UMA MULHER ENTRE AS SUAS SOMBRAS
Há empresas
que estão a obrigar as suas funcionárias a assinar por escrito o compromisso de
que não irão engravidar nos próximos cinco anos. Notícia de hoje, 18 de Junho de 2014. Sim, a
gravidez das mulheres continua a dar problemas, problemas que eram morais e
culturais e que a modernidade e o desenvolvimento transformaram em problemas
laborais e económicos.
É bastante acerca disto que vou escrever.
Assim como hoje, num programa da TVI de hora de
almoço, ouço a um psicólogo dizer (mais ou menos) que essa história da harmonia
conjugal é a mais sinistra mentira da nossa civilização burguesa; que a maioria
dos casais se odeia – no melhor dos casos cordialmente, diria eu; que os casos de
assassínios das mulheres pelos maridos ocorre mais frequentemente no verão, em
tempo de férias, por ser nesse tempo em que não se trabalha que os cônjuges, entregues
um ao outro 24 horas por dia, realizam objectivamente o quanto se odeiam.
Pode ser um exagero. Não sei. Mas que tem muito
de verdade acho que tem. Parece que passados uns anos, e à medida que se vão
conhecendo, a tarefa mais empolgante do casal é cultivar um ódio mútuo, mais ou
menos mascarado pelos rituais familiares de filhos, sobrinhos e netos…
Também é muito acerca disto
que me deu hoje para escrever. E
começando para chamar a atenção para o que imediatamente se segue.
No princípio do século que
passou, Max Planck lançava a teoria dos Quanta, Hilbert definia a teoria dos
Conjuntos, Landsteiner descobria os grupos sanguíneos, Einstein estabelecia a
teoria da Relatividade. Nascia a pintura abstracta e Picasso pintava os seus
primeiros quadros cubistas. A tonalidade musical era posta em causa.
Estudavam-se as vitaminas. Atingiam-se os pólos norte e sul. A indústria
automóvel iniciava a produção em série. Rebentavam os movimentos
independentistas nos Balcãs. A China entrava em guerra civil. Em Petrogrado
nascia uma insurreição que levaria à vitória do comunismo. Freud introduzia a
psicanálise no estudo das doenças mentais. Rebentava a Primeira Grande Guerra.
Mas também é verdade que,
acerca da gravidez e da harmonia dos casais, quero contar uma história irreal.
E não é dizer que entre
tantos magnos acontecimentos, invenções, descobertas este de que vou falar se
agigantasse, mas, pela mesma época, houve um movimento que, se bem apreciado
com os nossos entendimentos de hoje, nos apresenta um conteúdo revolucionário e
civilizacional que talvez até transcenda os marxismos, os leninismos e os maoismos.
Falo do movimento muito lento, quase secreto, da silenciosa emancipação da
mulher – e este “silenciosa” tem alguma coisa que se lhe diga.
Foi um movimento de efeitos
não espectacularmente visíveis, até porque abafados à época pelos avanços
científicos, políticos, sociais e tecnológicos, e surdamente reprimido por uma
milenar civilização masculinizada.
Li então que o movimento
feminista atingia lances algo críticos precisamente na fase de composição de
uma ópera bem especial, Die Frau Ohne
Schatten, ou A Mulher Sem Sombra,
de Richard Strauss e Hugo von Hoffmannstahl – e por isso eu digo que queria
contar uma história irreal.
Li ainda que nas primeiras
décadas do século que passou as mulheres começaram a ser admitidas nas universidades alemãs; e
que em 1908 uma mulher correu o risco (!) de ser nomeada professora
universitária. E ainda que, em 1910, 150.000 raparigas frequentavam estudos
secundários na pátria (ou na mátria) de Richard Strauss. E assim quando se situava
na Alemanha o terreno social mais propício às atitudes reaccionárias
relativamente ao papel a desempenhar pelas mulheres na sociedade fortemente
masculinizada.
Calha que Strauss gostava de
reflectir, na música que fazia (com o poeta Hoffmannstahl a reflecti-lo nos
entrechos que lhe preparava), muito do que acontecia no mundo inquieto que lhe
fervilhava à volta.
Em Die Frau Ohne Schatten há um coro de crianças não-nascidas. Ou
seja, crianças não lançadas à vida, tanto pelas mulheres que não podiam
engravidar, como por aquelas que, podendo, haviam feito uma escolha de vida que
teria a ver com a libertação do que elas consideravam uma das escravaturas da
condição feminina: o ter filhos, o tratar deles, o educá-los, o assisti-los, o
comprometer enfim a sua liberdade e a sua disponibilidade para tarefas outras e
mais equivalentes às dos homens.
