A
VERDADEIRA (E TRISTE) HISTÓRIA DE
D. CARLOS,
PRÍNCIPE DE ESPANHA
O HERDEIRO DO TRONO
Em Abril de 1560 toda a corte de Castela
jurava solenemente lealdade ao infante D. Carlos enquanto “príncipe real e
sucessor dos reinos de seu pai, e depois da morte deste como seu rei e senhor
natural”. Uma cerimónia que durou nove horas, entre banquetes e torneios.
Foi perceptor do infante, e que o tinha sido
também do pai, um erudito, de seu nome Honorato Juan, e em 1555, Carlos tem o
seu primeiro livro, La Corónica de Rrey
Don Alonso, El Honzeno, e logo
depois, além de outras crónicas dos reis da Espanha medieva, o romance de
cavalaria Amadis de Gaula, as Metamorfoses, de Ovídio, o Orlando Furioso.
Entre 1555 e 1564, Felipe permaneceu em
Espanha e dividiu muito do seu tempo livre com o filho em caçadas e pescarias,
sem que nada conste sobre alguma sombra de dúvida que lhe passasse pela cabeça
quanto à sanidade mental do filho e subsequente capacidade para lhe suceder.
Em 1557, Felipe redige testamento e dispõe
que seu filho D. Carlos será seu herdeiro universal e que governará a Espanha,
os Países Baixos e os territórios do ultramar após a sua morte – ainda que sob
a tutela de regentes até que faça os vinte anos. Porém, dois anos passados
sobre esta primeira redacção do testamento, Felipe manda acrescentar-lhe um
codícilo a estipular que Carlos governará as espanhas e todas as outras
possessões logo que seja casado, e mesmo que ainda não tenha completado os
vinte anos.
O imperador pai de Felipe, Carlos V, esteve de acordo. Esteve de
acordo e falou com a irmã, Catarina de Portugal, pedindo-lhe que reconhecesse
os direitos do príncipe D. Carlos como herdeiro da coroa portuguesa, dando-se o
caso de o seu outro neto, Sebastião, morrer sem deixar descendência.
Felipe estava viúvo de Maria Tudor . A presença
inglesa em Calais parecera-lhe, a princípio, ser o melhor tampão a obstaculizar
os que cobiçavam o seu senhorio sobre os Países Baixos. Nessa altura, porém,
viúvo, desobrigado das conveniências de ajudar os ingleses, e reflectindo que
já não precisaria deles em Calais para defender os seus interesses na região,
Felipe está a um passo de aceitar uma paz francesa oferecida por Henrique II.
Uma oferta que se corporizava na filha mais velha do rei de França, Isabel de
Valois, de doze anos, a dar em casamento ao infante D. Carlos. Felipe não ia muito fora disso.
Mas o primeiro a pensar na reviravolta do
destino da própria filha foi Henrique II, quando posto perante a viuvez de
Felipe, e considerando as vantagens acrescidas de casá-la com o pai em vez do
filho – e na perspectiva de nos próximos anos, dada a idade de Isabel, Felipe
não vir a ter mais herdeiros.
Os embaixadores de Espanha informam a corte
francesa da aquiescência do seu rei em casar-se com a primogénita do rei de
França, exactamente nas mesmas condições e sob articulado idêntico ao do acordo
já assente para o casamento da princesa com D. Carlos.
E assim foi.
A paz de Cateau-Cambrésis é assinada a 3 de
Abril de 1559. Franceses e espanhóis, segundo o tratado, devolviam os
territórios conquistados entre si nos Países Baixos. Em Itália, Henrique cedia
praticamente todos as possessões que Felipe reclamava, incluindo Nápoles,
Sicília e Milão, retirando tropas de Mantova, Sabóia e Génova.
É daqui que a ficção lírica de Verdi, o D. Carlo, arranca. Daqui, digo, da
profunda decepção de Carlos e Isabel, já muito envolvidos sentimentalmente, ao
conhecerem o desfecho, para eles inesperado e inconcebível, das negociações.
Carlos levantava-se antes das sete, rezava,
comia qualquer coisa, às oito e meia ouvia missa, e acabada a missa dedicava-se
ao estudo; almoçava por volta das onze, e depois do almoço entretinha-se à
conversa com os que o assistiam, até às três e meia, que era quando merendava,
para voltar às lições até à hora de jantar; antes de ir para a cama, às nove,
despachava as contas de um rosário inteiro.
Mas não tinha aproveitamento satisfatório nos
estudos. Estava de má vontade, como de má vontade estava nos exercícios
físicos, jogos e esgrima. Para o levar a fazer alguma coisa de boa mente era
preciso acenar-lhe com recompensas.
Tinha uma perna mais curta do que a outra, um
ombro mais alto do que o outro, os músculos eram atrofiados, era canhoto,
gaguejava, era atreito à malária. Depois de cada ataque de malária ficava
fraco, prostrado, incapaz de fazer o que quer que fosse.
Felipe pensa fazê-lo mudar de ares, acho que como pai devo ver o meu filho curado
desta enfermidade. Pensa mandá-lo para Gibraltar. Mas para onde ele de
facto vai é para Alcalá de Henares. E vai acompanhado pelo tio, D. Juan de Áustria e por Alessandro Farnese. Vai disfrutar de aragens mais saudáveis e
frequentar estudos universitários – finca-pé do rei seu pai, que desde muito
novo metido a responsabilidades de Estado não os chegara a completar.
A QUEDA
Tudo corre bem em Alcalá. A princípio. Os
ares eram realmente bons e Carlos parecia compenetrado a sério nos estudos.
O pior aconteceu no dia 19 de Abril de 1562.
Quiçá devido à diferença de tamanho das pernas, Carlos tropeçou ao descer umas
escadas, caiu e bateu violentamente com a cabeça.
Saiu apenas aturdido da queda. Ainda
conseguiu falar com os médicos que o atenderam e lhe vendaram a ferida da
cabeça, e o sangraram e o purgaram.
Passados não eram dez dias, dizem os
historiadores que por falta de esterilização das ligaduras, a ferida infectou
com gravidade, deitou muito pus, sobrevieram febres altíssimas e Carlos começa
a delirar. A infecção tomava-lhe o sistema linfático. A cabeça, o pescoço e o
peito enchiam-se de pústulas. Os olhos foram também afectados e tiveram que
ser-lhe vendados.
Felipe vai a Alcalá ver o filho. Dizem-lhe
que está a melhorar. Felipe regressa a Madrid. Da próxima vez que tornar a
Alcalá irá acompanhado de Andreas Vessalius, médico da corte imperial de Carlos
V, o mais afamado cirurgião da Europa do tempo (dizem-no o pai da anatomia
moderna), o mesmo que estivera à cabeceira de Henrique II de França, tentando
curar-lhe a ferida na cabeça que lhe foi fatal.
Vessalius diagnostica: abcesso extra-dural.
Vessalius propõe o tratamento: uma trepanação. Entretanto, chegam uns médicos
espanhóis e um curandeiro árabe. E discordam do famoso físico.
Seguem-se, digamos, juntas médicas, às quais Felipe está sempre presente. Os clínicos eram
compêndios abertos e desfaziam-se em tratados e citações. Foram catorze dias
exasperantes para o rei, que às tantas atirou a albarda ao ar e exigiu mais
acções concretas e menos teorias.
Aliás, Felipe parecia depositar mais fé no
sobrenatural do que na medicina dos homens, e por isso ordenou orações
intensivas e procissões por todo o reino, suplicando ao Altíssimo a cura do
filho e herdeiro. Ele mesmo, Felipe passou horas esquecidas em fervorosas
orações à cabeceira de Carlos.
No dia 7 de Maio, os físicos que tratavam do
príncipe arriscaram um prognóstico desesperado. Carlos teria mais quatro horas
de vida, se tivesse.
Felipe não se conforma. Monta a cavalo e ala
para Madrid. Vai para junto dos monges de São Jerónimo orar pela alma do filho,
à espera de notícias do fatal desenlace.
