quinta-feira, 28 de março de 2013



       A VERDADEIRA (E TRISTE) HISTÓRIA DE     
           D. CARLOS,  PRÍNCIPE DE ESPANHA



O HERDEIRO DO TRONO

Em Abril de 1560 toda a corte de Castela jurava solenemente lealdade ao infante D. Carlos enquanto “príncipe real e sucessor dos reinos de seu pai, e depois da morte deste como seu rei e senhor natural”. Uma cerimónia que durou nove horas, entre banquetes e torneios.
Foi perceptor do infante, e que o tinha sido também do pai, um erudito, de seu nome Honorato Juan, e em 1555, Carlos tem o seu primeiro livro, La Corónica de Rrey Don Alonso, El Honzeno,  e logo depois, além de outras crónicas dos reis da Espanha medieva, o romance de cavalaria Amadis de Gaula, as Metamorfoses, de Ovídio, o Orlando Furioso.

                                                                           

Entre 1555 e 1564, Felipe permaneceu em Espanha e dividiu muito do seu tempo livre com o filho em caçadas e pescarias, sem que nada conste sobre alguma sombra de dúvida que lhe passasse pela cabeça quanto à sanidade mental do filho e subsequente capacidade para lhe suceder.

                                    

Em 1557, Felipe redige testamento e dispõe que seu filho D. Carlos será seu herdeiro universal e que governará a Espanha, os Países Baixos e os territórios do ultramar após a sua morte – ainda que sob a tutela de regentes até que faça os vinte anos. Porém, dois anos passados sobre esta primeira redacção do testamento, Felipe manda acrescentar-lhe um codícilo a estipular que Carlos governará as espanhas e todas as outras possessões logo que seja casado, e mesmo que ainda não tenha completado os vinte anos. 

                                                                           
                                                     

O imperador pai de Felipe, Carlos V, esteve de acordo. Esteve de acordo e falou com a irmã, Catarina de Portugal, pedindo-lhe que reconhecesse os direitos do príncipe D. Carlos como herdeiro da coroa portuguesa, dando-se o caso de o seu outro neto, Sebastião, morrer sem deixar descendência.


Felipe estava viúvo de Maria Tudor . A presença inglesa em Calais parecera-lhe, a princípio, ser o melhor tampão a obstaculizar os que cobiçavam o seu senhorio sobre os Países Baixos. Nessa altura, porém, viúvo, desobrigado das conveniências de ajudar os ingleses, e reflectindo que já não precisaria deles em Calais para defender os seus interesses na região, Felipe está a um passo de aceitar uma paz francesa oferecida por Henrique II. Uma oferta que se corporizava na filha mais velha do rei de França, Isabel de Valois, de doze anos, a dar em casamento ao infante D. Carlos.  Felipe não ia muito fora disso.
Mas o primeiro a pensar na reviravolta do destino da própria filha foi Henrique II, quando posto perante a viuvez de Felipe, e considerando as vantagens acrescidas de casá-la com o pai em vez do filho – e na perspectiva de nos próximos anos, dada a idade de Isabel, Felipe não vir a ter mais herdeiros.


Os embaixadores de Espanha informam a corte francesa da aquiescência do seu rei em casar-se com a primogénita do rei de França, exactamente nas mesmas condições e sob articulado idêntico ao do acordo já assente para o casamento da princesa com D. Carlos.
E assim foi.


A paz de Cateau-Cambrésis é assinada a 3 de Abril de 1559. Franceses e espanhóis, segundo o tratado, devolviam os territórios conquistados entre si nos Países Baixos. Em Itália, Henrique cedia praticamente todos as possessões que Felipe reclamava, incluindo Nápoles, Sicília e Milão, retirando tropas de Mantova, Sabóia e Génova.
É daqui que a ficção lírica de Verdi, o D. Carlo, arranca. Daqui, digo, da profunda decepção de Carlos e Isabel, já muito envolvidos sentimentalmente, ao conhecerem o desfecho, para eles inesperado e inconcebível, das negociações.


Carlos levantava-se antes das sete, rezava, comia qualquer coisa, às oito e meia ouvia missa, e acabada a missa dedicava-se ao estudo; almoçava por volta das onze, e depois do almoço entretinha-se à conversa com os que o assistiam, até às três e meia, que era quando merendava, para voltar às lições até à hora de jantar; antes de ir para a cama, às nove, despachava as contas de um rosário inteiro.
Mas não tinha aproveitamento satisfatório nos estudos. Estava de má vontade, como de má vontade estava nos exercícios físicos, jogos e esgrima. Para o levar a fazer alguma coisa de boa mente era preciso acenar-lhe com recompensas.
Tinha uma perna mais curta do que a outra, um ombro mais alto do que o outro, os músculos eram atrofiados, era canhoto, gaguejava, era atreito à malária. Depois de cada ataque de malária ficava fraco, prostrado, incapaz de fazer o que quer que fosse.
Felipe pensa fazê-lo mudar de ares, acho que como pai devo ver o meu filho curado desta enfermidade. Pensa mandá-lo para Gibraltar. Mas para onde ele de facto vai é para Alcalá de Henares. E vai acompanhado pelo tio, D. Juan de Áustria e por Alessandro Farnese. Vai disfrutar de aragens mais saudáveis e frequentar estudos universitários – finca-pé do rei seu pai, que desde muito novo metido a responsabilidades de Estado não os chegara a completar.


A QUEDA

Tudo corre bem em Alcalá. A princípio. Os ares eram realmente bons e Carlos parecia compenetrado a sério nos estudos.
O pior aconteceu no dia 19 de Abril de 1562. Quiçá devido à diferença de tamanho das pernas, Carlos tropeçou ao descer umas escadas, caiu e bateu violentamente com a cabeça.
Saiu apenas aturdido da queda. Ainda conseguiu falar com os médicos que o atenderam e lhe vendaram a ferida da cabeça, e o sangraram e o purgaram.
Passados não eram dez dias, dizem os historiadores que por falta de esterilização das ligaduras, a ferida infectou com gravidade, deitou muito pus, sobrevieram febres altíssimas e Carlos começa a delirar. A infecção tomava-lhe o sistema linfático. A cabeça, o pescoço e o peito enchiam-se de pústulas. Os olhos foram também afectados e tiveram que ser-lhe vendados.


Felipe vai a Alcalá ver o filho. Dizem-lhe que está a melhorar. Felipe regressa a Madrid. Da próxima vez que tornar a Alcalá irá acompanhado de Andreas Vessalius, médico da corte imperial de Carlos V, o mais afamado cirurgião da Europa do tempo (dizem-no o pai da anatomia moderna), o mesmo que estivera à cabeceira de Henrique II de França, tentando curar-lhe a ferida na cabeça que lhe foi fatal.

   
                         

                               

Vessalius diagnostica: abcesso extra-dural. Vessalius propõe o tratamento: uma trepanação. Entretanto, chegam uns médicos espanhóis e um curandeiro árabe. E discordam do famoso físico.
Seguem-se, digamos, juntas médicas, às quais  Felipe está sempre presente. Os clínicos eram compêndios abertos e desfaziam-se em tratados e citações. Foram catorze dias exasperantes para o rei, que às tantas atirou a albarda ao ar e exigiu mais acções concretas e menos teorias.
Aliás, Felipe parecia depositar mais fé no sobrenatural do que na medicina dos homens, e por isso ordenou orações intensivas e procissões por todo o reino, suplicando ao Altíssimo a cura do filho e herdeiro. Ele mesmo, Felipe passou horas esquecidas em fervorosas orações à cabeceira de Carlos.
No dia 7 de Maio, os físicos que tratavam do príncipe arriscaram um prognóstico desesperado. Carlos teria mais quatro horas de vida, se tivesse.
Felipe não se conforma. Monta a cavalo e ala para Madrid. Vai para junto dos monges de São Jerónimo orar pela alma do filho, à espera de notícias do fatal desenlace.
Em  Alcalá, e em desespero de causa, os médicos estão a raspar o crâneo do príncipe e a explorar-lhe a ferida. Isto pelo lado da ciência. Por outro lado, o da fé, actuavam os franciscanos ao desenterrarem do seu convento os ossos de um certo varão morto em cheiro de santidade, de sua graça Frei Diego de Alcalá.


