domingo, 28 de setembro de 2014

                           O REI ESTÁ A MORRER


        Não, não se trata da peça do Ionesco… Le Roi se meurt… não, só se trata do testemunho a que achei piada de um psicanalista inglês, Ronald Fairbairn, ao tratar três dos seus pacientes nas vésperas da morte do rei Jorge V de Inglaterra, Janeiro de 1936, e as perturbações psíquicas que a iminência da morte do soberano provocou nesses três pacientes.

                                                                              

        Um jovem de 18 anos. É filho único até lhe nascer um irmão seis anos mais novo do que ele; e ainda, e de novo, filho único depois da morte desse irmão seis anos depois.
Não podia suportar a separação da mãe sem ser acometido de fortes ataques de ansiedade. Isso e mais uma situação hipocondriaca: sentia-se padecer de grave doença de coração. E com crises frequentes de palpitações violentas, e pânico ante a perspectiva de morrer.
A questão cardíaca radicava no medo de que a figura interiorizada da mãe o matasse; ou mais: que depois de o matar a mãe lhe devorasse o coração. Em sonhos vê um coração em cima de um prato e vê a mãe levantar uma colher.


Faltavam quatro meses para a morte do rei. Os boletins médicos começavam a ser emitidos do Palácio de Buckingham acentuando as complicações com o coração do rei. E foi então que os sintomas do paciente se exacerbaram depois de algum tempo de quietação. 
Mas não podia ligar o rádio. Se o fizesse ficava em pânico. Perturbações do sono, também. E a telefonar constantemente ao psicanalista em busca de alívio.
O rei Jorge V morre no dia 20 de Janeiro e o paciente só sabe da notícia na manhã seguinte. A noite que se segue é dormida por ele em sobressalto devido ao sonho em que ele próprio disparava uma pistola sobre um homem que identificava com o seu próprio pai; em que ele entrava numa sala e conversava com a mãe, e explicava à mãe o motivo por que atirara sobre o homem identificado como seu pai, e não era por detestá-lo, não, era por temer pela sua própria vida; e porque ao matar aquele homem matara-se a si mesmo e só lhe restava sujeitar-se a ser preso por seis anos; e é quando aparece uma jovem, e essa jovem passa a ser a pessoa que ele tinha matado, que de repente lhe parece ser o irmão – a morte real que lhe pesara na consciência por seis anos - mas que era a mãe, e a mãe representada como objecto de desejo sexual.  
Estaria perante a destruição de toda a sua família.
E na outra noite, outro sonho: a mãe, de pé no alto de uma escada, a adverti-lo para o perigo de comer geleia.

                                                                                 

Um homem de 31 anos, solteiro, segundo caso, com dois anos e meio de análise à data da morte do rei.
Fora ao psicanalista por causa de uma vontade permanente de urinar, uma vontade que lhe ocupava todo o tempo de vida consciente – quer dizer, desperto.
Mas era um tipo mais ou menos inválido, ou meio inválido, desde os cinco anos, qualquer coisa forte no tórax, um empiema (acumulação de pus na cavidade pleural – Wikipédia), e antes dos sintomas urinários já ele revelava ansiedades pelos sintomas do torax.
Depois de algum tempo de análise, consegue-se que a ansiedade urinária desapareça, mas a ansiedade toráxica recorre. E um pavor de poder ser envenenado pela comida, e daí em diante a aparecerem-lhe sintomatologias gástricas. Que se atenuaram para dar espaço à ansiedade quanto ao funcionamento da garganta, uma amigdalite, nada de mais. Faltava pouco para a morte do rei.
E o rei morre e ele deprime-se e reverte para a morte do pai, irritando-se pelo excesso noticioso sobre a morte de Jorge V. Preocupa-se mais com a saúde, subvalorizando todos os interesses normais que pudesse ter na vida. Havia uma congestão geral a ocupar-lhe o corpo da cintura para cima e alguma força nociva começava a nascer dentro dele.


Passados quinze dias sobre a morte de Jorge V, o paciente tem um sonho. Vê os charutos do rei. Roubam-lhe o carro. Telefona à polícia. Recebe uma novidade: o pai acaba de chegar de uma longa viagem. Muito bem. Convida o pai para um jantar lauto. É quando o ladrão aparece com o carro e ele, paciente, se atira a ele, ladrão, e lhe deita as mãos ao pescoço. E eis o anuncio: os charutos do rei estavam à venda por 147£ a unidade.
O psicanalista Fairbairn fala à colação do caso no tema da reparação do objecto, reparação do pai, reparação do pénis do pai na simbologia onírica dos charutos e no sentido de uma satisfação oral do paciente.
O tema da reparação sobrevém algumas noites mais tarde. O paciente sonha que está a nadar com o próprio rei Jorge V. Não numa piscina, não numa praia, tudo se passa num espaço inundado no exterior do Palácio de Buckingham. O rei mantinha a cabeça debaixo de água por muito tempo. O sonhador queria salvar o rei e não conseguia. O rei afogava-se. E outra cena, em que surgem uns quantos polícias a retirar uns baús de um coche oficial, o que lhe sugeria um funeral, mas ao mesmo tempo o julgamento num tribunal. O sonhador seguia depois numa carruagem. Ao lado do rei. E muito feliz porque o rei recuperara a vida e a saúde.