Em Alcalá,
e em desespero de causa, os médicos estão a raspar o crâneo do príncipe e a
explorar-lhe a ferida. Isto pelo lado da ciência. Por outro lado, o da fé,
actuavam os franciscanos ao desenterrarem do seu convento os ossos de um certo
varão morto em cheiro de santidade, de sua graça Frei Diego de Alcalá.
Desenterradas
as ossadas, lá vão os bons dos franciscanos colocá-las em volta da cama do
príncipe.
E o certo é que o príncipe toca nos ossos do
falecido monge e o processo de cura inicia-se. A febre desce. Passa-se uma semana e já é
possível aos médicos limpar os abcessos que cobriam a cabeça, pescoço e cara
de Carlos, e da cabeça conseguem extrair um pedaço de osso necrosado.
Felipe comemorou as melhoras do filho com
esmolas, com indultos a presos de pequenos delitos. E alinhou em quantas
procissões pôde.
Historiadores bem abalizados opinam que
Felipe II não era só nos vivos que confiava quando queria convocar para as suas
causas impossíveis alguma intervenção do sobrenatural. Podia recorrer também
aos mortos. E coube neste recurso os esforços que fez para a canonização de
Frei Diego de Alcalá, porque às relíquias do monge atribuía ele papel
determinante na salvação da vida do filho. Estava-se perante um mais do que
evidente milagre. E a canonização consegui-la-ía em 1589, concedida por Sisto
V.
A 16 de Junho, dois meses passados, já Carlos
se levantava da cama e se abraçava ao pai. Já recebia embaixadores em audiência
– sentado e com um largo chapéu a encobrir-lhe a ferida.
Estava
muito pálido e muito débil. É pequeno de estatura, muito mais pequeno do que
seria de esperar na idade dele, 17 anos – reportou o embaixador de Veneza.
No domingo seguinte já Carlos teve forças
para ouvir missa e ir aos touros. Mas nunca mais voltaria a ser o mesmo rapaz.
Esteve para ir com o pai a Monzón, e aí, nas
cortes de Aragão, ser reconhecido como príncipe herdeiro, mas não pôde, atacado
como estava de malária. Caiu à cama de novo, muito doente, e foi-lhe feito o
testamento, e foi-lhe preparado o funeral, e foram encomendadas em intenção
dele missas aos milhares.
Mas salva-se mais uma vez.
O barão Dietrichstein chega a Madrid como
embaixador imperial e com o expresso encargo de tratar das bodas do príncipe de
Espanha com Ana, a filha do imperador Maximiliano, tal como estava planeado.
O barão avistou-se com Felipe. E ficou confuso
ao ouvir as evasivas do rei a respeito daquele casamento.
Visto isso, o barão, mais ou menos à
sorrelfa, começou a perguntar do príncipe. Schlecht
genueg. Mal.Ouviu dizer muito mal. Não contando com a deformidade do corpo,
o príncipe era dado a constantes oscilações de humor.
Dietrichstein informa o imperador seu amo: há muitos aspectos em que o príncipe dá
mostras de uma compreensão clara, mas há outros em que parece uma criança de
sete anos. Quer saber tudo, pergunta tudo, mas sem nenhum objectivo nem
propósito. O raciocínio não me parece bastante desenvolvido para que possa
distinguir o que é bem e o que é mal, o que é importante e o que é supérfluo, o
que é possível e o que é impossível. Sim, e depois também confundia os sons
do “r” com os do “l”. E era de temperamento impulsivo e violento. E dizia
aquilo que lhe viesse à cabeça sem cuidar de saber se podia ofender. E perdia
facilmente as estribeiras. Mas também era profundamente religioso. Mas também
era amigo da justiça e da verdade. Mas também odiava a mentira e não perdoava a
quem lhe mentisse.
Houve gente a dar palpites – o próprio pai -
sobre uma possível dupla personalidade do príncipe D. Carlos. Tiene tiempos, en algunos de los quales ay
más serenidad que en otros.
À luz dos conhecimentos médicos de hoje, a
descrição de Dietrichstein corresponderia aos sintomas psicopáticos possíveis
de desenvolver num jovem que tivesse sofrido forte traumatismo craniano: a
desinibida malícia de um rapazinho com uma lesão frontal (na opinião do
neuro-cirurgião pediátrico contemporâneo Donald Simpson).
A posição de Felipe perante o comportamento do filho, arriscam os historiadores, seria uma complexa mistura de culpa,
negação, impotência e cólera.
Apesar disso tudo, o embaixador imperial não
desistia de cumprir a missão de que estava encarregado e queria mesmo tratar do
casório. O que obrigou Felipe a explicar-se mais miudamente ao imperador pai da
rapariga, com o amor e a sinceridade que
sempre convém usar entre nós. E falou-lhe da pouca disposição do filho para
que ele lhe desse mulher. Já lhes tinha, em tempos, e com alguma subtileza,
falado do assunto. Pois a situação não tinha mudado desde então.
Os investigadores das vidas reais teriam
gostado de saber em que momento, sensivelmente entre o outono de 1564 e o
preciso dia 18 de Janeiro de 1568, decidira Felipe que D. Carlos não podia nem
devia suceder-lhe no trono. Teriam
gostado, mas nunca chegaram a uma conclusão definitiva.
Em suma, aquilo a que o embaixador francês
chamava de imbécilité convencera o
pai a deixar cair o casamento de Carlos com Ana de Austria.
O
príncipe não ouve ninguém nem respeita ninguém e é de natureza uma pessoa muito
cruel,
escreveu Giovanni Soranzo ao Senado de Veneza em 1565. Tinha costumes bizarros,
o diabo do rapaz, e em tudo exibia orgulho e arrogância.
Mesmo assim, ou por isso mesmo, tinha o que
queria do pai. Por exemplo, quis que o Conselho de Estado e o Conselho de
Guerra reunissem nos seus próprios aposentos, e conseguiu, e o pai pô-lo a
presidir a esses conselhos e dos conselheiros exigia ele todos os dias que lhe
obedecessem sem discutir.
Frei Bernardo de Fresneda, confessor do rei,
adiantava (como quase sempre ao embaixador francês) que por causa das graves
deficiências do filho o pai seguira a táctica de lhe fazer as vontades em
matérias que em condições normais nunca permitiria.
Felipe II, o rei mais severo e temido da
História, mimava o filho – consequência dos atravessados sentimentos que lhe
moíam o íntimo a esse respeito. Não só o autorizava a presidir aos conselhos
como autorizava que dos cofres reais Carlos tivesse permissão de levantar
grandes somas de dinheiro.
Em Agosto de 1566, Carlos foi apanhado a
escutar às portas. E às portas da câmara do rei, enquanto decorria uma reunião
respeitante aos problemas da Flandres. Um dos gentil-homens de Felipe ia passar
naquele corredor e surpreendeu o príncipe. Disse-lhe que se pusesse a andar
dali que Sua Majestade não tardaria a sair e que ele estava a ser visto de uma
janela pelas damas e págens da rainha naquela figura ridícula. E o príncipe
herdeiro do trono de Espanha não faz mais nada, vai-se ao gentil-homem ao murro.
O rei foi sabedor, ralhou com o filho, todavia sem deixar esmorecer a esperança
de que aquele maldito feitio mais tarde ou mais cedo viria a mudar.
E é claro que Carlos soube das negociações
para o casarem com Ana de Áustria. Soube e ficou encantado. Até tinha
conseguido um retrato da princesa e já o pusera a bom recato, numa caixa redonda de ébano,
emoldurada a ouro e prata. E até lhe deu para tirar lições de alemão – pagas
com o seu dinheiro.
Nesse entretanto atirava ele um pagem por uma
janela fora. Porque o desgraçado do pagem cometera um crime de lesae majestatis, justificou. Odiava
todos os criados que o pai pusera ao serviço dele, e por isso lhes batia muitas
vezes e os ameaçava com um punhal. Com o
mesmo punhal chegaria a ameaçar o seu próprio mordomo, Don Fadrique Enriquez.
