domingo, 10 de junho de 2018


      UM PÁSSARO DA NOITE AGUÇADO PELA DESGRAÇA        
         – HÁ 60 ANOS MARIA CALLAS CANTOU EM LISBOA

 
         Maria Callas chega a Lisboa no dia 25 de Março de 1958, terça feira.

 
         Nesse dia, com o presidente do conselho, trabalharam o senhor ministro do Interior e o senhor ministro da Marinha.
 
                                                                               
 
         Por esses dias, no Teatro Avenida, por uma companhia brasileira, ia a revista Fogo no Pandeiro. No Variedades, Eugénio Salvador apresentava Pernas à Vela.
 
 
          No Maria Vitória, com Bibi Ferreira e António Silva, ia A Minha Filha é de Gritos.
 
 
         Júlio Dantas estava com grande êxito no Trindade, encenado por Ribeirinho.
 
                                                                                                               
 
             Celeste Rodrigues cantava na Viela...
 
 
         Carlos Ramos cantava no terraço do Hotel Tivoli.
 
 
         Procópio Ferreira actuava no Monumental. No Politeama compravam-se bilhetes para Amar Não É Pecado (com Lana Turner). Quem preferisse lacrimejar mais abundantemente ia ao Odéon ver Deus Lhe Pague (com Arturo de Córdova).
 
 
          Em Algés, toureava o favorito de Hemingway, o grande António Ordoñez.
 
                                                                           
 
         Eram presos pela polícia de costumes 25 batoteiros numa casa ali do Largo da Anunciada – alegando os mariolas que não faziam mais do que entreter a pasmaceira a jogar ao burro.
         Na RTP, o saudoso programa de língua portuguesa Charlas Linguísticas, do Dr. Raul Machado e melodias brasileiras. Aznavour tinha cantado dias antes no Casino Estoril. E Anna Máscolo fundava o seu estúdio de dança.
 
 
         Na literatura portuguesa, as novidades desse ano eram de monta: a Seara de Vento, do Manuel da Fonseca; O Anjo Ancorado, do José Cardoso Pires; Quando os Lobos Uivam, do Aquilino Ribeiro; A Barca dos Sete Lemes, do Alves Redol.
 
                       
 
          O tempo estava bom. 17º de máxima e 14º de mínima.
         No Terraço das Estrelas do Hotel Embaixador, em ambiente, ao que se sabe, de supina elegância, desfilaram os modelos apresentados por Madame Mello.
 
 
          António Vilar preparava-se para contracenar com Brigitte Bardot em La Femme et le Pantin.
 
 
         Tinham sido avistados discos voadores no céu de Angola.
 
 
         E quem tinha algum de seu podia comer bem. No Café Monte Carlo, por exemplo, serviam-se pratos da tradicional cozinha indiana, havendo para a sobremesa a mais fina pastelaria de tipo húngaro, com um café creme de Timor para rebater.
De casa da mãe, na Rua Vicente Borga, à Madragoa, desaparecera Maria Preciosa, de 58 anos. Disse que ia à missa e nunca mais foi vista. Tudo na vida comporta os seus riscos.
 
 
         Na praça. Tínhamos o linguado a 58$00 o quilo, a pescada de Sesimbra a 40$00, o salmonete a 30$00, o pargo a 23$00. A galinha ficava por 43$00. Mas o cachucho podia-se levar a 5$00 o quilo.
 
 
Na Sapataria S. Carlos, mesmo ali pertinho, na Rua Ivens, havia sapatos para homem e senhora entre 185 e 220$00.
         O grande prémio da lotaria da Páscoa valia 2.000 contos. E para os casos mais agudos de prisão de ventre a publicidade aconselhava a Água do Mouchão da Póvoa.
 
