terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

       A MEMORÁVEL NOITE DO   
              HOTEL MIYAKO 


 

          Kyoto, Japão. Sete da tarde de um dia de Janeiro de 1957. Truman Capote, o famoso romancista americano, está à porta de uma suite do quarto andar do Hotel Miyako.


      Bate suavemente na porta, ouve uns gritinhos, a porta abre-se, aparece uma figura de boneca a adejar as mangas do quimono, uma camareira, de dentro uma voz masculina pergunta quem é, a camareira solta mais dois gritinhos, a voz torna a perguntar quem é ao mesmo tempo que se faz presente à soleira da porta. Olá. Olá. É Marlon Brando. Que pede a Truman que descalce os sapatos e entre.
         No Miyako, o hotel de estilo mais ocidental de Kyoto, está hospedada metade da equipa de filmagens da Warner Brothers, pronta a rodar os exteriores de Sayonara, sob a direcção de Joshua Logan, com Marlon Brando no papel de um piloto aviador americano.


         Truman entra, descalça-se, pede desculpa pelos vinte minutos de atraso, e reconhece o espaço, dois quartos, uma casa de banho, um solário envidraçado, esteiras castanho-amareladas, almofadas de seda espalhadas, uma pintura em pergaminho, um vaso com arranjo de lírios; pelo chão é a desordem absoluta dos objectos pessoais de Marlon Brando, sapatos, camisas chegadas da lavandaria, camisolas, chapéus, uma máquina de escrever, duas máquinas fotográficas, um gravador, um aquecedor eléctrico, livros de temáticas budistas, um caixa de enormes morangos japoneses.
         Livros. Truman nota: Marlon…nem um livro de ficção? Não. Brando nunca na vida leu um romance. Mas quer escrever. Está a trabalhar numa novela, num conto, talvez num romance, talvez num argumento. Estava mesmo agora a trabalhar nisso com um assistente.
           Brando já levava um mês de Japão. Ao que Truman apurara, tinha-se mostrado amável e cooperativo com o pessoal das filmagens e nos intervalos costumava apartar-se dos grupos e sentar-se a um canto a ler. A ler filosofia. E a tomar notas num caderno. No fim dos trabalhos do dia não alinhava nos drinks vespertinos, nem ia comer peixe cru, nem deambulava pelo bairro das gueixas. Voltava ao hotel e trabalhava no seu manuscrito.


         Estava na hora de encomendar o jantar. O assistente literário de Brando sai da suite. Promete voltar mais tarde para resolverem um certa passagem problemática da narrativa. Aparece uma camareira com uma torta de maçã. Brando tem um gesto de contrariedade, mas aceita a torta. E informa que Joshua Logan, o realizador, ainda em Hollywood, o avisara: ele estava gordo, ele teria de perder peso para fazer o papel; e ele, sim, perdera algum, não todo o que devia, só algum; mas, chegado ao Japão, com os fritos, com o adocicado e o farináceo das comidas, ele recuperara, e até aumentara de peso.
         Então o que há-de ser para o jantar? Brando pergunta e alivia o cinto, e passa a mão pelo estômago saliente, e murmura para si mesmo que precisa emagrecer. E pede sopa, bife, batatas fritas – três guarnições para acompanhamento -, uma dose extra de esparguete, pãezinhos, manteiga, uma garrafa de sakê, salada, queijo, biscoitos, torta de maçã. E sorvete, Marron?, pergunta a camareira, porque o “l” não tem correspondência em japonês. Sim, sorvete também.

                      



         O projecto daquele filme, Sayonara, despertara a curiosidade de Truman Capote. Curiosidade cultural e certa ambição literária. O filme passava-se no tempo da guerra da Coreia, seis anos antes, e versava o tema do choque cultural entre Oriente e Ocidente. Truman, ao tempo muito interessado na escrita não-ficcional, propunha-se cobrir as filmagens japonesas de Sayonara para a revista The New Yorker, um pouco à semelhança do que fizera com algum êxito por ocasião da primeira visita à URSS de uma companhia lírica de negros americanos para interpretar Porgy and Bess. O The New Yorker aceitara a proposta e complementara-a contratando para acompanhar Truman o conhecido fotógrafo de celebridades Cecil Beaton. Partiram no dia 27 de Dezembro de 1956.
         Uma viagem que correu particularmente mal. Em S. Francisco Truman bate com a cabeça e fica preso no elevador do hotel. Em Honolulu as bagagens são dadas como perdidas e esperam três dias até elas serem encontradas. Preparados para a última tirada da viagem até Tóquio, lembram-se de que precisam de vistos japoneses se quiserem ficar no Japão por mais de três dias – um desvio para Hong Kong, aquisição dos vistos e finalmente vôo para Tóquio.
         Ao tomar conhecimento da visita e do encargo de Truman Capote nas filmagens de Sayonara, quem se atira ao ar de fúria é o realizador Joshua Logan. Terminantemente proibida a presença no set do pequeno Truman. Era um quadrilheiro do pior, era uma melga do pior, era um intriguista do pior, e era um desses hipócritas da intelectualidade novayorquina com quem ele, Logan, engalinhava, sim, sim, um desses que em tudo o que escrevia tratava os seres humanos como se fossem insectos que se pudessem pisar a um canto da sala – disse-o nas memórias que mais tarde escreveu.  
         E Logan e o produtor, William Goetz, tratam de reclamar para The New Yorker. E tratam de pôr os seus advogados de sobreaviso. Mas apesar de todas as minhas diligências, queixas e protestos eu tinha o pressentimento de que tudo o que o pequeno Truman queria o pequeno Truman conseguia.
         Entretanto, Truman e Cecil metem-se a conhecer Tóquio, a apanhar grossas cardinas de sakê, a encontrarem-se com o mais famoso escritor nipónico, Yukio Mishima, a ir ao kabuki, a entreterem-se com os dançarinos, a correr os bairros escusos no engate…

               



         A 23 de Janeiro estão em Kyoto. Cidade de amplas avenidas, prometedores becos e mais de duzentos bares. Kyoto é um resumo de tudo o que o Japão é.
         A proibição de Logan mantém-se. Irrevogável. Truman Capote nem vê-lo. Que ninguém se atreva a escrever uma linha sobre o que se passar nas filmagens. No seu íntimo, apenas, e sem o dar ao manifesto a não ser ao companheiro de jornada, Truman está pronto a renunciar ao projecto literário que tanto o entusiasmara. Se alguém viesse a escrever alguma coisa sobre a rodagem de Sayonara não seria ele.
    

         Mas Truman, evidentemente, era homem de largos recursos, homem de engenho e de imaginação. E começa a ver o caso por outro prisma. Logan estava no seu direito impedindo-o de assistir às filmagens e de acompanhar todo o processo de produção de Sayonara, sim senhor, Truman dava isso de barato. O que Logan nunca poderia proibir era que Truman contactasse as pessoas envolvidas no filme, designadamente a sua estrela máxima, Marlon Brando – que em tempos conhecera pessoalmente em Nova York.

                                                                                                 

         Tu vê lá bem o que fazes, Marlon – é Joshua Logan a prevenir o seu actor – nunca fiques sozinho com esse gajo. Ele quer-te apanhar. E não é por coisa boa
         A minha alma é um lugar privadoresposta de Brando; que por sinal aborrecia mortalmente jornalistas e entrevistas, mas que, nem que seja por espírito de contradição, convida Truman para jantar com ele na suite do Hotel Miyako.
         Truman virá a declarar que Brando não fazia a mais pequena ideia de que ele se aprestava para o entrevistar não o entrevistando. Quer dizer, tencionava usar como matéria de reportagem aquele jantar para que fora tão gentilmente convidado. Ou, explicando melhor, Brando não fazia a mais pequena ideia do que poderia sair daquele jantar, assim como Truman, quando lhe bateu à porta também não fazia. Só com o correr do jantar é que foi avaliando as virtualidades da situação.