Ia às meninas todas as noites. Disseram que
com pouca dignidade e muita arrogância.
Em
Agosto de 1567, Felipe desabafa com o embaixador de França. Estava tão
farto e desgostoso do príncipe seu filho que se não fosse pelo falatório que se
seguiria fecharia o filho numa torre, a ver se ele aprendia a ser mais
obediente.
Com a questão da Flandres a tornar-se
dramática, Felipe sente-se na obrigação de se trasladar para lá. Mas não quer,
nem pode, descurar os negócios que o prendem em Castela. Pensa na irmã, Joana,
que aliás já assegurara a regência em Espanha quando da longa ausência de
Felipe justamente nos Países Baixos.
Mas Joana, depois dessa experiência nunca
mais quisera nada com a política e com a governação e recolhera-se a um
convento. Restava o infante. E aí o lúcido Felipe tinha a cabeça cheia de
dúvidas. O comportamento anormal do filho não o recomendava nem em sonhos para
governar, e menos ainda sobre território tão problemático.
O embaixador comentaria depois que entre o
rei católico e o príncipe seu filho havia tal animadversão que se o pai odiava
o filho o mesmo se poderia dizer do filho para com o pai, e que daquele estado
de coisas grave infortúnio haveria a esperar.
Carlos toma conhecimento de que a madrasta,
Isabel, deu à luz outra menina, e que, por conseguinte, continuava a ser ele o
único filho varão do rei. Nessa noite disfarça-se de mouro, toma parte num
simulacro de batalha realizado mesmo defronte do Alcázar de Madrid, e acabado o
torneio vai correr as ruelas da capital nos copos e na estúrdia com um grupo de
cortesãos amigalhaços, e por lá anda toda a noite.
Carlos afadigava-se a angariar dinheiro, a
contrair dívidas de alto porte.
O biógrafo de D. Juan de Áustria, meio irmão
do rei, trouxe a lume cartas com data de Dezembro de 1567, assinadas “Yo el
Príncipe”, intimando um de seus validos a arranjar-lhe sem falta 600.000
ducados para que se cumpra tudo aquilo
que tenho ordenado, fazendo-o com o segredo e a decência que se puder.
Para que era o dinheiro? Mistério. Numa
primeira tentativa de explicação estariam os gostos de Carlos, a sua ânsia de emulação
com o pai – fazer ver ao pai que ele não era nenhum destituído, era até um moço
de gostos refinados, e que tinha todas as condições para herdar o trono.
Carlos mandara comprar uma grande colecção de
esculturas e moedas romanas – campo cultural dos raros que não parecia
interessar o pai. Carlos encetara tentativas para comprar uma colecção de
antiguidades gregas e romanas pertença de Diego Hurtado de Mendoza – acabaria
por adquiri-la por 10.000 ducados. E pintura. Comprou muita pintura. E
patrocínio de obscuros poetas, escritores e homens de ciência. Sim, patrocinou,
tanto espanhóis como estrangeiros, um florentino, nomeadamente
Não era no entanto para o mecenato cultural
que escorria a maior parte do dinheiro que Carlos pedia emprestado. Esse
dinheiro (grande parte dele) era para o jogo, para as apostas.
Carlos jogava em tudo, dados, cartas, e
apostava em tudo, corridas e outras competições em que se metia. Jogava,
apostava, e perdia. E perdia muito mais do que ganhava. A seu tio Juan de
Áustria pagou ele, em Setembro de 1567, 60.000 maravedís, por uma aposta em concurso
de tiro de arcabuz. 3.300 reais pagou ao tio por uma corrida que o tio lhe
ganhou. Até com Estanislau, o anão do rei, Carlos perdeu apostas e jogos.
E jogava amiúde com a rainha sua madrasta. E
perdia.
E fora do jogo e das colecções de arte, para
que mais queria o príncipe tanto dinheiro?
Os contabilistas do Real Tesouro auditaram em
1572 as contas do príncipe. Algumas rubricas vinham com designações
propositadamente ambíguas – 10.000 ducados que entregó Sua Alteza para dar a
cierta persona secreta, por exemplo.
Seria esse dinheiro destinado a financiar os
planos de fuga que Carlos projectara no seu último mês de liberdade? Fuga para
quê, porquê, para onde?
Mais tarde vêm embaixadores informar das
cartas que Carlos escrevera a alguns nobres. Anunciava-lhes a importante viagem
que tinha para empreender e convidava-os a acompanhá-lo. Quando pouco tempo
faltava para ser preso, Carlos tivera a ideia de enviar uma quantidade de
cartas mencionando essa viagem. Cartas aos nobres, mas também ao rei, às autoridades
de diversas cidades espanholas, aos tribunais. (Quem o teria aconselhado a
tal?) E missivas a potências estrangeiras, revelando o injusto tratamento a que
o pai o submetia.
O embaixador Pereira: vim a saber secretamente que o príncipe estava resolvido a partir para
algures e que tinha até quem o seguisse, o Duque de Medina de Rioseco, filho do
almirante de Castela, de quem, devidamente assinado, sacara um
documento-promessa de o seguir.
Para o bom sucesso desses planos do príncipe
era de importância máxima a colaboração de seu tio D. Juan de Áustria. O plano
poderia requerer uma viagem por mar e D. Juan era o capitão-geral das marinhas
reais. Só ele poderia dispensar-lhe as galeras precisas.
Carlos e o tio reúnem-se no dia 16 de Janeiro
desse ano fatídico de 1568. Carlos abre-se com o tio. Suplica-lhe uma ajuda. O
tio pede vinte e quatro horas para reflectir e abandona a reunião. Abandona a
reunião e vai direitinho à câmara do rei seu irmão comunicar o caso.
Carlos percebe o jogo do tio. Corre aos seus
aposentos e lá carrega e engatilha um arcabuz. Ordena a um criado que corra a
chamar D. Juan de Áustria de novo à sua presença. Não vê alternativa. Terá de
matar o tio como castigo pela traição cometida contra o príncipe real, o
herdeiro do trono das espanhas. Um gentil-homem de serviço à câmara do príncipe
apercebe-se das intenções do amo e pela
surra descarrega o arcabuz. O tio Juan de Áustria, vindo da câmara do rei,
entra-lhe no quarto. Carlos deita a mão
ao arcabuz, sente que está descarregado e em desespero de causa não faz mais
nada, saca da adaga e corre para o tio, e atira-se a ele.
O tio, claro, era
homem forte, e repele-o. E grita-lhe:
- Que Sua Alteza não dê nem mais um passo!
Acorre gente ao quarto do príncipe. D. Juan
arranca a adaga da mão do sobrinho e vai entregá-la ao rei. Estava ali a prova
do comportamento da prenda que era o senhor seu filho.
Acredita-se que foi desta sequência de
acontecimentos que saiu a decisão de Felipe, a decisão que levara anos a
amadurecer. Nobili, o embaixador veneziano entende que se o rei protelasse a
decisão extrema dificilmente teria mão na quantidade de desordens que se
seguiriam.
MEIA NOITE DE 18 DE JANEIRO DE 1568
Quiçá o mais
misterioso e dramático episódio de toda a vida do rei Felipe II aconteceu cerca da meia noite desse
dia 18 de Janeiro de 1568.
O Natal de 1567 passara-o Filipe II no
Escorial na companhia de alguns monges e de um seleccionado grupo de validos.
Ali permaneceu ele um mês. Regressou a Madrid pela noite de 16 de Janeiro de
1568.
No dia
seguinte, domingo, 17, o rei, em toda a normalidade, é presente à missa na
capela do Alcázar, acompanhado pelo príncipe. E pelo resto dia despacha
papeladas com o cardeal Espinosa.
Conta-se um português entre as primeiras
personalidades a ser informadas do que estava para rebentar.
Às duas
da manhã do dia 18 fui avisado do que se passava – disse Francisco Pereira, embaixador de
Portugal e tio de Ruy Gomez de Silva, o português que era um dos homens de mais
confiança do rei. – Sabia que o rei havia
passado todo esse dia de cama com o pretexto de que estava mal disposto…
Sim, mas a certa hora Felipe convoca quatro
dos seus conselheiros principais, o dito Ruy Gomez de Silva, o Duque de Féria, o
Conde de Lerma, D. Antonio de Toledo, prior, e Luis Quijar.