 Desenterradas as ossadas, lá vão os bons dos franciscanos colocá-las em volta da cama do príncipe.
E o certo é que o príncipe toca nos ossos do falecido monge e o processo de cura inicia-se. A  febre desce. Passa-se uma semana e já é possível aos médicos limpar os abcessos que cobriam a cabeça, pescoço  e  cara de Carlos, e da cabeça conseguem extrair um pedaço de osso necrosado.
Felipe comemorou as melhoras do filho com esmolas, com indultos a presos de pequenos delitos. E alinhou em quantas procissões pôde.
Historiadores bem abalizados opinam que Felipe II não era só nos vivos que confiava quando queria convocar para as suas causas impossíveis alguma intervenção do sobrenatural. Podia recorrer também aos mortos. E coube neste recurso os esforços que fez para a canonização de Frei Diego de Alcalá, porque às relíquias do monge atribuía ele papel determinante na salvação da vida do filho. Estava-se perante um mais do que evidente milagre. E a canonização consegui-la-ía em 1589, concedida por Sisto V.
A 16 de Junho, dois meses passados, já Carlos se levantava da cama e se abraçava ao pai. Já recebia embaixadores em audiência – sentado e com um largo chapéu a encobrir-lhe a ferida.
Estava muito pálido e muito débil. É pequeno de estatura, muito mais pequeno do que seria de esperar na idade dele, 17 anos – reportou o embaixador de Veneza.
No domingo seguinte já Carlos teve forças para ouvir missa e ir aos touros. Mas nunca mais voltaria a ser o mesmo rapaz.
Esteve para ir com o pai a Monzón, e aí, nas cortes de Aragão, ser reconhecido como príncipe herdeiro, mas não pôde, atacado como estava de malária. Caiu à cama de novo, muito doente, e foi-lhe feito o testamento, e foi-lhe preparado o funeral, e foram encomendadas em intenção dele missas aos milhares.
Mas salva-se mais uma vez.
O barão Dietrichstein chega a Madrid como embaixador imperial e com o expresso encargo de tratar das bodas do príncipe de Espanha com Ana, a filha do imperador Maximiliano, tal como estava planeado.
O barão avistou-se com Felipe. E ficou confuso ao ouvir as evasivas do rei a respeito daquele casamento.
Visto isso, o barão, mais ou menos à sorrelfa, começou a perguntar do príncipe. Schlecht genueg. Mal.Ouviu dizer muito mal. Não contando com a deformidade do corpo, o príncipe era dado a constantes oscilações de humor.
Dietrichstein informa o imperador seu amo: há muitos aspectos em que o príncipe dá mostras de uma compreensão clara, mas há outros em que parece uma criança de sete anos. Quer saber tudo, pergunta tudo, mas sem nenhum objectivo nem propósito. O raciocínio não me parece bastante desenvolvido para que possa distinguir o que é bem e o que é mal, o que é importante e o que é supérfluo, o que é possível e o que é impossível. Sim, e depois também confundia os sons do “r” com os do “l”. E era de temperamento impulsivo e violento. E dizia aquilo que lhe viesse à cabeça sem cuidar de saber se podia ofender. E perdia facilmente as estribeiras. Mas também era profundamente religioso. Mas também era amigo da justiça e da verdade. Mas também odiava a mentira e não perdoava a quem lhe mentisse.


Houve gente a dar palpites – o próprio pai - sobre uma possível dupla personalidade do príncipe D. Carlos. Tiene tiempos, en algunos de los quales ay más serenidad que en otros.
À luz dos conhecimentos médicos de hoje, a descrição de Dietrichstein corresponderia aos sintomas psicopáticos possíveis de desenvolver num jovem que tivesse sofrido forte traumatismo craniano: a desinibida malícia de um rapazinho com uma lesão frontal (na opinião do neuro-cirurgião pediátrico contemporâneo Donald Simpson).
A posição de Felipe perante o comportamento do filho, arriscam os historiadores, seria uma complexa mistura de culpa, negação, impotência e cólera.
Apesar disso tudo, o embaixador imperial não desistia de cumprir a missão de que estava encarregado e queria mesmo tratar do casório. O que obrigou Felipe a explicar-se mais miudamente ao imperador pai da rapariga, com o amor e a sinceridade que sempre convém usar entre nós. E falou-lhe da pouca disposição do filho para que ele lhe desse mulher. Já lhes tinha, em tempos, e com alguma subtileza, falado do assunto. Pois a situação não tinha mudado desde então.
Os investigadores das vidas reais teriam gostado de saber em que momento, sensivelmente entre o outono de 1564 e o preciso dia 18 de Janeiro de 1568, decidira Felipe que D. Carlos não podia nem devia suceder-lhe no trono. Teriam gostado, mas nunca chegaram a uma conclusão definitiva.
Em suma, aquilo a que o embaixador francês chamava de imbécilité convencera o pai a deixar cair o casamento de Carlos com Ana de Austria.


O príncipe não ouve ninguém nem respeita ninguém e é de natureza uma pessoa muito cruel, escreveu Giovanni Soranzo ao Senado de Veneza em 1565. Tinha costumes bizarros, o diabo do rapaz, e em tudo exibia orgulho e arrogância.
Mesmo assim, ou por isso mesmo, tinha o que queria do pai. Por exemplo, quis que o Conselho de Estado e o Conselho de Guerra reunissem nos seus próprios aposentos, e conseguiu, e o pai pô-lo a presidir a esses conselhos e dos conselheiros exigia ele todos os dias que lhe obedecessem sem discutir.
Frei Bernardo de Fresneda, confessor do rei, adiantava (como quase sempre ao embaixador francês) que por causa das graves deficiências do filho o pai seguira a táctica de lhe fazer as vontades em matérias que em condições normais nunca permitiria.
Felipe II, o rei mais severo e temido da História, mimava o filho – consequência dos atravessados sentimentos que lhe moíam o íntimo a esse respeito. Não só o autorizava a presidir aos conselhos como autorizava que dos cofres reais Carlos tivesse permissão de levantar grandes somas de dinheiro.
Em Agosto de 1566, Carlos foi apanhado a escutar às portas. E às portas da câmara do rei, enquanto decorria uma reunião respeitante aos problemas da Flandres. Um dos gentil-homens de Felipe ia passar naquele corredor e surpreendeu o príncipe. Disse-lhe que se pusesse a andar dali que Sua Majestade não tardaria a sair e que ele estava a ser visto de uma janela pelas damas e págens da rainha naquela figura ridícula. E o príncipe herdeiro do trono de Espanha não faz mais nada, vai-se ao gentil-homem ao murro. O rei foi sabedor, ralhou com o filho, todavia sem deixar esmorecer a esperança de que aquele maldito feitio mais tarde ou mais cedo viria a mudar.
E é claro que Carlos soube das negociações para o casarem com Ana de Áustria. Soube e ficou encantado. Até tinha conseguido um retrato da princesa e já o pusera a bom  recato, numa caixa redonda de ébano, emoldurada a ouro e prata. E até lhe deu para tirar lições de alemão – pagas com o seu dinheiro.
Nesse entretanto atirava ele um pagem por uma janela fora. Porque o desgraçado do pagem cometera um crime de lesae majestatis, justificou. Odiava todos os criados que o pai pusera ao serviço dele, e por isso lhes batia muitas vezes e os ameaçava com um punhal.  Com o mesmo punhal chegaria a ameaçar o seu próprio mordomo, Don Fadrique Enriquez.
Ia às meninas todas as noites. Disseram que com pouca dignidade e muita arrogância.
Em  Agosto de 1567, Felipe desabafa com o embaixador de França. Estava tão farto e desgostoso do príncipe seu filho que se não fosse pelo falatório que se seguiria fecharia o filho numa torre, a ver se ele aprendia a ser mais obediente.
Com a questão da Flandres a tornar-se dramática, Felipe sente-se na obrigação de se trasladar para lá. Mas não quer, nem pode, descurar os negócios que o prendem em Castela. Pensa na irmã, Joana, que aliás já assegurara a regência em Espanha quando da longa ausência de Felipe justamente nos Países Baixos. 