Também nessa ópera há um
Canto dos Vigilantes da Noite a incitar as mulheres ao matrimónio e à
maternidade, um canto que diz aos maridos e às mulheres da cidade que se amem,
pois que, deitados nos braços uns dos outros, são como uma ponte sobre o Abismo
por onde o Nada regressa ao Ser.
Pois só começa a existir o
que se pode chamar de família quando existem filhos. As pessoas casam-se e,
como se costuma dizer, vão constituir família. E se os filhos não aparecem a
família não se cumpriu. E daqui se estabelece que um casamento, visto na lógica
de família, é uma passagem para outra condição. A família serão os filhos, os
filhos dos filhos, os filhos dos filhos dos filhos…
Mas a filha dos senhor dos
espíritos, Keikobad, recebeu do pai um talismã que lhe permite mudar de forma e
transformar-se, digamos, numa linda gazela branca. E quando o Imperador captura
essa gazela numa caçada ela logo se transmuta na sua forma de mulher e se casa
com o Imperador.
Era uma mulher especial,
especialíssima. Porque não projectava de si sombra alguma.
O palácio onde vivem
Imperador e Imperatriz sem sombra não pertence ao mundo humano. Nem tão pouco
ao fabuloso mundo dos espíritos. Embora receba de ambos a influência.
A Imperatriz sem sombra está
então dividida entre o prosaico mundo dos humanos e o onírico mundo dos
espíritos. O problema é que se ela não achar dentro de pouco tempo a sua sombra
o seu bem amado Imperador será transformado numa figura de pedra.
Mas acontece que a ex-gazela
branca agora imperatriz no desvario da sua primeira hora de amor físico com o
marido perdeu o talismã oferecido pelo pai, e assim perdeu também a
oportunidade de voltar a ser um animal, e já não poderá sonhar-se a si mesma no
ágil corpo de um pássaro da floresta ou nas formas harmoniosas de uma jovem e
branca gazela. E ouve a lamentosa voz do Falcão mágico a anunciar-lhe a infeliz
situação: se a mulher não projecta sombra, o marido transformar-se-á em pedra.
A Imperatriz não é um animal
– nem pode tornar a sê-lo – e nem é ainda um efectivo ser humano, visto que não
tem sombra, e visto que não é mãe, o que, na cosmogonia tão original desta
ópera, vem a dar no mesmo, sendo a sombra projectada o ápice da manifestação
exterior de uma humanidade a ser integralmente cumprida na capacidade, e na
vontade, de gerar filhos.
Também se pode dizer que Carl
Gustav Jung associava a sombra do indivíduo à infraestrutura psíquica da sua
personalidade. E isto queria dizer um território da mente com o qual será
preciso entrar constantemente em compromissos, no caso de o ser humano
pretender realizar-se em totalidade.
A Imperatriz queixa-se da
severidade do pai. Vira-se para a Ama, um espírito maligno que conhece palavras
mágicas e malas artes suficientes para tudo obter.
- Vá, Ama, ajuda a tua
menina, arranja-lhe uma sombra – implora
a Imperatriz.
Sim, mas para isso será
preciso descer mais baixo do que os varandins daquele palácio que contempla o
céu; será preciso descer ao mundo daqueles que por um bom preço são capazes de
vender até a própria sombra: os humanos.
O Imperador não é muito mais
do que um caçador que persegue gazelas brancas. Dito de outra maneira, quer
conquistar mulheres e com elas se deleitar por longas noites de prazer
exclusivamente sexual – o que cheira a paralelismo com a dupla Don
Giovanni/Comendador: um puro prazer de conquista e sexo fruído sob a ameaça de
uma estátua de pedra que acabará por irromper dos cemitérios a pedir contas ao
desalmado sedutor por uma conduta de vida da qual o sentimento foi afastado…
Aliás, não é preciso ir mais
longe, esta questão do prazer sexual versus procriação tem colocado pesadas
interrogações morais. E teológicas, pois então. Nós, género humano, servimos
para quê, afinal? Para viver a vida e reter dela alguns instantes de prazer
(sexual, for instance)? Para sofrer a
condenação e através do aparelho genital lançarmos cruelmente para a vida entes
que vão, inexoravelmente, cumprir o mesmo ciclo absurdo de sofrimento?
Não sei, claro.
Sei que a ausência de sombra
da Imperatriz é parte da condenação dela ao optar por viver entre os humanos.
Uma condenação extensível ao esposo por privilegiar o prazer sexual –
sentenciado só por isso a ficar duro e frio como uma pedra.