Pois bem. Estão os cinco na câmara do rei. E
que lhes quer o rei?
Fala o embaixador Francisco Pereira:
Disse-lhes
que as coisas com o príncipe andavam de mal a pior, e que era preciso deitar
mão àquele assunto. E cabia ao pai, e ao
cristão que era o pai, e a bem daqueles reinos, tratar de tudo. Não chamara ali
aqueles senhores para lhes pedir opiniões. Tudo já estava decidido na cabeça
dele. Só lhes pedia que o acompanhassem e fizessem o que ele lhes mandasse.
Ao Conde de Lerma e a um certo D. Rodrigo de
Mendoza, gentil-homens de serviço à real câmara naquela noite, foi ordenado que
deixassem aberta a porta do quarto do rei, que apagassem todas as luzes, que
levassem dali todas as armas e que afastassem todos os homens da guarda pessoal
do príncipe. Outros dois cortesãos, D. Pedro Manuel e D. Diego de Acuña que se
munissem de martelos e pregos.
Ao cair das onze já Felipe está de meia
armadura e elmo postos. Serenamente, toma a dianteira da pequena comitiva.
Percorrem em silêncio absoluto, sem archotes nem velas, na mais absoluta
obscuridade, os intermináveis corredores do Alcázar de Madrid.
Chegam aos aposentos privados do príncipe D.
Carlos. Entram.
D . Carlos estava deitado. A primeira coisa
que o rei faz é recolher a espada que o príncipe tem
à cabeceira da cama, e mais um arcabuz, outra vez com carga de pólvora e bala pronta a ser disparada.
à cabeceira da cama, e mais um arcabuz, outra vez com carga de pólvora e bala pronta a ser disparada.
D. Carlos acorda e acha-se rodeado de homens.
- Que quer Vossa Majestade de mim? – grita o
príncipe. – Que horas são? Vossa Majestade quer matar-me? Quer prender-me?
- Nem uma coisa nem outra, príncipe –
resmunga, soturno, o rei, dando logo de seguida ordens para que as janelas
fossem fechadas com pregos.
D. Carlos salta da cama e precipita-se para o
fogo da lareira acesa. É Antonio de Toledo quem o detém.
- Vossa Majestade quer amarrar-me como um
louco? – continua a berrar o príncipe. – Eu não sou louco! Eu não sou louco! Eu
estou desesperado! Desesperado!
- Sossegai – diz o rei sem se alterar. –
Voltai para a cama. O que se há-de fazer, príncipe, será para vosso bem e
remédio.
Dito isto, Felipe foi-se à escrivaninha do
príncipe e recolheu todos os papéis que lá se achavam, mais 30 mil escudos em
contado. E saíu, deixando Lerma – que tinha experiências no lidar com
perturbados mentais, já que custodiara a rainha Joana, a louca, em Tordesillas
– e Mendoza no quarto do príncipe. Os outros esperavam na antecâmara.
Felipe esteve até altas horas a examinar os
documentos que apreendera ao filho. Cartas. Cartas que o habilitaram a saber
que o príncipe estava a tentar juntar muito dinheiro, estava a pedir
empréstimos aqui e ali, a este e àquele. Pedidos de dinheiro que, segundo se
soube depois, não obtiveram as respostas esperadas, e se não obtiveram foi porque
os destinatários dessas cartas já já muito haviam emprestado ao príncipe. O rei
ficava ciente de que o príncipe seu filho estava crivado de dívidas até aos cabelos,
e dívidas vultosas, 100.000 ducados a este, 50.000 ao outro, 20.000 àqueloutro,
num total que passava dos 200.000 ducados. E nem seria preciso dizer: todos
esses pedidos de dinheiro eram feitos à revelia do pai.
Na análise que faz aos documentos
apreendidos, Felipe descobre cartas prontas a seguir para autoridades de
Nápoles, Sicília, Milão e Flandres, em
que o príncipe lhes promete favores e mercês e se compromete a dispensá-los da
Inquisição se por acaso nos papéis da Inquisição constassem os nomes deles.
Carlos também tinha prontos a seguir para os
mesmos destinos uma série de retratos seus e afirmava a intenção de abandonar a
corte do pai e que isso seria feito em grande estilo, porque não lhe faltava
dinheiro (pedido a particulares, conforme explicava) e jóias de alto preço.
Fourquevaux, ministro de França, dizia: o príncipe escreve do próprio punho e letra
tudo o que pensa, as mil ou mais ideias descabeladas que lhe passam pela
cabeça.
Pereira era de opinião de que o
recebimento daquelas cartas por gente tão hesitante em matéria de religião
poderia ter trazido gravíssimas contrariedades ao rei.
O
embaixador Leonardo de Nobili afinava pelo parecer de Pereira. Tinha
conhecimentos das cartas do príncipe aos diversos potentados aliados a Castela
queixando-se dos maus tratos do pai, do mau governo do pai. Convidava alguns
dos grandes para o acompanhar, e abria o jogo quanto aos planos para se fazer
ao mar até Itália, ir apresentar-se ao imperador Maximiliano, e finalmente
consumar o matrimónio com Ana, cuja perspectiva tanto o tinha entusiasmado.
Bom, mas não era nada que o rei não soubesse.
Senão em detalhe, pelo menos de uma forma geral. O facto de o rei saber dos
planos do filho pode explicar a ordem dada às igrejas de Madrid a 13 de Janeiro,
para que rezassem a todas as horas canónicas e em todas as missas e pedissem a
Deus iluminação para certas deliberações do rei.
- A natural e particular condição do príncipe foi o que me ditou este
modo de proceder – disse o rei.
Terminantemente proibidos estavam todos os
cortesãos de contar fosse a quem fosse o que tinham visto e ouvido.
OS DIAS SEGUINTES
Os servidores de Carlos foram despedidos pelo
rei e Carlos ficou detido em
compartimento sem janela situado na mesma torre do Alcázar de Madrid em que seu
avô Carlos V tinha sujeitado como prisioneiro o rei de França, Francisco I,
capturado na batalha de Pavia.
O príncipe seria vigiado dia e noite, sob a
supervisão dos homens da real confiança de sempre, o conde de Lerma, Ruy
Gomes de Silva e mais um ou dois. Ninguém estava autorizado a entrar no
aposento.
E a dúvida que persiste nos espíritos
historiográficos está em saber se, nos dias precedentes, e até estando na missa
ao lado do filho, o rei já teria
resolvido o que fazer, e, se tinha, porque esperara quarenta e oito horas para
desferir o seu golpe. Se Felipe já tinha resolvido o que fazer do filho, isso
dá bem a ideia do calibre dele, da íntima configuração dele ao estar com o
filho tranquilamente na missa, induzindo no rapaz uma falsa sensação de paz e
segurança.
- Toda esta
terra está espantada e fora de juízo – diz o embaixador Francisco Pereira no
dia seguinte.
A maior parte
desse dia 19 passa-a Felipe a reunir em separado com os conselhos de Castela,
Aragão, Itália, Índias e ordens religiosas.
Segundo lhes
comunicou, Felipe II actuara por razões que reputava de mais convenientes ao
seu serviço e ao bem de todos os reinos. Essas razões haveriam de lhes ser
comunicadas mais tarde, a seu tempo.
Nesse dia 19 de
Janeiro de 1568, e dirigidas às autoridades de todos os reinos e aos príncipes
cristãos, Felipe dita diversas cartas em
que ensaia uma explicação para as suas acções do dia anterior. Estavam
mobilizados todos os cavalos do serviço de correios e proibida a saída para lá
de sete léguas dos limites da cidade de todo o homem apeado ou cavaleiro que
pudesse estorvar o caminho dos reais mensageiros.