Mas Joana, depois dessa experiência nunca mais quisera nada com a política e com a governação e recolhera-se a um convento. Restava o infante. E aí o lúcido Felipe tinha a cabeça cheia de dúvidas. O comportamento anormal do filho não o recomendava nem em sonhos para governar, e menos ainda sobre território tão problemático.
O embaixador comentaria depois que entre o rei católico e o príncipe seu filho havia tal animadversão que se o pai odiava o filho o mesmo se poderia dizer do filho para com o pai, e que daquele estado de coisas grave infortúnio haveria a esperar.
Carlos toma conhecimento de que a madrasta, Isabel, deu à luz outra menina, e que, por conseguinte, continuava a ser ele o único filho varão do rei. Nessa noite disfarça-se de mouro, toma parte num simulacro de batalha realizado mesmo defronte do Alcázar de Madrid, e acabado o torneio vai correr as ruelas da capital nos copos e na estúrdia com um grupo de cortesãos amigalhaços, e por lá anda toda a noite.
Carlos afadigava-se a angariar dinheiro, a contrair dívidas de alto porte.
O biógrafo de D. Juan de Áustria, meio irmão do rei, trouxe a lume cartas com data de Dezembro de 1567, assinadas “Yo el Príncipe”, intimando um de seus validos a arranjar-lhe sem falta 600.000 ducados para que se cumpra tudo aquilo que tenho ordenado, fazendo-o com o segredo e a decência que se puder.
Para que era o dinheiro? Mistério. Numa primeira tentativa de explicação estariam os gostos de Carlos, a sua ânsia de emulação com o pai – fazer ver ao pai que ele não era nenhum destituído, era até um moço de gostos refinados, e que tinha todas as condições para herdar o trono. 
Carlos mandara comprar uma grande colecção de esculturas e moedas romanas – campo cultural dos raros que não parecia interessar o pai. Carlos encetara tentativas para comprar uma colecção de antiguidades gregas e romanas pertença de Diego Hurtado de Mendoza – acabaria por adquiri-la por 10.000 ducados. E pintura. Comprou muita pintura. E patrocínio de obscuros poetas, escritores e homens de ciência. Sim, patrocinou, tanto espanhóis como estrangeiros, um florentino, nomeadamente
Não era no entanto para o mecenato cultural que escorria a maior parte do dinheiro que Carlos pedia emprestado. Esse dinheiro (grande parte dele) era para o jogo, para as apostas.
Carlos jogava em tudo, dados, cartas, e apostava em tudo, corridas e outras competições em que se metia. Jogava, apostava, e perdia. E perdia muito mais do que ganhava. A seu tio Juan de Áustria pagou ele, em Setembro de 1567, 60.000 maravedís, por uma aposta em concurso de tiro de arcabuz. 3.300 reais pagou ao tio por uma corrida que o tio lhe ganhou. Até com Estanislau, o anão do rei, Carlos perdeu apostas e jogos.
E jogava amiúde com a rainha sua madrasta. E perdia.
E fora do jogo e das colecções de arte, para que mais queria o príncipe tanto dinheiro?
Os contabilistas do Real Tesouro auditaram em 1572 as contas do príncipe. Algumas rubricas vinham com designações propositadamente ambíguas – 10.000 ducados que entregó Sua Alteza para dar a cierta persona secreta, por exemplo.
Seria esse dinheiro destinado a financiar os planos de fuga que Carlos projectara no seu último mês de liberdade? Fuga para quê, porquê, para onde?
Mais tarde vêm embaixadores informar das cartas que Carlos escrevera a alguns nobres. Anunciava-lhes a importante viagem que tinha para empreender e convidava-os a acompanhá-lo. Quando pouco tempo faltava para ser preso, Carlos tivera a ideia de enviar uma quantidade de cartas mencionando essa viagem. Cartas aos nobres, mas também ao rei, às autoridades de diversas cidades espanholas, aos tribunais. (Quem o teria aconselhado a tal?) E missivas a potências estrangeiras, revelando o injusto tratamento a que o pai o submetia.
O embaixador Pereira: vim a saber secretamente que o príncipe estava resolvido a partir para algures e que tinha até quem o seguisse, o Duque de Medina de Rioseco, filho do almirante de Castela, de quem, devidamente assinado, sacara um documento-promessa de o seguir.
Para o bom sucesso desses planos do príncipe era de importância máxima a colaboração de seu tio D. Juan de Áustria. O plano poderia requerer uma viagem por mar e D. Juan era o capitão-geral das marinhas reais. Só ele poderia dispensar-lhe as galeras precisas.
Carlos e o tio reúnem-se no dia 16 de Janeiro desse ano fatídico de 1568. Carlos abre-se com o tio. Suplica-lhe uma ajuda. O tio pede vinte e quatro horas para reflectir e abandona a reunião. Abandona a reunião e vai direitinho à câmara do rei seu irmão comunicar o caso.
Carlos percebe o jogo do tio. Corre aos seus aposentos e lá carrega e engatilha um arcabuz. Ordena a um criado que corra a chamar D. Juan de Áustria de novo à sua presença. Não vê alternativa. Terá de matar o tio como castigo pela traição cometida contra o príncipe real, o herdeiro do trono das espanhas. Um gentil-homem de serviço à câmara do príncipe apercebe-se  das intenções do amo e pela surra descarrega o arcabuz. O tio Juan de Áustria, vindo da câmara do rei, entra-lhe  no quarto. Carlos deita a mão ao arcabuz, sente que está descarregado e em desespero de causa não faz mais nada, saca da adaga e corre para o tio, e atira-se a ele.


O tio, claro, era homem forte, e repele-o. E grita-lhe:
- Que Sua Alteza não dê nem mais um passo!
Acorre gente ao quarto do príncipe. D. Juan arranca a adaga da mão do sobrinho e vai entregá-la ao rei. Estava ali a prova do comportamento da prenda que era o senhor seu filho.
Acredita-se que foi desta sequência de acontecimentos que saiu a decisão de Felipe, a decisão que levara anos a amadurecer. Nobili, o embaixador veneziano entende que se o rei protelasse a decisão extrema dificilmente teria mão na quantidade de desordens que se seguiriam.
  
                      
  

MEIA NOITE DE 18 DE JANEIRO DE 1568

            Quiçá o mais misterioso e dramático episódio de toda a vida do rei  Felipe II aconteceu cerca da meia noite desse dia 18 de Janeiro de 1568.
O Natal de 1567 passara-o Filipe II no Escorial na companhia de alguns monges e de um seleccionado grupo de validos. Ali permaneceu ele um mês. Regressou a Madrid pela noite de 16 de Janeiro de 1568.
            No dia seguinte, domingo, 17, o rei, em toda a normalidade, é presente à missa na capela do Alcázar, acompanhado pelo príncipe. E pelo resto dia despacha papeladas com o cardeal Espinosa.