                                             

E cá está - interpretação psicanalítica – a restituição do pai do paciente correlacionada com uma inundação, água, água que corre, o regresso à ansiedade urinária permanente. 
No terceiro caso pode estar-se em presença de uma mulher. E pode estar porque havia que contar com o defeito genital da (ou do) paciente, que deixava dúvidas sobe o sexo real do indivíduo.
Mas admitamo-lo como mulher. Cinquenta anos. Professora, embora não em serviço por ter abandonado a carreira. Razão para o abandono? Esgotamentos nervosos todos os três meses, ansiedade, depressões, pensamentos suicidas.
Do ponto de vista técnico, o Dr. Fairbairn fala de uma fase inicial maníaca em que ela começa a utilizar o mecanismo da projecção, ainda que suprimindo sintomas paranoicos pelos sintomas maníaco depressivos e mais tendências sado-anais recalcadas – é muito técnico para as minhas posses…
Mas adiante.
Na noite de 20 de Janeiro (o rei Jorge V estava a morrer exactamente nessa noite), a paciente vai-se deitar, ouve o rádio, ouve o boletim clínico, o rei piorava. E a paciente tem um sonho, um sonho em que o seu próprio pai morre.
Sabe da morte do rei ao acordar na manhã seguinte. Passa o dia muito perturbada, zangada mesmo. Não vai à consulta marcada com o psicanalista. Desmarca e marca para o dia seguinte. Sentia-se responsável pela morte do rei Jorge V.


Nessa noite sonha em catadupa. Primeiro sonho, uma emoção desmesurada, todavia sem conteúdo particular, só terrores, infelicidade, desespero. Tacteava no escuro. Sentia-se enlouquecer. E ia ficando gelada a partir dos pés; dentro em pouco estaria toda ela feita um bloco de gelo e estaria definitivamente acabada. 

                                                                 
E agora vive numa casa onde tudo é perfeito; entra numa das salas e leva a mãe só para lhe mostrar aquela perfeição toda; subitamente, fica horrorizada, duas grandes ervas daninhas cresciam através de uma magnífica carpete em tons vermelhos; baixa-se, vai-se às ervas para as arrancar, mas não, não arranca coisa nenhuma, era muito difícil arrancar aquelas ervas...


 E de repente, estando em casa, sente-se num jardim público, sentada em cima de uma caixa que tem dentro um animal. aparece uma mulher com um cão; ouve-se um grito: “tire daqui esse cão!”, e há gente que corre atrás do cão, sem resultado, o cão foge, excitadíssimo, quase feroz; a paciente sonhadora, sempre sentada na caixa, ouve um rosnido próximo, era o cão, que procurava apanhar o animal que estava dentro da caixa e mordê-lo até o matar.

                                                                        

 A sonhadora teme pela própria segurança; ouve bater à porta de casa, corre para abrir, abre, dois polícias à chuva na noite escura, façam o favor de entrar, os polícias entram, ajudam-na a acender o candeeiro que está ao pé da porta e a luz do candeeiro sai vermelha, sinal de perigo, e é quando os dois polícias deixam de o ser e passam a ser três mulheres, e explicam-lhe a razão da visita, e ela a princípio não compreende o que dizem, mas sente que alguma coisa horrível acabou de acontecer a um homem a quem chamam Pequeno David, Little David… e é quando acorda.


Quando acorda pensa em quem poderá ser esse Little David e que relação poderá ter com ela.
Informa-se então que Little David era o petit nom familiar do rei acabado de entronizar sob o nome de Eduardo VIII. A coisa desgraçada acontecida a Little David fora a morte do pai, o rei Jorge V. E as figuras que a tinham visitado na noite escura, iluminada de vermelho pelo candeeiro junto da porta, eram os enviados do Super Ego, o que significava ser ela a responsável pela morte do rei.
Um parricídio. Mas como um parricídio se ela, quando recebe no sonho a notícia, nem sabe quem é Little David?

                                                                         

O analista interpreta. E interpreta o facto de ela se sentar na caixa contendo um animal que o cão pretende matar como a protecção que ela tenta fazer ao pai, um pai interiorizado pela sua líbido sado-oral, uma ameaça ao seu próprio Ego.
Uma interiorização do objecto decorrente da morte do rei.
Uma interiorização do objecto que é típica de uma crise depressiva, não guarda como finalidade a salvação, ou a protecção do objecto. Fico sabendo. (Pode ser que um dia, no futuro, me venha a ser útil saber isto.) Porque o dano já fora provocado quando a defesa da interiorização se desencadeou. O objectivo de uma interiorização destas é assimilar uma corrente de sadismo libertada pelo que o analista chama de “cheiro do sangue”.
Mas é assim mesmo. Parece que uma experiência que sugira a perda do real objecto amado depoleta o terror íntimo de perder também o mesmo objecto, porém na forma interiorizada.
Que engenhoso. Mas que querem, acho graça ao engenho das interpretações psicanalíticas. E é como dizia o outro, se non è vero è bene trovato…




sábado, 20 de setembro de 2014

  

    SCARFACE


                                                            


Entre os gangsters de cinema houve verdadeiros gangsters, para além dos actores que o eram no écran. O mais flagrante exemplo foi, repito, George Raft, um antigo dançarino protegido da Mafia, o melhor amigo do mafioso inventor de Las Vegas, Bugsie Siegel. Mafioso embora, Raft, para as suas composições de personagens de cinema, quase sempre criminosos, inspirava-se num gangster novaiorquino preciso, real, Joey Adonis, do grupo de Lucky Luciano, um mafioso elegante e pouco falador, bons fatos de seda, camisas pretas e gravata branca.


Em 1931 sai um primeiro filme de êxito sobre gangsters. The Little Cesar.

                                                                                            

Não era o primeiro filme em absoluto sobre gangsters, está bem, foi o primeiro a obter grande sucesso de bilheteira, isso foi, e foi o primeiro noutra coisa: o desenrolar da história era pela primeira vez acompanhado do ponto de vista do gangster. Com Edward. G. Robinson. Que todos de imediato pensaram ter-se inspirado em Capone, embora a sua representação sacudida nada evocasse o suposto modelo real.


Para o respectivo argumentista, The Little Cesar era um Macbeth do sub-mundo que certificava o quanto uma pessoa podia ascender ao poder ou ao dinheiro usando meios de risco. Foi um sucesso que obrigou os exibidores a programarem 9 sessões diárias.
                    