        Os últimos oito ou nove anos da vida dele tinham sido uma verdadeira trapalhada –  Marlon Brando a abrir-se com Truman. E daí pergunta ao convidado se já tinha feito psicanálise. Não conheço a resposta de Truman, sei que Brando tivera muito medo de ser analisado. Pelo menos a princípio. Medo de quê, porquê? Medo de que a análise lhe destruísse os impulsos criativos e mais tudo aquilo que fizera dele um artista; porque um ser sensível pode receber umas cinquenta impressões onde qualquer outra pessoa não recebe mais do que sete. Os sensíveis são vulneráveis. Os sensíveis podem ser brutalizados. Só porque são sensíveis. E aconselha: você não caia na asneira de se abrir com ninguém; nunca queira sentir nada; e se sentir vai sentir em excesso.
          (O segredo de uma entrevista - está a pensar Truman Capote, que considera a entrevista uma arte - é deixar o outro pensar que é ele que nos está a entrevistar a nós.)   


            Por uma tarde do inverno novayorquino de 1947, Truman assiste na Broadway a um ensaio de Um Eléctrico Chamado Desejo então em vésperas de estrear. Brando (isto é História) é Stanley Kowalski, e era esse o primeiro papel a dar-lhe fama. Brando andava por ali, enxovalhada camisola de alças e calças de ganga, e Truman tomara-o por um empregado do teatro. Até lhe ver a cara de perto. Uma cabeça implantada noutro corpo, foi a impressão. Um rosto sensível e delicado num corpo de estivador.
            Em 1957 a personagem de Kowalski abandonara de vez o corpo (e o espírito) de Brando. Aquele era outro Marlon Brando. Um Marlon Brando que numa suite de hotel em Kyoto falava, falava e falava. Um corpo mais avantajado, sim. Uma testa mais ampla. Menos cabelo. Mais rico – 300.000 dólares de cachet e percentagem sobre as receitas de bilheteira de Sayonara. Um Brando que no Japão não podia sair à rua sem óculos escuros e uma máscara de gaze – o que por lá não era absolutamente invulgar.
          Como partira ele o nariz? A fazer boxe. E precisamente no tempo de Um Eléctrico Chamado Desejo. Na brincadeira com o pessoal técnico do teatro. Nariz partido. Sangue. Hospital. Anestesia. Andava enjoado de um ano ininterrupto de representações do Eléctrico e pensou em aproveitar o incidente para ser substituído no elenco. E foi – ou não houve espectáculo nesses três ou quatro dias, não sei. E a cara e a expressão dele (segundo Irene Selznick, produtora do espectáculo) endureceram. Mas seria àquele nariz partido que ele ficaria a dever o sucesso no cinema. Até aí era bonito demais, disse Irene Selznick. O nariz partido dera-lhe sex appeal.
         O único motivo que o fazia estar no cinema era a falta de coragem para recusar tanto dinheiro. Pois sim, caro Truman, tornei-me num mero actor de cinema, coisa que nunca esteve nos meus planos iniciais. Preferia o palco. Mas Um Eléctrico Chamado Desejo passou para o cinema. Foi retumbante êxito de bilheteira. E com ele Brando tornara-se grande atracção de bilheteira. Grande atracção de bilheteira logo em seguida, com Viva Zapata, e depois com Julio César, e com O Selvagem, e com Há Lodo no Cais, e com Desirée, e com Guys and Dolls, e com A Casa de Chá do Luar de Agosto (por acaso também rodado no Japão). O dinheiro. E a coragem que é precisa para prescindir dele. E porquê prescindir do dinheiro? Os filmes têm mais possibilidades do que o teatro. Podem ser um factor de aperfeiçoamento moral das sociedades.
     
                                                             



       

                                                              


         Truman diz que, se empilhadas, as peças que eram oferecidas a Brando a cada temporada da Broadway atingiriam uma altura superior à do próprio Brando. Tennessee Williams quisera-o para estrear Orpheus Descending com Anna Magnani. Ele não quis – viria a fazê-lo no cinema: O Homem na Pele da Serpente. E não quis porquê? Porque o papel da Magnani era de tal ordem e o talento e a força de personalidade dela eram de tal monta que ela o faria desaparecer do palco em três tempos. E também porque a personagem dela defendia valores; e a personagem dele não defendia coisíssima nenhuma: a Magnani, no palco, acabaria com ele.   
       Os filmes envelhecem depressa. Brando vira pouco antes Um Eléctrico Chamado Desejo e, definitivamente, achava-o um filme ultrapassado.
Seja como for, Marlon… sim, Truman, seja como for, podem dizer-se coisas importantes a uma quantidade de gente através do cinema, é claro, e eu… ele queria fazer filmes sobre a discriminação, o ódio, o preconceito… os temas do mundo de hoje, não é Marlon? – 1957, não se mudaram muito os temas e o mundo nesses capítulos da discriminação, etc., digo eu. Pois por isso tinha ele lançado a sua própria companhia de produção, Pennebaker Productions, por isso mesmo, por uma questão de aperfeiçoamento moral do mundo. O de hoje. O daquele hoje, 1957. Mas na condição de a primeira fita render bom dinheiro. Se não render, depois dessa não haverá outra.
Era verdade, sim senhor, Sayonara continha bons momentos morais e atacava o preconceito racial – o piloto americano apaixonava-se por uma bailarina japonesa e o caso era mal visto pelos altos comandos da aviação como pelos empregadores da bailarina, embora estes nada opusessem no plano racial, só não a queriam metida com um homem fosse ele qual fosse, queiram-na a levar uma vida monástica fora dos palcos.
Ao chegar a Tóquio, cerca de um mês antes, Brando aceitara comparecer a uma conferência de imprensa para mais de sessenta jornalistas. Para dizer que aceitara fazer o filme só porque ele condenava os preconceitos que impediam a existência de um mundo sem guerras, preconceitos que são da vossa parte, japoneses, quanto o são da nossa parte, americanos.


 Passado um mês, o entusiasmo de Brando esmorecera. Sayonara? Pff, uma historieta açucarada, uma tolice que a princípio quisera ser um filme sério sobre o Japão. Igual ao litro. No fim de contas ele estava ali apenas pelo dinheiro, esse dinheiro de que precisava para o arranque da Pennebaker Productions. Tentara representar nas primeiras tomas. Depois optara por fazer experiências a ver o que dava. Fazia tudo errado, caretas, revirar de olhos, gestos completamente desligados do sentido das cenas. Esperara a intervenção correctora de Logan. E o que lhe disse Logan? Disse óptimo, Marlon, formidável, genial, podem revelar…
Truman pensa no óbvio que é uma mente criadora acreditar no valor da sua própria criação. O caso de Joshua Logan em Sayonara. Logan até acreditava que Marlon Brando, o grande astro, nunca se sentira tão feliz a trabalhar como naquela equipa que ele dirigia. E nem eu nunca trabalhei com actor tão inventivo, tão estimulante, tão adaptável.
Outro assunto. Truman conta o caso de um fulano, um jovem das suas relações, que se entregara ao budismo e que levava cinco anos de vida contemplativa no mosteiro Nishi-Honganji, ali mesmo em Kyoto. Brando ouve-lhe a história em pose sonhadora. Até ouvir dizer que para lá dos portões do mosteiro de Nishi-Honganji o amigo budista de Truman habitava uma suite de três confortáveis aposentos rodeado de livros e de discos, mantinha dois criados pessoais ao seu serviço, fazia as orações, cumpria a cerimónia do chá, e a seguir preparava os seus martinis, metia-se no Chevrolet que lá tinha para dar umas voltas e ia ao cinema local. Olhe, vem a calhar, Marlon, ele está aqui em Kyoto, soube que você cá estava e queria conhecê-lo… podíamos combinar isso. Não, Brando não foi na conversa. (Truman nota-lhe o traço puritano da personalidade.) A devoção sincera não joga com uma existência mundana. Como num dia desses, depois da filmagem num templo, quando um dos ascéticos monges se acercara de Brando e lhe pedira uma foto autografada. Para que é que o monge haveria de querer o retrato dele?
A camareira aparece a adejar as mangas do quimono, equilibra as grandes travessas, coloca-as sobre a mesinha de laca. Truman e Brando põem-se de joelhos, apoiados nas almofadas de seda colocadas nas extremidades da mesinha. Enxugam-se ritualmente as mãos em toalhas aquecidas como preliminar de uma refeição japonesa.