Conta-se um português entre as primeiras personalidades a ser informadas do que estava para rebentar.
Às duas da manhã do dia 18 fui avisado do que se passava – disse Francisco Pereira, embaixador de Portugal e tio de Ruy Gomez de Silva, o português que era um dos homens de mais confiança do rei. – Sabia que o rei havia passado todo esse dia de cama com o pretexto de que estava mal disposto…
Sim, mas a certa hora Felipe convoca quatro dos seus conselheiros principais, o dito Ruy Gomez de Silva, o Duque de Féria, o Conde de Lerma, D. Antonio de Toledo, prior, e Luis Quijar.
Pois bem. Estão os cinco na câmara do rei. E que lhes quer o rei?


Fala o embaixador Francisco Pereira:
Disse-lhes que as coisas com o príncipe andavam de mal a pior, e que era preciso deitar mão àquele assunto. E cabia ao pai,  e ao cristão que era o pai, e a bem daqueles reinos, tratar de tudo. Não chamara ali aqueles senhores para lhes pedir opiniões. Tudo já estava decidido na cabeça dele. Só lhes pedia que o acompanhassem e fizessem o que ele lhes mandasse.
Ao Conde de Lerma e a um certo D. Rodrigo de Mendoza, gentil-homens de serviço à real câmara naquela noite, foi ordenado que deixassem aberta a porta do quarto do rei, que apagassem todas as luzes, que levassem dali todas as armas e que afastassem todos os homens da guarda pessoal do príncipe. Outros dois cortesãos, D. Pedro Manuel e D. Diego de Acuña que se munissem de martelos e pregos.
Ao cair das onze já Felipe está de meia armadura e elmo postos. Serenamente, toma a dianteira da pequena comitiva. Percorrem em silêncio absoluto, sem archotes nem velas, na mais absoluta obscuridade, os intermináveis corredores do Alcázar de Madrid.
Chegam aos aposentos privados do príncipe D. Carlos. Entram.
D . Carlos estava deitado. A primeira coisa que o rei faz é recolher a espada que o príncipe tem
à cabeceira da cama, e mais um arcabuz, outra vez com carga de pólvora e bala pronta a ser disparada.
D. Carlos acorda e acha-se rodeado de homens.
- Que quer Vossa Majestade de mim? – grita o príncipe. – Que horas são? Vossa Majestade quer matar-me? Quer prender-me?
- Nem uma coisa nem outra, príncipe – resmunga, soturno, o rei, dando logo de seguida ordens para que as janelas fossem fechadas com pregos.
D. Carlos salta da cama e precipita-se para o fogo da lareira acesa. É Antonio de Toledo quem o detém.
- Vossa Majestade quer amarrar-me como um louco? – continua a berrar o príncipe. – Eu não sou louco! Eu não sou louco! Eu estou desesperado! Desesperado!
- Sossegai – diz o rei sem se alterar. – Voltai para a cama. O que se há-de fazer, príncipe, será para vosso bem e remédio.

Dito isto, Felipe foi-se à escrivaninha do príncipe e recolheu todos os papéis que lá se achavam, mais 30 mil escudos em contado. E saíu, deixando Lerma – que tinha experiências no lidar com perturbados mentais, já que custodiara a rainha Joana, a louca, em Tordesillas – e Mendoza no quarto do príncipe. Os outros esperavam na antecâmara.
Felipe esteve até altas horas a examinar os documentos que apreendera ao filho. Cartas. Cartas que o habilitaram a saber que o príncipe estava a tentar juntar muito dinheiro, estava a pedir empréstimos aqui e ali, a este e àquele. Pedidos de dinheiro que, segundo se soube depois, não obtiveram as respostas esperadas, e se não obtiveram foi porque os destinatários dessas cartas já já muito haviam emprestado ao príncipe. O rei ficava ciente de que o príncipe seu filho estava crivado de dívidas até aos cabelos, e dívidas vultosas, 100.000 ducados a este, 50.000 ao outro, 20.000 àqueloutro, num total que passava dos 200.000 ducados. E nem seria preciso dizer: todos esses pedidos de dinheiro eram feitos à revelia do pai.
Na análise que faz aos documentos apreendidos, Felipe descobre cartas prontas a seguir para autoridades de Nápoles, Sicília, Milão e  Flandres, em que o príncipe lhes promete favores e mercês e se compromete a dispensá-los da Inquisição se por acaso nos papéis da Inquisição constassem os nomes deles.

Carlos também tinha prontos a seguir para os mesmos destinos uma série de retratos seus e afirmava a intenção de abandonar a corte do pai e que isso seria feito em grande estilo, porque não lhe faltava dinheiro (pedido a particulares, conforme explicava) e jóias de alto preço.
Fourquevaux, ministro de França, dizia: o príncipe escreve do próprio punho e letra tudo o que pensa, as mil ou mais ideias descabeladas que lhe passam pela cabeça.
Pereira era de opinião de que o recebimento daquelas cartas por gente tão hesitante em matéria de religião poderia ter trazido gravíssimas contrariedades ao rei.
 O embaixador Leonardo de Nobili afinava pelo parecer de Pereira. Tinha conhecimentos das cartas do príncipe aos diversos potentados aliados a Castela queixando-se dos maus tratos do pai, do mau governo do pai. Convidava alguns dos grandes para o acompanhar, e abria o jogo quanto aos planos para se fazer ao mar até Itália, ir apresentar-se ao imperador Maximiliano, e finalmente consumar o matrimónio com Ana, cuja perspectiva tanto o tinha entusiasmado.
Bom, mas não era nada que o rei não soubesse. Senão em detalhe, pelo menos de uma forma geral. O facto de o rei saber dos planos do filho pode explicar a ordem dada às igrejas de Madrid a 13 de Janeiro, para que rezassem a todas as horas canónicas e em todas as missas e pedissem a Deus iluminação para certas deliberações do rei.
- A natural e particular  condição do príncipe foi o que me ditou este modo de proceder – disse o rei.
Terminantemente proibidos estavam todos os cortesãos de contar fosse a quem fosse o que tinham visto e ouvido.


OS DIAS SEGUINTES

Os servidores de Carlos foram despedidos pelo rei  e Carlos ficou detido em compartimento sem janela situado na mesma torre do Alcázar de Madrid em que seu avô Carlos V tinha sujeitado como prisioneiro o rei de França, Francisco I, capturado na batalha de Pavia.
O príncipe seria vigiado dia e noite, sob a supervisão dos  homens da real  confiança de sempre, o conde de Lerma, Ruy Gomes de Silva e mais um ou dois. Ninguém estava autorizado a entrar no aposento.
E a dúvida que persiste nos espíritos historiográficos está em saber se, nos dias precedentes, e até estando na missa ao lado do filho,  o rei já teria resolvido o que fazer, e, se tinha, porque esperara quarenta e oito horas para desferir o seu golpe. Se Felipe já tinha resolvido o que fazer do filho, isso dá bem a ideia do calibre dele, da íntima configuração dele ao estar com o filho tranquilamente na missa, induzindo no rapaz uma falsa sensação de paz e segurança.
            - Toda esta terra está espantada e fora de juízo – diz o embaixador Francisco Pereira no dia seguinte.
            A maior parte desse dia 19 passa-a Felipe a reunir em separado com os conselhos de Castela, Aragão, Itália, Índias e ordens religiosas.
            Segundo lhes comunicou, Felipe II actuara por razões que reputava de mais convenientes ao seu serviço e ao bem de todos os reinos. Essas razões haveriam de lhes ser comunicadas mais tarde, a seu tempo.