A ideia mais
forte contida nas mensagens enviadas era a de que o príncipe fora detido devido
à sua particular e natural condição, e não por culpa de ofensa que contra a
pessoa do rei houvesse sido cometida. Em tempo prestaria Sua Majestade
ulteriores satisfações, ou seja, explanaria as quarenta causas que o haviam
obrigado àquele proceder.
Ficavam
terminantemente proibidos todos os comentários sobre o assunto. Prelados,
padres e gerais de todas as ordens religiosas estavam proibidos de mencionar o
caso nos seus sermões.
Mas claro que
passada uma semana ainda se comentava o caso, por inesperado, e de todo
insólito. O embaixador de França recordava o dia 13 desse mês de Janeiro, dia
em que o rei ordenara expressamente a todas as igrejas e mosteiros de Madrid
que rezassem nas horas canónicas e em todas as missas, pedindo a Deus
inspiração e sabedoria para planos e graves deliberações que tinha entre mãos.
O real pedido deixou em sobressalto os círculos da igreja mais próximos da
corte e levantou-se alguma especulação, sem que todavia se suspeitasse que o
que quer que fosse estivesse relacionado com o príncipe.
Leonardo de
Nobili, embaixador veneziano, chegou a escrever que muita coisa se teria passado,
mas que eram segredos de pai e filho sobre os quais era difícil expender
opinião válida.
E no ar pairavam as interrogações: quando é
que exactamente, o rei tomara a decisão de prender o herdeiro legítimo do
trono; que objectivas razões teria para o fazer; que medidas terá tomado para
se certificar de que o filho nunca haveria de lhe suceder e subir ao trono.
Duas semanas passadas sobre a detenção do
príncipe, D. Ruy Gomez de Silva comunicava ao embaixador de França que havia
mais de três anos que o rei se dera perfeitamente conta de que o cérebro do
filho era ainda mais deformado do que o corpo, e de que nunca Carlos poderia
alcançar alguma da sanidade necessária às altas responsabilidades do governo do
império. Felipe ocultara as suas convicções, esperançado de que a idade
acrescentaria ao filho a sabedoria e a maturidade necessárias. Ora acontecera
precisamente o contrário. Com o tempo tudo na saúde mental do príncipe havia
piorado, ao invés de melhorar.
Dizem-me
que D. Carlos é a pessoa mais perturbada deste mundo, escreve o embaixador Pereira. O embaixador
alemão diz mais: toda a gente guarda
silêncio acerca do príncipe, como se tivesse morrido.
Já se estava em Fevereiro. E em Março coube a
vez ao representante de França de informar o seu rei: o caso do príncipe caiu no
esquecimento e fala-se menos dele hoje do que se falaria se ele nunca tivesse nascido. E assim
também o embaixador da Toscana: do
príncipe de Espanha já não se faz caso. Como se nunca tivesse existido. E a
vida e a prisão dele seguem em condições iguais às do primeiro dia, sem
esperança de que ele possa dizer uma palavra sobre o que se passou.
Correra o boato (e aqui nota-se que o
libretista de Verdi estava suficientemente bem informado sobre as realidades da
época para construir uma boa ficção) de que D. Carlos entrara em contacto com
os rebeldes flamengos, e desses em especial com um certo barão de Montigny.
Assim como fora voz corrente de que a intenção de Carlos seria nem mais nem
menos do que matar o pai. Muitos entendiam os rumores como fantasias, e dessas
fantasias, além da que dizia que D. Carlos seria pouco católico, sobressaía a
que dava o príncipe (no pressuposto da rebelião contra o rei seu pai) feito com
o tio, D. Juan de Áustria, com os príncipes italianos e com o próprio imperador
Maximiliano II, que sucedera ao avô
Carlos V.
Os pormenores mais miúdos do acontecido
reservara-os Felipe para os parentes mais chegados, nomeadamente a rainha
Catarina de Portugal, o mais idoso membro da família, única irmã sobreviva de
Carlos V, sogra de Felipe e avó de D. Carlos.
Já em tempos Felipe falara do filho à rainha
Catarina, do curso da sua vida, do seu modo de ser e proceder, e lhe comunicara
argumentos e testemunhos que de facto indicavam haver ali um problema sério e,
mais dia menos dia, uma necessidade de intervenção do rei. Tudo o que o
detivera até àquele dia 18 de Janeiro de 1568 fora o amor de pai. Só o amor de
pai o levara a tentar todos os estratagemas para remediar o problema sem ter de
recorrer aos meios tão extremos a que recorrera.
O
sentimento e a dor com que fiz o que fiz Vossa Alteza o julgará pelos mesmos
sentimentos que nutre como mãe e senhora de todos nós. E, enfim, o que eu fiz
foi prestar um sacrifício a Deus da minha própria carne e do meu próprio
sangue, preferindo o serviço de Deus e o benefício público a quaisquer outras
humanas considerações. As causas para tanto, antigas, mas que de novo
sobrevieram e me constrangeram a tomar tais resoluções, são de tal cariz que
nem eu os poderei referir a Vossa Alteza, nem Vossa Alteza os ouviria sem
renovar dores e lástimas que no devido tempo poderá entender.
Mas a avó Catarina lá entende que deve pôr os
pés a caminho e ir a Madrid ver o neto, e não só ver o neto, passar a tratar dele como mãe. Foi preciso
Felipe encarregar um mensageiro especial de vir a Lisboa tirar aquela ideia da
cabeça de Catarina.
Pio V, papa, não se contentou com as razões
de Felipe. Tinha recebido de Espanha uma carta que era uma espécie de circular,
escrita por um secretário e não como era de etiqueta nas comunicações
importantes, escrita pelo punho do rei.
Mas, azar de Felipe, a carta chegara com atraso às mãos do papa e no entretanto a santidade fora informado do caso por outras fontes: Sua Majestade mandou prender o príncipe nosso senhor porque conspirava conta a sua real pessoa e porque tinham sido apreendidos nos seus aposentos livros da autoria de hereges.
O papa pede explicações sérias e urgentes a
Felipe. E Felipe escreve de sua própria mão uma longa carta ao papa, repisando
nos argumentos já usados. Por então não se alargaria mais em particularidades,
mas insistia em que a justiça, a paz e a tranquilidade da sua monarquia
dependeriam, quando fechasse os olhos,
do tipo de pessoa que lhe fosse
sucessor. E visto que, por meus pecados,
a pessoa do príncipe tivesse tais e tão naturais defeitos de entendimento e na
natureza que lhe era própria, faltava-lhe a capacidade necessária para tanto, o
que me representou todos os consideráveis inconvenientes que adviriam, caso
recaísse nele a responsabilidade de sucessão no governo destes reinos e o
evidente perigo que de tal resultaria.
Estaria por conseguinte aqui, na segunda
carta ao papa, o mais substancial das razões que sustentavam a acção do rei.
CONSANGUINIDADE
Felipe não se cansava de sublinhar que na
raiz da sua atitude não se contava uma culpa do príncipe, uma desobediência, um
desacato – a mim, parece-me, que semelhantes coisas nunca faltaram no
comportamento de D. Carlos, mas é evidente que Felipe as desvalorizava, aludindo
a causas outras, que, por constituírem a
razão de ser daquele sistema monárquico de direito divino, a hereditariedade, a
consanguinidade, por prudência política evitava pôr claramente por escrito.
Não tomei
a atitude que tomei com a esperança de que por este caminho pudessem cessar os
excessos e desordens do príncipe. Tudo isto tem outro princípio e outra raiz
cujo remédio não se acha nem no tempo nem nos meios.
É claro que o problema do príncipe era
incurável. Estava-lhe no próprio sangue. D. Carlos era a evidência flagrante
dos riscos contidos nas sucessivas endogamías.
D. Carlos fora um enigma logo à nascença,
assim como enigma sempre foi para os investigadores o historial médico dele.
Teve uma infância difícil e carente. Começou tardíssimo a falar, aos três anos
- e a primeira palavra que aprendeu e disse foi “no”.
Um cortesão, em 1550, dava notícias do
príncipe nestes termos: o infante D.