Brando andava a querer abandonar tudo. Como? Sim. Abandonar tudo. Tudo, tudo? Tudo, tudo. Pensava nisso muito seriamente. Abandonar a carreira? Sim, abandonar essa treta de ser um actor famoso. O que é ser um actor famoso? É qualquer coisa que resulta em nada. Muito bem, ele era um sucesso, era aceite por toda a gente, era bem recebido onde quer que fosse. E nada mais. E o que significava isso? Aonde conduziria isso? A nada.
A nada, Marlon? Não me diga uma coisa dessas… ah, mas digo, ele dizia, e até dizia mais, dizia que o excesso de êxito podia arruinar um homem para sempre… acha isso, Marlon?, ele achava, podia arruinar um homem para sempre o excesso de êxito na mesma medida em que o fracasso em excesso podia arruinar esse mesmo homem. Irremediavelmente.
A camareira distribui os pratos soltando as suas risadinhas.
Não era possível fracassar todo o tempo e sobreviver. Van Gogh? Um exemplo. Do que pode acontecer a um homem que nunca recebeu uma porra de um reconhecimento. Esse homem não se relaciona. Fica do lado de fora. E o sucesso faz isso mesmo. Acha, Marlon? Marlon achava. Precisamente o mesmo. Levara o seu tempo para perceber. Porque tinha andado absorvido por ele mesmo, nele mesmo, nos problemas dele, sem olhar em volta, sem se dar conta.
Marlon Brando, nos começos, não estivera certo de querer mesmo uma carreira de actor. E – confessava-o agora na noite do Hotel Miyako – ainda não estava certo, ah pois não, ainda não estava certo de que era mesmo uma carreira de actor o que queria fazer na vida.


Antes do repentino sucesso, Brando passara algumas passas do Algarve, sem conhecimentos pessoais, sem dinheiro, sem uma formação escolar que se apresentasse, indo à sorte de Libertyville, no Illinois, para Nova York, para morar em quartos alugados, em pensões de morte lenta, para circular nos meios do teatro, para se inscrever no Fundo de Desemprego ou para uns biscates avulsos como ascensorista. Era do tipo macambúzio (segundo os velhos amigos dessa época), muito metido consigo. Todavia, com certo sentido de humor, um humor infantil. Viveu num pardieiro da Rua 52 e costumava ir até ao terraço desopilar e entreter-se a atirar cá para baixo sacos de papel cheios de água. Na parede do quarto onde dormia tinha um cartaz: VOCÊ NÃO ESTÁ VIVO SE NÃO SABE QUE ESTÁ.
Era a pessoa menos oportunista que se pudesse imaginar. Nesse tempo. E ainda segundo os conhecidos da época. Não ligava meia a ninguém, nem a quem o poderia ajudar. Sentimentos de inferioridade, hem, Marlon? Oh, quem sabe, Truman. Poucos eram os amigos com quem pudesse competir nalguma coisa. Nenhum desses amigos era considerado seu igual. E quanto a miúdas? A avó é que dizia bem: o meu Marlon escolhe sempre as meninas vesgas. Com essas não havia concorrência a temer.


O bife está notável. A carne japonesa é de primeira ordem. O sakê é agradável às primeiras, depois torna-se enjoativo. O esparguete não está tão bom como o bife, que é que você acha, Marlon? Marlon aviava-se com as ervilhas, as batatas, o feijão. Não se devia encomendar comida ocidental em terras nipónicas. Sukiyaki? Arroz com algas? Não. Que tal a sopa de enguias? Nem pensar. Ou as abelhas fritas, ou as cobras marinadas em vinagre, ou os tentáculos de polvo com… não, não, isso não.
Quando voltar a Hollywood, Brando vai despedir a secretária. Vai mudar-se para uma casa mais pequena. Não vai mais querer criada nem cozinheira. Voltava ao tema da renúncia ao estatuto de estrela de cinema em troca de uma vida que levasse a alguma coisa. Uma mulher que fosse lá a casa duas vezes por semana para as limpezas e as arrumações era tudo quanto lhe bastava.
Por baixo de um dos pratos do jantar aparece uma carta. Brando abre-a e põe-se a lê-la enquanto come. Por um longo momento esquece-se da presença de Truman.


Era a carta de um amigo que estava a preparar um documentário sobre a vida de James Dean e queria Brando a fazer a narração.
A torta de maçã vinha encimada por um pedaço de gelado de baunilha. Brando puxou-a gulosamente para si.
E você vai aceitar, Marlon? Sim, ia. Ou antes, não. Talvez não. Entusiasmava-se amiúde com certas coisas, mas esse entusiasmo, admitia-o sem dificuldade, nunca durava mais do que sete minutos. Sim, exactamente sete minutos. Era o limite do entusiasmo dele.
A torta de maçã de Brando acabava de marchar. Olha significativamente para a torta de Truman. Truman adivinha e empurra para ele a torta que lhe competia. Brando aceita-a e diz nunca saber por que razão se levantava da cama em cada manhã.
Aceitar a narração da vida de James Dean? Mas sim, claro que sim. Ou antes, não, nunca. Ou sim, claro que sim, porque podia ser um trabalho importante.
Dean nunca fora amigo dele (Uma confidência mais.) Mal o conhecia. Dean é que mantinha uma idée fixe em relação a ele. Tudo o que ele fazia Dean também fazia. E sempre a querer aproximar-se dele. A telefonar-lhe. O serviço de atendimento despachava-o, Dean deixava recados. Nunca lhe respondera aos recados.
Encontrara Dean numa festa. Dean tentava dar nas vistas, imitava um louco. Foi falar com ele. Puxou-o para um canto. Perguntou-lhe se não sabia que estava doente e que precisava de ajuda. Dean ouviu-o. Admitiu que sim, que estava doente. Ele deu-lhe o cartão de um psicanalista. Dean foi ao psicanalista. E melhorou. Pelo menos no trabalho (opinião de Brando) melhorou. Para o fim, Dean talvez começasse a encontrar o caminho dele como actor – opinião de Brando.


 A glorificação que então se fazia de James Dean, para Brando, não fazia qualquer sentido. Uma razão mais para aceitar aquele encargo do documentário. Justamente para mostrar que James Dean não era um herói, que James Dean era somente um pobre rapaz perdido que se procurava a si mesmo.
Truman vira a conversa para outros actores. Quem admirava ele, de facto, na profissão?
Brando hesita. Hesita bastante. Truman vai sugerindo. Olivier. Gielgud. Monty Clift. Gérard Philipe. Barrault. O melhor era não se pôr a gabar a concorrência – isto penso eu. Pois sim, Philipe era um bom actor. Barrault era um bom actor – oh, aquele filme, Les Enfants du Paradis, quem sabe se o melhor filme que algum dia se fez. Apaixonara-se pela heroína, Arlétty. A única vez que se apaixonara por alguém no cinema. Na primeira vez que foi a Paris quis conhecê-la. Era a mulher ideal. E foi vê-la. E veio de lá com uma decepção. Era uma mulher dura como um corno.