Condenações, enfim, que a
teologia lançou sobre a relação carnal que não tenha por único objectivo a
multiplicação da espécie. Ou a subtracção do direito ao prazer que todos
julgamos inalienável, ainda quando esse prazer se associa ao mundo dos infernos
escaldantes. Muito embora, vamos lá a ver, o catecismo tridentino colocasse
como primordial função do casamento a camaradagem entre homem e mulher, a ajuda
mútua nos acidentes da vida e nos ocasos da velhice…
Mulher é mãe. É? Deve ser. A
fecundidade e a consequente maternidade são condição distintiva de um estatuto
de mulher; ou são a sua glória existencial e o seu martírio; ou são a sua
afirmação no mundo configurado aos cânones viris – que aliás procuram
desacreditar uma imagem de mulher
colocada em pés de igualdade de direitos com o homem, tendo para tanto de
renunciar ao que distingue a sua condição da condição masculina: a maternidade.
Ninguém pode eximir os
modelos masculinos de convivência ao pecado de ter ilegitimado por séculos e
séculos na mulher a busca do prazer sexual em si mesmo, o prazer pelo prazer,
tal um homem. Ilegitimação desencadeada – também – pela mitificação poética da
figura da mulher num sentido único e hipocritamente grandioso de mãe, de fada
do lar, de Madonna sobranceira aos espasmos demoníacos do puro prazer carnal.
Por séculos e séculos o homem quis fazer da mulher não uma cúmplice dos seus
pecados mas um utensílio, a máquina da descendência, negando-lhe o direito a
uma autonomia de prazer, igual à negação do direito a uma particularidade
individual, ao exercício da liberdade de dizer não.
Na ópera (digamo-lo em
português) A Mulher Sem Sombra,
Strauss e Hofmannstahl tomam aparentemente partido na querela
machismo/feminismo que se desenhava na cultura germânica do tempo. E tomavam
(aparentemente) uma posição misógina ao discutir se a mulher apenas cumpria
cabalmente a sua humanidade por meio da gravidez e da conservação dos valores
de uma felicidade conjugal; ou se, por outro lado, a mulher teria originalmente
a prerrogativa de optar – por ser mãe; por retirar da relação com o homem
prazer sexual e assim com ele neste aspecto capital se igualar – decidindo-se
pela primeira hipótese.
Mas nem Strauss nem
Hoffmannstahl inventaram o que quer que fosse de novo. A moral fabulatória (e
fabulosa) bebida em vastas tradições ancestrais já apontava nesse sentido.
Nas sociedades ancestrais a
mãe foi uma criação que induziu o modelo mesmo de família, ultrapassando a mera
realização das pulsões fisiológicas, incorporando os sentimentos enquanto
categoria humana superior. Porque quando se falava da mãe, ou se discutia a
figura da mãe, logo se trazia ao caso a figura da criança.
E tornando à ópera de
Strauss, e descendo ao universo dos humanos, aparece a humaníssima e bonacheirona
figura de Barak, o tintureiro (única personagem que nesta ópera,
significativamente, tem nome próprio), que vive com a mulher, que é mais nova
do que ele, e com três filhos que são só dele e que a jovem mulher não suporta.
A mulher de Barak é o que se pode
chamar de uma insatisfeita. Sente-se incompreendida pelo marido. Mas também dá
mostras de fraca feminilidade e de petulância…
Arrisco perguntar se não será
esta mulher de Barak a personificação que os autores pretenderam fazer das
patologias histéricas por então muito faladas devido aos estudos de Freud.
Diz assim ela para o marido:
- Sinto-me comprada e paga
para ter um marido diante de mim, para tratar da casa, para fazer a comida. Sei
isso. Mas a partir de hoje quero deixar de o saber. Sou tua mulher há dois anos
e meio, e do meu ventre não tiveste fruto algum. Não fizeste de mim uma mãe.
Pus esses desejos fora da minha cabeça e agora é a tua vez de pôr de parte os
desejos que te são caros.
Lembrei-me da Flauta Mágica. Tem alguma relação com a A
Mulher Sem
Sombra. Ambas as óperas decorrem num universo mágico, num lugar
inexistente, sem espaço e sem tempo. E por sinal até foi na Flauta Mágica que a dupla
Strauss/Hofmannstahl bebeu alguma coisa da inspiração para a Mulher Sem Sombra. Sem prejuízo, claro,
de outras ressonâncias misteriosas e mais para o lado wagneriano.
Mas é a interacção dos mundos
e dos valores correspondentes a cada um desses mundos o que interessa. O pai
invisível da Imperatriz, o semi-divino Keikobad (nome de odor persa) pode ser
uma citação do Sarastro mozarteano e dos intransigentes e profundos valores
místicos.
