CRÓNICAS DE UMA CONSPIRAÇÃO
SICILIANA
(PARTE DOIS)
Chega à Sicília um
importante comando, chamado Corpo de Forças de Repressão do Banditismo,
chefiado pelo homem forte da contra-guerrilha italiana, o coronel Ugo Luca.
Ugo Luca envia um
seu sargento, Giovanni Lo Bianco, a parlamentar com a Cosa Nostra na pessoa de
Giovanni Nito Minasola. Encontram-se, clandestinamente, bem entendido, nas
cercanias de Palermo e o sargento pede sem rodeios ao mafioso a cabeça de
Salvatore Giuliano. O mafioso aceita o encargo, compromete-se, mobiliza o seu
grupo e parte à caça de Giuliano.
Não tem sorte. O
mais que consegue é matar três elementos do bando de Turiddu. Mas ainda lhe
acontece pior: é capturado, cai nas mãos de Giuliano. E Giuliano, furibundo,
confia ao primo Gaspare Pisciotta a missão de levar o mafioso Minasola à praça
principal de Monreale e aí espectacularmente o fuzilar como mensagem de aviso
ao pessoal da Mafia.
Gaspare Pisciotta andou na guerra, foi feito
prisioneiro na Croácia, mandado para um campo de concentração e quando,
terminada a guerra, regressa à Sicília (era natural de Montelepre como o primo
Giuliano) e quando entra para a quadrilha do primo já está tuberculoso. Com o primo e
respectiva seita participa em todas as operações violentas, assaltos à mão
armada, emboscadas às forças da ordem, raptos, sequestros. No dia 1º de Maio de
47 está presente na Portella della Ginestra, ao lado de um operador de
metralhadora pesada a atirar contra os camponeses socialistas e comunistas.
Conduzindo o prisioneiro mafioso Minasola à
praça de Monreale, Pisciotta vai deitando contas à vida. Sabe que o primo
Turiddu é um homem perdido, que anda desesperado, e sabe que por isso mesmo lhe
convém mudar de ares e de companhias. Continuando com o primo, o seu próprio
futuro apresenta-se bastante sombrio. É justamente no caminho para Monreale
para fuzilar o mafioso que Pisciotta resolve mudar de partido.
Chegados à praça, desmontando, Pisciotta fala
com Minasola. Em vez de o fuzilar propõe-lhe um acordo. Está a pensar deixá-lo
fugir e ir à vida dele, em troca de uma apresentação ao intermediário do
coronel Luca, o tal sargento Lo Bianco. Minasola, o mafioso, não tem qualquer
dúvida em concordar, e nessa base Pisciotta liberta-o e diz-lhe para se pôr na
alheta e depressinha.
Regressa ao esconderijo do primo e
comunica-lhe que o mafioso lhe fugiu, o que põe Turiddu fora de si. Mas nem
pela cabeça de Turiddu passa a ideia de que o primo fidelíssimo e seu
guarda-costas lhe esteja a mentir.
Pisciotta (também chamado Aspanu) encontra-se
com o sargento Lo Bianco. Estamos em meados de Junho de 1950. O sargento
faz-lhe o mesmo pedido que fizera ao mafioso Minasola, a cabeça do seu primo
Turiddu.
- Está bem. Eu trato disso. Mas é justo que
me dêem alguma coisa em troca.
- Diz o que queres.
- Quero um atestado de benemerência assinado
pelo ministro Mario Scelba em que se diga que fui eu que libertei a Sicília
aquele louco sanguinário.
- Vamos a ver. E que tal se eu te conseguir
que acabado o trabalho saias de Itália livremente com 50 milhões de liras no
bolso?
(Daria 2,5 milhões dos actuais euros. Nada
mau.)
- Não. Não quero dinheiro. Nem tão pouco me
quero ir embora daqui da Sicília. Olhe uma coisa, sargento… o melhor talvez
fosse eu falar mesmo directamente com o seu comandante, o coronel Luca. Que me
diz?