 
         E que tem tudo isto a ver com a Callas? Tem. É que sempre nos meios musicais nacionais e internacionais se falou muito da Traviata de Lisboa, da Callas de Lisboa, e muito pouco da Lisboa da Callas. E por isso aqui ficam alguns contributos ambientais para o grande acontecimento mundano e para alimento da inconfessada nostalgia de muitos (eu incluído) dessa Lisboa paroquial e alegremente deprimida dos negregados tempos do… chamem-lhe o que quiserem…
 
 
          Coisas do tempo, que tudo redime, que recusa, condena e redime, e torna a condenar, recusar e redimir. Só há passado. O problema do presente e do futuro é não terem tempo de vida para contar, não terem passado…
         Mas enfim, quem era esta Maria Meneghini Callas que desembarcou em Lisboa numa ventosa terça-feira de Março de 1958?
 
                                                             
 
         Dá jeito a magnífica tirada da Medea, de Eurípedes: Que pássaro da noite aguçado pela desgraça bate à minha porta?
         Para dizer que na figura (já por esses dias esbelta) de Maria Meneghini Callas, a mais célebre cantora lírica do século XX, chegava a Lisboa uma mulher profundamente magoada.
         Roma. Teatro dell' Opera.
 
 
         2 de Janeiro desse mesmo ano de 1958. Récita de gala com a presença do presidente da república italiana. Canta-se a Norma. Maria não está bem de saúde e a direcção do teatro faz um anúncio à selecta assistência. “A Signora Callas, apesar de indisposta, fará os impossíveis para cantar esta noite”. E logo as murmurações e os apartes da faixa menos selecta da assistência se desencadearam.
 
 
         Na Lisboa provinciana e reverencial estaria ela em sossego e bem livre disso, mas nessa noite de Roma, como noutras noites, noutras cidades, sempre havia um público pró-Callas e outro público anti-Callas. Os que vinham para aclamar em delírio a diva, acontecesse o que acontecesse, e os que vinham para vaiar, acontecesse também o que acontecesse.
 
 
         Mas nessa noite de Roma, Maria vai a jogo. Tem febre. Tem a garganta em fogo. Canta o 1º acto conforme pode e termina-o, por assim dizer, no fio da navalha. Ouve-se um vociferar na sala, “um milhão de liras por isto?” Recolhe ao camarim, e o intervalo prolonga-se por cerca de uma hora. Maria declara-se incapaz de prosseguir. Temendo o escândalo, o director do teatro retarda o anúncio e propõe-lhe cantar mesmo diminuída, a meia voz, uma oitava abaixo, qualquer coisa. Nunca, seria indigno. Ao cabo dessa hora de intervalo, finalmente, a direcção do teatro comunica que o espectáculo acabaria ali. A Signora Callas estava incapaz de continuar. A gritaria da parte menos selecta do público é de ensurdecer. Pede-se até a imediata expulsão de Maria Callas da cidade de Roma. Que fosse cantar para Milão onde estava sempre bem de voz. Uma mercenária estrangeira que insultara o presidente da república, que insultara a luzida plateia de Roma, e que deveria por sua vez ser insultada publicamente no caminho para o hotel. E foi.
 
 
         No dia seguinte, conferência de imprensa. Desculpas ao presidente da república. Diplomáticas certezas de que o seu querido público a compreenderá e lhe perdoará.
Engano. O público nunca lhe perdoará – e o presidente da república, pelo que adiante se verá, talvez também não. Os jornais arrasam-na. Exigem a exibição de um atestado médico – que aparece: bronquite aguda; inflamação da traqueia. Os paparazzi estão dispostos a pagar bom dinheiro ao pessoal do hotel para conseguir umas fotos da Callas deitada na cama a engolir os antibióticos e a curtir a bronquite.
 
                                                           
 
         “O público pode ser insuportavelmente cruel”, confidenciaria a amigos. “Aceitam-te quando estás em forma, não têm piedade quando estás mal e não te perdoam a mínima falha”.
         No dia da segunda récita, três dias depois, restabelecida, Maria apresenta-se no teatro para cantar. Vedam-lhe a entrada. A récita ia realizar-se com uma substituta.
Maria compreende enfim que não tem o público a seu favor, o que é constatação penosa e que a marca profundamente. A carreira dela em Itália pode estar arruinada para sempre.
 
