VERDI - DE
TRAFICANTE DE ARMAS A
DEPUTADO
Já na noite de
estreia de Simão Boccanegra, no Scala, os patriotas que assistiam à
récita haviam lançado o famoso grito de Viva Verdi. Um grito de glorificação do
compositor, sem dúvida, mas com um sentido secreto e mais imediato que
ultrapassava a admiração artística e associava o compositor à luta patriótica.
Queria dizer Viva Vittorio Emanuelle Re D’Italia.
A 9 de Janeiro de
1859, o mesmo Vittorio Emanuelle II faz uma proclamação ao Parlamento do
Piemonte: respeitaremos os tratados, mas não seremos insensíveis aos gritos
de dor que nos chegam de toda a península itálica.
A 26 de Abril, as tropas austríacas passam o Ticino e entram no
Piemonte, preparando o assalto à capital, Turim.
E os combates
rebentam. Os italianos averbam algumas vitórias sob um comando bipartido: o rei
à testa dos soldados piemonteses e Garibaldi comandando os seus caçadores
alpinos. Os franceses vêm a a entrar também em cena e os austríacos são
repelidos para lá do rio Míncio. A 8 de Junho, Vittorio Emanuelle e Napoleão
III entram em Milão e são aclamados pelo povo. O imperador francês declara-se
preparado para manter a guerra até à libertação final da terra italiana, e até
que a vontade de povo italiano se manifeste através do voto livremente
expresso.
Verdi está em
Sant’Agata. Rejubila com as notícias da guerra, mal podendo acreditar que o
sonho da unificação política esteja à beira de realizar-se.
A chamada dos
italianos ao combate, feita pelo rei a 29 de Abril de 1859, depois das notícias
das movimentações austríacas pelo Piemonte, havia coincidido, é curioso, com a
data do casamento de Verdi com Giuseppina Strepponi. E agora, no remanso da sua
casa de Busseto, situação matrimonial regularizada, Verdi pouco se preocupa com
a música. Quer assumir uma inequívoca posição política. E mais do que política, moral.
Verdi
comprometera-se na militância contra o opressor, pela unificação política e
administrativa de toda a Itália. E nesse compromisso usara a sua obra artística
como clarificação, se se pode dizer, das suas ideias e dos seus anseios,
vaticinando em música (e pelos argumentos das suas óperas) o grande evento que
se aproximava. A hora era de tomar posições na trincheira moral. A música bem
podia esperar.
O nome de Verdi
era bandeira para os patriotas. O nome de Verdi era um signo moral. A 17 de
Fevereiro de 1859, em Roma, noite de estreia do Baile de Máscaras, na
plateia e nos camarotes do Teatro
Apollo, o grito de Viva Verdi ecoara nos intervalos do espectáculo como
consigna revolucionária de vitória.
E foi a partir
dessa noite do Baile de Máscaras no Apollo de Roma que as palavras Viva
Verdi começam a aparecer pintadas nas paredes de toda a Itália.
Entre 1859 e os
primeiros anos da década seguinte, a guerra e as vicissitudes da política
passam a ser, para Verdi, a grande questão de moral, o grande sentido de uma
vida. Tanto assim que nas cartas do isolamento de Busseto envia ao amigo e
maestro Angelo Mariani, as questões musicais são para ele de somenos
importância.
Parece que em Piacenza
os austríacos fizeram saltar fortalezas e se foram embora. Estão a ser vistos
passar em Cremona, a caminho de Mantova. Vê se me mandas notícias sobre o
andamento da guerra.
Fico feliz com os teus
êxitos artísticos, mas preferia que me falasses de outras músicas, daquelas que
possivelmente não interessam a vocês, músicos, dignos filhos de Apolo. Como
estão as colcheias e as semi-colcheias de Garibaldi e suas tropas? Esse sim, é
um verdadeiro maestro. E que óperas ele compõe! E que belíssimos finais ele
arranja, feitos à força de tiros de canhão…
A intervenção política mais directa de Verdi vai começar.
Promove subscrições públicas para auxílio dos feridos e das famílias dos mortos
em combate, e assim cairia no ilícito penal de alta traição, caso os austríacos
voltassem a ter autoridade sobre o ducado de Parma.
Não era aliás a primeira vez que Verdi desafiava o poder
austríaco. Fizera-o em 1848, integrando uma delegação que solicitava ajuda
político-militar à França contra a tirania opressora das regiões do Veneto e da
Lombardia.