                                                                                                             

Howard Hughes, o milionário, compra os direitos de um romance chamado Scarface, publicado em 1930. Filmes de gangsters era o que estava a dar naquela América dos final dos anos 20, tal era o fascínio que eles e a vida deles exercia sobre o público. Aquilo é que era vida de luxo, aquilo era liberdade, aquilo era empreendedorismo, aquilo era  liberalismo, aquilo era dinamismo económico, aquilo era iniciativa privada, em suma.
O realizador Howard Hawks pode ganhar 25.000 dólares se realizar o filme extraído do romance Scarface – de resto, Hawks conhecera em Chicago diversos gangsters, e até o verdadeiro Al Capone, se calhar. Estava portanto dentro do assunto.


De que é que o realizador Howard Hawks se lembrou então? De assemelhar Al Capone com Cesar Borgia, o condottiere renascentista, o impiedoso assassino filho de um papa. E porquê? O porquê tem como base outra pergunta: e se Capone tivesse relações incestuosas com a irmã, tal como Cesar Borgia as teria tido com a irmã Lucrécia?

                                                        

                             

Ben Hecht. Escritor e argumentista, era então chamado de Shakespeare do cinema. É ele o escolhido para escrever o guião do filme. Mas ainda a ideia não tinha chegado à cabeça do milionário Howard Hughes já Al Capone sabia que Hollywood estava a planear fazer um filme sobre a sua pessoa.

                                                                                            

Batem à porta do hotel onde está o argumentista Ben Hecht. Dois tipos com ar de mauzões. Um deles traz uma cópia da sinopse que Hecht já tinha escrito e Hecht não faz ideia de como aquilo lhes fora parar às mãos.
- Foste tu que escreveste isto?
Hecht admite que sim, que foi ele que escreveu aquilo.
- Estivemos a ler isto.
- Ah sim? Muito bem. E o que é que acharam?
- Tu falas aqui do Al.
- Do Al?
- Sim, pá, de Capone!
- Bem - tartamudeou Hecht - não exactamente, fala-se de gansters, sim, em todo o caso… olhem, amigos, fala-se do Dion O’Bannion, por exemplo…
- Está bem, então vamos dizer-lhe que o que tu escreveste não é com ele, é com outros gajos.
E os mauzões fazem menção de se irem embora. Mas quando chegam à porta, voltam para trás.
- Mas então, ouve lá uma coisa, se isto não trata de Capone, porque é que tu lhe dás o título de Scarface? É que assim... tás a ver... toda a gente vai pensar que se trata mesmo dele…
Ben Hecht sente-se entalado. Bom, a história não era centrada em Capone, mas por uma questão comercial era preciso fazer crer ao público que se tratava de uma história acerca dele. Fazia parte dos truques do show-business.
- Então está bem, vamos dizer isso ao Al. Mas olha lá, quem é esse Hughes?
- Ah, esse é o papalvo que entra com o dinheiro para o filme, mais nada.
- Ok, a gente está-se nas tintas para esse…
Não vou contar a história do filme – que aliás nunca vi -, mas há momentos que tenho que esclarecer e que são importantes para a minha própria história de hoje.


Capone ficava a chamar-se Camonte e a estrela contratada para o protagonista era o então famoso actor Paul Muni. Ben Hecht já em tempos se encontarra com Al Capone em pessoa. Por isso dizia que Paul Muni não era a escolha acertada. Fazia pensar mais em Hitler do que num gangster de Chicago que na vida real fosse mais propriamente um homem volúvel do que um homem sinistro. Mas talvez, digo eu, talvez fosse mesmo essa a ideia de Howard Hawks e de Muni. Estavamos em 1930, 1931. Muni era judeu austríaco. Os mais esclarecidos já viam Hitler como uma ameaça antes mesmo de ele conquistar o poder.

                                                                    

E quem é que vai interpretar o papel do principal, à época, homem de mão de Capone, que na vida real dava pelo nome de Frank Rio: é George Raft, o actor protegido pela Mafia de Nova York nem menos. Raft havia sido apresentado a Capone justamente em Nova York, no célebre restaurante Delmonico’s, e era tu-cá-tu-lá com Lucky Luciano, Bugsy Siegel, Meyer Lansky, enfim com a nata das figuras de proa do crime.
George Raft – a exemplo, mais tarde, de Sinatra – admitiu certo dia que quando era novo teria gostado mais de ser gangster do que de ser actor. E quando se tornou conhecido muitos lhe faziam perguntas a respeito dos durões que ele frequentava, e ele respondia que eram as pessoas mais formidáveis do mundo.


- Esses tipos, Costello, Madden, Bugsy Siegel, Luciano, eram deuses para mim. Andavam de Cadillac. Para qualquer parte onde fossem apareciam sempre políticos ou altos comandos da polícia a prestar-lhes vassalagem. E eu então disse para comigo que o que aqueles homens faziam também não podia ser assim tão mau como constava. E eu gostava de me parecer com eles, de ser como eles.
George Raft, acho que já o disse atrás, para a composição do papel toma como modelo Joe Adonis, gangster real de uma família de Nova York de quem era amigo. Copia-lhe a maneira de mover as mãos, a maneira de falar, a inclinação do queixo. Foi uma impersonation perfeita. O próprio gangster ficou maravilhado. E tão maravilhado ficou que muitos anos mais tarde, em 1951, procurou George Raft para que ele lhe desse algumas lições de representação.