O encontro entre o comandante da força contra
o banditismo e o próprio bandido acontece. Numa casa dos arrabaldes de
Monreale. Quem lhes está a guardar a porta? O sargento Lo Bianco e o mafioso
Minasola. Armados até aos dentes.
Não, senhores, não estou a contar um filme
(aliás, do meu conhecimento, fizeram-se dois sobre esta história sangrenta e
real, Salvatore Giuliano, o primeiro,
do neo-realista italiano Francesco Rosi, dos primeiros anos 60; e The Sicilian, uma belíssima americanada
realizada mais recentemente pelo genial Michael Cimino), estou a relatar factos
e conspirações reais.
Conspirações em que alguns não acreditam, para
acreditarem mais depressa em notícias de jornal (pseudo, algumas delas) ou em
versões oficiais. E até porque, destes factos houve uma versão oficial,
evidentemente falsa e trabalhada politicamente.
O acordo entre Aspanu Pisciotta e o coronel
Ugo Luca não demorou nem meia hora. Voltariam à fala dez dias depois.
Dez dias depois, Ugo Luca entregava a
PIsciotta o pedido atestado de benemerência. Que rezava assim:
O aqui
designado Gaspare PIsciotta está-se aplicando activamente, conforme informaçães
fornecidas pelo coronel Ugo Luca, no sentido de restituir à região de
Montelepre e arredores a tranquilidade e a concórdia, cooperando para o regular
cumprimento das leis em vigor. Garanto que o seu precioso trabalho será tomado
na máxima consideração. De futuro, serão dadas instruções à autoridade
judiciária para que, com base nos esclarecimentos e justificações que ele
prestar, seja reexaminado tudo quanto pese contra ele, valorizando
cuidadosamente as circunstâncias de cada episódio, sem que nada seja
negligenciado, a fim de sublinhar cada elemento que lhe seja favorável. O
coronel Luca, meu homem de confiança, recolherá todos os dados que se revelem
úteis ao reexame do seu processo. Assinado: Mario Scelba, ministro do Interior.
Evidentemente: o atestado é falso, a
assinatura do ministro é falsificada. Tratava-se de uma declaração armadilhada
e de pouca ou nenhuma substância. Mas o bandido aceita-a como boa e embarca na
conspiração.
Paralelamente, o comandante da força contra o
banditismo ordena que o cerco a Salvatore Giuliano seja levantado de forma que
o bandido possa circular livremente sem suspeitar do que se trama nas suas
costas.
Vai para seis meses que Giuliano está
escondido em casa de um certo Gregorio De Maria, em Via Mannone, Castelvetrano.
Na noite de 4 de Julho de 1950, um Fiat 1100 preto para na Praça Matteotti.
Dele sai PIsciotta. Que olha cuidadosamente em volta. Ninguém. Dali à casa de
Via Mannone são dois passos.
Quando Pisciotta entra na casa o primo
Turiddu está a acabar de cear na sala do rés-do-chão, azeitonas pretas, pão,
queijo, vinho branco. Recebeu uma mensagem do inspector de polícia Ciro
Verdiani, com quem mantinha contactos:Tem
cuidado com o teu primo.
Turiddu fartou-se de rir da mensagem.
Claro que o inspector da polícia sabia da
conspiração entre PIsciotta e o coronel Luca. Giuliano, confinado ao
isolamento, é que já mal distinguia entre amigos e inimigos e não ligou ao
aviso.
Cafés, um resto de conversa fraternal, boas
noites ao dono da casa e subida ao andar de cima.
Dada a qualidade de guarda-costas de
Pisciotta os dois primos dormiam juntos, mesmo quarto e mesma cama.
Turiddu adormece depressa. Pisciotta não. Mas
finge-se adormecido. Batem as três da madrugada na igreja local. Ouvem-se dois
tiros.
