Qaeda, o comandante
Massoud, assassinado por dois falsos jornalistas marroquinos, exactamente na
véspera da tragédia do World Trade Center.
(Mas tudo isto, esta parte do 11 de Setembro,
bem entendido, se tomarmos como boas as versões que foram oficialmente
fornecidas ao mundo pelas autoridades americanas.)
Declarar guerra ao terror era o imperativo.
Terror que era outra categoria fenomenológica da tão idolatrada globalização. E
vem o 11 de Março de 2004 em Madrid. E vem o mês de Julho de 2005 em Londres. A
exposição mediática da Al Qaeda tocava o seu ponto de excelência, e grandemente
ajudado pelo próprio inimigo, o Ocidente e seus media. A guerra estaria para
durar. De intensidade variável, sim, mas devastadora na sua imprevisibilidade
ao colocar em causa a própria estabilidade dos países alvo.
Guantanamo. A Al Qaeda fica em
apuros pela prisão de alguns dos seus chefes. Mas é nesses apuros que cimenta
novas forças, novas radicalizações, e mais perigosa quanto mais o Ocidente a
mitifica e demoniza, esteja Bin Laden vivo ou morto.
Tantos anos passados depois do 11 de Setembro
e o Ocidente ainda de calças na mão sem atinar com a forma de vencer um inimigo
que se dispersa, que usa a seu favor e da maneira mais eficaz os meios que o
Ocidente criou, a Internet, a grande circulação de capitais e de pessoas, a
globalização que o Ocidente celebrou tão festivamente.
O investigador que já citei, Olivier Roy,
negava a evidência de um choque de civilizações neste terceiro milénio. A
violência extrema e o terrorismo seriam então somente um produto da
desculturalização de alguns grupos religiosos, e desde o momento que as mais
brutais das acções da Al Qaeda estariam a ser executadas por muçulmanos de
segunda geração, ocidentalizados, muitos deles franceses, belgas, ingleses e
americanos convertidos. Nada a ver com um projecto de sociedade islamita
tradicional. Tudo a ver com o gratuito de tanta mortandade – o sinal dos estranhos
tempos globais.