                                                                

Mas, perguntarão, V. Exas., para que precisa um gangster de saber representar. Bem, logo à partida, digo eu, todos precisamos para a vida, a cada  momento, e eu conheço, por exemplo, gestores de empresa que em representação nada ficam a dever ao maior actor que se possa arranjar. Já para nada dizer quanto a talentos histriónicos de presidentes da república, primeiros ministros e dirigentes partidários – e porque não, dirigentes sindicais…


Mas Joe Adonis tinha outro objectivo.
Joe Adonis estava intimado para responder perante uma comissão que investigava o crime organizado e sabia que o seu depoimento seria transmitido em directo pela televisão. E pronto, as coisas são mesmo assim, Joe Adonis estava no seu direito, queria ir bem preparado sob todos os pontos de vista, queria estar dramaticamente à altura.
Nos anos 50, como já anteriormente referi, George Raft mostrou que, gangster ou não que tenha sido, era um actor cheio de sentido de humor quando aceitou ironizar consigo mesmo no já por mim várias vezes citado filme Quanto Mais Quente Melhor, fazendo enfim o papel de chefe de gangsters, realizando no cinema o que gostaria de ter sido na vida real e não fora.
Voltando ao projecto de filme dos Howards, Hughes e Hawks, a censura avisou-os: proibiriam pura e simplesmente o filme se eles tivessem a infeliz ideia de o produzir. Todo o público americano e todas as diversas comissões de censura conscienciosas detestavam mafiosos e desordeiros. O cinema não devia em circunstância alguma fazer alusão ao gangsterismo.

                                                                                       

Hughes, o multimilionário financiador do filme não era homem que se temesse e escreve ao seu realizador, Hawks: estou-me a borrifar para a censura e para o código Hays. Começa lá as filmagens e faz-me um filme o mais realista, apaixonante e perturbador que puderes.
Certo dia, um homem que disse chamar-se George White apresenta-se no plateau onde decorrem as filmagens. Pede para assistir à rodagem. Hawks telegrafa imediatamente a um amigo de Chicago e pede-lhe informações sobre aquele George White.
George White, claro, não era George White. Quando muito seria Puggy White, de nome verdadeiro Withney Krokower, homem do gang de Capone e cunhado de outro bandido de marca, Bugsy Siegel.
Na manhã seguinte, White volta ao estúdio e Howard Hawks vai ter com ele. Hawks encara com o tal White e diz-lhe saber quem ele é, um proxeneta e um homem que à conta dele já mandou desta para melhor uma dúzia de indivíduos. White aceita o estatuto de assassino, mas recusa calorosamente o de proxeneta. Na verdade, está ali para dar alguns conselhos ao realizador na feitura de certas cenas, enfim, só para as tornar mais parecidas com a realidade. E dá logo uma ideia: os gangsters vão a um hospital visitar um dos do gang rival e levam-lhe grandes braçados de flores e desses enormes braçados de flores irão sair as metralhadoras que vão disparar sobre o doente. Aquilo sim, era uma coisa real que bem podia aparecer no filme. E dito por quem conhecia do ofício.


Outro pormenor do ofício: um dos do gang de Capone tinha o hábito de, ao assassinar alguém, deixar na mão do morto, em sinal de desprezo, uma insignificante moedinha de um cêntimo. Howard Hawks ouviu isto e pediu a George Raft que andasse sempre com pequenas moedas no bolso e que as distribuísse prodigamente a cada cena de tiros.

                                                                                 

Historiadores do cinema afirmam que o próprio Al Capone teria estado em Hollywood incógnito a observar o andamento das filmagens. Hawks foi ao ponto de confessar que o tinha convidado para ver os rushes, ou seja, os planos já filmados, mas não chega a dizer se Capone em pessoa lá esteve.
Quem lá esteve da parte de Capone, na fase de montagem, foram outros gangsters. Estavam da parte do patrão para ver ao certo como aquilo tinha sido feito.


Conta-se que no dia da estreia do filme, Capone organizou um cocktail em honra de Howard Hawks. Howard Hawks teria ficado encantado com a gentileza e a boa educação daqueles bandidos. Como também se conta que o ponto culminante dessa noite do cocktail foi a chegada do próprio Capone em pessoa. 


Vinha com um elegantíssimo fato de riscado e à guisa de recordação do ramo de actividade em que trabalhava ofereceu ao realizador Howard Hawks uma pequena metralhadora.Mas também alguns opinam que esse cocktail nunca se realizou, até porque, pelo menos no dia da estreia em Chicago, Capone já estaria preso.
O filme saíu. Todavia com uma advertência prévia para o público, já que era conveniente explicar a razão de toda aquela violência.
      Este filme é uma denúncia da lei da Mafia na América e da desumana indiferença do governo quanto à ameaça crescente à nossa segurança e à nossa liberdade. Todos os factos apresentados no filme que ides ver são uma reprodução de factos reais, e a finalidade desta obra é perguntar ao governo: que pensais fazer para deitar mãos a este problema?
O filme começa com uma recepção organizada pela personagem que é a encarnação de Big Jim Colosimo, o primeiro chefe de Capone. É visível a silhueta do homem que vai abater Big Jim Colosimo. É Tony Camonte (ou seja, Al Capone). E quando um detective pergunta a Camonte/Capone onde arranjou tão feia cicatriz, ele responde que foi ferido na I Guerra Mundial.


O contrabando do álcool, a partir da entronização de Capone, começa a ser organizado em bases racionais, quer dizer, profissionais, e os membros dos gangs concorrentes começam a ser implacavelmente assassinados até que Camonte/Capone esteja seguro do controle total.

                                                                                         

O filme mostraria também um Al Capone obsecado pela própria irmã sob o pretexto de lhe resguardar a virgindade – o pior é que a jovem é danada para a festa. E por aí fora… atentados à bomba, massacres continuados, tiros, facadas, contrabando, álcool, armas, prostitutas, jogo. Até à reconstituição da mortandade do dia de S. Valentim.


Uma cena houve, no entanto, inspirada na realidade mesma de Capone, que Hawks decidiu cortar. Capone passeava-se a bordo de um iate, nos mares da Florida, rodeado de famosas estrelas de cinema. Hawks cortou a cena alegando que era demasiado explícita do modo como pessoas do tipo de Al Capone podiam com toda a criminosa facilidade enriquecer num período crítico como era aquele em que se vivia, a grande Depressão. Seria um mau exemplo.