Carlos está bonito, mas há grande descuido na educação dele quando não lhe
atribuem homens para o servir e orientar. Estando só entre mulheres será
deficientemente criado, e ficará soberbo e mimado, pois que por qualquer coisa
arreganha a cara e atira-se para o chão, entre outras vinte atitudes extremas. E
era canhoto. Escreveu acerca disso o aio: Doña
Leonor de Mascareñas faz o que pode, ata-lhe a mão esquerda, o que parece não
bastar. A infanta sua tia, quando come com ela, o que é na maior parte dos
dias, tem sempre um garfo na mão para lhe dar com ele quando o infante pega
nalguma coisa com a mão esquerda.
Foi filho único, e a mãe, a princesa Maria
Manuela de Portugal, sobreviveu somente quatro dias ao tormentoso nascimento
dele. Isto em 1545. Quanto ao pai, por fortíssimas razões de Estado, saiu de
Espanha em 1548 para acompanhar Carlos V no estrangeiro e por lá se demorou até
1551, regressando então a Madrid, mas tornando a ausentar-se entre 1554 e 1559.
Tinha o príncipe D. Carlos três anos de idade
quando Felipe escreve a Carlos V: em
vista da dispensação que foi despachada para que me casasse com a princesa
Maria Manuela de Portugal, deixou de declarar-se o certo grau de dúvida que
havia entre nós. Grau de dúvida sobre a possibilidade do casamento, porque
Maria Manuela era prima direita de Felipe, sendo os pais dela dois irmãos que
se tinham casado com duas irmãs. De forma que em lugar de oito bisavós, Carlos
tinha quatro, e em lugar de dezasseis tetravós só tinha seis.
Muitos dos antepassados do príncipe D.
Carlos, os borgonheses como os Trastâmara, se tinham casado entre si. E a razão
essencial, está bem de ver, era absolutamente de ordem política, visto que se
tratava de unir as diversas espanhas sob o mesmo trono. O que veio a dar no
coeficiente de consanguinidade de Carlos V ao nível de 0,037.
Não contentes com isto, tanto o casamento de
Carlos V como o de Felipe II foram com primas direitas, o que aumentou os
coeficientes de consanguinidade (tanto o do príncipe D. Carlos como, mais tarde,
o dos filhos que Felipe teve de Ana de Áustria) para qualquer coisa como 0,211.
Isto é, um nível de consanguinidade possível de apurar nos filhos de uma
relação entre pai e filha ou entre irmão e irmã.
E
pensar que por séculos e séculos a História dos impérios deste mundo foi
escrita por indivíduos meio loucos,
frutos de sucessivos incestos, quer
dizer, pessoas já à nascença mental e fisicamente perturbadas em alto grau…
Incestos que engendraram o vasto império onde
o sol nunca se punha, o dos Habsburgo; que produziram descendências malsãs,
débeis, deformadas, de pequena estatura. Carlos é exemplo gritante disso mesmo:
um ombro mais desenvolvido do que outro, a perna esquerda mais curta do que a
direita, músculos atrofiados. E reputação de atávica impotência,ainda que nunca
tivesse chegado a casar-se.
Os altos níveis de consanguinidade
explicariam porque é que das quinze vezes em que as quatro mulheres de Felipe
II ficaram grávidas só quatro filhos
tivessem sobrevivido à mais tenra infância.
Consanguinidade, endogamía: as famílias reais
da Península tiveram com isso, e por isso, gravíssimos desgostos.
A rainha Joana, avó de Felipe II e também de
sua mulher Maria Manuela, passou a maior parte dos seus tristes dias
encarcerada em Tordesilhas, entre 1506 e 1555, ano em que morreu. Era de tal
ordem anormal a rainha que até os filhos estiveram na dúvida sobre se teria
nascido já bruxa ou já herege. Mas a avó dela, Isabel de Portugal, já a tinham
confinado, demente, no castelo de Arévalo, onde viria a morrer em 1496.
Donde, o caso do príncipe D. Carlos não ser
tanto de admirar se lhe considerarmos a herança genética de instabilidade
mental.
O JULGAMENTO DO PRÍNCIPE
O príncipe D. Carlos, pelo que disse alguém
(Gil González Dávila) sofria de uma enfermidade que não era original: o desejo
de reinar antes do tempo.
Após a sua morte, foi-se a fazer o inventário
das suas coisas e soube-se que em 1567 Carlos encomendara dois retratos, a três
quartos, um em indumentária de corte e outro de armadura, ordenando ao pintor
oficial Alonso Sanchez Coello a feitura de treze cópias de cada um deles. Uma
dessas cópias sabe-se que foi entregue ao embaixador Dietrichstein para que a
levasse consigo e a mostrasse na corte imperial. As outras cópias do seu
próprio retrato pretenderia o príncipe usá-las como, digamos, material de
propaganda da sua imagem de sucessor de Felipe II, tanto em Espanha como
no estrangeiro. No dia em que foi preso
estavam prontas catorze cópias do retrato e dez delas ainda estavam na posse do
príncipe.
A prisão de Carlos passa ao domínio público,
ou pelo menos ao conhecimento da nobreza, mas ninguém dessa nobreza, nem nenhum
dos grandes de Espanha, significa, na circunstância, e em princípio, qualquer
apoio à rebeldia e à crítica de Carlos ao governo do pai. Pelo contrário,
nobres e grandes oferecem a Felipe a sua solidariedade e o seu apoio naquela
hora por demais atribulada. E vão mais longe, reafirmam lealdades ao rei. Em
princípio.
Nota o embaixador Fourquevaux o medo que os
notáveis sentiram ante a probabilidade de poderem vir a viver num reino
governado por um indivíduo de personalidade tão instável e violenta, donde nem
um único nobre estar na disposição de arriscar pelo príncipe vida ou haveres.
Por outro lado, questionava-se a prisão de D.
Carlos. Seria aquela uma situação para manter indefinidamente? E não obstante
todos os protestos de lealdade e fidelidade dos nobres ao rei católico naquele
episódio, não é pacífico que Felipe recolhesse a unanimidade das simpatias
pessoais e politicas entre os nobres da sua corte. Era um rei temido, disso não
cabia dúvida; não era um rei amado. E com o correr do tempo os pareceres
acabaram por se cindir. A favor da grande prudência do pai, uns; a favor da
legitimidade do filho,outros.
A questão centrava-se também na incerteza
sobre a vida ou a morte do rei – naquele tempo ninguém teria tanto a vida nas
mãos como se tem (ou julga ter) hoje, por causa das muitas doenças, claro, e
pelos muitos atentados às cabeças coroadas. E não seria, longe disso, Felipe II o primeiro
rei a ser assassinado. Ora em caso de morte do rei, tão certo como dois e dois
serem quatro, os ministros comprometidos na prisão de Carlos cairiam em
desgraça, posto que seria fatalmente Carlos a suceder a Felipe, e esses
ministros estariam condenados a ser implacavelmente perseguidos, sumariamente
executados até.
Manifesta-se o Núncio Apostólico: tem-se por verdade que o príncipe será
afastado da sucessão e que nunca mais será libertado. O príncipe odeia de morte
os ministros favoritos do rei e se chegar a reinar esses ministros e mais toda
a sua descendência será arruinada.
Não
restaria portanto outra saída a tais ministros senão levar o príncipe a juízo,
conseguir para ele uma interdição por incapacidade, de forma a que se
esboroasse legalmente a hipótese de ele vir algum dia a subir ao trono de
Espanha.
E sobre a efectividade ou não desse
julgamento as pistas confundem os historiadores. Houve processo ao príncipe
herdeiro D. Carlos, ou não chegou a haver?
Sobre semelhante matéria, os investigadores
acharam na Real Academia de História de Madrid não mais do que cópias de
cópias. Por exemplo, de uma Relación de la Vida y Muerte del Principe
Don Carlos de Áustria, Hijo del Señor Rei Don Phelipe Segundo – uma cópia feita em 1868 de um
manuscrito (perdido) de 1681, por sua vez já copiado de um original
(desaparecido) de Frei Juan de Avilés, alegado confessor do príncipe. Desse
documento consta o julgamento e condenação, a 7 de Fevereiro de 1568, de D.