            Nesse dia 19 de Janeiro de 1568, e dirigidas às autoridades de todos os reinos e aos príncipes cristãos, Felipe dita  diversas cartas em que ensaia uma explicação para as suas acções do dia anterior. Estavam mobilizados todos os cavalos do serviço de correios e proibida a saída para lá de sete léguas dos limites da cidade de todo o homem apeado ou cavaleiro que pudesse estorvar o caminho dos reais mensageiros.
            A ideia mais forte contida nas mensagens enviadas era a de que o príncipe fora detido devido à sua particular e natural condição, e não por culpa de ofensa que contra a pessoa do rei houvesse sido cometida. Em tempo prestaria Sua Majestade ulteriores satisfações, ou seja, explanaria as quarenta causas que o haviam obrigado àquele proceder.
            Ficavam terminantemente proibidos todos os comentários sobre o assunto. Prelados, padres e gerais de todas as ordens religiosas estavam proibidos de mencionar o caso nos seus sermões.
       Mas claro que passada uma semana ainda se comentava o caso, por inesperado, e de todo insólito. O embaixador de França recordava o dia 13 desse mês de Janeiro, dia em que o rei ordenara expressamente a todas as igrejas e mosteiros de Madrid que rezassem nas horas canónicas e em todas as missas, pedindo a Deus inspiração e sabedoria para planos e graves deliberações que tinha entre mãos. O real pedido deixou em sobressalto os círculos da igreja mais próximos da corte e levantou-se alguma especulação, sem que todavia se suspeitasse que o que quer que fosse estivesse relacionado com o príncipe.
            Leonardo de Nobili, embaixador veneziano, chegou a escrever que muita coisa se teria passado, mas que eram segredos de pai e filho sobre os quais era difícil expender opinião válida.
E no ar pairavam as interrogações: quando é que exactamente, o rei tomara a decisão de prender o herdeiro legítimo do trono; que objectivas razões teria para o fazer; que medidas terá tomado para se certificar de que o filho nunca haveria de lhe suceder e subir ao trono.
Duas semanas passadas sobre a detenção do príncipe, D. Ruy Gomez de Silva comunicava ao embaixador de França que havia mais de três anos que o rei se dera perfeitamente conta de que o cérebro do filho era ainda mais deformado do que o corpo, e de que nunca Carlos poderia alcançar alguma da sanidade necessária às altas responsabilidades do governo do império. Felipe ocultara as suas convicções, esperançado de que a idade acrescentaria ao filho a sabedoria e a maturidade necessárias. Ora acontecera precisamente o contrário. Com o tempo tudo na saúde mental do príncipe havia piorado, ao invés de melhorar.
Dizem-me que D. Carlos é a pessoa mais perturbada deste mundo, escreve o embaixador Pereira. O embaixador alemão diz mais: toda a gente guarda silêncio acerca do príncipe, como se tivesse morrido.
Já se estava em Fevereiro. E em Março coube a vez ao representante de França de informar o seu rei:  o caso do príncipe caiu no esquecimento e fala-se menos dele hoje do que se falaria  se ele nunca tivesse nascido. E assim também o embaixador da Toscana: do príncipe de Espanha já não se faz caso. Como se nunca tivesse existido. E a vida e a prisão dele seguem em condições iguais às do primeiro dia, sem esperança de que ele possa dizer uma palavra sobre o que se passou.

Correra o boato (e aqui nota-se que o libretista de Verdi estava suficientemente bem informado sobre as realidades da época para construir uma boa ficção) de que D. Carlos entrara em contacto com os rebeldes flamengos, e desses em especial com um certo barão de Montigny. Assim como fora voz corrente de que a intenção de Carlos seria nem mais nem menos do que matar o pai. Muitos entendiam os rumores como fantasias, e dessas fantasias, além da que dizia que D. Carlos seria pouco católico, sobressaía a que dava o príncipe (no pressuposto da rebelião contra o rei seu pai) feito com o tio, D. Juan de Áustria, com os príncipes italianos e com o próprio imperador Maximiliano II, que sucedera ao avô  Carlos V.

Os pormenores mais miúdos do acontecido reservara-os Felipe para os parentes mais chegados, nomeadamente a rainha Catarina de Portugal, o mais idoso membro da família, única irmã sobreviva de Carlos V, sogra de Felipe e avó de D. Carlos.
Já em tempos Felipe falara do filho à rainha Catarina, do curso da sua vida, do seu modo de ser e proceder, e lhe comunicara argumentos e testemunhos que de facto indicavam haver ali um problema sério e, mais dia menos dia, uma necessidade de intervenção do rei. Tudo o que o detivera até àquele dia 18 de Janeiro de 1568 fora o amor de pai. Só o amor de pai o levara a tentar todos os estratagemas para remediar o problema sem ter de recorrer aos meios tão extremos a que recorrera.
O sentimento e a dor com que fiz o que fiz Vossa Alteza o julgará pelos mesmos sentimentos que nutre como mãe e senhora de todos nós. E, enfim, o que eu fiz foi prestar um sacrifício a Deus da minha própria carne e do meu próprio sangue, preferindo o serviço de Deus e o benefício público a quaisquer outras humanas considerações. As causas para tanto, antigas, mas que de novo sobrevieram e me constrangeram a tomar tais resoluções, são de tal cariz que nem eu os poderei referir a Vossa Alteza, nem Vossa Alteza os ouviria sem renovar dores e lástimas que no devido tempo poderá entender.
Mas a avó Catarina lá entende que deve pôr os pés a caminho e ir a Madrid ver o neto, e não só ver o neto,  passar a tratar dele como mãe. Foi preciso Felipe encarregar um mensageiro especial de vir a Lisboa tirar aquela ideia da cabeça de Catarina.
Pio V, papa, não se contentou com as razões de Felipe. Tinha recebido de Espanha uma carta que era uma espécie de circular, escrita por um secretário e não como era de etiqueta nas comunicações importantes, escrita pelo punho  do rei. 
Mas, azar de Felipe, a carta chegara com atraso às mãos do papa e no entretanto a santidade fora informado do caso por outras fontes: Sua Majestade mandou prender o príncipe nosso senhor porque conspirava conta a sua real pessoa e porque tinham sido apreendidos nos seus aposentos livros da autoria de hereges.
O papa pede explicações sérias e urgentes a Felipe. E Felipe escreve de sua própria mão uma longa carta ao papa, repisando nos argumentos já usados. Por então não se alargaria mais em particularidades, mas insistia em que a justiça, a paz e a tranquilidade da sua monarquia dependeriam, quando fechasse os olhos,  do tipo de pessoa  que lhe fosse sucessor. E visto que, por meus pecados, a pessoa do príncipe tivesse tais e tão naturais defeitos de entendimento e na natureza que lhe era própria, faltava-lhe a capacidade necessária para tanto, o que me representou todos os consideráveis inconvenientes que adviriam, caso recaísse nele a responsabilidade de sucessão no governo destes reinos e o evidente perigo que de tal resultaria.
Estaria por conseguinte aqui, na segunda carta ao papa, o mais substancial das razões que sustentavam a acção do rei.