                                                                 

A cada assassínio cometido aparecia no ecran um X semelhante à cicatriz da cara de Capone.
Capone assassina friamente um homem que numa boite dançava com a irmã.
Capone rouba a namorada a um dos seus mais próximos colaboradores, o qual, por sua vez, tenta assassinar um dos meninos-bonitos de Capone e o próprio Capone. Mas Capone escapa e decide vingar-se.
Capone descobre que aquele a quem roubou a namorada acaba de casar em segredo com a sua própria e adorada irmã e desfaz-lhe o corpo a rajadas de metralhadora. Vai refugiar-se em lugar seguro mas descobre que esse lugar seguro está cercado pela polícia. Resiste à policia, mas durante essa resistência a irmã suicida-se…
43 assassínios num só filme. Classificação: para maiores de 15 anos.


Ao longo do visionamento de Scarface, o público vai ficando naturalmente cada vez mais indisposto com a sucessão dos acontecimentos e com a situação que o seu país na realidade vive. É por isso que Scarface, de Howard Hawks, para além de mero filme de divertimento, adquiriu uma aura de testemunho histórico sobre a realidade da democracia americana dos anos 20.
Scarface fica para a História, do cinema, digo, e não apenas do cinema. Fica para a História como a descrição mais penetrante, mais inteligente e mais desassombrada que alguma vez foi feita sobre a ascensão e queda de um mafioso. Para Howard Hawks ficaria para sempre como o seu filme favorito entre todos os que realizara.
Outro factor do interesse realista de Scarface é a interpretação do protagonista por Paul Muni no difícil jogo entre a depressão e a histeria que eram próprias do Capone real. Uma esquisofrenia provocada também pelas diversas fases da cocaína, e sendo essa uma das principais componentes do encanto e do carisma da pessoa de Al Capone: brilhante, fascinante e cortês num momento; abatido ou paranóico no momento seguinte.

                                                                            
                                                                   
É evidente que tanta violência e tanto realismo deixou a censura americana de cabelos em pé. Howard Hawks foi intimado a juntar ao título Scarface um subtítulo: a vergonha de uma nação. Era imperioso induzir a forma de pensar do público acerca daquilo que iria ver no écran.
A cena final, e por uma questão de moral objectivamente invocada pelos censores, também foi modificada: antes de se enforcar, Capone (que na realidade não se enforcou coisíssima nenhuma) ouve  (não sei como, não vi o filme) um discurso sobre as malfeitorias e os prejuízos causados à nação pelos gangs de Chicago.


Outra cena introduzida a martelo por ordem da censura é quando um grupo de cidadãos conscientes, incluindo um italo-americano, invade a redacção de um jornal e censura o editor pela cobertura obsessiva que está a fazer da guerra entre os gangs de Chicago, donde resulta que o editor desata a falar directamente para a câmara aconselhando os espectadores a lutar contra o gangsterismo. Foram aliás duas cenas modificadas ou acrescentadas posteriormente, já não dirigidas por Howard Hawks e representadas por um duplo de Paul Muni.
Quando o filme sai, em 1932, sai em duas versões: a versão, por assim dizer, moral, a ser distribuída nas zonas rurais; e a versão original a sair só nas grandes cidades.

                                                                           

Foi um sucesso de bilheteira. E não foi maior esse sucesso pelo custo das cenas adicionais de que falei atrás.
E foi sina de Brian de Palma fazer remakes de êxitos violentos do passado sob a temática da Mafia. Aconteceu com Os Incorruptíveis e aconteceu com Scarface.
No Scarface  de Brian de Palma, a acção é modernizada e não segue pari passu o argumento original, não obstante as semelhanças da intriga. É uma esplendorosa interpretação de Al Pacino, e é um argumento de Oliver Stone, deslocando os factos para os anos 80, quando o governo de Fidel de Castro faz sair de Cuba barcaças carregadas de dissidentes e criminosos de delito comum indesejáveis na ilha, a caminho da Florida. E está visto que o tema já não se centra no tráfico de álcool mas exclusivamente no dos estupefacientes.


Uma das cenas mais tocantes é quando Al Pacino (Scarface dos anos 80) pega num saco cheio de cocaína, enfia a cabeça lá dentro, inspira profundamente, e agarra num lança-granadas que dispara sobre os gangsters que o vêm matar.
Passando do ecran à realidade dos anos 30, seja dito que apenas sete meses passados sobre a estreia do primeiro Scarface, Capone começa a ser julgado por fraude fiscal.

                                                           
 É dado como provado que entre 1924 e 1929 Capone embolsara, pelo baixo, lucros de mais de um milhão de dólares, a que equivaleriam 216.000 dólares de impostos. O veridicto sai a 17 de Outubro de 1931: 11 anos de prisão e 80.000 dólares de multa. Recambiado para a Penitenciária de Atlanta.


Foi pelo lado burocrático e fiscal que o conseguiram apanhar e inculpar, e não por alguma coisa que se parecesse com negócios ilícitos e assassínios em série. E isto também quer dizer apanhado pela Justiça, segundo alguns, não tanto pela importância dos crimes de vária ordem e mais pela ostentação de riqueza que adorava exibir em lugares públicos, coisa escandalosa no momento em que o país passava pela tal profunda crise da Depressão.
Aquele homem volumoso, extravagantemente vestido, que se apresentava todos os dias no tribunal podia até ser confundido com algum banqueiro de Wall Street em excesso de peso.
Na penitenciária, Al Capone é declarado sifilítico. Para além disso, é portador de blenorragia crónica e tem o septo nasal perfurado devido ao excesso de coca. Tem só 33 anos.

                                                            

Em 1934 mandam-no para Alcatraz. Frequenta as consultas de neuro-psiquiatria da prisão. A saúde mental dele deteriora-se de modo galopante. Chega a travar com outro paciente uma batalha de excrementos.