As duas balas de 9mm. disparadas à coluna
vertebral de Turiddu, o chamado rei de Montelepre, dão-lhe morte imediata,
instantânea.
Não tarda muito e chegam os carabinieri, sob o comando do capitão
Antonio Perenze – o homem que guiara o carro que levara Pisciotta ao esconderijo de Turiddu.
O cadáver de Giuliano é arrastado escadas
abaixo até ao pátio da casa. No afogadilho dos acontecimentos ninguém se
lembrou do rasto de sangue que foram deixando atrás deles ao transportarem o
corpo. Um erro que destruirá a versão oficial do caso
.
À vista dos que vão chegando é estranho
aquele sangue que sobe escada acima a partir do cadáver depositado no pátio.
Para a versão oficial, o corpo de Giuliano caíra ali mesmo, no pátio, após uma
troca de tiros entre o bandido e as forças da ordem, e quando aquele tentava
fugir aos soldados que o perseguiam.
Um jornalista acabado de chegar, Tommaso
Besozzi, nota a incongruência e propõe-se desmascarar a encenação concebida
pelas forças da ordem. Será ele o primeiro a afirmar, peremptório, que
Salvatore Giuliano foi morto no quarto de dormir e arrastado para aquele pátio
já cadáver, e que não se tratara de um brilhante feito dos carabinieri.
Gaspare Pisciotta tem na mão aquela espécie
de salvo-conduto, de atestado de bons serviços, que o irá proteger por uns
dias.
A revista L’Europeo
traz o caso de novo à tona dos noticiários. A versão oficial, pelo descuido do
rasto de sangue, é facilmente desacreditada. E o implicado Pisciotta, pelo sim
pelo não, resolve voltar à clandestinidade até ver. É o capitão Perenze quem
lhe dá guarida, que o faz escoltar quando vai às compras e que lhe paga a
radiografia aos pulmões tuberculosos.
Mas está na hora de Pisciotta, tal como
acontecera com o primo Turiddu, reclamar a paga do serviço. Já não se importa
de sair do país. Já quer receber dinheiro. Em suma, um passaporte em regra e os
tais 50 milhões de liras na poche era o que vinha mesmo a calhar.
Azar de Pisciotta. A arma dos carabinieri está sob o fogo da opinião
pública. O coronel Luca rói a corda e recusa o pagamento combinado. Precisava
dele, vivo, para limpar o que pudesse da negra folha da sua corporação. Se bem
que, por outro lado, e porque a polícia mete o bedelho no caso, o melhor ainda
seria fazê-lo desaparecer, não fosse ele dar com a língua nos dentes e deixar
as forças militarizadas anti-banditismo ainda em piores lençóis, agora
assediada pelos rivais da polícia.
Mas é a polícia que vai desencantar Pisciotta
encafuado no sótão de uma casa. Levam-no a toque de caixa para Ucciardone, a
prisão de Palermo. Exactamente como o primo Turiddu, Pisciotta sente-se traído,
sente-se usado e deitado fora. E com razão.
Pisciotta
escreve uma declaração que entrega ao advogado para ser lida em tribunal, no
processo que corre em Viterbo desde Junho (ainda Giuliano era vivo e andava a
monte).
Tendo eu
pessoalmente concordado com o ministro do Interior Scelba, declaro que
Salvatore Giuliano foi morto por mim.
O documento apresentado no tribunal é porém
um resumo de uma declaração mais vasta a que o advogado dá o nome de memorial,
dizendo que os acontecimentos de Portella não passaram de um erro de pontaria e
fornecendo os nomes dos mandantes.
O coronel Ugo Luca já está general. Dá uma
entrevista. Admite ter-se servido de Pisciotta para capturar Giuliano, sem
todavia especificar que foi o próprio Pisciotta o assassino do primo.
Pisciotta, engavetado, vai aos arames. Vai
aos arames e vai ao tribunal gritar a realidade dos factos e desmentir o
general.