A 12 de Julho é assinado um armistício. Todas as esperanças
patrióticas são adiadas. O Veneto continua na posse dos austríacos. A Lombardia
passa para a jurisdição do reino do Piemonte. Parte da Saboia será cedida aos
franceses. O rei é sob reserva que assina a paz e Cavour retira-se da política
activa. Os povos da Emilia e da Toscânia associam-se ao rei do Piemonte e
constitui-se uma liga militar pronta a repelir o regresso dos austríacos. Chega
Agosto e prepara-se em toda a Itália um plebiscito. Será ou não conveniente a
anexação das regiões ao reino do Piemonte, pergunta-se ao povo.
Era uma primeira etapa jurídica para a Itália unificada.
Em Busseto, a votação é feita numa igreja. O momento tocante do
dia ocorre quando Verdi entra e deposita o seu voto na urna. Estrondeia uma
sentidíssima ovação. Há gritos patrióticos. Há lágrimas. Viva Verdi. Até aí era
crime pronunciar o nome “Itália”, assim só, único, unificado.
Na sequência da sua posição cívica, Verdi toma a decisão moral
de se deixar eleger como deputado da sua região, contrariando o próprio feitío
e a própria e muito pessoal vocação. Passa a ser o representante de Busseto na
assembleia das províncias da região de Parma. É eleito a 4 de Setembro. A 14
desse mês, junto com uma delegação, viaja até Turim e apresenta-se ao rei.
Considera honra enorme e lisonjeira a distinção de que foi alvo ao ser eleito
pelos concidadãos. Era pouca a sua preparação política, mas era, por outro
lado, grande o seu amor a uma pátria unificada e à ideia de uma nacionalidade
italiana homogénea.
Por intermediação do embaixador britânico dá-se o encontro entre
Verdi e o conde de Cavour. Era um encontro desejado por Verdi, tanta era a
admiração que nutria pelo estadista. E se o músico admira o político, este não
menos admira o músico. Cavour considerava Verdi um dos mais formidáveis
indutores de patriotismo e de vontade italiana de unificação. Nessa conformidade,
o nome do músico deveria ficar historicamente ligado ao grande momento de
libertação que se vivia. A Verdi é
conferida a cidadania honorária de Turim.
Ratazzi está presidente do governo piemontês, não quer
desagradar a Napoleão III, demora em reconhecer
a vontade das regiões em serem anexadas pelo reino do Piemonte, claramente
expressa pelo voto. Há desordens. Multiplicavam-se os atentados contra algumas
das personalidades mais chegadas à Áustria e logo em seguida vinham as
represálias. Na vida de Verdi chega o momento de se exercer como traficante de
armas. É o caso das 172 espingardas.
Verdi está feito um revolucionário romântico. Mariani, meu
caro, trata de me encomendar aí em Génova um carregamento de 172 espingardas. A
nossa causa é sagrada.
Era preciso armar as milícias populares da região de Parma. Mas
faltavam os fundos. Verdi adianta a vultosa verba. Tem cartas de apresentação
do embaixador inglês para um oficial das forças garibaldinas. Mas o dito
oficial, inexplicavelmente, rói a corda. E Verdi não faz mais nada: volta-se
para o companheiro filho de Apolo, o então famoso maestro Angelo Mariani. Um
outro mais tarde famoso maestro, Franco Faccio, também está metido no esquema.
Angelo Mariani, ilustre maestro, feito intermediário no tráfico
de armas, manda a Verdi as 172 espingardas – sem se esquecer das respectivas
baionetas. Dessas 172, Verdi tira uma para uso próprio – às vezes, nunca se
sabe…
Estamos a 21 de Janeiro de 1860. Cavour regressa à política e
põe-se à testa dos negócios do Estado do Piemonte. O voto expresso pelas
regiões quanto à sua anexação ao Piemonte não pode caír em saco roto – é o que
Cavour diz a Napoleão III.
A vontade politica das regiões é reconfirmada por grande maioria
e as regiões são anexadas, contra a cedência aos franceses de Nice e da Saboia.
Os deputados das regiões anexadas são convidados a integrar o novo parlamento
piemontês.
Sublevações e insurreições são o pão-nosso-de-cada-dia. Sicília.
Não sei se lembram do filme, O Leopardo. Talvez o filme mais verdiano
que alguma vez foi feito…
Sicília. Calabria. Nápoles. Garibaldi actua no sul. Acumula
vitórias. Chega a Palermo.
A 7 de Setembro, Garibaldi entra em Nápoles. Nápoles e a Sicília
são anexadas ao reino do Piemonte.