      Acaba, como em tempos prometera, por voltar a Los Angeles, pelo menos aos arredores, à Instituição Correccional de Terminal Island. Já em 1939. E instalado numa cela bem jeitosa. 
     E em Novembro desse ano é posto em liberdade e vai ter com a mulher. Passa oito anos recluso, em casa: paranóia. Continua convencido de que o querem assassinar.
Mas não foi preciso assassiná-lo. E ainda durou uns bons anos. Morre de hemorragia cerebral a 27 de Janeiro de 1943.






terça-feira, 16 de setembro de 2014

        MR. ALFONSO GABRIEL CAPONE

                  VISITA HOLLYWOOD




Em 1917, estavam os mancebos americanos a ser chamados às fileiras para combater em França, e justamente com 17 anos Alfonso Gabriel Capone era criado de mesa e moço de limpezas de um restaurantezeco de Coney Island. Um dia, em serviço, sentiu-se fortemente atraído por uma cliente que estava acompanhada por um cavalheiro, uma rapariga italiana muito bonita, e tanto cirandou em volta da mesa do casal que a certa altura não se conteve, inclinou-se para a rapariga e murmurou-lhe:
- Tesouro, sabes… tens um rabo muito bonito, e deves aceitar isto que te disse como um cumprimento.

                                               
Acto contínuo, o acompanhante da jovem levanta-se, prega um murro em Alfonso. Alfonso cambaleia, atordoado. O homem, que era irmão da rapariga e já estava bêbedo, saca de uma navalha, precipita-se sobre o jovem Alfonso e retalha-lhe a cara por três vezes. O sangue corre pelo chão do restaurante, há gritos. O homem, que se chamava Frank Gallucio, pega na irmã e sai porta fora.
O golpe maior na cara de Alfonso ia da orelha ao queixo e media 10 cm. Um outro golpe, 5 cm., cortava-lhe a face esquerda. E o terceiro nascia-lhe debaixo da orelha, a esquerda. Nunca mais um cabelo cresceria naquela parte da cara dele. Seria obrigado para o resto da vida a aparecer em público de cara empoada, graças aos montes de pó de talco que passaria a aplicar para disfarçar as cicatrizes. Pensa recorrer à cirurgia estética. Suponho que nunca o chega a fazer. Quando apareciam fotógrafos Alfonso Capone apresentava sempre o seu perfil intacto, o direito. Passaria a detestar a alcunha que o celebrizaria daí em diante, Scarface.


Alfonso pensa vingar-se de Gallucio. Gallucio recorre ao conselho de um assassino profissional, que por sua vez marca consulta com um gangster cerebral e já afamado, de nome Salvatore Luciana – mais tarde celebrizado como Lucky Luciano, homem temível, inteligente e muito polido.
Calha que Luciano, dois anos mais velho do que ele, andara à escola com Alfonso. Tinham nessa altura feito ambos parte de um gang de adolescentes.


E também calha que Luciano toma o partido do tal Gallucio das facadas – a honra de uma irmã tem de ser defendida. E por causa disso Alfonso ainda tem a obrigação de apresentar desculpas a Gallucio.
Alfonso tem de levar em consideração o parecer de Lucky Luciano, figura já prestigiada no mundo do crime, enquanto ele não passa de um gaiato de 17 anos, empregado de mesa e moço de limpezas, desconhecido no milieu. Luciano era uma personalidade. Alfonso não era ninguém.
Entre 1901 e 1903 para cima de um milhão de sicilianos, 25% da população da ilha, emigrou para os EUA. Uma vez lá chegados, competia-lhes arranjar trabalho. Muitos deles deles acharam-se em altas dificuldades e juntaram-se aos bandos de rua.
Alfonso Capone, que não era siciliano, era napolitano, transferira-se directamente dos bairros miseráveis da Nápoles natal para os bairros miseráveis de Nova York – Brooklyn, em pleno ghetto italiano. 


O pai era barbeiro. Na escola chegou a esmurrar um professor e depois disso nunca mais lá apareceu. Teve vários trabalhos, mas preferia vigarizar os colegas ou estar à coca à porta das escolas e roubar o dinheirito que os miúdos levavam para pagar o almoço. Depois encontrou-se com Johnny Torrio, um homem cuja missão era organizar como devia ser o crime na cidade de Chicago - Chicago, cidade descrita por H.G.Wells como uma mancha de sombra debaixo do céu.
1919 – O Congresso dos EUA proíbe a venda de álcool. A emenda que estabelece a interdição é ratificada a 20 de Janeiro de 1920.
Os anos de proibição vão revelar todas as potencialidades do crime organizado na América. 
Os americanos vão gastar por ano, em álcool, 5 milhares de milhões de dólares. E quem vai prover à insaciável sede dos americanos vão ser dois estrangeiros, dois italianos, Alfonso Gabriel Capone e Lucky Luciano. Só pelo contrabando do álcool a indústria americana do crime vai gerar 5% do PNB americano. E o gangsterismo vai adquirir um certo prestígio social, dado que até o presidente Harding mandará servir na Casa Branca whisky de contrabando.
Em Chicago, os gangs rivais combatem rua a rua, casa a casa, pelo controle do contrabando. Do álcool e do que mais vier. Pode-se dizer que a cidade é dominada por eles em quase todos os aspectos da vida.
Big Jim Colosimo, chefe do gang de quem Alfonso era homem de mão, chega uma noite a casa, entra o vestíbulo, vê uma sombra a mover-se e nem deve ter ouvido os tiros que lhe perfuraram os ouvidos e o cérebro.
A polícia não consegue encontrar o assassino de Big Jim Colosimo, mas uma testemunha, o secretário do próprio Colosimo, descreve a sombra assassina como um homem  forte com a cara cheia de cicatrizes do lado esquerdo.
O primeiro, ou um dos primeiros, assassínios supostamente consumados por Al Capone, o que acabei de referir, é encenado no filme Scarface, de Howard Hawks, de 1932 – e sobre o qual escreverei um  destes dias.
Só para polícias e outros funcionários da autoridade de Chicago, Alfonso Capone distribuía por ano qualquer coisa como 30 milhões de dólares. Para as suas despesas pessoais, Al Capone reservava 300.000 dólares. Por semana. Tinha 3.000 homens a trabalhar para ele. Na coluna das receitas, a facturação dos empreendimentos de Capone, jogo, álcool, prostituição, montava aos 10 milhões de dólares. Por semana.