A camareira das mangas adejantes está a levantar a mesa. Brando estende-se no chão e põe uma almofada debaixo da cabeça. Pois bem, Spencer Tracy era o actor que gostava de ver. Paul Muni, outro. Cary Grant. Era gente que sabia o que fazia e com quem se aprendia alguma coisa.
Representar é impalpável. É frágil. Qualquer coisa esquiva que um bom director pode extrair de um actor. O momento capital no representar em cinema: o terceiro take de uma cena; nesse momento, o mais breve murmúrio de um realizador pode cristalizar o que o actor precisa. Kazan era genial a fazer isso.
Truman não pode compreender o que Brando quer dizer. Não é actor. Um actor talvez compreendesse.
O que acontecia dentro de um actor ao terceiro take era tudo o que importava no trabalho. Veja-se um caso. Há Lodo no Cais. Kazan dirige. A viagem de carro em que Rod Steiger, o irmão mafioso da personagem de Brando, confessa que o está a levar a uma armadilha fatal. Sete takes para aquela cena. Estava-se no rigor do inverno de Nova Jersey. Sete takes porque Rod Steiger não havia meio de parar de chorar – era um dos tais actores que se pelava por chorar…


Bem, e depois? Não sei. Truman também não sabe. Brando não se lembrava do momento em que as coisas se cristalizaram dentro dele naquela cena. E fecha esse trecho de conversa dizendo que a primeira vez que viu o filme achou horrível e saiu sem dizer água-vai.
Outro resultado das indagações feitas por Truman, não sei se antes se depois do encontro no Hotel Miyako – provavelmente depois, uma vez que antes Truman alegou não saber que o ia entrevistar sem entrevistar: Brando virava-se sempre contra o filme em que estava a trabalhar. Matemático. Ou contra o argumento. Ou contra o realizador. Ou contra um colega do elenco. Matemático. Truman aduz: Brando encontraria algum conforto na insatisfação. Questão de feitio. Precisava de descarregar tensões. Feitio. Truman está pronto a apostar dez contra um: o momento do conflito não tardará a surgir em Sayonara. Pode ser contra Joshua Logan. Ou mesmo contra o Japão inteiro. Por agora, Brando está apaixonado pelo Japão, mas com ele nunca se sabe o que vem a seguir, ou o que pode acontecer de um momento para o outro.
Foi como se Brando tivesse podido ler o que ia na cabeça de Truman. Sai-se a dizer que devia manter a boca fechada. Ora essa, porquê? Com respeito a Sayonara. Sim. Boca fechada. Já deu umas quantas opiniões, mas a chatice é que nem sempre tem a mesma opinião dois dias seguidos.
Truman, você não sabe mas eu digo-lhe, diga, Marlon, eu gostaria de me casar, não me diga, eu queria ter filhos, pois é, e é preciso haver amor, porque não existe outra razão para se viver, acha que existe?, eu não acho, não, não acho, não existe, os homens não são diferentes dos ratos, nascem, sabe, nascem para cumprir a mesma função, procriar, não é, Marlon?, é.
Marlon é uma das pessoas mais delicadas que conheço – disse Elia Kazan. E era vê-lo a brincar com as crianças japonesas, era vê-lo entre bochechas vermelhas, franjas escorridas, pequenas pernas arqueadas. Que outra razão podia existir para se viver? Que outra razão, diga lá, senão o amor? E tinha sido esse o maior problema dele, a incapacidade que reconhecia em si de amar alguém.


Miko Taka, a estela feminina de Sayonara, está ao telefone. A peguntar-lhe se estava melhor. Melhor, sim, obrigado. Comeu alguma coisa que lhe fez mal, uma ostra, eventualmente. Agradece as flores que Miss Taka lhe havia mandado, eram lindas, estava a olhar para elas nesse momento, eram as flores preferidas dele.


Truman saira para a varanda para o deixar falar à vontade. Kyoto era uma cidade aquática de riozinhos, cascatas, fontes, canais. Fora capital imperial, era a cidade-museu do Japão que os bombardeiros americanos haviam poupado. Telhados recurvos, fachadas escuras de residências nobres construídas em madeiras macias e austeras, e tão misteriosas, diz Truman, como qualquer palácio de pedra em Siena.
Brando acendia um cigarro. Acabara o telefonema. Truman, ao voltar para dentro, nota-lhe o tipo de roupa dessa época, uma elegância de contrabandista do tempo da Lei Seca, chapéus pretos, fatos de riscas, camisas escuras, gravatas pastel à George Raft. Transpirava ao tornar a deitar-se no chão, ao compor a almofada sob a cabeça. O calor era aumentado pelo radiador eléctrico em plena laboração. Truman diz que se podiam cultivar orquídeas àquela temperatura.
Pois não, não conseguira amar ninguém. Porque nunca confiara em ninguém o bastante para se entregar. Mas queria. Sim, queria. Podia acontecer. Em breve. E di-lo em tom indiferente e inexpressivo, um papel que estivesse até aos cabelos de representar mas a que estaria obrigado por contrato. Tudo se movia em volta disso. Disso, de quê? Do amor. Do amar alguém.
Brando era obviamente solteiro em 1957. Estivera várias vezes noivo, mas só semi-oficialmente, com uma actriz principiante (Blossom Plumb), com a filha de um francês (Joseanne Mariani-Bérenger). E tudo a ficar em águas-de-bacalhau. Mas pouco tempo depois dessa memorável noite no Hotel Miyako, em Eagle Rock, Califórnia, Brando casava-se com uma actriz desconhecida chamada Anna Kashfi. Desconhecida como actriz e um tanto enigmática como personagem social. Budista de Darjeeling, a rapariga, e de nobre linhagem hindú; ou filha de um casal inglês de Calcutá, os O’Callaghan? Brando nunca daria explicações.


Brando não amava, mas tinha amigos. Pelo menos isso. Ou não, não tinha amigos coisa nenhuma. (Discutia em voz alta com ele mesmo.) Mas sim, é claro que tinha. Amigos. Então não tinha? Tinha. Um monte deles. E a alguns deles nada escondia de si e da sua vida. Porque sim, porque era preciso confiar em alguém. Confiar? Pois sim, até certo ponto. Não confiava ao ponto de alguém se atrever a dizer-lhe o que devia ou não devia fazer, isso não. Conselheiros profissionais, Marlon, é o que você quer dizer? Marlon cala-se. Jay Kanter, esse da sua agência, não? Jay? Jay fazia o que ele lhe dizia para fazer e nada mais.
O assistente literário de Brando está ao telefone. É tardíssimo. Não, ainda não estava disponível para continuarem a trabalhar. Que ligasse daí a uma hora. Ou melhor, que se deixasse estar, Brando ligaria para o quarto dele. O rapaz chamava-se Murray, era bom tipo, queria ser realizador.
Amigos? Como é que ele fazia amigos? Com jeito. A dar voltas e voltas. Rodeios. Aproximação. Aos poucos. Estende a mão e toca. E recua. E espera. Eles que fiquem na dúvida. Eles que não percebam. E antes que percebessem estavam enredados, estavam em poder dele. E de um dia para o outro, para esses novos amigos, ele era tudo o que eles tinham na vida. A maior parte deles eram tipos magoados da puta da vida, rejeitados socialmente, psicologicamente feridos. Ele só queria ajudá-los. Se eles se concentrassem nele. Ele era o duque. Ele era o duque nos seus domínios.
Truman conhecia o parecer de um desses vassalos ducais. É como se Marlon vivesse numa casa de portas que nunca se fecham. A porta da casa dele em Nova York nunca se fechava. Entrávamos e encontrávamos outros dez ou quinze tipos. E ninguém conhecia ninguém. Estávamos como se estivéssemos numa paragem de autocarros. Marlon perambulava pela casa, puxando um ou outro de parte e falando baixinho com ele. Não sei se você sabe, mas Marlon é incapaz de falar com duas pessoas ao mesmo tempo. Marlon nunca entra numa conversa de grupo. Isso é necessário quando um tipo usa os mesmos truques e o mesmo charme para todos.  Quando chega a nossa vez sentimo-nos como se fossemos a única pessoa presente na casa.
E não se podia deixar de acreditar nele. Brando transpirava sinceridade. E o sujeito perguntava-se se ele estaria a representar. Mas a representar para quê, se o outro nada tinha para lhe dar? Afeição. Como? Digo: afeição. Sim, afeição, e depois? É a afeição dele que lhe dá a autoridade sobre os outros. Como se fosse um órfão que se compensou na vida tornando-se director de um orfanato.