E se Strauss reflectiu de
modo poético na Mulher Sem Sombra as vicissitudes sociais do tempo em que
vivia, também Mozart, ora essa, viveu uma época de grandes reviravoltas
históricas (ao tempo da Flauta Mágica a Revolução Francesa já levava dois aninhos
de vida), e havendo muito quem identifique algumas das personagens da dita Flauta Mágica com personalidades da real
vida vienense do tempo. A Rainha da Noite seria a imperatriz Marie Therese, Monostatos seria um maçon
renegado, Tamino seria o imperador Joseph II e por fim, Pamina seria nem mais
nem menos do que o povo austríaco.
Mas algures, num ignoto ponto
do imaginário humano, as crianças não nascidas ainda se lamentam:
- Queremos chamar por um pai…
queremos chamar por uma mãe… venham… que os vossos passos vos conduzam até nós…
Já se vê que o mundo fabuloso
tem leis implacáveis. Uma dessas leis é que todo o espírito-mulher só possa
circular pelo mundo dos humanos depois de submetida a provas – cá está outra
relação Mulher Sem Sombra/Flauta Mágica - e podendo o espírito-mulher permanecer no
mundo humano se o seu humano esposo a engravidar. Ou desde que esse
espírito-mulher possa projectar sombra, o que, para o caso, vem a dar no mesmo.
A mulher de Barak admite que o desejo de ter
filhos lhe foi banido da mente, tal como deveria ter sido (e não foi) da mente
do marido. É então que vai ser tentada pelas malas artes da Ama. A Ama
acena-lhe com paraísos maravilhosos, sensações deliciosas, alucinações mágicas.
A troco de jóias, peles e belos amantes a mulher de Barak certamente não se
importará de vender a própria sombra, e com ela os filhos ainda não nascidos.
A Imperatriz observa e escuta
tudo em silêncio. Apercebe-se à custa de quê ela ainda poderá gozar do direito
a possuir uma sombra.
Vejamos a coisa por outro
lado. Decerto cansada das restrições que o Código Civil napoleónico havia
infligido à sua condição, a mulher toma como ponto fulcral para a sua
maioridade cívica a equiparação ao homem. E antes de mais quanto ao direito à
educação e ao voto.
Mas já com a Revolução
Francesa aparecera no firmamento das instituições a Sociedade das Mulheres
Revolucionárias, que em 1791 chegara a apresentar à Assembleia Constituinte a
Declaração dos Direitos da Mulher. Alguns pensadores ditos utópicos, Proudhon,
Fourrier, Condorcet, Saint Simon, até elaboraram os princípios de uma doutrina
de emancipação da mulher.
Em 1792, Mary
Wellstonescraft, em Inglaterra – e já que a mulher só parecia existir para
agradar ao homem – exige para a mulher os mesmos tratamentos, educação e
direitos políticos que o homem, e ainda mais o direito de ser julgada pelos
mesmos padrões morais. Mas depois, já no século XIX, apareciam as mulheres do
tipo Georges Sand. Aparecia o movimento feminista nos EUA.
Todavia, em Inglaterra, as
coisas apresentavam-se mais radicais, chegando mesmo à violência física.
Defendiam-se os direitos do trabalho feminino. Começava a publicar-se o Women’s
Suffrage Journal.
E as crianças não nascidas
continuam a implorar:
- Mãe, deixa-me ir para casa…
a porta está aferrolhada, não podemos entrar… mãe, estamos ao frio… mãe, temos
medo do escuro…
A mulher de Barak diz:
- A minha alma está cansada
de maternidade, mesmo sem alguma vez a ter experimentado.
- Renuncia para sempre à
maternidade e despreza o som dos que não nasceram! – replica a Ama. – Ó mulher
especial entre as mulheres! Ó tocha acesa na noite escura! Poderá o teu coração
aspirar a que, através do teu corpo, venham ao mundo mais uns quantos pequenos
tintureiros? Poderá o teu corpo perder a elegância e tornar-se uma estrada
batida? Poderá a tua beleza desaparecer de um momento para o outro?
É por volta da Primeira
Guerra Mundial que decorrem os trabalhos de concepção, composição e estreia da Mulher Sem Sombra. Uma Primeira Guerra
Mundial em que as mulheres substituíram no trabalho muitos dos homens chamados
às frentes de batalha. Um momento historicamente decisivo na luta pela
emancipação feminina. Um dilema imenso. Por um lado, o matrimónio, a
escravizante vida doméstica, a gravidez, o tratamento da prole. Por outro, a
independência desses trabalhos… mas também desses afectos; um pesado sentimento
de insatisfação, uma insuportável falta de convívio com as emoções específicas
da feminilidade.