1860 – o ano que marca o advento da unificação italiana. Só a
região de Veneza e os estados pontifícios permanecem excluídos da pátria
itálica.
Os
eleitores de Busseto propõem a candidatura de Verdi ao primeiro parlamento
nacional italiano em vésperas de se constituír. A propositura de Verdi é para
eles uma questão de moral. Verdi recusa. Mas Cavour encoraja a candidatura do
compositor declarando a alta importância moral da presença de Verdi nesse
primeiro parlamento nacional italiano. Cavour também pensa fazer eleger
Alessandro Manzoni, o maior poeta vivo das itálias.
Sim, sim, era um tempo em que os políticos profissionais
prezavam muito os contributos dos artistas e homens de letras como força moral
de uma nação.
Mas Verdi sente aproximar-se o perigo de ser transformado em
político a tempo inteiro. E se a sua figura serve de caução moral às novas
instituições e à nova nacionalidade, o estatuto de político representa uma
agressão aos severos princípios de uma moral artística e pessoal.
Enquanto uns fazem
tudo para ser deputados, meu caro Mariani, eu vou a Turim para evitar sê-lo.
Verdi tem audiência
marcada com o conde de Cavour para 18 de Janeiro de 1861.
Estão 14º negativos em Turim no dia 18 de Janeiro de 1861. Verdi
argumenta com Cavour. Expõe-lhe as razões pelas quais, sem falar na honraria,
não deseja prestar à pátria aquele tipo de serviço político. Nem fez os
necessários estudos para tanto. Não possui cultura politica que se veja. É
homem de paciência escassa e avesso a discursos. O seu lugar é outro na
barricada da unificação.
Cavour desmonta-lhe ponto por ponto a argumentação. Apresenta os
seus contra-argumentos, e de tanto peso eles são que Verdi, evidentemente pouco
calhado no trato com políticos, acaba por aceitar o encargo. Com uma condição,
porém: demitir-se-á ao cabo de alguns meses de actividade parlamentar. O
ministro assente.
- Muito bem, mas quando isso acontecer, muito agradecia que
mo fizesse saber com antecedência.
Há ainda formalidades políticas a cumprir. Verdi não quer
apresentar-se como candidato ao colégio eleitoral da sua região. Terão de ser
os amigos a propô-lo. E eles propõem-no. Segue-se que Verdi terá de travar uma
batalha eleitoral com um certo Minghini-Vaini, político regional que ambiciona
a cadeira parlamentar. E Verdi ganha-lhe: 288 votos contra 185. Uma maioria que
não é tão absoluta que lhe permita uma eleição imediata. Organiza-se uma
votação de desempate.
Verdi não quer o cargo, é verdade, mas também é verdade que não
gosta de perder. Terá de fazer apelo à sua fibra de político de outras
batalhas, ao seu espírito competitivo.
E volta a ganhar. Está definitivamente eleito. A sessão de
abertura do primeiro parlamento nacional italiano está marcada para o dia 19 de
Fevereiro.
Bem, meu caro Mariani, vou para Turim mas tenho que descansar um
pouco e equilibrar a minha bílis antes de pôr uma gravata branca. Quem haveria
de dizer, ahn? Mas é assim. Não há nada a fazer.
Mas qual terá sido, se foi, se houve, a razão de fundo para
tanto apoquentar Verdi quando na
iminência da eleição? Se calhar foram várias as razões. Se calhar, a maior de
todas essas razões foi a encomenda que entretanto lhe chegou logo em Janeiro
desse ano de 1861: uma nova ópera para o Teatro Imperial de S. Petersburgo.
Ópera essa que após diversas hesitações quanto ao libreto, viria a ser a Força
do Destino.
Numa primeira fase, Verdi passa quatro meses na capital
piemontesa com assídua assistência às sessões da câmara e muito atento ao
andamento dos trabalhos.
Mas não é de crer que a actuação parlamentar de Verdi se tenha
pautado pelo brilhantismo, nem que alguma intervenção sua tenha ficado para a
História.
A disposição e a disponibilidade de tempo podiam não ser as
melhores para Verdi se lançar à composição da nova ópera. A Strepponi cuidava
dos confortos que pudessem adoçar a próxima estadia na Rússia: tagliatelle,
fettucini, macheroni, prosciuti, queijos, salames, Bordeaux, champanhes.
Passado o mês de
Julho, Verdi começa a compor a música.
Maldito contrato este que me obriga a trabalhar e a suar no
verão para vir depois a refrescar-me em demasia no inverno.