Carlos, por traição, tendo-se levado em conta a correspondência de Guilherme de
Orange e do conde Egmont com o príncipe. Isso e mais um registo das conversas
entre Carlos e o barão de Montigny que revelariam os entendimentos secretos supostamente
havidos entre o príncipe e os rebeldes flamengos.
Do libelo acusatório constariam como prova de
culpa adicional as cartas amorosas escritas pelo príncipe à rainha madrasta,
Isabel de Valois.
O próprio príncipe teria sido ouvido em
tribunal sob ameaça de torturas, e ao cabo de dez dias de audiências o tribunal
ter-se-ia pronunciado pela condenação à morte por delito de rebelião. O rei teria
confirmado a sentença. O carrasco teria executado Carlos por (vil) garrote, a
23 de Fevereiro desse ano de 1568.
(E, revertendo à ópera de Verdi, ou às
diversas peças de teatro de Alfieri, Schiller e outros, por aqui se percebe
onde os autores investigaram para construir uma ficção, que, sendo embora
ficção, não andou tão longe assim da verdade.)
O problema é que o documento atrás referido e
guardado na Real Academia de Madrid, é falso.
Sim, falso como Judas, sem tirar nem pôr.
Entre os variados argumentos para o considerar falso estão as impropriedades
por assim dizer técnicas. Ou de linguagem. Nunca um membro legítimo da linhagem
Habsburgo seria chamado de Áustria. Só aos ilegítimos cabia esse título – caso
do tio de Carlos, D. Juan, de Áustria – e Carlos nunca poderia, por isso mesmo,
ser chamado príncipe Don Carlos de Áustria. Outra coisa se, em vez de Carlos de
Áustria, o tivessem designado, como era direito seu, Sereníssimo Príncipe.
Depois, os nomes indicados como membros do
tribunal, Escobedo e Perez, não eram letrados, e menos ainda homens de leis. O
único dos citados que o era, um tal Vargas, advogado, estava nessa data ausente
de Espanha, em funções de juíz nos Países Baixos. A estas acrescem outras
imprecisões, ou erros crassos, que atestam a falsidade do documento.
Era certo que o príncipe tinha contactos com
os flamengos independentistas, Montigny, Egmont e outros. Em 1566 e 67. O que
seria de considerar natural. Carlos era o herdeiro legítimo e único do trono de
Espanha, e sendo-o de Espanha sê-lo-ia por inerência dos Países Baixos e de
tudo o mais que fosse possessão e poder do rei seu pai. Nada de estranho em si
mesmo. Natural seria que alguma parte tomasse nos mais candentes dos problemas
do reino. As cartas recebidas pelo príncipe tendo como remetentes
individualidades da importância de Egmont, ou de Orange, podendo ser
comprometedoras, não o foram, uma vez que os originais delas nunca foram
encontrados.
Enfim, não existe prova válida de que Carlos
tenha sido submetido a julgamento, pelo menos formal. Mas parece ser verdade
que Felipe e os ministros debateram essa possibilidade. Segundo Cabrera de
Córdova, constituíu-se uma junta com o cardeal Spinosa, Ruy Gomez de Silva e o
licenciado Briviesca com vista a causar
processo justificativo da prisão do príncipe.
Em 1590, o cronista Antonio Herrera y
Tordesillas afirmou que Felipe dera força ao dito processo, mas que mais tarde
deixara cair a ideia. Dizia-se na corte
que o rei queria fazer um processo legal e juntamente com o Conselho de Estado
declarar o príncipe incapaz para a sucessão da coroa, e porque o protelar desse
processo se afigurava perigoso. Mas não se achou nada de probatório que o
príncipe houvesse maquinado alguma coisa contra o pai, nem defendido opiniões
contrárias à fé, dando sempre mostras de ser um príncipe muito bom católico e um
verdadeiro filho da Igreja.
E desde que não era possível encontrar
fundamentação incontroversa para uma acusação de incapacidade, o rei resolvia
manter o filho prisioneiro, indefinidamente prisioneiro. Até que morresse.
Não era caso virgem por aqueles reinos.
Lembre-se do exemplo de Carlos V , que em face do distúrbio mental de sua mãe, Joana
(à qual, diga-se, e como a D. Carlos, a corte de Castela jurara fidelidade e
lealdade como rainha) decidiu encerrá-la para sempre. E Felipe lá pensou, bem,
se o meu pai pôde ter a mãe presa por meio século, porque não posso eu fazer o
mesmo com o maluco do meu filho Carlos?
A MADRASTA
Agora provas de uma relação chegada entre o
príncipe e a rainha sua madrasta, sim, existiam.
Já aqui foi dito de um vício do príncipe: o
jogo. O príncipe ia aos aposentos da rainha sua madrasta para jogar – e jogos
de azar, pela letra dos historiadores. E assim foi sendo até ao dia em que o
príncipe foi preso.
Mas há
um bocadinho mais a dizer quanto a isso: o príncipe trazia sempre com ele um
retrato da rainha; o príncipe presentava frequentemente a rainha; o príncipe
escrevia-lhe sempre que não estavam debaixo do mesmo tecto – três cartas dele
quando Isabel foi presente a uma conferência em Bayonne (1565).
O embaixador Fourquevaux, naturalmente, sendo
a rainha francesa, tem qualquer coisa a dizer a respeito: nunca ninguém da corte fazia o que quer que fosse a gosto do príncipe,
nem o pai, nem Joana, a princesa real, nem os primos húngaros Rudolfo e
Ernesto. Uma excepção era a rainha. Tudo o que dizia ou fazia deleitava o
príncipe. A rainha tinha grande influência sobre ele. E não era nada fingido. O
príncipe era incapaz de mentir ou dissimular.
Todavia, aquilo que nestes nossos dias se usa
chamar de “conduta inapropriada” jamais teve lugar entre Carlos e Isabel. Não
era de resto muito provável num palácio em que cada um dos membros da família
real vivia cercado de cortesãos e cortesãs – Isabel tinha constantemente à
ilharga a cunhada, Joana. E não há mínima prova de que Carlos e a madrasta
alguma tenham passado sequer um minuto juntos e a sós.
Monsieur,
Mon Filz, le Prince d’Espagne: assim se dirigiu, pelo menos uma vez, a rainha ao príncipe seu
enteado – era a agradecer-lhe o envio de uma carta e a exprimir a vontade de o
ver o mais depressa possível em pessoa e en
compañia del Rey, mi Señor. E assinado,
Vuestra Buena Madre.
Na manhã que se seguiu à detenção do
príncipe, Isabel escreveu ao embaixador Fourquevaux: lamento esta desgraça como se de meu próprio filho se tratasse. E chorou durante dois dias, dizem; e chorou de
novo no dia da morte do enteado. Compreende-se: acabara de perder um dos poucos
amigos que tinha na corte de Madrid que fosse da sua real condição e da sua
idade.
O PRÍNCIPE PRISIONEIRO
Prisão
perpétua. Era essa a condenação do rei.
O Duque de Alba
é que não sabia o que pensar daquele sinistro caso. Felipe explicou-lhe: não prendi o príncipe para acabar com uma
desordem de conduta ou para lhe reformar o carácter, pois como tentativa de
emenda para o comportamento do príncipe este processo falharia como falharam
outros. A minha intenção foi remediar em
definitivo os males que poderiam suceder pelo resto da minha vida, e mais do que
isso, depois da minha morte.
Houve quem
dissesse que o rei despersonalizara o filho e lhe dera estatuto de problema
puramente administrativo. O mais que era preciso assegurar era que Carlos (como
a avó Joana) ficasse a bom recato e lhe fosse fornecida bastante comida e
bebida.