                                                             
 
Pode até dizer-se que viveu aqueles dias de Lisboa um tanto ou quanto aflita quanto ao futuro da associação artística com o Scala. No próprio dia da estreia em Lisboa, a 27 de Março, escreve uma carta, mais uma, ao superintendente do Scala, Ghiringhelli. Não lhe passava pela cabeça que o Scala adaptasse a programação às conveniências dela, mas o certo é que a falta de resposta do teatro milanês a deixava sem saber o que pensar e o que fazer quanto ao futuro artístico mais próximo.
         De facto, nesse mês de Março, La Stampa anunciava que a direcção do Scala de Milão alterara diplomaticamente as datas de apresentação de ópera Anna Bolena (com ela na protagonista, claro), de forma a excluírem a Callas do espectáculo de gala a que, uma vez mais, assistiria o presidente da república – escaldado, já se vê, pelo acontecido em Roma no princípio desse ano. Até houve quem aventasse uma pressão do governo para que fossem fechadas à Callas as portas dos dois principais teatros italianos.
 
 
         Mas não. A Callas voltará a cantar no Scala ainda em Abril e Maio desse ano, Anna Bolena e o Pirata.
         Mas como digo, à chegada a Lisboa, a Callas sente-se a salvo do turbilhão infernal da vida musical italiana. Não está a salvo é das perguntas imbecis dos repórteres lisboetas.
         Chega com 45 minutos de atraso, alta, esguia e pálida. Casaco vermelho-cardeal com gola de peles cinzentas e chapéu do mesmo tecido do casaco, sem copa, quase um turbante. Há ramos de orquídeas da Madeira para ela. Há tulipas da Holanda para ela. O caniche ciranda por ali com dois guardas a escoltá-lo, por via da hipótese de um rapto feito por alguém que possa querer armar escândalo – até que ela lhe pega ao colo e não o larga mais.
 
 
         Estão os repórteres de uma RTP que ainda nem deve ter um ano de vida, e que parecem não fazer ideia da personalidade – e da actividade – de quem estão a entrevistar. É a primeira vez que vem a Lisboa? Sim. Já estivera para vir várias vezes mas nunca se concretizou – de facto, desde 1953 (ainda ela era gorda) que José de Figueiredo a andava a tentar contratar sem êxito. Porquê a Traviata. Se gosta da Traviata. Se foi ela que escolheu a Traviata. Que honorários recebe. Que pensa do marido (pergunta escandalosa, diz ela a rir) Ou… sr. Meneghini, que pensa da sua mulher? É a melhor do mundo, a mais bela, a mais digna de aplausos. E não, não há autógrafos para ninguém, não vêem?, a Signora Callas tem as mãos ocupadas, o caniche… as flores…
 
 
         Foi dali direita para o Hotel Avis, o mais luxuoso de então. Meneghini prevenira em tempo o director do S. Carlos do que queria: um quarto matrimonial com salão e um outro quartinho adjacente para a camareira da signora Callas.
         Quanto veio ganhar? Ao certo, não sei, como é evidente. Mas sei que por essa altura cobrava 10.000 dólares por noite. Uma brutalidade.
         Na véspera da estreia havia quem vendesse uma plateia. Tel. 42634 – se calhar ainda vamos a tempo. E havia quem comprasse entre 3 e 5 bilhetes para essa estreia. Tel. 48089.
         Havia quem desse 5 contos por uma plateia que custava 200$00. Aliás, começaram a comprar-se bilhetes para Traviata da Callas já em Dezembro do ano anterior. E veio gente das províncias – e quem sabe até se das ainda colónias. E meteram-se cunhas nos altos meios da melhor sociedade lisboeta, provavelmente de quem não fazia muita ideia do que fosse essa coisa da Traviata.
 