A Força do Destino, ópera tão cheia de acção, de situações
guerreiras e morais, de imprecações, de desespêros e de maldições, de luz e de
trevas, uma figuração, digamos, da experiência patriótica e revolucionária do
seu autor no marcante momento histórico
da nova pátria italiana, estreia com êxito em S. Petersburgo a 10 de Novembro
de 1862.
Como disse atrás, não é de crer que a
performance parlamentar de Verdi tivesse
andado por grandes vôos de oratória. A presença dele na câmara dos deputados
era sobretudo uma questão de moral. Segundo ele próprio, o seu voto foi sempre
um voto seguidista, apoiante das posições do grande ministro Cavour. Pelo menos,
assim, tenho a certeza de não errar
- confessou.
Mas não se pode dizer que não tenha
travado interessantes relações pessoais naquele mundo perigoso e fascinante, e
tão diverso do seu. Teve ensejo de conversar longamente sobre arte com o
próprio conde de Cavour, numa época, note-se, em que os ministros de Estado
eram homens de cultura. Teve ensejo também de inspirar o político nas melhores
intenções de contribuir para o desenvolvimento da cultura italiana – coisa que,
na boca de um político, já se sabe, vale o que vale. Mas isso é outra conversa,
outra moral.
Verdi expõe a Cavour um projecto de reordenamento dos teatros
líricos e dos conservatórios: três teatros principais nas três principais
cidades, Roma, Milão e Nápoles; teatros sustentados pelo governo, e, em cada
uma destas cidades, instituição de conservatórios de ensino gratuito, aptos a fornecer
os respectivos teatros da mão-de-obra musical requerida, entre instrumentistas,
coros e solistas. Mas recusará a nomeação pelo governo como presidente de uma comissão de reforma
orgânica do Conservatório de Milão.
O reino de Itália foi efectivamente declarado como constituído
na sessão parlamentar realizada no Palazzo Carignano em 15 de Março de 1861.
Vittorio Emanuelle II é proclamado rei dos italianos. E Verdi sente chegada a
hora do seu adeus aos negócios políticos. Fala com Cavour.
Cavour pede-lhe paciência. Que espere até que Roma seja também
parte do reino de Itália. Si, ma quando? , pergunta Verdi. O conde,
claro, como político de primeira água, evita a resposta frontal, ah, quando,
quando… beh, intanto me ne vado in campagna, allora andate, state bene, addio…
(A conversa de Verdi com Cavour, traduzida, foi:
- Mas então diga-me, conde, quando é
que Roma fará parte do reino de Itália?
- Oh meu caro Verdi, quando, quando, sabe-se lá…
- Bem, conde, então,
enquanto o reino de Itália chega e não chega a Roma, eu vou andando para o
campo…
Ao que Cavour, decerto já sem paciência para aturar as esquisitices
de Verdi replicou:
- Olhe, Verdi, então vá, adeus e passe muito bem.)
E foi a
última vez que os dois homens se falaram.
Se quisesse fazer a
minha biografia como deputado escreveria no centro de uma bela folha de papel
que os 450 membros da câmara foram efectivamente 449, pois que Verdi, como
deputado, nunca existiu.
E sim, Verdi vai à sua vida, segue o seu destino. Há a “força”
desse mesmo destino. Há o Hino das Nações. Há viagens artísticas, S.
Petersburgo, Londres, Paris, Madrid.
Cavour morre. Verdi inicia a revisão de Macbeth.
1865 assinala o fim da legislatura e a dissolução desse primeiro
parlamento nacional, e o fim do mandato de Verdi como deputado. Dos quatro anos
da investidura, em dois deles primou pela ausência. Lá terá pensado que a maior
parte da sua missão moral fora cumprida com a proclamação da unidade italiana.
Ainda se pôs a hipótese de uma recandidatura, mas a opinião de
Verdi sobre a política e os políticos não mudara muito entretanto. Perdera demasiado
tempo numa actividade onde, segundo ele, se fala muito, de mais, se polemiza de
mais. E recusou, evidentemente, uma recandidatura.
Mas Verdi não se vai da política sem indicar o perfil daquele
que gostaria de ver sentado na sua cadeira parlamentar, alguém que desse provas
de franqueza e rectidão de carácter.
Fazem-se maravilhosos discursos, dizem-se coisas belíssimas, sem
dúvida alguma. Mas é tudo uma perda de tempo – eis a caracterização de Verdi da actividade política e
parlamentar.
À hora do fim do seu mandato já Verdi congemina o D. Carlos,
uma das mais geniais das suas obras, e curiosamente, aquela cujo libreto era da
maior (e mais pessimista) consistência política.