No dia 16 de Abril de 1951, PIsciotta chama
os jornalistas e revela o nome dos responsáveis políticos pela carnificina de
Portella della Ginestra. Desata a língua e conta a história de fio a pavio,
encontros havidos, negociações entre bandidos e forças de repressão, promessas
de impunidade…
- Senhores, acreditem no que vos digo,
bandidos, mafia e carabinieri eramos todos uma só entidade. Como a Santíssima
Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo! – grita. E mais: - Liquidei Giuliano,
sim mas sem o mais pequeno proveito material. Só pelo que o general Luca venha
a tribunal depor. Sempre quero ver se ele consegue provar que me deu uma lira
dos 50 milhões que me prometeu. Meus senhores, notem bem, eu sou um bandido,
sou sim, senhores, mas um bandido honesto.
No dia 14 de Maio desse ano de 1951, Gaspare
Pisciotta é chamado a interrogatório. Começa por dizer que ingressou no
banditismo quando o que pretendia era ser útil ao ideal de independência da
Sicília.
- Mas esse ideal foi traído. Eu fui traído.
- Traído por quem?
- Pelos chefes do Movimento Independentista.
Eu e toda a guerrilha de Montelepre.
- Traído como? Porquê?
- O meu primo Giuliano abandonou o ideal do
independentismo e envolveu-se com os monárquicos e os democratas cristãos. E eu
disse-lhe: ”não te vás meter com esses, esses vão-nos trair como todos os
outros”.
- E ele?
- Se a Democracia Cristã ganhasse poderíamos
contar com toda a impunidade. Se as coisas corressem mal, emigrávamos para o
Brasil. Foi nessa altura, e estando eu gravemente doente, que me separei de
Giuliano.
- Quem eram as pessoas com quem Giuliano
estava e contacto?
- O onorevole Bernardo Matarella, o chefe
mais notório da D.C. siciliana…
- E…
- O príncipe Giovanni Francesco Alliata,
Giacomo Geloso Cusumano, que eram deputados monárquicos…
- E...
- O onorevole Leone
Tommaso Marchesano…
- Então porque é que depois das vitórias da
Democracia Cristã a promessa da impunidade não foi cumprida?
- Houve uma conferência nas terras de Parini
entre Giuliano, Matarella e Consumano. Depois, Matarella e Consumano foram a
Roma tratar de uma amnistia para todos os crimes, mas o ministro Scelba
opôs-se. Pelo que me contaram a resposta dele foi “com bandidos não negoceio”.
E então o príncipe Alliata ofereceu relógios de ouro ao Giuliano e ao
tenente-coronel Paolantonio. Alliata não pode negar isto.
Vem à conversa o depoimento do pastor,
Giuliano a receber uma carta que lhe encomendava o massacre, carta que ele terá
queimado assim que a leu. Pisciotta confirma a carta. Não confirma a queima da
carta.
- Qual quê! Essa carta nunca foi queimada.
Turiddu guardou-a religiosamente. Os senhores estão a ver… era uma arma para o
que fosse preciso. Chantagem, sim. E então? Contra o Estado. Sim. Há papéis que
não se podem destruir. Eu mesmo li essa carta, meses depois. Foi Consumano quem
a entregou a Sciortino, o cunhado de Turiddu.
- A carta era de Consumano para Giuliano?
- Não, não. A carta era do ministro Scelba,
foi o que o Consumano disse. Mais ou menos isto… “caro Giuliano, bem sabes que
estamos quase a derrotar o comunismo e com a vossa ajuda podemos destruí-lo
para sempre… e assim que a vitória nos sorrir podem vocês contar com a
impunidade total”… assinada pelo ministro Scelba, eu vi.
Nesta altura, Pisciotta põe na mesa algumas
cartas oficiais de gente das forças militarizadas, de inspectores de polícia
com quem era costume colaborarem, terminando a exibição documental com o
atestado de benemerência assinado “Scelba”.