CONSANGUINIDADE


Felipe não se cansava de sublinhar que na raiz da sua atitude não se contava uma culpa do príncipe, uma desobediência, um desacato – a mim, parece-me, que semelhantes coisas nunca faltaram no comportamento de D. Carlos, mas é evidente que Felipe as desvalorizava, aludindo a causas outras, que,  por constituírem a razão de ser daquele sistema monárquico de direito divino, a hereditariedade, a consanguinidade, por prudência política evitava pôr claramente  por escrito.
Não tomei a atitude que tomei com a esperança de que por este caminho pudessem cessar os excessos e desordens do príncipe. Tudo isto tem outro princípio e outra raiz cujo remédio não se acha nem no tempo nem nos meios.
É claro que o problema do príncipe era incurável. Estava-lhe no próprio sangue. D. Carlos era a evidência flagrante dos riscos contidos nas sucessivas endogamías.
D. Carlos fora um enigma logo à nascença, assim como enigma sempre foi para os investigadores o historial médico dele. Teve uma infância difícil e carente. Começou tardíssimo a falar, aos três anos - e a primeira palavra que aprendeu e disse foi “no”.
Um cortesão, em 1550, dava notícias do príncipe nestes termos: o infante D. Carlos está bonito, mas há grande descuido na educação dele quando não lhe atribuem homens para o servir e orientar. Estando só entre mulheres será deficientemente criado, e ficará soberbo e mimado, pois que por qualquer coisa arreganha a cara e atira-se para o chão, entre outras vinte atitudes extremas. E era canhoto. Escreveu acerca disso o aio: Doña Leonor de Mascareñas faz o que pode, ata-lhe a mão esquerda, o que parece não bastar. A infanta sua tia, quando come com ela, o que é na maior parte dos dias, tem sempre um garfo na mão para lhe dar com ele quando o infante pega nalguma coisa com a mão esquerda.
Foi filho único, e a mãe, a princesa Maria Manuela de Portugal, sobreviveu somente quatro dias ao tormentoso nascimento dele. Isto em 1545. Quanto ao pai, por fortíssimas razões de Estado, saiu de Espanha em 1548 para acompanhar Carlos V no estrangeiro e por lá se demorou até 1551, regressando então a Madrid, mas tornando a ausentar-se entre 1554 e 1559.
Tinha o príncipe D. Carlos três anos de idade quando Felipe escreve a Carlos V: em vista da dispensação que foi despachada para que me casasse com a princesa Maria Manuela de Portugal, deixou de declarar-se o certo grau de dúvida que havia entre nós. Grau de dúvida sobre a possibilidade do casamento, porque Maria Manuela era prima direita de Felipe, sendo os pais dela dois irmãos que se tinham casado com duas irmãs. De forma que em lugar de oito bisavós, Carlos tinha quatro, e em lugar de dezasseis tetravós só tinha seis.
Muitos dos antepassados do príncipe D. Carlos, os borgonheses como os Trastâmara, se tinham casado entre si. E a razão essencial, está bem de ver, era absolutamente de ordem política, visto que se tratava de unir as diversas espanhas sob o mesmo trono. O que veio a dar no coeficiente de consanguinidade de Carlos V ao nível de 0,037.



Não contentes com isto, tanto o casamento de Carlos V como o de Felipe II foram com primas direitas, o que aumentou os coeficientes de consanguinidade (tanto o do príncipe D. Carlos como, mais tarde, o dos filhos que Felipe teve de Ana de Áustria) para qualquer coisa como 0,211. Isto é, um nível de consanguinidade possível de apurar nos filhos de uma relação entre pai e filha ou entre irmão e irmã.
E  pensar que por séculos e séculos a História dos impérios deste mundo foi escrita por indivíduos  meio loucos, frutos de sucessivos  incestos, quer dizer, pessoas já à nascença mental e fisicamente perturbadas em alto grau…
Incestos que engendraram o vasto império onde o sol nunca se punha, o dos Habsburgo; que produziram descendências malsãs, débeis, deformadas, de pequena estatura. Carlos é exemplo gritante disso mesmo: um ombro mais desenvolvido do que outro, a perna esquerda mais curta do que a direita, músculos atrofiados. E reputação de atávica impotência,ainda que nunca tivesse chegado a casar-se.
Os altos níveis de consanguinidade explicariam porque é que das quinze vezes em que as quatro mulheres de Felipe II ficaram grávidas só quatro filhos  tivessem sobrevivido à mais tenra infância.
Consanguinidade, endogamía: as famílias reais da Península tiveram com isso, e por isso, gravíssimos desgostos.

A rainha Joana, avó de Felipe II e também de sua mulher Maria Manuela, passou a maior parte dos seus tristes dias encarcerada em Tordesilhas, entre 1506 e 1555, ano em que morreu. Era de tal ordem anormal a rainha que até os filhos estiveram na dúvida sobre se teria nascido já bruxa ou já herege. Mas a avó dela, Isabel de Portugal, já a tinham confinado, demente, no castelo de Arévalo, onde viria a morrer em 1496.
Donde, o caso do príncipe D. Carlos não ser tanto de admirar se lhe considerarmos a herança genética de instabilidade mental. 
 





O JULGAMENTO DO PRÍNCIPE

O príncipe D. Carlos, pelo que disse alguém (Gil González Dávila) sofria de uma enfermidade que não era original: o desejo de reinar antes do tempo.
Após a sua morte, foi-se a fazer o inventário das suas coisas e soube-se que em 1567 Carlos encomendara dois retratos, a três quartos, um em indumentária de corte e outro de armadura, ordenando ao pintor oficial Alonso Sanchez Coello a feitura de treze cópias de cada um deles. Uma dessas cópias sabe-se que foi entregue ao embaixador Dietrichstein para que a levasse consigo e a mostrasse na corte imperial. As outras cópias do seu próprio retrato pretenderia o príncipe usá-las como, digamos, material de propaganda da sua imagem de sucessor de Felipe II, tanto em Espanha como no  estrangeiro. No dia em que foi preso estavam prontas catorze cópias do retrato e dez delas ainda estavam na posse do príncipe.
A prisão de Carlos passa ao domínio público, ou pelo menos ao conhecimento da nobreza, mas ninguém dessa nobreza, nem nenhum dos grandes de Espanha, significa, na circunstância, e em princípio, qualquer apoio à rebeldia e à crítica de Carlos ao governo do pai. Pelo contrário, nobres e grandes oferecem a Felipe a sua solidariedade e o seu apoio naquela hora por demais atribulada. E vão mais longe, reafirmam lealdades ao rei. Em princípio.
Nota o embaixador Fourquevaux o medo que os notáveis sentiram ante a probabilidade de poderem vir a viver num reino governado por um indivíduo de personalidade tão instável e violenta, donde nem um único nobre estar na disposição de arriscar pelo príncipe vida ou haveres.
Por outro lado, questionava-se a prisão de D. Carlos. Seria aquela uma situação para manter indefinidamente? E não obstante todos os protestos de lealdade e fidelidade dos nobres ao rei católico naquele episódio, não é pacífico que Felipe recolhesse a unanimidade das simpatias pessoais e politicas entre os nobres da sua corte. Era um rei temido, disso não cabia dúvida; não era um rei amado. E com o correr do tempo os pareceres acabaram por se cindir. A favor da grande prudência do pai, uns; a favor da legitimidade do filho,outros.
A questão centrava-se também na incerteza sobre a vida ou a morte do rei – naquele tempo ninguém teria tanto a vida nas mãos como se tem (ou julga ter) hoje, por causa das muitas doenças, claro, e pelos muitos atentados às cabeças coroadas. E  não seria, longe disso, Felipe II o primeiro rei a ser assassinado. Ora em caso de morte do rei, tão certo como dois e dois serem quatro, os ministros comprometidos na prisão de Carlos cairiam em desgraça, posto que seria fatalmente Carlos a suceder a Felipe, e esses ministros estariam condenados a ser implacavelmente perseguidos, sumariamente executados até.
Manifesta-se o Núncio Apostólico: tem-se por verdade que o príncipe será afastado da sucessão e que nunca mais será libertado. O príncipe odeia de morte os ministros favoritos do rei e se chegar a reinar esses ministros e mais toda a sua descendência será arruinada.
 Não restaria portanto outra saída a tais ministros senão levar o príncipe a juízo, conseguir para ele uma interdição por incapacidade, de forma a que se esboroasse legalmente a hipótese de ele vir algum dia a subir ao trono de Espanha.
E sobre a efectividade ou não desse julgamento as pistas confundem os historiadores. Houve processo ao príncipe herdeiro D. Carlos, ou não chegou a haver?
Sobre semelhante matéria, os investigadores acharam na Real Academia de História de Madrid não mais do que cópias de cópias. Por exemplo, de uma Relación de la Vida y Muerte del Principe Don Carlos de Áustria, Hijo del Señor Rei Don Phelipe Segundo uma cópia feita em 1868 de um manuscrito (perdido) de 1681, por sua vez já copiado de um original (desaparecido) de Frei Juan de Avilés, alegado confessor do príncipe. Desse documento consta o julgamento e condenação, a 7 de Fevereiro de 1568, de D. Carlos, por traição, tendo-se levado em conta a correspondência de Guilherme de Orange e do conde Egmont com o príncipe. Isso e mais um registo das conversas entre Carlos e o barão de Montigny que revelariam os entendimentos secretos supostamente havidos entre o príncipe e os rebeldes flamengos.