  Declaração de Brando a um jornalista: posso entrar  numa sala onde estejam cem pessoas… se houver na sala uma que não goste de mim eu sinto logo, eu sei, e tenho que sair.
Wally Cox, um actor que o conhece, diz que Brando é um filósofo criativo, um pensador profundo, uma força de libertação para os amigos.
Uma menos um quarto. Daí a cinco horas Brando teria de estar de banho tomado, barba feita, pequeno-almoço mastigado, pronto para ter a cara pintada no tom escuro requerido pelo Technicolor. Truman deita a mão ao casaco. Um momento, Truman! Vamos fumar mais um cigarro. Mas você precisa de dormir, Marlon. Dormir quer dizer a obrigação de me levantar. Ele já o dissera, na maior parte das manhãs não vê razão forte para se levantar da cama, e se se levanta não sabe porque o faz.
Olha para o telefone. Prometera ser ele a ligar para o quarto do tal Murray. Vamos beber qualquer coisa, eu posso começar a trabalhar mais tarde.
La´fora chuviscava, as estrelas extinguiam-se. Truman pensa com desconforto que terá de regressar a pé ao seu hotel, a um quilómetro do Hotel Miyako.
Vodka. Brando recusa o copo e fala. A mãe. De repente pega no copo de Truman e bebe um trago. A mãe. Despedaçou-se como uma peça de porcelana. No cérebro de Truman ecoam frases ouvidas há muito… Marlon adora a mãe… ele pinta sempre um quadro muito colorido da vida em família… quando soubemos que a família dele vinha a Nova York para a estreia do Eléctrico ficámos curiosos… os pais de Marlon?, oh, altos, bonitos, as pessoas mais simpáticas…
As irmãs de Brando. Frances – dedicou-se à pintura. Jocelyn – actriz. Ele, Bud, aos dezassete anos a anunciar que quer estudar para padre – ele sente necessidade de encontrar na vida algo de verdadeiro, algo que seja para sempre. Ele, Bud, expulso da escola, rejeitado para a tropa, desistente da vocação sacerdotal, mochila às costas e ala para Nova York.
Fragmento textual de Truman Capote:e assim, Bud, o louro adolescente gorducho e infeliz, sai de cena, e o maduro e talentoso Marlon faz a sua entrada.”
O pai era indiferente para com ele. Nada que ele fizesse interessava ao pai. Teve que aceitar as coisas como elas eram. Mas depois ficaram amigos.
A mãe? Era tudo para ele. A mãe era o mundo. Vinha da escola, chegava a casa e não encontrava ninguém. Nada havia que comer, o frigorífico estava vazio. Tocava o telefone. Alguém a ligar de um bar das redondezas, está aqui uma senhora, é melhor você vir cá buscá-la.


 A mãe. Se ele a amasse o suficiente e ela confiasse nele, pois claro que poderiam ter ficado a viver juntos em Nova York e ele cuidaria dela. E foi o que aconteceu. A mãe deixou o pai e foi para Nova York viver com ele. Ele estava a trabalhar numa peça e a esforçar-se para que a mãe tivesse uma vida agradável. Amava a mãe, evidentemente, mas na noite do Hotel Miyako diz a Truman Capote que o amor dele pela mãe não bastara, não era coisa que interessasse a mãe. Até que um dia deixou de se importar. Ela estava lá em casa. Metida no quarto. Agarrou-se a ele. Ele deixou-a cair. Não podia mais. Não podia mais vê-la estilhaçar-se como uma peça de porcelana. Passou-lhe por cima do corpo e foi-se embora. Indiferente. Ficara indiferente desde esse dia.
(Truman escreverá mais tarde, no Diário: “ah, como eu o compreendi.”)
O telefone. Murray. Desculpe, eu ia agora mesmo ligar para si. Mas olhe, o melhor é cancelar o trabalho desta noite. São quase duas. Amanhã falamos.
Truman está de sobretudo vestido. Brando acompanha-o à porta. À porta, Truman calça os sapatos. Sayonara, diz Brando. E que pedisse na recepção para lhe chamarem um táxi. Truman sai, avança pelo corredor, ouve novamente a voz de Brando, volta-se, não dê atenção ao que eu lhe disse, eu estou sempre a mudar de ideias.
O átrio do hotel está deserto. A rua está deserta. Nada de táxis. Truman mete-se ao caminho a pé. Entretanto perde-se nas ruelas de Kyoto. Duas e tal da manhã. Não se vê ninguém, a não ser gatos e bêbedos - como será um bêbedo japonês?, pergunto eu. Reencontra o caminho, às tantas, e ao virar de uma esquina, dá de caras com Marlon Brando. Sessenta pés de altura – não sei quanto é em metros -, cabeça enorme, tudo em cores de revista de cabeleireiro. Um cartz de cinema a anunciar o outro filme “japonês” dele,  A Casa de Chá do Luar de Agosto.
Truman chega ao hotel e não pensa noutra coisa senão em passar ao papel o que a memória prodigiosa dele havia retido daquela noite memorável do Hotel Miyako.
Na manhã seguinte, pouco antes de subir ao plateau, Brando revela ao seu caracterizador o quanto havia apreciado aquela noite de confidências…




Em Novembro desse ano de 1957 o texto de Truman Capote sai na revista The New Yorker. Traz por título The Duke in His Domain – O Duque nos Seus Domínios, utilizando a expressão do próprio Brando. E causa uma efervescência maior do que o próprio Truman previra. Um comentador (Dorothy Kilgallen) chama à peça a “vivissecação” de uma pessoa. Outro (Walter Winchell) diz que aquilo era o tipo de confissões só possível no divã do psicanalista. Truman reproduzira palavra por palavra tudo o que Brando lhe confiara, a incapacidade de amar, o desprezo pela profissão de actor, as cicatrizes vivas causadas pelo alcoolismo da mãe.
Claro que Brando só tarde demais veio a saber a respeito de Truman uma particularidade que os amigos do escritor sabiam há que tempos: Truman era incapaz de guardar um segredo. E Truman não resistira às tentações, nem a do sensacionalismo sobre a grande estrela de cinema do momento, nem de dar uma bofetada sem mão ao impertinente Joshua Logan que o tinha probido de meter o nariz nas filmagens de Sayonara.