 
         Oh, mas eram as noites de S. Carlos…
 
 
         A cada noite de sexta-feira, entre Janeiro e Abril nesses anos 50 e 60, era ver a quantidade de populares encostados ao parapeito sobranceiro ao Largo de S. Carlos a remoer anátemas contra o regime e a ver chegar as limousines, a ver brilhar os smokings, as peles e os vestidos compridos da elite portuguesa em noite de ópera. As antigas e deslumbrantes noites de S. Carlos. Oh. Estava ali o poder do capitalismo monopolista, a plutocracia, a repressão, as prisões políticas, a tortura do sono, os tribunais plenários, os bairros das barracas, a fome no Alentejo, a carestia da vida, a censura, a desesperança. E fascinava.
 
 
         Camarotes que aguentaram uma dúzia de pessoas lá dentro. Champanhe verdadeiro a correr em cena. Braçados de flores no camarim da diva. Presidente Craveiro Lopes e mulher na tribuna – e ao saber disso Maria Calas vacila: outro presidente da república no meu caminho? E ministros. E a fina flor do beautiful people. Lindas toilettes de curto, também. O rei Humberto de Itália – que ela queria muito conhecer, e depois das garantias dadas pela marquesa do Cadaval de que poderia conhecer o rei se viesse a Lisboa, na condição, claro, de baixar o cachet. O vestido da personagem em espuma de renda para o 1º acto; ou de um verde quente para o quadro em casa de Flora. 42 chamadas à boca de cena no final, e com a diva a aparecer sozinha apenas na última.
 
                                                                                       
 
         Mas o que realmente se viu ouviu no palco de S. Carlos durante essa, pelos vistos memorável, Traviata de Lisboa para lá das mundanidades?
 
 
         No meu pessoal ponto de vista, destacaria três modos de apreciar o acontecimento Callas em Lisboa. Três modos, ou mesmo quatro.
         O acontecimento mundano e social indesmentível, o primeiro modo. O S. Carlos dos anos 50 como topo da representação social numa Lisboa pequeno-burguesa. O jet set, as elites do regime, os provincianismos preconceituosos e também algo pequeno-burgueses da alta burguesia, a toleima de ver, e principalmente ser visto, a irrisória preparação cultural da maioria para ver, ouvir e compreender o que se passava no palco.
 
 
         Depois do grande acontecimento mundano, em segundo lugar, o acontecimento artístico. O mais alto expoente de uma arte sublime e súmula de todas as artes ali ao vivo, em carne e osso. O nec plus ultra da excelência interpretativa. A oficiante máxima de uma liturgia artística complexa, aristocrática, iniciática, até mesmo quando na sua componente mais popular.
 
 
         O acontecimento cultural mais geral, em terceiro lugar. Cultural, mas neste caso marginal e de nula expressão para lá do Chiado, sem importância de maior para a realidade cultural portuguesa – na Academia dos Amadores de Música cantava peças de Lopes Graça uma soprano nacional, de seu nome Maria Alice Vieira de Almeida; num evento universitário, com 17 aninhos, António Vitorino (também) de Almeida, dava um recital de piano.
 
 
No fim da récita de estreia da Traviata, à porta da caixa do S. Carlos, estavam duas notáveis cantoras portuguesas que ao ver sair a colega Maria Cristina de Castro (acabada de cantar o papel de Annina, a criada da Traviata), logo lhe puseram reservas à Callas, que os agudos eram assim, que a afinação era assado, ao que a Cristina de pronto replicou: “pois é, ela tem todos esses defeitos, mas quando se for embora daqui vai cantar ao Scala, e nós vamos para a Brasileira falar dos defeitos dela.”
 
                                                          
 
Por esses dias, num Coliseu praticamente às moscas, a Orquestra Filarmónica de Madrid executava, em estreia em Portugal, a oratória Jeanne d’Arc au Bûcher, de Honneger.
         E por fim, o acontecimento político num Teatro Nacional de S. Carlos fortemente internacionalizado, ou seja, não orgulhosamente só, gerido na prática pelos interesses de agentes e empresários estrangeiros. Um S. Carlos que em 1958 podia funcionar como porta sumptuária da saída promocional para a Europa da alta cultura de um salazarismo paroquial, bisonho e ensimesmado.      
 