O condecoradíssimo general Ugo Luca comparece
a interrogatório como testemunha e é-lhe perguntado o que sabe respeitante ao
depoimento de Pisciotta.
- Sei que a assinatura do ministro Scelba
nesse atestado de benemerência foi falsificada pelo meu próprio punho. Sei que
esse Gaspare Pisciotta falou comigo e me disse que estava em casa de uma pessoa
de Mazare dell Vallo. Sei que mandei lá o capitão Perenze e que essa pessoa
disse que tinha queimado o documento…
Cento e dez audiências no tribunal de
Viterbo. Chega-se ao outono de 1951 e a fase instrutória do processo é dada por
concluída. As sensacionais declarações de Pisciotta sobre as altas figuras
mandantes do massacre de Portella caíram no vazio, não tiveram consequência. O
procurador-geral Tito Parlatore finge-se de morto e não ordena aos juízes que
procedam contra as altas figuras políticas mandantes do massacre. Que não
estava no âmbito daquele processo averiguar responsabilidades dos eventuais
mandantes.
O procurador-geral pede então a prisão de
Pisciotta e de mais outros treze incriminados nos crimes de banditismo. O
advogado que representa as vítimas de Portella della Ginestra opõe-se à decisão
judicial. Em vão.
A 13 de Maio de 1952 há uma sentença:
PIsciotta e mais onze: condenados; cinco absolvidos por insuficiência de
provas. Para os alegados mandantes, nada. Com fundamento na disposição do
procurador-geral, outro organismo, o Ministério Público, era a sede onde esse
caso deveria ser tratado.
Pisciotta
continuava a falar:
- Há demasiada
gente a quem não interessa que esses nomes sejam tornados públicos e investigados.
Mas eu ainda cá estou para contar toda a verdade. E ainda vos digo o seguinte:
não estivesse eu seguro do que fiz, não tivesse eu em meu poder outros
documentos para apresentar em futuros processos, ah, podem ter a certeza que a
esta hora estaria eu bem longe daqui.
Ninguém ligou a
esta declaração de Pisciotta.
O senador
comunista Girolamo Li Causi – cuja presença naquele dia 1º de Maio de 1947 em
Portella della Ginestra havia sido anunciada e que estaria destinado a ser o
verdadeiro alvo das metralhadoras dos bandidos – pretende relançar
politicamente o escândalo. Faz um discurso no Senado e aponta o ministro
Scelba.
- Porque é que
mandou matar Salvatore Giuliano? Porque mandou calar para sempre aquela boca?
Só há uma resposta a estas perguntas: calou Giuliano porque ele poderia vir a
repetir as razões pelas quais Scelba o mandou calar para sempre.
Ninguém ligou ao
discurso do senador comunista.
Da prisão,
PIsciotta reclama a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito.
Reclama para nada. Ninguém lhe atende a reclamação.
A 8 de Fevereiro
de 1954 PIsciotta pede para falar a um magistrado. É o procurador substituto de
serviço nesse dia, Pietro Scaglione, que o visita na prisão.
Pisciotta com
única ao magistrado a decisão de desmascarar de uma vez por todas os mandantes
da matança de Portella. Insiste nos nomes já revelados. Ajunta elementos e
pormenores até aí inéditos – que obviamente serão para sempre esquecidos.
Scaglione agradece e promete-lhe nova audiência para o dia seguinte, dessa vez
acompanhado por um escrivão para passar a escrito as declarações que Pisciotta
entender prestar.
Não vai ter tempo.
No cárcere de
Ucciardone, em Palermo, nascia o dia 9 de Fevereiro de 1954. Gaspare Pisciotta
prepara na cela o seu próprio café da manhã, aquece-o numa lamparina a álcool,
deita-o na chávena, adiciona uma colher de açúcar, bebe de um trago,
empalidece, desata a gritar “m’ammazzaru!” (“mataram-me”, em siciliano), enfia
uma golada de xarope para a tosse, tenta vomitar o café, não consegue, levam-no
para a enfermaria, são oito e dez, morre, leva para a cova o inconfessável
segredo do massacre de Portella della Ginestra e os nomes dos mandantes.