Capone tinha, naturalmente, um motorista particular. Que se chamava Filipo Sacco: Capone embirrava com aquele nome e aconselhou o chauffeur a adoptar um nome, por assim dizer, mais… glamoroso, e por outro lado mais americano. E o Filipo Sacco, motorista, começa a fazer-se de Johnny Rosselli, um nome de que estou farto de falar neste blog a vários e criminosos títulos, e que tempos depois estará no centro de muitos dos negócios da Mafia em Hollywood. Aliás, Rosselli apanha um princípio de tuberculose e é o patrão, Capone, quem o manda à Califórnia para se recompor e, ao mesmo tempo, estudar as possíveis oportunidades de negócio que se oferecem na indústria do cinema. Johnny Rosselli passará desde então a ser uma espécie de chefe da delegação da Máfia em Hollywood.
O gang de Alfonso Capone obrigava os trabalhadores a sindicalizarem-se. Não era, já se vê, pelos lindos olhos dos trabalhadores, mas era porque a sindicalização do maior número proporcionava ao gang grossos rendimentos. O gang obrigava os trabalhadores a aderirem ao sindicato para meter ao próprio bolso o dinheiro das quotizações. E tinham preferências. Preferiam os sindicatos fabris, os dos transportes e os que enquadravam pessoal de bares e afins. Capone tinha um nº 2, Frank Nitti, encarregado do caso, quer dizer, obrigar os trabalhadores a sindicalizarem-se à força de ameaças – de morte inclusivé. Eram sindicatos livres, americanos, democráticos. Felizes.
Chicago, à época da Proibição, era um dos mais importantes centros cinematográficos da América. 1/5 dos filmes americanos dos anos 20 eram produzidos em Chicago e boa parte dos indivíduos que se tornaram grandes patrões em Hollywood eram oriundos de Chicago: Carl Laemmle, fundador da Universal Pictures; Adolph Zuckor, da Paramount; Leo Spitz, da RKO. A norte da cidade ficavam estúdios de filmagem de certa importância, e só não se produziam lá filmes de cow-boys por causa do mau tempo que assolava frequentemente a cidade.
Nos começos de Hollywood, os banqueiros mais conservadores entendiam o cinema como um sector proibido, por incapaz de fornecer garantias de retorno de um investimento – isso para além do irónico facto de ser domínio de judeus. Mas é o Banco de Itália o primeiro a aceder emprestar dinheiro aos empresários de Hollywood. E fá-lo na base de um princípio inatacável: àquele que controlar o negócio do cinema será dado o poder de controlar o pensamento do mundo inteiro - é por essa razão que os olhos deitados nestes meus textos, também e indirectamente, sobre a democracia americana nos seus desenvolvimentos já do século XX, passe essencialmente pela entidade emissora de ideologia, prática e comportamentos que é o cinema, que foi Hollywood.


A Mafia compreendeu tudo muito cedo, e compreendeu que para os seus negócios era tão indispensável controlar Las Vegas como controlar Hollywood.
Dizem alguns analistas que o mundo do cinema, concretamente o mundo hollywoodesco, pode ser tão duro, ou mais, parecendo que não, do que o mundo marginal das mafias. O que não é de admirar quando sabemos da forte implantação dos mafiosos nesse mundo do cinema.
O certo é que tanto a Mafia como Hollywood, depois de infiltrada pela mesma Mafia, funcionavam como sociedades secretas, inexpugnáveis aos não-iniciados, aos estranhos, e onde reinava a mística da omertà siciliana, a lei do silêncio, o segredo.
Para dar uma fachada de respeitabilidade ao negócio, os primeiros magnates da indústria recorreram aos serviços do célebre inquisidor e censor William Hays – autor do chamado Código Hays que censurava moralmente os produtos de Hollywood. 
Acontece então, em 1920, na vida privada de uma estrela de então, o cómico Fatty Arbuckle, um escândalo que mete orgias sexuais e um assassinato. E é então que a indústria, para se proteger, deita mãos ao moralista Hays de modo a abafar o caso.
E os homens fortes de Hollywood perguntaram-se: se houve quem se saísse bem na vida a fazer todo o tipo de contrabando atrás da fachada legal de empresas de limpeza a seco, porque não usar esta técnica de disfarce com a indústria do cinema?


Aos 25 anos Alfonso Capone estava fabulosamente rico. Rico, mas entalado numa guerra de gangs. Rico mas histérico e esquizofrénico e bipolar e o mais que se quisesse, permanentemente a alterar a exaltação com o desespero. Rico, mas completamente agarrado pela cocaína.


E Chicago estava a ferro e fogo. Chicago estava nas mãos dos gangs. Reinava a anarquia criminosa. Nos anos 20, num curto período de quatro anos, deram-se em Chicago muitos assassínios, e, entre esses, 200 deles nunca a polícia os soube, pôde, ou quis resolver.


Acontece que, sabedores do sucesso fulgurante de Capone no contrabando do álcool em Chicago, os seus congéneres em Nova York tiveram sempre em vista a ambição de o ultrapassar. Capone produzia em Chicago a sua própria cerveja e o seu próprio whisky, e os bares que controlava em Chicago eram providos de caves de acesso interdito à maioria do público e onde o álcool corria. Caves que estava ligadas entre si por quilómetros de corredores subterrâneos que possibilitavam cargas e descargas clandestinas, tanto quanto eram utilíssimos para fugas quando era caso de alguma rusga policial.