Já antes dessa guerra
primeira, o movimento emancipativo registara vitórias. No campo económico, designadamente,
conseguindo-se que o trabalho feminino fosse remunerado. E outros passos
positivos no campo da educação, quando foram fundadas escolas especificamente
para mulheres e quando enfim as mulheres tiveram acesso à universidade.
Os homens sentiram-se
inquietos. Sim, sem dúvida. E por aqui se podem compreender os repetidos apelos institucionais (e
políticos, pois então) ao regresso das mulheres ao lar, quer dizer, ao seu
lugar tradicional na hierarquia da família, da casa, do casamento e da
maternidade.
Estreada em 1919, por vontade
expressa de Strauss de o fazer em tempos de paz, ainda que acabada de compor em
1917, Mulher Sem Sombra lançava
exactamente sombras que espargiam ameaça de horrores sociais. Ou ameaças de uma
modernidade temida pelos mais conservadores, a modernidade que entre todas as
desconformidades trazia mais essa, o advento da condição feminina. A fada do
lar, a subalterna do mundo masculino, abalançava-se à equiparação de direitos
com o seu “senhor” e estava a ponto de o conseguir.
Era um tempo de viragens
históricas que expunha as almas aos medos da novidade – eram os
revolucionários, eram os anarquistas, eram os bolchevistas; eram as músicas a
fugir da tirania da tonalidade; eram as pinturas a escapar da figuração do
real; era o automóvel; era a nova ciência da psique a descobrir os mais ocultos
segredos pessoais. E era a mulher: o
inferno para uma estabilidade sacrossanta e masculina.
Uff! Aonde é que iremos
parar?
Seria o limiar de uma
regressão histórica aos tempos do matriarcado? Seria (para os homens) o
movimento emancipativo da mulher mais perigoso e incontrolável do que o
próprio, e diabolizado, comunismo?
E era mesmo…
II
Já nos alvores do século XIX
a medicina, orientada no sentido do orgânico, começava a entender os
funcionamentos do psiquismo. E ainda no século XIX também a medicina, digamos,
mental, levava uma volta: descobriam-se as localizações cerebrais que tiveram no
celebérrimo Prof. Charcot, da escola médica parisiense chamada de Salpêtriere,
um fervoroso cultor – e é de notar que entre os assistentes de Charcot na
Salpêtriere se contava um desconhecido e jovem médico natural de Viena chamado Siegmund
Freud.
Sustentava Charcot que as
perturbações psicológicas se ligavam directamente a perturbações funcionais dos
centros do cérebro, onde a mais pequena lesão anatómica determinava certas
perturbações orgânicas. E a perturbação que mais problemas colocava era aquilo
a que chamavam de histeria. Charcot estudara a esclerose lateral amiotrópica, a
esclerose em placas, vendo-se depois desse estudo em presença da chamada
histeria.
Bom, histeria,
etimologicamente derivava da palavra grega USTERA, que poderia significar
útero, mas que também englobava um sentido de matriz. Uma USTERA que no dizer
de Platão se dava a longas migrações pelo corpo, que desejava ardentemente
gerar crianças, e que quando permanecia estéril se indignava e se punha a
percorrer todo o corpo feminino, a obstruir canais, a dar origem a doenças
variadas e desvairadas. Uma maléfica mobilidade que logo outros entendidos do
tempo, Galeno, um deles, se apressaram a desmentir.
Chamavam um nome à teoria de
Charcot: organodinâmica. Charcot admitia o carácter psíquico da histeria,
postulando a dependência dessa histeria de lesões ocorridas em localizações
cerebrais determinadas.
Mas, é claro, as coisas são
assim mesmo, logo em seguida houve seguidores e assistentes de Charcot que
teorizaram em sentido inverso, afastando-se do mestre, fundando novas escolas
de pensamento neuro-psicológico. Babinsky; Bernheim, em Nancy; o próprio Freud,
em Viena.
Babinsky chegou a desenhar
uma carta topográfica das arquitecturas do cérebro humano, separando as afecções
orgânicas das psíquicas e da pura histeria. As perturbações histéricas não
seriam localizáveis no sistema nervoso e seriam o resultado das perturbações da
personalidade e das lesões da vontade. A
histeria poderia operar uma simulação inconsciente de outras
sintomatologias, poderia disfarçar-se de outras doenças, o que dificultaria o
diagnóstico e o consequente tratamento.
Por processos mágicos, e
durante uma ausência de Barak, a Ama da Imperatriz põe diante dos olhos da
mulher do tintureiro um efebo de grande beleza. E desafia-a a realizar com ele
todas as fantasias eróticas que uma mulher insatisfeita com a sua relação conjugal possa acalentar.