- Afinal, ninguém sabia nada de Marlon para além dos mexericos! – Truman gabava-se para os amigos:  - Tu falas de ti próprio e a pouco e pouco estás a tecer a tua teia em volta do outro, essa teia que leva o outro a abrir-se e a falar de tudo e mais alguma coisa acerca dele. Foi assim que armadilhei o Marlon.
Já na América, entrevista publicada, um furibundo e nada brando Brando grita para Logan:
- Vou matar esse homem!

                  

Logan não deixou passar em claro a oportunidade de marcar pontos:
- É demasiado tarde, filho. Eu bem te avisei que esse gajo era uma víbora, que esse gajo não era flor que se cheirasse. Devias tê-lo matado antes de o convidares para jantar. Eu bem te avisei, Marlon…
Tirando o mal-estar pessoal que causou, O Duque nos Seus Domínios foi considerado uma notável peça jornalística. Os da The New Yorker felicitaram Truman, obrigado por ter escrito a peça… ou, dizendo melhor, a autêntica obra-prima
Brando ia-se chorando para os amigos:     
- Aquele pequeno filho de uma puta passou metade da noite a falar-me dos problemas dele, e eu pensei cá para comigo que também estava à vontade e em segurança para lhe falar alguma coisa de mim e dos meus próprios problemas.


         Um dos amigos comuns do socialite novayorquino pôs a correr que nessa memorável noite do Hotel Miyako Brando tinha estado na cama com Truman. E isso acabou, é claro, por ser directamente perguntado a Brando, e Brando, não sei se para espanto de todos, se considerado por todos um banal incidente, admitiu que sim, e disse mais, disse que já tinha estado na cama com muitos homens e que não era por isso que se considerava homossexual; os homens sentiam-se atraídos por ele, que havia ele de fazer… e ele contentava-os, e indo para a cama com eles até tinha a sensação de lhes estar a prestar um favor, e não, nem pensar, não era por isso que se considerava homossexual.


         Anos passados, preparando e prefaciando textos seus para edição – o que viria a resultar no volume The Dogs Bark e incluiria uma série de retratos literários de vultos importantes das letras e da cultura – Truman Capote rememora a noite no Hotel Miyako e lamenta que de todos os seus retratados fosse Marlon Brando o menos agradado com o retrato que fizera dele. Mas nota que Brando nunca desmentira uma palavra, nunca alegara a mínima inexactidão. Só se sentia vítima de uma invasão hostil e traiçoeira pelo território secreto de uma sensiblidade sofredora e intelectualmente timorata. Truman mantinha a convicção da fidelidade do seu retrato literário. E caracterizava-o como um retrato composto com simpatia de um jovem magoado e genial, embora não excepcionalmente inteligente.
         E, enfim, de uma maneira mais geral, Truman insistia que a reportagem podia ser uma arte tão elevada, e até tão requintada, quanto qualquer outra forma de prosa, incluindo o ensaio, o conto ou o romance. 




 


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

     
           A DISFUNÇÃO DO MUNDO


         Conheci em tempos um industrial que tinha uma mulher   perfeita, por todos admirada, e que, no entanto, ele enganava. Este homem ficava raivoso ao descobrir-se culpado, na impossibilidade de receber ou passar a si próprio uma certidão de virtude. Quanto mais a mulher se mostrava perfeita, mais ele se enraivecia. Finalmente, o seu erro tornou-se-lhe insuportável. Que pensa então que ele fez? Deixou de a enganar? Não. Matou-a. Foi deste modo que travei relações com ele.
                                                                 ALBERT CAMUS - A Queda



Metade dos homens portugueses sofre de “algum grau de disfunção erétil”, alertou o urologista Frederico Branco – veio ontem nas notícias.
E eu bem me queria parecer que na vida portuguesa andava coisa, e coisa grave, com escravas sexuais em Odivelas, com tanto homem a espancar a mulher, com tanto homem a assassinar a mulher, com tanta mulher a queixar-se da incomunicação com o seu homem.
Ele é o ter mais de 50 anos, ele é a hipertensão, ele é a diabetes, ele é o colesterol elevado, ele é o tabagismo, ele é a doença cardiovascular… nada a respeito de ver o emprego a ir ao ar, nada a respeito de ver o salário a ser escortanhado e a mirrar, nada a respeito das falências em série, nada a respeito das enormidades do IRS, nada a respeito da compulsão das contribuições de solidariedade, nada a respeito de não ter para pagar a prestação da casa, nada a respeito da disfunção do mundo e da vida, nada a respeito…


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

             SÍMBOLOS




Depois das "coisas" da última publicação, os símbolos delas, delas coisas. Há muito quem diga que as sabedorias ancestrais do Homem o têm acompanhado ao longo das idades sob formas crípticas, sinais a que a memória foi dando tratamentos, foi deformando, até à perda dos significados de orígem. Quem perseverou na consideração do valor dos símbolos enquanto mensagem  desbravou o futuro, por saber que uma forma de penetrar as linguagens essenciais do Homem é proceder à decifração dos símbolos.


Se as palavras são símbolos, conhecimento haverá na memória humana impossível de reduzir ao som de uma palavra que o vento leva consigo, podendo todavia consubstanciar-se de modo mais efémero até num gesto, e mais ainda numa imagem de compreensão imediata ou restrita, alcançável quer por maiorias ignaras como por minorias esclarecidas.
Segundo se diz, os Templários, entre outras coisas, foram mestres de simbologia. Eram uma minoria iluminada pela boa decifração dos símbolos – por falar mal e depressa. Há quem diga que só por esse virtuosismo simbolista se mantiveram independentes dos poderes temporais, não perdendo jamais de vista objectivos de conhecimento humano vedados ao vulgo analfabeto. Um conhecimento tido por benéfico ou  maléfico no andar dos séculos, segundo os circunstancialismos históricos e as conveniências e os interesses dos poderes políticos.
O que são as garatujas que indicam os sons que formam as palavras que constituem as línguas? Sinais. Símbolos. Letras são sinais que organizam os símbolos; ou as palavras são símbolos que remetem para coisas; ou as palavras são sinais que remetem para sentidos ora literais ora simbólicos. 

E o espírito tem a faculdade combinatória que cria as noções, as associações, sons com palavras, palavras com coisas, coisas com a realidade, a visível e a abstracta. Concepções complexas, ninguém duvide.

O que é a matemática senão uma teoria de símbolos mais do que uma teoria de coisas?

Símbolos. Sinais. Sinal de mais, de menos, de vezes, a dividir. Sinais arbitrários. Com interpretação fixa e sempre combinável com outros sinais em convenções universalmente aceites, exactamente como as notas de música, que até tempos de duração simbolizam.
Podíamos ate definir, como Boyle, os sinais literais x, y, que podem representar coisas, segundo as nossas concepções. Ou distinguir sinais operacionais como o mais e o menos, que representam operações do espírito no sentido de uma combinatória das coisas atinente a novas concepções dessas mesmas coisas, englobando os mesmos elementos. E depois o sinal de igual. O sinal de uma identidade. E devidamente combinados a gerar as formas conhecidas da linguagem.
E se fossemos por aqui fora neste sentido nunca mais daqui saíamos.