                                            

Do libelo acusatório constariam como prova de culpa adicional as cartas amorosas escritas pelo príncipe à rainha madrasta, Isabel de Valois.
O próprio príncipe teria sido ouvido em tribunal sob ameaça de torturas, e ao cabo de dez dias de audiências o tribunal ter-se-ia pronunciado pela condenação à morte por delito de rebelião. O rei teria confirmado a sentença. O carrasco teria executado Carlos por (vil) garrote, a 23 de Fevereiro desse ano de 1568.
(E, revertendo à ópera de Verdi, ou às diversas peças de teatro de Alfieri, Schiller e outros, por aqui se percebe onde os autores investigaram para construir uma ficção, que, sendo embora ficção, não andou tão longe assim da verdade.)
O problema é que o documento atrás referido e guardado na Real Academia de Madrid, é falso.
Sim, falso como Judas, sem tirar nem pôr. Entre os variados argumentos para o considerar falso estão as impropriedades por assim dizer técnicas. Ou de linguagem. Nunca um membro legítimo da linhagem Habsburgo seria chamado de Áustria. Só aos ilegítimos cabia esse título – caso do tio de Carlos, D. Juan, de Áustria – e Carlos nunca poderia, por isso mesmo, ser chamado príncipe Don Carlos de Áustria. Outra coisa se, em vez de Carlos de Áustria, o tivessem designado, como era direito seu, Sereníssimo Príncipe.
Depois, os nomes indicados como membros do tribunal, Escobedo e Perez, não eram letrados, e menos ainda homens de leis. O único dos citados que o era, um tal Vargas, advogado, estava nessa data ausente de Espanha, em funções de juíz nos Países Baixos. A estas acrescem outras imprecisões, ou erros crassos, que atestam a falsidade do documento.
Era certo que o príncipe tinha contactos com os flamengos independentistas, Montigny, Egmont e outros. Em 1566 e 67. O que seria de considerar natural. Carlos era o herdeiro legítimo e único do trono de Espanha, e sendo-o de Espanha sê-lo-ia por inerência dos Países Baixos e de tudo o mais que fosse possessão e poder do rei seu pai. Nada de estranho em si mesmo. Natural seria que alguma parte tomasse nos mais candentes dos problemas do reino. As cartas recebidas pelo príncipe tendo como remetentes individualidades da importância de Egmont, ou de Orange, podendo ser comprometedoras, não o foram, uma vez que os originais delas nunca foram encontrados.
Enfim, não existe prova válida de que Carlos tenha sido submetido a julgamento, pelo menos formal. Mas parece ser verdade que Felipe e os ministros debateram essa possibilidade. Segundo Cabrera de Córdova, constituíu-se uma junta com o cardeal Spinosa, Ruy Gomez de Silva e o licenciado Briviesca com vista a causar processo justificativo da prisão do príncipe.
Em 1590, o cronista Antonio Herrera y Tordesillas afirmou que Felipe dera força ao dito processo, mas que mais tarde deixara cair a ideia. Dizia-se na corte que o rei queria fazer um processo legal e juntamente com o Conselho de Estado declarar o príncipe incapaz para a sucessão da coroa, e porque o protelar desse processo se afigurava perigoso. Mas não se achou nada de probatório que o príncipe houvesse maquinado alguma coisa contra o pai, nem defendido opiniões contrárias à fé, dando sempre mostras de ser um príncipe muito bom católico e um verdadeiro filho da Igreja.
E desde que não era possível encontrar fundamentação incontroversa para uma acusação de incapacidade, o rei resolvia manter o filho prisioneiro, indefinidamente prisioneiro. Até que morresse.


Não era caso virgem por aqueles reinos. Lembre-se do exemplo de Carlos V , que em face do distúrbio mental de sua mãe, Joana (à qual, diga-se, e como a D. Carlos, a corte de Castela jurara fidelidade e lealdade como rainha) decidiu encerrá-la para sempre. E Felipe lá pensou, bem, se o meu pai pôde ter a mãe presa por meio século, porque não posso eu fazer o mesmo com o maluco do meu filho Carlos?
 


A MADRASTA

Agora provas de uma relação chegada entre o príncipe e a rainha sua madrasta, sim, existiam. 
Já aqui foi dito de um vício do príncipe: o jogo. O príncipe ia aos aposentos da rainha sua madrasta para jogar – e jogos de azar, pela letra dos historiadores. E assim foi sendo até ao dia em que o príncipe foi preso.

 Mas há um bocadinho mais a dizer quanto a isso: o príncipe trazia sempre com ele um retrato da rainha; o príncipe presentava frequentemente a rainha; o príncipe escrevia-lhe sempre que não estavam debaixo do mesmo tecto – três cartas dele quando Isabel foi presente a uma conferência em Bayonne (1565).
O embaixador Fourquevaux, naturalmente, sendo a rainha francesa, tem qualquer coisa a dizer a respeito: nunca ninguém da corte fazia o que quer que fosse a gosto do príncipe, nem o pai, nem Joana, a princesa real, nem os primos húngaros Rudolfo e Ernesto. Uma excepção era a rainha. Tudo o que dizia ou fazia deleitava o príncipe. A rainha tinha grande influência sobre ele. E não era nada fingido. O príncipe era incapaz de mentir ou dissimular.
Todavia, aquilo que nestes nossos dias se usa chamar de “conduta inapropriada” jamais teve lugar entre Carlos e Isabel. Não era de resto muito provável num palácio em que cada um dos membros da família real vivia cercado de cortesãos e cortesãs – Isabel tinha constantemente à ilharga a cunhada, Joana. E não há mínima prova de que Carlos e a madrasta alguma tenham passado sequer um minuto juntos e a sós.
Monsieur, Mon Filz, le Prince d’Espagne: assim se dirigiu, pelo menos uma vez, a rainha ao príncipe seu enteado – era a agradecer-lhe o envio de uma carta e a exprimir a vontade de o ver o mais depressa possível em pessoa e en compañia del Rey, mi Señor. E assinado, Vuestra Buena Madre.
Na manhã que se seguiu à detenção do príncipe, Isabel escreveu ao embaixador Fourquevaux: lamento esta desgraça como se de meu próprio filho se tratasse.  E chorou durante dois dias, dizem; e chorou de novo no dia da morte do enteado. Compreende-se: acabara de perder um dos poucos amigos que tinha na corte de Madrid que fosse da sua real condição e da sua idade.     

                
O PRÍNCIPE PRISIONEIRO

            Prisão perpétua. Era essa a condenação do rei.