A mulher de Barak repele o
marido, sim, mas, repelindo o marido e não querendo gerar filhos dele, não tem
amantes. Parece ser um carácter genuíno de mulher, a braços com o que pode
entender por escravidão da sua sexualidade – ou da sua feminilidade – e das
últimas consequências dessa sexualidade, a maternidade.
Strauss, não sei, acho
que deve ter querido seguir as modas
científicas do tempo em que compunha esta ópera, e pretendido tipificar
musicalmente na mulher de Barak o que consideraria, muito à feição freudiana,
um caso de histeria feminina.
Na mulher de Barak não há
transferência para outro homem do desejo físico que não sente pelo marido. O
que pode haver é uma contenção do próprio desejo nos limites do seu corpo e da
sua mente. Uma espécie de amor mental, se assim se pode dizer, consigo mesma,
ou com a imagem que faz de si mesma e da sua condição.
A mulher de Barak renuncia às
delícias que considera perversas de um prazer que lhe chegava dos sentidos e da
consciência na figura de um homem, o efebo. E assim recusava figuradamente os
prazeres próprios de uma cultura sexual conformada aos modos machistas, uma
cultura sexual inventada pelo grande inimigo da sua liberdade moral, política e
física, o homem, o macho dominador.
E então, de caminho, e por
falar nisso, à concepção da histeria passa a opor-se a interpretação funcional
e fisiológica e passará a ser estudada não como doença neurológica, e sim como
um síndroma reaccional de proveniência emotiva e só tratável pela psicoterapia.
E de caminho, digamos também que
por muito tempo a única histeria considerada foi a feminina. Charcot ainda
admitia a recorrência da perturbação por motivo de uma pressão ovárica e
realizou experiências de hipnose que ficaram famosas nos meios da
intelectualidade parisiense de então, em memoráveis sessões onde, por exemplo,
Guy de Maupassant era presença assídua.
Mais tarde virão a observar-se casos de histeria masculina. Foi nas situações de guerra, nas frentes de
combate, já na guerra de 14/18, e já depois, na de 39/45. No auge de uma crise
histérica, soldados havia que se dobravam em arco de círculo, cabeça para trás,
aos saltos nas camas das enfermarias a pontos de tocarem o tecto.
Mas voltando ao meu caso clínico-operático… a
Imperatriz discorda dos métodos usados pela sua Ama e cada vez mais se sente
atraída pela Humanidade, embora sabendo que nenhuma criatura espiritual poderá
conviver com os humanos sem ser duramente punida. Grande verdade…
Na figura de Barak a
Imperatriz vai buscar a exacta medida da natureza humana. Identifica um Barak
trucidado pelas suas certezas e pelas suas ignorâncias, dilacerado entre o
sopro divino da tolerância que há na sua nobreza de alma e o telúrico fulgor
que o acomete ao surpreender a sua mulher já privada de sombra. Mulher que acabava
de anunciar a Barak o fim dessa fantochada da fidelidade conjugal, apesar de não
ter consumado nenhum acto adúltero com o efebo que visionara através das malas
artes da Ama. Tudo ficara por uma visão, uma imagem mental.
Percepção e imagem. Entre
estes dois pólos vagueou a medicina no caso da histeria. Sono e vigília.
Realidade e sonho. E no pulsar deste dualismo da natureza humana, Freud
preparava-se para entrar em grande no restrito panteão da glória científica.
A experiência clínica das
situações de guerra ensinava que os soldados feridos podiam, em repouso, de
noite, reviver as emoções do combate, quando no próprio fragor da batalha de
pouco se tinham apercebido. Por meio da imagem mental reproduzia-se a emoção
experimentada quando espírito e físico se achavam em estado de tensão e defesa.
Relembrando o vagabundear
incansável do útero referido por Platão, já os antigos pensavam a histeria como
perturbação de ordem sexual e comparavam a crise histérica a um orgasmo.
A mulher de Barak, como
disse, não cometera, em acto, adultério algum. Induzida pela Ama feiticeira
tivera a visão apetecível do efebo. Só. A imagem mental de um adultério. Só.
Não deixando de ser verdade que a mulher, acabada de renunciar à
sua sombra, alienando de si o direito a uma identidade cultural, e natural,
declarava ao marido que o melhor seria também ele tirar o sentido daquelas
crianças não nascidas que ao espírito lhe imploravam o sopro de vida. E Barak,
de bonzão que se mostrara até aí, torna-se violento. Aparece-lhe nas mãos a
espada provavelmente enviada pelas crianças ainda não nascidas para castigar a
mãe que ainda não o era e lhes recusava o direito ao ser. E perante a violência
do bom Barak, a Imperatriz declara:
- Prescindo da
sombra. É uma sombra de sangue.