Mas para sermos verdadeiramente, e academicamente, rigorosos, teríamos de distinguir entre símbolos e sinais. Há sinais no comportamento animal. Domesticados, os animais respondem a sinais, os sinais enviados pelo dono. No entanto, daí ao entendimento do elemento simbólico, e retintamente humano, que é a fala, vai certa diferença.
Os símbolos não são redutíveis a simples sinais. Se o sinal é uma componente do mundo físico, o símbolo decorre do mundo do sentido, ou do significado.
O conhecimento. O conhecimento humano é um conhecimento simbólico, porque o intelecto bastante se alimenta de imagens. Se o símbolo não integra o mundo físico através de uma realidade de existência, assume por outro lado a força de um significado. É o dilema posto entre a realidade e a possibilidade.
A dimensão da realidade alterada pela criação de um sistema simbólico deu ao Homem uma faculdade suplementar no concerto dos outros animais, excluindo os limites da vida orgânica.
Há quem diga até que existe um simbolismo natural. Quer dizer, que os símbolos não são exclusiva invenção humana, que a natureza mesma tem os seus símbolos de uma transcendente realidade, sobrenatural realidade, porque toda a coisa que se manifesta constitui-se como símbolo de um patamar superior de realidade, e toca aos fenómenos ditos naturais representar fisicamente princípios superiores.
Os maçons, decerto descendentes dos Templários, são mestres simbolistas. A simbologia alquímica, ou maçónica, da transformação do chumbo em ouro, pode significar um programa político de transformação, ou transfiguração, do povo, até estar preparado para receber a coroa do poder que orna as cabeças régias – ou, num sentido republicano e democrático, até estar preparado para exercer a soberania que sempre lhe fora usurpada pelas cabeças coroadas.
Tempo houve em que se quis significar por esta simbologia alquímica do chumbo transformado em ouro como a profecia de uma queda do poder régio e a utópica subida ao poder e à soberania dos estados de um povo doravante liberto, emancipado de qualquer tutela política ou religiosa.
Aquilo a que os esotéricos chamam de iniciação é, pode dizer-se, e sobretudo, um estudo dos símbolos. Isto porque, dizem, o sagrado é sempre secreto e incomunicável a não ser pelo símbolo que para o profano não-iniciado não significa nada de especial.
O nosso grande Fernando, na sua Poesia Mágica, Profética e Espiritual estabeleceu relações apertadas entre o oculto e os símbolos. Eu próprio me inclino a acreditar, dizia ele, que por detrás dos símbolos, e ainda mais nos símbolos da Obra, jaz um grande mistério cristão. A consumação da maçonaria, de qualquer modo que seja compreendida, é a perfeita Ashlar, ou Pedra Cúbica, e a Pedra Cúbica, se desdobrada, ou revelada, desenrola-se na cruz do calvário. Ou mais ainda: o sentir dos símbolos, sentir que os símbolos têm vida, ou alma – que os símbolos são gente. Mais tarde virá a interpretação, mas sem esse sentimento a interpretação não vem.


Nem sei se valeria mesmo a pena falar do poder, ou de quanto ele contém de simbólico. O poder é uma condição desprovida de qualquer valor de uso. Já não se podendo dizer o mesmo quanto ao seu valor de troca.

  


O poder pode ser trocado por qualquer coisa realmente valiosa para o uso colectivo. A obediência. Por exemplo. O poder, além de tudo o mais, como factor de troca, simboliza um valor. Um grande valor, visto que  é um símbolo que vale por aquilo que permite obter.
Se o fundamento do poder, em última análise, repousa sobre a prerrogativa de uso da força física, concreta, o direito a utilizá-la não é, visto linearmente, um atributo do poder. O poder sustenta-se sobre fundamentos que são eles mesmos símbolos da força física e capazes de a substituir.
O poder enquanto símbolo aparece-nos, bem vistas as coisas, muito aparentado com a moeda, com um sistema monetário que assentava no fundamento do ouro como padrão de troca.

          

Num sistema simbólico de poder avantaja-se uma ameaça de força. Sendo um elemento dissuasor eficaz, o símbolo do poder, generalizado sob a força de sub-símbolos, alcançará mais longe e pode ser, deve ser, um instrumento de mobilização dos recursos para uma eficácia colectiva. O poder é um intermediário simbólico, e, desde que reconhecidos os seus símbolos, legítimo.

                                  



E quando sou eu a falar de símbolos, já se sabe que não me refiro apenas às alturas do místico, do intelectualizado, do espiritual, falo também das coisas terra-a-terra, como o Audi  topo de gama do meu vizinho de cima, o seu saco de tacos de golfe, os seus fatos Armani, Hugo Boss, Rosa & Teixeira, coisas, e sinais, e símbolos; coisas com as quais ele simboliza a superioridade do seu estatuto perante a vizinhança, os amigos, os colegas, o mundo inteiro por sua vez simbolizado na população do meu bairro, na freguesia do bar onde ele pára, ou do local onde ele trabalha. Qual é o estatuto dele? Isso já é mais complicado. Mas também neste caso profano, que importa a essência, ou a verdade, se tão visível e agressivo é o símbolo?

Dos símbolos psicanalíticos nem é bom falar. Nem seria bom falar dos objectos que, segundo os psicanalistas, representam nos nossos sonhos o nosso pai e a nossa mãe. Isso e mais as sobrecargas afectivas que infiltram algumas palavras e que se relacionam com certas coisas.

Segundo Henri Lefébvre, o símbolo é causa e razão, age de modo directo, produz bloqueios da consciência. O simbolismo pode tornar-se mórbido, seja pela censura que lhe corta circuitos comunicacionais, seja pelo esforço de o transmitir. 

Por mim, gosto das simbólicas do Jung. Os arquétipos, os misteriosos símbolos colectivos, imemoriais, presentes na consciência humana, nascidos na obscuridade mais profunda dessa consciência. Disse assim o Jung: como deveriamos explicar os processos religiosos, cuja natureza é essencialmente simbólica? Sob forma abstracta, os símbolos são ideias religiosas, ou ritos, ou cerimónias, sob forma de acção.

Os símbolos são o nosso inconsciente.Talvez. Representação de recalcamentos. Um tubarão que simboliza uma vagina dentada, que por sua vez simboliza uma mãe castradora. Brrr!

Dizem os esotéricos que sempre que o Homem teve alguma coisa de muito profundo a comunicar o transmitiu por meio de símbolos. E que os símbolos trazem consigo a ideia metafísica, reavivam as almas, esclarecem os corações.


Em todo o caso, o símbolo não há-de significar o mesmo para todas as pessoas. Depende dos contextos. Espaciais, temporais, memoriais. Quer dizer, históricos. Como diz o tão popular Dan Brown, um capuz branco pontiagudo do Ku Klux Klan é símbolo que transmite sentimentos de ódio, de intolerância e de violência racista – na América. Mas o mesmo capuz branco (ou rôxo) e pontiagudo usado numa procissão de Sevilha significa piedade e profissão de fé religiosa.


                                                                                 

Como também o mesmo Dan Brown, esteiado em leituras outras, sustentará que a disposição dos discípulos à mesa da Última Ceia de Leonardo é uma mensagem cifrada, simbólica.

E a propósito, o perigo dos simbolistas mais empedernidos é quererem ver símbolos disto e daquilo onde não os há. Há simbolistas fanáticos nos casais modernos. Especialmente nas mulheres. Se reparam na mais leve marca de baton na camisa do marido concluem rapidamente que ele tem uma amante. Na maior parte dos casos é verdade. Mas também pode não ser. 

Durkheim, o sociólogo, entendia que uma consciência colectiva não podia ficar sobranceira às consciências individuais. Estaria ao alcance de toda a gente, realizada em coisas, emblemas, fórmulas, totens – símbolos, em suma. Diz ele: um trapo velho pode aureolar-se de santidade, um pedaço de papel sem importância pode tornar-se precioso. Isso mesmo, o que essas coisas simbolizassem subalternizar-lhes-ia a realidade, ou o que elas eram em si mesmas – se é que, digo eu, há alguma coisa que o seja apenas em si mesma.