            O Duque de Alba é que não sabia o que pensar daquele sinistro caso. Felipe explicou-lhe: não prendi o príncipe para acabar com uma desordem de conduta ou para lhe reformar o carácter, pois como tentativa de emenda para o comportamento do príncipe este processo falharia como falharam outros. A minha intenção foi  remediar em definitivo os males que poderiam suceder pelo resto da minha vida, e mais do que isso, depois da minha morte.
       Houve quem dissesse que o rei despersonalizara o filho e lhe dera estatuto de problema puramente administrativo. O mais que era preciso assegurar era que Carlos (como a avó Joana) ficasse a bom recato e lhe fosse fornecida bastante comida e bebida.
            Por fins de Fevereiro, o rei era informado de que na semana anterior o príncipe pouco havia comido e que nos últimos quatro dias não tinha comido mesmo nada. O confessor não lograra convencê-lo a mastigar alimento algum, de maneira que foram necessários métodos brutais: os guardas da prisão trouxeram uns ferros e com eles, e só assim, foi possível abrir-lhe a boca e nela introduzir um bocadinho de carne e alguma sopa.
            Ao recusar alimento, podia pensar-se que o príncipe sabia que aquela não era vida para ele e que  pretendia pôr um fim a essa vida o mais depressa possível. Também poderá aventar-se que não comia por temer ser envenenado à ordem do pai. Mas sabe-se que certo dia engoliu um diamante e que foi prontamente socorrido e purgado até defecar o diamante. E como padecia de malária o que mais queria era beber, em vez de comer, e beber águas muito frias.
            A disfunção alimentar do príncipe não era porém uma novidade na corte. Testemunhava o embaixador Dietrichstein, anos antes, que Carlos podia manter-se em jejum até à hora da ceia e em chegando a hora da ceia comer alarvemente, em quantidades que dariam à vontade para alimentar duas ou três pessoas. E outra questão era a água. A água para Carlos tinha de ser neve derretida, ou água em vasilha previamente posta no gelo. E mesmo assim nunca estava fria o suficiente para lhe matar a sede.
            Certamente devido à malária, tinha calores insuportáveis pelo corpo, e desnudava-se, e queria estar sempre perto de uma janela por onde soprasse o vento. Andava descalço pelos aposentos e em todos os recantos por onde deambulasse queria ter uma vasilha com água gelada. Duas ou três vezes em cada noite mandava pôr gelo na cama e sobre o gelo se deitava.
            Encerrado na torre, Carlos continuava a exigir os mesmos tratamentos. Sem comer. Só a beber água gelada – bebia à volta de dez litros de neve derretida por dia. A dormir numa cama gelada. A andar descalço e a desnudar-se. Segundo o Núncio em Madrid, o que o príncipe fazia enquanto preso não era diferente do que havia feito enquanto homem livre.
            Estava pele e osso, num estado lastimoso. Quando o proibiram de beber tanta água gelada, Carlos pediu um padre para o ouvir em confissão e lhe ministrar os sacramentos e a extrema unção. E assim se fez. E daí a pouco morria. A beber neve derretida. A pedir a Deus misericórdia para si e a bênção e o perdão para o pai.
             Ao conde de Lerma coubera a ingrata incumbência de ser, digamos, o carcereiro do príncipe. No fim da missão haveria de admitir que a morte daquele fora uma prova da misericórdia de Deus, e que até fora uma morte boa (de morte percebia-se bastante naquela época e naquela corte), uma morte que o príncipe procurara ao ficar quinze dias sem comer, em greve de fome, diríamos nos nossos mais afortunados dias.
            Mas Felipe andava fulo com o comportamento carcerário do filho. Pensava, se ele me morre o mundo vai falar dele nos modos mais desvairados; se ele vive é ponto assente que o hão-de transferir para o castelo de Arévalo – interessante: era o castelo onde Isabel de Portugal (outra), tetravó de Felipe, tinha também sido encerrada por desvario.


            Felipe não visitava o filho. Abril chegado, foi passar a primavera para onde era costume dele passá-la, em Aranjuez. E quando veio o verão, em Julho, retirou-se para o Escorial, com passeios pelos bosques de Segóvia. Recebe no Escorial a notícia da morte do filho. Regressa a Madrid.Por pouco tempo. Em Madrid chama os seus homens de confiança e dá as suas ordens:
            - Que se organizem os lutos e todas as demais coisas que em casos destes sejam de costume fazer. E façam-no em memória do Sereníssimo Príncipe Don Carlos, meu filho muito amado.
            Dito isto, vai fechar-se num mosteiro em reclusão.


R.I.P

Para John Man, embaixador de Inglaterra na corte de Madrid, não havia que duvidar. Felipe II assassinara o próprio filho.
 Gulherme de Orange também não ia muito fora disso na obra que escreveu, Apologia. Felipe assassinara o próprio filho e de forma desnaturada. E esse holandês, Orange, deixava a pergunta: este D. Carlos não estaria por acaso para ser herdeiro do trono e nosso futuro senhor? Ora se o pai podia apresentar contra o filho culpas merecedoras da pena de morte, não parece evidente que este assunto deveria ser posto à nossa consideração, e por ser todo ele do nosso interesse, em lugar de vir a ser julgado por três ou quatro frades espanhóis? 
            Das versões que correram do acontecido (muitas, há quem diga que centenas) se alimentaram os cronistas e os poetas, já na época dos factos, e já muito posteriormente a eles. Criou-se o mito de D. Carlos, Infante de Espanha – ele e o nosso D. Sebastião, dois míticos primos – tanto quanto o mito do próprio Felipe II como rei implacável e desapiedado.
            Em 1581 apareceram cinco edições francesas da Apologia, de Guilherme de Orange a reconstituir o caso; e mais três edições holandesas, uma em latim e uma em inglês.
            Outro tratado (em verso) sobre o tema intitulava-se Diógenes. Constava de uma petição endereçada ao rei de França no sentido de apoiar a luta dos flamengos contra Felipe II, e neste caso a acusação era muito centrada sobre um pormenor e durante muito tempo teve pernas para andar: D. Carlos apaixonara-se pela madrasta, Isabel de Valois, e Felipe surpreendera-os em flagrante e matara ambos.
            As pernas sobre as quais esta versão caminhou por mais tempo foram os romances históricos e as obras dramáticas Don Carlos, de César Saint-Réal (1672), Don Carlos Prince of Spain, de Thomas Otway (1676), History of the Reign of Philip II, de Robert Watson (1777), Don Carlos, de Schiller, e na ópera Don Carlo, de Verdi – bebida, antes de mais, venho a saber, da tragédia Fillipo, de Vittorio Alfieri, com olhares sobre a peça de Schiller, que por seu turno bebera em Saint-Réal, que por sua vez dava forma literária às alegações da Apologia, de Guilherme de Orange. Tudo fontes indirectas.
            O povo de Madrid acorreu em massa ao primeiro enterro real desde que Felipe elegera a cidade como capital de Espanha.

            Miguel de Cervantes contava então vinte anos de idade. Era discípulo de Lopez de Hoyos, um dos fiéis do rei. Ele e Luís de Leon escreveram os epitáfios em honra do seu príncipe. Segundo se disse, nesses escritos transpirava o temor de que a sucessão de rei Felipe viesse a recair nalgum arquiduque alemão, eventualidade que era por assim dizer um pesadelo nacional, desde o momento em que fora enfim possível espanholizar a dinastia.
            Felipe II tivera em tempos a ideia de trasladar para o Escorial os restos mortais da realeza castelhana. O corpo de Carlos seria o primeiro a chegar, significativamente junto com o da rainha Isabel de Valois, sua madrasta – que pouco tempo lhe sobreviveu.
No mesmo Escorial, no altar-mor da basílica, será erigido o cenotáfio enorme, e lá figura o príncipe Don Carlos (ao que dizem, olhando por cima do ombro do pai) mais os irmãos, a raínha sua mãe e as suas duas madrastas.


O embaixador Fourquevaux comentaria dez anos mais tarde que a morte de Carlos tinha resolvido não poucos problemas dos muitos que o rei católico trazia sobre os ombros.


E o carcereiro Conde de Lerma escreveria a informar o seu parente, padre Francisco de Borja: o que eu digo a Vossa Paternidade é que foi misericórdia dar tão boa morte a quem esteve tão longe de a merecer, assim como grande mercê foi para toda a cristandade o príncipe ter sido levado para o céu. Porque podeis estar certos de que, se vivesse, teria sido a destruição de toda ela, cristandade, pois que sua condição e costumes estavam fora de toda a ordem. Está ele muito bem lá no Alto e todos os que o conhecemos louvamos a Deus por isso.