 
Assinalou-se com admiração que Maria Callas esteve em todos os ensaios dessa Traviata de Lisboa – que também não podem ter sido muitos, dois dias apenas, um de marcação de cena e o ensaio geral. Extremamente míope, e, pelo que conta o seu partenaire dessa noite, o jovem e brilhantíssimo Alfredo Kraus, a Callas tinha de memorizar a cenografia, porque lhe perguntava constantemente onde estava a mesa, onde estava a cadeira onde devia sentar-se, onde era a porta para sair de cena.
 
 
A Callas era uma voz ligeira, lírica e dramática - a corresponder idealmente ao que lhe demandava para cada acto o papel de Violetta Valéry, a Traviata. Era a soprano absoluta. Era a voz múltipla, de técnica pessoalíssima. Era a voz sem paralelo (no dizer de Lauri Volpi). O canto dionisíaco rompia com os cânones apolíneos das rivais em vigor quando ela apareceu como uma tempestuosa e inquietante advertência canora no mundo internacional da ópera do pós-guerra. A voz ideal para a personagem posta em situações limite.
 
 
“Essa mulher tem vinagre na voz”, disse dela Toscanini depois de a ouvir. E não, isso não, Lisboa não ouviu a voz mais bonita do mundo, como já tinha ouvido vozes dessas na mesma ópera, a Tebaldi, a Virginia Zeani no ano anterior. Voz espiritual, diáfana, etérea? Não. Aquele timbre suscitava a inquietude existencial, ou a reflexão dramática, mil vezes mais do que o apelo elegíaco. Lisboa não ouviu a voz mais bonita do mundo, isso não. Ouviu outra coisa.
 
 
          Que pássaro da noite aguçado pela desgraça bate à minha porta?
Um amigo chegado dela, Callas, viria a dizer: “Maria sempre nos pareceu uma personagem de tragédia. Mas será que ela tinha uma perfeita consciência disso? Ou fomos nós que construímos em nós essa personagem, por aquilo que sabemos da vida dela, e do fim que teve?”
A minha impressão vai no mesmo sentido. E nem seria preciso que ela própria tivesse consciência disso, perfeita ou imperfeita. Chega-nos conhecer o rol das personagens – e respectivas tipologias mentais – que privilegiadamente interpretou. Norma, Medea, Anna Bolena, Tosca. E Traviata.
 
       

 
         E nem seria por demais ousado dizer que a Callas era a personificação perfeita dessas Norma, Medea, Tosca. E Traviata. E assim porque, ao drama social burguês, naturalista, de certo modo convencional, que é a Dama das Camélias, de onde saiu a Traviata, a Callas acrescentou a tal transcendência dionisíaca. A tragédia. Tenha ou não tenha ela alguma vez pensado nisso ou tido essa intenção. Nem precisava pensar. Estava-lhe na voz – tecnicamente com muitas imparidades (para usar calão financeiro agora em voga), quero eu dizer com evidentes desigualdades tímbricas entre os registos. E a Traviata era a personagem trágica, aquela que alguém disse que deseja fortemente a própria destruição, e que a provoca.
 
 
No caso da Callas, a tragédia estava-lhe naquilo que ninguém pode mudar e que é irrepetível, intransmissível: o timbre pessoal. O timbre pessoal e inimitável da Callas era como o tal pássaro nocturno aguçado pela desgraça que lhe batera à porta no dia em que nascera. Era aquela voz diferente de todas. Era aquele timbre de ameaça, de premonição, de sujeição a altíssimos e imponderáveis arbítrios.
Lá disse o velho Nietzsche que na tragédia ocorre um afastamento da ordem natural, deixando-a assim isenta da imitação da realidade.
Uma cor pessoal de voz. Que todos temos, mesmo que não cantemos. A Callas tinha a dela, que era invulgar. E cantava-a por esse mundo. A Callas trazia consigo, no corpo, a voz trágica que transmite o conhecimento e se projecta para os lados de lá do mundo, para a morte, mesmo em desprezo dos deuses.
 