Os objectos simbólicos são-no porque contêm não uma realidade íntima, natural, por assim dizer, mas porque neles reside a substância espiritual, sagrada, mais valiosa do que a substância real da coisa em si mesma. Ou porque neles, em suma, digo eu, habita uma moral.

Lévi-Strauss via os objectos sagrados como sinais, integrantes de um sistema de sinais, não lhes conferindo carácter de símbolos.

                                                  


                                                                                     

E também houve quem dissesse da substância dos símbolos que ela não passava de ser obra daquele que os observava e dos respectivos preconceitos. O lado afectivo do observador transmitia afectividade ao objecto observado. Mas aí está: residirá na afectividade um dos lados mais obscuros do Homem; e esse lado obscuro é renitente às explicações de si.

         É característica das proposições lógicas que só pelo símbolo se possa reconhecer que são verdadeiras. Wittgenstein definiu as características abstractas e formais e funcionais do símbolo lógico-matemático. A linguagem simbólica nada designaria, nada mostraria, a não ser a si mesma.

Fala-se também do símbolo como um extra-sinal. Ou como uma potência superior da linguagem, com funções alargadas quando se acercasse dos temas básicos da sociedade humana, família, paternidade, heroísmo, tragédia, nascimento e morte, dívida, erro…

Nem haveria relações entre dois seres humanos sem um terceiro patamar de linguagem, um terceiro termo.


Os anagramas. Tempo houve em que a importância secreta e simbólica dos anagramas era muita, era mágica. Uma disposição diferente das letras de uma palavra obtinha significados diversos. E tanto assim que os príncipes renascentistas contratavam anagramistas que os aconselhavam nas decisões sobre os mais altos assuntos de Estado. Não era brincadeira. Hoje em dia sim, os anagramas são um passatempo.



Der Letzte MannO Último dos Homens. Numa indústria dominada hoje quase em exclusivo de distribuição por Hollywood e pela pepineira dos efeitos especiais, pouca gente se lembrará do velho cinema. Do velho cinema mudo, ainda por cima. Ou do velho cinema alemão dos anos 20 – a que nem Hitler nem Goebbels achavam por acaso muita piada. Falo da escola expressionista. 
Dentro do expressionismo – aliás todo ele em linguagem construída sobre símbolos fantásticos – avulta um nome: Murnau. Murnau era um fanático dos símbolos visuais – de resto, esse Murnau não destoava da sua cultura germânica natal. Um guarda-chuva de porteiro de hotel pode, em dadas circunstâncias, valer como símbolo de uma qualidade profissional, de uma soberania pessoal. Como um ceptro que esse porteiro preserva das mãos de outro pessoal do mesmo hotel, pessoal não iniciado, quer dizer, não espiritualmente preparado para o empunhar. E se por acaso o porteiro por qualquer razão entregar o símbolo do seu estatuto a um dos paquetes fá-lo com a solenidade de uma cerimónia iniciática de transferência de poderes.
Continuando no porteiro de Murnau em O Último dos Homens, sobressaem outros símbolos de estatuto, ou mesmo de qualidade espiritual. Os botões dourados da libré. Um dia arrancam um desses botões ao porteiro, e a câmara de Murnau, significantemente, acompanha a queda do botão. Como se fosse um acontecimento transcendente. Como se fosse uma degradação moral, uma despromoção militar. O porteiro recordará a queda daquele botão, ou a humilhação de que foi vítima, quando, por velhice, passou das pompas da portaria do grande hotel à insignificância abjecta de guarda das retretes dos cavalheiros.


Uma porta giratória rodando perpetuamente, na luz, e em frente um porteiro, de estatura elevada e rígido como um lacaio – rezava o texto do argumento de Carl Meyer para este filme. O porteiro era admirado e respeitado no seu ofício pela família e vizinhos como um general. Mas um dia o botão cai-lhe da farda. E a dignidade da consciência que tinha de si desaba.

  

O botão foi, para o porteiro, o símbolo do destino. Acompanhado pela câmara, o porteiro desce aos lavabos  numa figuração de descida aos infernos, até que os batentes da portinhola dos lavabos se fechem sobre ele sem remissão possível e ele se sinta verdadeiramente o último dos homens.


Continuando por este caminho expressionista e sem sairmos dos símbolos de Murnau: antes da descida aos lavabos, o porteiro governava os movimentos de carrossel da porta giratória. Movimentos incansáveis que simbolizavam o turbilhão da vida e pelo qual circulavam como títeres os pobres seres humanos. Era o porteiro quem dominava esse movimento, quem o dirigia, quem lhe administrava a justiça e a prioridade. Era aquele o seu poder. Demiúrgico. Regulando o passo de quem entrava e de quem partia daquele mundo, o mundo do hotel, o mundo em si. Mas as retretes dos cavalheiros também tinham portas como batentes que iam e vinham e sem que o porteiro exercesse sobre elas alguma prerrogativa. O cliente rico, irritado por não ter sido atendido com a presteza devida, sai, agita os batentes da porta para ir reclamar ao gerente dos serviços do porteiro.


O porteiro, nos lavabos, repara com atenção nos gestos dos clientes que, ao espelho, cofiam os bigodes impantes e penteiam os cabelos rebrilhantes, acertando com rigor o risco do cabelo. Exactamente o que o porteiro fazia quando era porteiro, a preparar-se para pegar ao serviço; e que deixara de fazer com esse rigor cerimonial porque, pela idade, o tinham transformado no último dos homens.

Portugal é uma cultura simbolista. Talvez outra nação não haja a sobreviver e a comprazer-se tanto pelos símbolos. Digo eu. Se calhar é disparate.

Sempre achei que Portugal era, como comunidade e sistema de vida, um campo soberbo para o cultivo das simbólicas. Uma parte importante da História portuguesa, parece-me, foi terreno especialmente fértil para o florescimento dos símbolos e das metáforas. Refiro-me àquele século XVII. Refiro-me à mitologia do sebastianismo.

D. Sebastião, no sentido simbólico, foi uma encarnação de Portugal. Uma simbólica da adversidade, da infelicidade portuguesas. Ele, estouvado, desavisado, heróico e desaparecido, foi Portugal mesmo. Portugal perdera a grandeza com o desaparecimento de D. Sebastião e tornaria a ela logo que D. Sebastião regressasse do seu mistério- disse alguém. Regresso que era já de si simbólico. Tal como a vida e a morte mesma dele foram elementos simbólicos na História da grei.
             
El-Rei Menino regressaria da Ilha ignota onde aguardara a melhor hora para voltar. Por uma manhã de nevoeiro. Montado num cavalo branco. 
A manhã de nevoeiro simbolizaria um renascimento. O facto anunciador desse renascimento seriam os símbolos de decadência que eram os elementos da noite, fragmentos da noite-decadência simbolizados pelo nascer da manhã (que comporta sempre um resto de noite) e talvez pelos flocos de névoa que, como a noite, empanam a clareza da visão das coisas.


Não se pode, no caso, contornar o nosso grande e inevitável Fernando: a alma é imortal, e se desaparece torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelhe à forma do esforço de D. Sebastião ipso facto o teremos evocado e a alma dele entrará para a forma que evocámos.
Quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D . Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal.


O Brasão português. Uma apoteose simbólica. As  cinco quinas como cinco príncipes infelizes, ou mesmo mártires, cada um a seu modo –D. Duarte, D. Fernando, D. Pedro, D. João, sendo o quinto, obrigatoriamente ele, D. Sebastião.


Que símbolo fecundo vem na aurora ansiosa? Na Cruz morta do mundo, a vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino traz o dia já visto? Na Cruz que é o destino, a Rosa que é o Cristo.
Que símbolo final mostra o sol já desperto? Na Cruz morta e fatal, a Rosa do Encoberto.