Vinte gramas de
estricnina no corpo – acusará a autópsia – o veneno vulgar entre os camponeses
da Sicília para embeber as armadilhas para as raposas.
Mas vem a saber-se
pelo chefe da Mafia calabresa, a ‘Ndrangheta que quem trouxe o veneno foi mesmo
um dos seus homens, dada a dificuldade que um siciliano tinha de se aproximar
da cela de PIsciotta. Numa co-produção com a Cosa Nostra siciliana, a
organização irmã da Calábria tratou do assunto com toda a limpeza.
Era mais um favor das mafias ao Estado,
chantageado primeiro por Giuliano e depois por Pisciotta, arranjando maneira de
o Estado se ver livre dos dois e sair limpo, ficando no entanto refém da Mafia,
devedor da Mafia, e necessariamente obrigado em colaborar com a Mafia em novos
e futuros segredos impronunciáveis.
De toda esta longa e enxovalhada conspiração
de Portella della Ginestra em 1947, a Mafia sai reforçada, para não dizer mesmo
legitimada, na sua função de fiel da ordem política siciliana.
Não terá sido passado de simples coincidência,
arrisca o escritor Alfio Caruso, que no preciso dia em que Gaspare Pisciotta
cai envenenado na prisão, o até aí ministro do Interior, Mario Scelba, tome
posse como presidente do conselho de ministros.
Outras coincidências terão sido as mortes,
por assassínio ou suicídio, dos restantes possíveis depositários dos segredos
da matança de Portella, os que serviram de intermediários nos acordos feitos
por Giuliano com as forças da ordem, as testemunhas de encontros
comprometedores, o inspector de polícia que mantivera contactos estreitos com a
seita – o que avisara Giuliano contra o primo.
Por exemplo. Angelo Russo, membro do bando de
Giuliano, envenenado um mês depois da morte de Pisciotta (um copo de bom vinho
da região enriquecido com cicuta). Por exemplo, Cusumano, o deputado monárquico
portador da carta que encomendava a Giuliano o massacre – envenenado. Por
exemplo, o advogado Rodolfo Giglio, fiel depositário do muito falado memorial
de Giuliano – caído a um poço. Por exemplo, o mafioso Nito Minasola que vendera
Giuliano aos carabinieri – abatido a
tiro em plena rua, já em 1960.
Por exemplo, Filippo Riolo, preso sob a
acusação de ter introduzido na prisão de Ucciardone a estricnina que acabaria
dissolvida no café de Pisciotta – morto em Palermo em 1961. Por exemplo, o
inspector de polícia Verdiani, o tal que avisara Giuliano – morto em duvidosas
circunstâncias. Por exemplo, Pietro Scaglione, o magistrado que recolhera as
últimas revelações de Pisciotta, promovido a procurador principal de Palermo e
assassinado já em 1971 pelos celebrados mafiosos Toto Riina e Luciano Liggio.
Que ninguém tivesse ainda ilusões de poder
chantagear infamemente o poder real, quer dizer, o poder que tem a faculdade de
se esconder atrás de máscaras sempre variáveis, sempre mutáveis, sejam crimes,
sejam tumulares silêncios, sejam formalidades processuais; esse poder que se
reproduz mantendo-se sempre igual a si próprio, fénix que se reergue das cinzas
do escândalo em cada sistema de governo, em cada fórmula de Estado, em qualquer
tempo, em qualquer lanço da História, monarquia, fascismo, república,
democracia…
A matança de Estado é arquivada. Não passara
da acção de uma quadrilha de bandidos desesperados comandados por um “louco
sanguinário” (citando Pisciotta), de seu nome Salvatore Giuliano. O resto eram
teorias de conspiração. Nada de cuidado.