 
A Callas trazia inscrita na cor da voz a História da emoção humana em todos os variegados matizes, cólera, serenidade, raiva, ternura, compaixão, intolerância. Uma neurose. E trouxe a S. Carlos essa História, essa neurose, essa emoção milenar, em Março de 1958, para gáudio dos papalvos mais finaços dessa Lisboa tristonha e de poucos turistas que só esperavam ouvir a voz mais bonita do mundo. Eu tinha 14 anos e não a ouvi, o que foi uma deficiência histórica e emocional no meu destino.
                                                                       
 
 
 
Foi a maior cantora lírica dos tempos modernos, foi. Mas é dizer pouco; ou não dizer tudo. Falta dizer que revolucionou a interpretação operística, ao ponto de quase se poder dizer que esgotou expressivamente o género, que não deixou a ninguém nada de expressivamente novo e interessante, e importante, para dizer por música. As virtualidades de comunicação da voz humana foi como se tivessem começado e acabado naquele som puro e impuro, épico ou melancólico, sombrio ou iluminado de fantasmagorias.
Havia nesse som a tal historicidade de que falei. Uma sobrecarga de memórias cruciais. Rastos da glória e da miséria humanas. Um inconsciente colectivo, se se pode dizer assim, a emergir da palavra cantada. O espectáculo do sofrimento humano a prover o público de nova consciência dos limites que ameaçam a vida dos mortais. O medo.
 
 
A Callas tinha medo de entrar em cena. A minutos do início da récita de estreia da lendária Traviata do Scala de 1955, encenada por Visconti, olhando dos bastidores para o buraco negro que é a sala vista do palco, Maria confidenciava ao então assistente de Visconti, Franco Zeffirelli: “sabes… quando sobe o pano sou capaz de sentir o cheiro do público, o cheiro do suor da plateia, o hálito. Não os vejo, mas sinto-lhes a presença aterradora, mil monstros de hálito quente que me devoram com os olhos. Sei que eles gostariam de me ver morrer ali, no palco”.
 
 
Maria Callas aparece na grande cena lírica europeia no tempo inaugural de uma nova idade, em que o som dos tambores de guerra estavam extintos; num tempo de descrédito das tiranias politicas mais extremas; num tempo em que os milagres económicos e os planos Marshall começavam a fazer efeito nos países vencidos.
 
 
Quando aquela voz soa nas arenas de Verona numa noite quente de Agosto de 1947, cantando a Gioconda, causa funda estranheza. Aquela voz como que recuperava nos imaginários exaustos da tragédia da guerra e da fome um prognóstico de outro paroxismo trágico, uma indecisa lembrança dos festivais de Dionisos, um alarme de cidadania do século V grego.
Aquele timbre exclusivo foi irrompendo com susto nos mundanos palcos da Europa ocidental e das américas como uma ideia blasfema e ritual, a ferir as cordas da ternura e da violência primordiais.
 
 
Há vozes bonitas, há vozes feias, vozes metálicas, vozes doces, vozes boas, vozes más, vozes grandes, vozes pequenas. E na voz da Callas estava a vocação de ser isso tudo. O paradoxo da raridade vocal da Callas sugeria interrogações. O que havia no âmago daquele som? Havia uma maldição. Aí estava a raridade. Tese e antítese. Categoria sonora a esvoaçar sobre a linha indistinta que separa o humano do ser e do não-ser. A maldição que governa as margens da vida. Um poder saturado de significados, reforçado pelo gesto cénico inesperado e invulgar, pela máscara míope, pela inflexão acerada e profética.
Que pássaro da noite aguçado pela desgraça bate à minha porta?
Percebeu-se. Ou percebeu quem percebeu. À voz daquela gorda Maria Meneghini Callas pouco faltava para ser uma instância civilizacional. Aquela voz era o arauto dos novos e felizes anos de ouro políticos e económicos. E todavia… desfraldava véus negros de ameaça.
 
                                                                                    
 
A Traviata. Em Florença, no México, em Milão, em Lisboa, em Londres, em Dallas, em S. Paulo, a Callas apresentou a um público provavelmente estupefacto uma Traviata que podia ser Medea, Electra, Ifigénia, Antígona. Na Traviata prosseguia o compêndio dos subentendidos feitos obscuros, o vendaval das acusações e dos remorsos muito para além das intenções do autor. Anunciava a culpa profunda que continuava a exigir expiação sobre os tablados trágicos. Entregava a mensagem de quem detinha o conhecimento da grandeza e da brevidade de um destino.
 