E vem a ser Freud a
colocar a histeria sob os auspícios do sexo com a teoria do recalcamento sexual.
Nas meninas, a tendência ao recalcamento sexual parece desempenhar um
papel maior do que nos meninos, e quando os impulsos sexuais se manifestam
tomam de preferência a forma passiva – escreveu ele em 1905.
Mais tarde, em 1915,
por volta do tempo de gestação de A Mulher Sem Sombra, o mesmo Freud escreveria: É preciso considerar também as forças que dificultam o desenvolvimento
sexual, o desgosto, o pudor, a moral, como depósitos históricos das inibições
exteriores que o impulso sexual tem na psicogénese da Humanidade. Pode
observar-se facilmente que a repercussão destas inibições se faz sentir
espontaneamente no desenvolvimento do indivíduo quando a educação e outras
influências exteriores as provocam.
E agora Barak e a mulher estão metidos numa prisão.
Incomunicáveis. Separados. A mulher admite para si mesma a tentação do
adultério a que teve forças para resistir quando fez apelo ao afecto conjugal.
Separados e incomunicáveis, cada um deles só pensa em reencontrar o outro…
Confrontada com os
sofrimentos humanos, a Imperatriz foi tomando consciência das dificuldades dos
que habitam este mundo, homens e mulheres, e sendo a primeira dessas
dificuldades a de vencer a morte. Ou a de viver plenamente a vida, pois
compreendeu que os sacrifícios e os sofrimentos são o alto preço que os humanos
pagam por essa plena (talvez absurda) fruição da vida.
Eu não sei é se
destes magnos problemas místico-existenciais poderemos partir para a
irrelevância em que se poderá tornar esse conflito entre o mundo masculino e o
mundo feminino, ambos sujeitos à tragédia da condição humana, heróis e vítimas
uns e outros, e joguetes das poderosas forças obscuras que habitam neles. Não
sei.
Mesmo já na Flauta Mágica o conflito é entre as forças do matriarcado e
as do patriarcado. Sarastro e Rainha da Noite assumem a paternidade e a maternidade
específicas e inerentes ao universo em que se movem. E Sarastro e a Rainha da
Noite passariam a ser símbolos cantantes desses dois poderes, dessas duas
ordens de razões em confronto desde as eras mais remotas.
Assim como A Mulher
Sem Sombra, vê as luzes do palco nas históricas imediações da Primeira
Guerra Mundial, e no contexto de um quantidade de estudos, descobertas,
invenções e movimentos que passariam a marcar para sempre a História humana, a Flauta Mágica é concebida (ou mesmo
inspirada) na esteira das perturbantes notícias da Revolução Francesa.
Revolução, aliás, onde as mulheres tiveram os seus clubes próprios, de
inspiração mais ou menos maçónica, embora de sinal feminino.
Mas para se ter uma pálida
ideia de quanto esta questão da condição da mulher era importante na Alemanha, diga-se que em
1904 se fundara em Berlim a Liga Nacional Para o Voto Feminino. Um voto feminino
que acabou por ser aceite, embora muito, muito gradualmente.
Um século antes, 1804,
na Inglaterra a mulher podia ser eleitora (não elegível) para o municípios
rurais. E eleitora para os concelhos de condado só depois de 1888 – e elegível em 1907. Até ser eleitora
e politicamente elegível sem restrições em 1928.
Em França, contudo,
apesar das Georges Sand, das mesdames de Staël e de Curie, a mulher deixava –se
ficar muito mais tempo paralisada pelas restrições e pelas sujeições ao
universo masculino (o pai, o marido) por imposição do Código napoleónico. E
seria preciso esperar por 1944 para a mulher francesa ver consagrado o seu
direito ao voto.
Pode nem ser
insignificante dizer de Mozart e de Strauss que foram dois misóginos geniais
que iluminaram o mundo e a vida de homens e mulheres.
Em Mozart podemos compreender
isso ao percebermos que na Flauta Mágica cabe à mulher a representação das forças do
obscurantismo, da irracionalidade e do mal, e tudo isso passando pela personagem
da Rainha da Noite e das suas vocalizações excessivas, intransigentes,
orgiásticas… demoníacas. E é ao homem patriarcal, gravemente representado pelo
cinzentão do sacerdote Sarastro, a quem compete o papel de guardião da paz e da
concórdia, da luz e do conhecimento.