Por fins de
Fevereiro, o rei era informado de que na semana anterior o príncipe pouco havia
comido e que nos últimos quatro dias não tinha comido mesmo nada. O confessor
não lograra convencê-lo a mastigar alimento algum, de maneira que foram
necessários métodos brutais: os guardas da prisão trouxeram uns ferros e com
eles, e só assim, foi possível abrir-lhe a boca e nela introduzir um bocadinho
de carne e alguma sopa.
Ao recusar
alimento, podia pensar-se que o príncipe sabia que aquela não era vida para ele
e que pretendia pôr um fim a essa vida o
mais depressa possível. Também poderá aventar-se que não comia por temer ser
envenenado à ordem do pai. Mas sabe-se que certo dia engoliu um diamante e que
foi prontamente socorrido e purgado até defecar o diamante. E como padecia de
malária o que mais queria era beber, em vez de comer, e beber águas muito
frias.
A disfunção
alimentar do príncipe não era porém uma novidade na corte. Testemunhava o
embaixador Dietrichstein, anos antes, que Carlos podia manter-se em jejum até à
hora da ceia e em chegando a hora da ceia comer alarvemente, em quantidades que
dariam à vontade para alimentar duas ou três pessoas. E outra questão era a
água. A água para Carlos tinha de ser neve derretida, ou água em vasilha
previamente posta no gelo. E mesmo assim nunca estava fria o suficiente para
lhe matar a sede.
Certamente
devido à malária, tinha calores insuportáveis pelo corpo, e desnudava-se, e
queria estar sempre perto de uma janela por onde soprasse o vento. Andava
descalço pelos aposentos e em todos os recantos por onde deambulasse queria ter
uma vasilha com água gelada. Duas ou três vezes em cada noite mandava pôr gelo
na cama e sobre o gelo se deitava.
Encerrado na
torre, Carlos continuava a exigir os mesmos tratamentos. Sem comer. Só a beber
água gelada – bebia à volta de dez litros de neve derretida por dia. A dormir
numa cama gelada. A andar descalço e a desnudar-se. Segundo o Núncio em Madrid,
o que o príncipe fazia enquanto preso não era diferente do que havia feito
enquanto homem livre.
Estava pele e
osso, num estado lastimoso. Quando o proibiram de beber tanta água gelada,
Carlos pediu um padre para o ouvir em confissão e lhe ministrar os sacramentos e
a extrema unção. E assim se fez. E daí a pouco morria. A beber neve derretida.
A pedir a Deus misericórdia para si e a bênção e o perdão para o pai.
Ao conde de Lerma coubera a ingrata
incumbência de ser, digamos, o carcereiro do príncipe. No fim da missão haveria
de admitir que a morte daquele fora uma prova da misericórdia de Deus, e que
até fora uma morte boa (de morte percebia-se bastante naquela época e naquela
corte), uma morte que o príncipe procurara ao ficar quinze dias sem comer, em
greve de fome, diríamos nos nossos mais afortunados dias.
Mas Felipe
andava fulo com o comportamento carcerário do filho. Pensava, se ele me morre o
mundo vai falar dele nos modos mais desvairados; se ele vive é ponto assente
que o hão-de transferir para o castelo de Arévalo – interessante: era o castelo
onde Isabel de Portugal (outra), tetravó de Felipe, tinha também sido encerrada
por desvario.
Felipe não
visitava o filho. Abril chegado, foi passar a primavera para onde era costume
dele passá-la, em Aranjuez. E quando veio o verão, em Julho, retirou-se para o
Escorial, com passeios pelos bosques de Segóvia. Recebe no Escorial a notícia
da morte do filho. Regressa a Madrid.Por pouco tempo. Em Madrid chama os seus
homens de confiança e dá as suas ordens:
- Que se
organizem os lutos e todas as demais coisas que em casos destes sejam de
costume fazer. E façam-no em memória do Sereníssimo Príncipe Don Carlos, meu
filho muito amado.
Dito isto, vai
fechar-se num mosteiro em reclusão.
R.I.P
Para John Man, embaixador de Inglaterra na
corte de Madrid, não havia que duvidar. Felipe II assassinara o próprio filho.
Gulherme de Orange também não ia muito fora
disso na obra que escreveu, Apologia.
Felipe assassinara o próprio filho e de forma desnaturada. E esse holandês,
Orange, deixava a pergunta: este D. Carlos não estaria por acaso para ser
herdeiro do trono e nosso futuro senhor? Ora se o pai podia apresentar contra o
filho culpas merecedoras da pena de morte, não parece evidente que este assunto
deveria ser posto à nossa consideração, e por ser todo ele do nosso interesse,
em lugar de vir a ser julgado por três ou quatro frades espanhóis?
Das versões que
correram do acontecido (muitas, há quem diga que centenas) se alimentaram os
cronistas e os poetas, já na época dos factos, e já muito posteriormente a eles.
Criou-se o mito de D. Carlos, Infante de Espanha – ele e o nosso D. Sebastião,
dois míticos primos – tanto quanto o mito do próprio Felipe II como rei
implacável e desapiedado.
Em 1581
apareceram cinco edições francesas da Apologia,
de Guilherme de Orange a reconstituir o caso; e mais três edições holandesas,
uma em latim e uma em inglês.
Outro tratado
(em verso) sobre o tema intitulava-se Diógenes.
Constava de uma petição endereçada ao rei de França no sentido de apoiar a luta
dos flamengos contra Felipe II, e neste caso a acusação era muito centrada
sobre um pormenor e durante muito tempo teve pernas para andar: D. Carlos
apaixonara-se pela madrasta, Isabel de Valois, e Felipe surpreendera-os em
flagrante e matara ambos.
As pernas sobre
as quais esta versão caminhou por mais tempo foram os romances históricos e as
obras dramáticas Don Carlos, de César
Saint-Réal (1672), Don Carlos Prince of
Spain, de Thomas Otway (1676), History
of the Reign of Philip II, de Robert Watson (1777), Don Carlos, de Schiller, e na ópera Don Carlo, de Verdi – bebida, antes de mais, venho a saber, da
tragédia Fillipo, de Vittorio
Alfieri, com olhares sobre a peça de Schiller, que por seu turno bebera em
Saint-Réal, que por sua vez dava forma literária às alegações da Apologia, de Guilherme de Orange. Tudo
fontes indirectas.
O povo de
Madrid acorreu em massa ao primeiro enterro real desde que Felipe elegera a cidade
como capital de Espanha.
Miguel de
Cervantes contava então vinte anos de idade. Era discípulo de Lopez de Hoyos,
um dos fiéis do rei. Ele e Luís de Leon escreveram os epitáfios em honra do seu
príncipe. Segundo se disse, nesses escritos transpirava o temor de que a
sucessão de rei Felipe viesse a recair nalgum arquiduque alemão, eventualidade
que era por assim dizer um pesadelo nacional, desde o momento em que fora enfim
possível espanholizar a dinastia.
Felipe II tivera
em tempos a ideia de trasladar para o Escorial os restos mortais da realeza
castelhana. O corpo de Carlos seria o primeiro a chegar, significativamente
junto com o da rainha Isabel de Valois, sua madrasta – que pouco tempo lhe
sobreviveu.
No mesmo Escorial, no altar-mor da basílica,
será erigido o cenotáfio enorme, e lá figura o príncipe Don Carlos (ao que
dizem, olhando por cima do ombro do pai) mais os irmãos, a raínha sua mãe e as
suas duas madrastas.
O embaixador Fourquevaux comentaria dez anos
mais tarde que a morte de Carlos tinha resolvido não poucos problemas dos
muitos que o rei católico trazia sobre os ombros.
E o carcereiro Conde de Lerma escreveria a
informar o seu parente, padre Francisco de Borja: o que eu digo a Vossa Paternidade é que foi misericórdia dar tão boa
morte a quem esteve tão longe de a merecer, assim como grande mercê foi para
toda a cristandade o príncipe ter sido levado para o céu. Porque podeis estar
certos de que, se vivesse, teria sido a destruição de toda ela, cristandade,
pois que sua condição e costumes estavam fora de toda a ordem. Está ele muito
bem lá no Alto e todos os que o conhecemos louvamos a Deus por isso.