 
Também em S. Carlos, nas noites de 27 e 30 de Março de 1958, se devem ter ouvido os rumores que traziam em si aromas alaranjados do grande sol dos anfiteatros helénicos. Ouviram-se certamente agudos de vibração laminada, murmúrios de dúvida essencial em pianíssimo, sobressalto de assombrações uterinas, dissidências da terra e do céu. Os que estavam mais perto terão surpreendido um olhar que outro para a distância acusadora, e nesse olhar um pavor nocturno e sacrificial. O rugido de Aqueronte em garganta humana. Sabe-se lá. Um clamor de holocausto? Talvez. A insolência insuportável. Um absoluto de barbárie. O silêncio cantado dos impossíveis. Que importava a realidade?
 
 
Que pássaro da noite aguçado pela desgraça bate à minha porta?
Em Março de 1958, a transbordante audiência de S. Carlos estava na Traviata. Como poderia estar na Medea, na Norma, na Tosca. Pouco importavam os dramas cantados pela contundência daquela cor específica de voz. A voz que se significava a si própria. Aquele som vencia a inteligência que a razão do momento pudesse conceder.
E com esta conversa não tenho feito mais do que expor o estendal das qualidades e dos defeitos da voz da Callas.
Nessa voz, cantasse o que cantasse, alguns iluminados pelo conhecimento sentiam um voltear de antigas velas ao vento, sentiam um singelo e sábio encantamento popular; ou algumas melopeias de fome e de escorbuto. Ou um som de batalhas perdidas. Ou, mais do que tudo, a reminiscência dos monstruosos sucessos havidos na velha casa dos Átridas.
 
 
Porque já em 1947, nas tais arenas romanas de Verona, a Callas se tinha dado a conhecer como intérprete da agrura da espécie humana; já se tinha feito eco da selvejaria por que o mundo acabava de passar; já mostrara a vaga de pânico que ameaçava ainda as incertas madrugadas e as felicidades possíveis, forçando o realismo convencional burguês e elitista da ópera à cognição de um rasgo musical e irreconhecido da angústia.
No panorama da crítica musical lisboeta de outros tempos sempre me habituei a respeitar particularmente a palavra de Francine Benoit. E é dela que recolho as impressões artístico-musicais do acontecimento Callas em Lisboa. Faz uma declaração de princípios: não é anti-Callas não é pró-Callas; é pró-Verdi, é pró-ópera, é pró-Arte solidária e comunitária. Sobre a Callas, cito: “personalidade vincada como cantora e actriz” – acho que talvez seja dizer pouco, mas está conforme ao comedimento escolástico que era tom generalizado da crítica sempre temerosa em classificar o não imediatamente óbvio.
 
                                                                                                       
 
Continuo a citar: “mas também vítima dessa personalidade vincada, entre a fragilidade e a veemência” – e não sei porquê vítima: o jornal não deu espaço a Francine Benoit para explicar. Cito ainda: “usa e abusa dos cambiantes de colorido e exagera o vibrato nos agudos” – o declínio já se aproximava, é preciso dizer. “Figura distinta, insinuante, de harmoniosas atitudes, rosto expressivo, mãos aristocráticas. Desnível entre indumentária e cenário.”
          E mais dizia que a batuta do maestro da circunstância, Franco Ghione (discípulo de Toscanini), se subordinava demasiado à solista. Ah, e também não ficou especialmente impressionada com a última cena da ópera, nela compreendida a famosa leitura da carta e o adeus ao passado da personagem moribunda.
 