O arrependimento da
mulher de Barak por ter cedido a sua sombra e admissão de culpa por ter sido
tentada pelo adultério, leva à reconciliação entre os cônjuges - o que dá a
ideia de um regresso à normalidade, e normalidade que no ver dos autores da
ópera era uma naturalidade. Uma naturalidade machista, pode dizer-se. Ou, no
melhor dos casos, uma naturalidade que significava a continuação do compromisso
entre os sexos, feito, já se sabe, sob a batuta dos homens.
Da baixeza da
prisão, Barak e a mulher, por intermediação de um espírito, ascendem às esferas
superiores. Mas continuam a procurar-se. A Ama está deitada aos pés da
Imperatriz que dormita na antecâmara do templo. E a Ama fica possessa ao ver
os dois miseráveis mortais circularem em territórios reservados à elite. E
trata de inculcar nos dois esposos as imagens mentais e as enganosas palavras,
por forma a confundi-los no desejo de se reencontrarem.
A Imperatriz
dormita na expectativa da decisão que há-de chegar do mundo dos espíritos
quanto ao seu destino. Depois é levada à presença de uma austera figura de
rosto vendado. Que lhe diz:
- A água da vida
escorre de uma fonte dourada. Bebe dessa água e a sombra da Mulher será tua.
A Imperatriz recusa.
Ouve os lamentos desesperados de Barak e da mulher. Procuram encontrar-se e não
há meio de o conseguirem devido às interferências malignas da Ama.
A Imperatriz está em
processo de humanização, quer encontrar o seu lugar no mundo humano. Levanta a
cabeça e vê no seu trono, já quase todo petrificadinho, o Imperador seu marido.
Os olhos dele ainda piscam, estão vivos, vão resistindo ao processo de
petrificação e comunicam-lhe uma angústia sem nome. Há uma voz a tentá-la:
- Vá, diz: “eu
quero”. Se o disseres, a sombra da mulher será tua. Se disseres “quero”, aquele
que está ali sentado e meio feito em pedra voltará à vida e viverá contigo.
- Não, não quero –
responde a Imperatriz.
Finalmente
compreendera a Humanidade. É por isso que despede a Ama, o mediador com o mundo
dos espíritos, a componente sobrenatural da sua vida. Banida a Ama, a
Imperatriz corta definitivamente as pontes com o universo dos sobre-humanos,
com o sobrenatural. Não conseguiu uma sombra, é certo. Em compensação aprendeu
com os humanos o valor do sacrifício e agora quer viver em plena humanidade,
nem que para tanto tenha de sacrificar o ente que lhe era mais querido, o
Imperador, em lugar de precipitar a infelicidade de terceiros.
A Imperatriz tomou
a sua decisão em plena liberdade, e como tal suportando o ónus da
responsabilidade. Liberdade e responsabilidade. Conceitos sombrios. Uma mulher que
gera naturalmente os seus filhos ficará para sempre atolada na suas
responsabilidades domésticas e limitada na fruição livre da vida? Pergunta-se.
E pergunta-se se uma mulher liberta do fardo da maternidade será uma mulher
inteiramente disponível para a liberdade de Ser. De ser mulher. Não de ser um
quase sub-produto masculinizado da natureza. Pergunta-se…
A Imperatriz recusa
o oculto, o sobrenatural, mundos complementares ao concreto e ao visível, e
que, isoladamente, não fornecem a explicação da vida (como o racional não
fornece), não nos dão a integral medida do curso do tempo ou da totalidade do
espaço.
Sobrenatural e oculto podem
significar uma vontade de negação de negação; de negação da morte, a suprema
negação; a negação do fim. Mas a riqueza do real concreto da vida assenta na
aceitação de um glorioso e humano destino de finitude, porque o sentido da vida
é o próprio aleatório e porque o real é a oportunidade que se ganha e que se
perde. E pela oportunidade ganha ou desperdiçada se vence ou se desperdiça a
própria vida.
A Imperatriz interioriza uma
nova aspiração: viver; viver entre os humanos a plena e frágil humanidade do
seu estatuto, recente e magicamente adquirido. E Barak reúne-se por fim com a
mulher. E ambos se regozijam, pensando na sua futura e exaltante vida de cuidados
domésticos.
Quando uma sombra começa a
despontar de si, a Imperatriz compreende que superou a mais espinhosa das
provas, que era a da disponibilidade para um sacrifício.
O Imperador, que se deixara
estar em silêncio, desce do trono e alegra-se com o cântico das crianças que não
nasceram e a que doravante o casal pode franquear as portas da existência.
Por falar nisso, em Portugal
realiza-se um congresso feminista em 1924, e o voto é permitido às mulheres
desde 1931.