 
A Callas era a personificação cénica da personagem chamada La Traviata  - que quer dizer transviada, pervertida – e do seu drama. Não por outra razão à primeira vista, fascinou Visconti, que logo a sonhou como protagonista numa Traviata da sua lavra. E teve-a. A histórica Traviata do Scala de 1955. Muito naturalmente, Callas era uma inspiração para os mais geniais encenadores e directores de orquestra.
Não por acaso, também, outro grande director de ópera, Zeffirelli, se inspirou nela para uma Traviata de tipo cinematográfico em Dallas, ainda nesse ano de 1958.
 
 
Mas no ano seguinte conhece Onassis. As revistas mundanas desse mundo noticiam que a trágica Maria Callas tenciona casar com Onassis, ter filhos dele, e vir a ser uma boa dona de casa – uma artista daquela envergadura sacrificar-se a uma dieta draconiana para ficar parecida com a Audrey Hepburn, também significa alguma coisa… enfim.
 
 
Depois, as notícias da Callas passam por galas, cocktails, night-clubs, cruzeiros, bailes, noitadas no casino de Monte Carlo, perseguição de paparazzi onde quer que esteja. Trabalho artístico: nada, ou muito pouco. Houve quem dissesse que lhe restaria uma única ambição na vida – consequência, claro, do sonho de casar com Onassis: ser a primeira dama do jet set europeu.
E no dia 31 de Março, Maria Callas está de partida de Lisboa.
 
 
À entrada para o avião admiram-lhe o casaco de martas brancas e o pequeno chapéu castanho. Braçados de flores. Que ideia tinha de Lisboa? Nenhuma. Era perigoso ter ideias preconcebidas. E agora? Agora achava Lisboa uma cidade encantadora, cheia de doçura, com um povo amável e sensível. Meneghini, o marido, informa estar em negociações para comprar uma casa nos arredores – o que ele devia dizer em todas as pequenas e exóticas capitais onde a mulher cantava. Ou talvez fosse verdade, uma moradia para os lados de Sintra, por sugestão da marquesa Olga do Cadaval.
A Callas partia. Correu o boato que regressaria a Lisboa no ano seguinte para a Norma. Não regressou.
O magno acontecimento mundano esvaía-se, e a vida continuava mansamente quotidiana e macambúzia na doce Lisboa de 1958.
 
 
A PSP procurava o cadastrado Carlos de Jesus, de 25 anos, solteiro, carpinteiro, por ter roubado 20 contos numa casa onde estivera hospedado. Era moreno (olhar), tinha uma cicatriz no olho direito, um defeito na orelha do mesmo lado e um sinal nas costas da mão direita.
Para oferta de Páscoa, a publicidade sugeria um Pirex.
 
A União Católica dos Industriais pedia a todos os filiados para, na sexta-feira Santa, em sinal de luto pela passagem de mais um aniversário da morte do Senhor, pararem o trabalho nas suas fábricas por 5 minutos.
Pedia-se o ajustamento do estatuto das empresas produtivas aos princípios do corporativismo teórico para obviar à agudeza dos possíveis conflitos que opunham os interesses patronais aos dos trabalhadores.
O Batalhão nº 3 da Legião Portuguesa distribuía um bodo aos pobres.
 
 
E a vida da doce Lisboa de 1958 continuaria quotidiana e macambúzia até ao dia 8 de Maio desse mesmo ano, o dia em que Humberto Delgado emite a sua proclamação como candidato oposicionista à presidência da república.
 
 
Foi um ano de viragem na quotidiana e macambúzia vida política portuguesa.
Segue-se uma campanha eleitoral feita de tumultos de algum modo sangrentos. Seguem-se as eleições e a hipótese de fraude contestada pela oposição. Segue-se que o presidente da república nunca mais será eleito por voto popular. Segue-se o asilo político de Delgado na embaixada do Brasil e o de Galvão na embaixada da Argentina.
 
 
Seguir-se-á em consequência o assalto ao Santa Maria, o trágico começo das guerras em África e a queda do último império colonial.
 
 
Que pássaro da noite aguçado pela desgraça bate à minha porta?
Nada mais seria igual na vida portuguesa desde esse ano de 1958, o ano em que, pela voz da Callas, Lisboa conheceu o som premonitório das tragédias.
E passaram-se muitos (demasiados) anos até que...