É pelo fim do ano de 1927 que Alfonso Capone visita pela primeira vez Los Angeles. Em Los Angeles abundava a cocaína e os milhares cheios de ilusões que aguardavam a sua oportunidade na indústria do cinema – entretanto tornada a quinta indústria mais importante da América: Hollywood empatava mais dinheiro a imprimir os filmes do que o Tesouro a cunhar moeda. Capone ia estudar atentamente as chances que se lhe ofereciam ao negócio e entretanto investia umas centenas de milhão de dólares na aquisição de propriedades na Califórnia do Sul.
Em Los Angeles, Alfonso Capone instala-se no Biltmore Hotel e prepara-se para visitar Hollywood.


Capone, segundo alguns comentadores, estava agarrado por uma droga que se dizia ser ainda mais perversa do que a cocaína: a publicidade. Ele era o modelo do gangster-estrela. E adorava esse estatuto. Dava conferências de imprensa muito concorridas, recebendo os jornalistas na sua suite do Biltmore. Fazia vender jornais, logo, era um produto muito rentável a explorar. Acusavam-no os jornalistas de assassinar pessoas, mesmo numa sociedade tão democrática e puritana, gente que ele tomava como rivais. Capone ouvia-os e ria que nem um perdido. Era um homem de negócios e os assassínios não eram nada boa coisa para o negócio.
Los Angeles era uma cidade aberta onde não havia donos para o crime. Um El Dorado para Capone. Era só questão de se pagar bem a polícias, a promotores públicos, a advogados e a juízes e a protecção das actividades ilegais estava garantida – fala-se de álcool, cocaína, jogo e prostituição. Em Los Angeles, só os casinos e as casas de prostituição podiam render à Mafia os seus 50 milhões por ano. Houve delegados, promotores, magistrados, comissários de polícia, advogados e juízes enviados pelo governo a Los Angeles para pôr um fim à corrupção, mas todos eles, perante a cultura da cidade e o espectáculo que nesse aspecto a cidade lhes oferecia, preferiam fechar os olhos e deixar-se corromper também pelas generosas gratificações mafiosas.
Capone chega a ser visitado em Los Angeles por agentes da autoridade. Recebe-os gentilmente – era um cavalheiro cheio de charme, diga-se de passagem – oferece-lhes um café, nada tem a ver com actividades ilegais, é um turista em gozo de férias. E dedica-se a visitar os estúdios de cinema. E também as residências das míticas vedetas. Fica especialmente impressionado com a casa de Mary Pickford e Douglas Fairbanks. Tudo lhe cheira a dinheiro fácil.

                             

Numa noite em que Capone regressa ao hotel depois de uma das suas visitas a Hollywood, encontra a rua pejada de gente, polícias, jornalistas, fotógrafos, pagode. É intimado a abandonar a cidade. Johnny Rosselli, o antigo motorista Filipo Sacco, e agora delegado de Chicago em Los Angeles, intermedeia a crise e propõe que Capone e a sua equipa fiquem uns tempos  na sua própria casa. A polícia recusa. No dia 12 de Dezembro desse ano de 1927, Al Capone e respectiva entourage são escoltados pela polícia até à estação ferroviária de Santa Fé e despachados em grande velocidade para Chicago. Capone vai fascinado com o estilo e a vida das stars. Há uma margem imensa de vigarices a experimentar em Hollywood e ele pensa instalar-se por lá em definitivo.


- Fiz muito dinheiro em Chicago, tenho muito ainda para gastar em Hollywood - diz ele a um jornalista do Los Angeles Times. - Não pensem que se livram de mim assim com duas cantigas. Voltarei. E mais breve do que julgam.
Mas por acaso nunca mais voltou. 
Os negócios duros de Chicago ocupavam-no a tempo inteiro. Havia que tomar conta dos novos gangs entretanto decapitados dos respectivos chefes. Havia que andar de olho nos outros gangs activos e exterminá-los logo que possível. Resta-lhe a solução de enviar a Hollywood o seu irmão Ralph. E Ralph Capone, em vista das centenas de dólares que os magnates e as estrelas de cinema dispendiam nos restaurantes de Hollywood e de Los Angeles, começa a ameaçar os proprietários no sentido de estes lhe venderem os negócios ao mais baixo preço.
Penso poder jurar que todos os leitores deste blog já viram o filme Quanto Mais Quente Melhor. Muito bem. Quero falar em especial da cena em que os dois músicos desempregados de Chicago, Jack Lemmon e Tony Curtis, entram por acaso numa garagem para irem buscar o carro de uma namorada e são testemunhas de um ajuste de contas da Mafia, sob a forma de um assassínio colectivo, em massa.
Os dois músicos são detectados pelos assassinos, estão para ir também desta para melhor por serem testemunhas perigosas, mas conseguem fugir. Sentem-se perseguidos. Disfarçam-se de mulher e conseguem emprego numa orquestra feminina itinerante – orquestra em que Marilyn Monroe toca okulele – e vão dar a Miami. E logo com tanto azar que em Miami se vai realizar uma espécie de convenção de mafiosos, e que depois de muitas peripécias eles são detectados e perseguidos.
O filme é uma obra-prima da comédia cinematográfica, mas o ponto de partida é uma charge ao que sucedeu de facto em Chicago no dia de S . Valentim de 1929. Al Capone não vê alternativa senão destruir para sempre e de uma vez só o gang que se lhe opõe, chefiado por um tal George Bugs Moran. O quartel general deste Moran é justamente numa garagem em North Clark Street. E nesse dia 14 de Fevereiro de 1929, dois polícias entram na garagem, ordenam aos homens de Moran que lá estavam para se virarem para a parede. Os gangsters de Moran pensam que se trata de uma rusga normal, a que já estavam habituados, e obedecem. Entretanto, aparecem dois tipos à civil e esvaziam sobre os homens de Moran virados para a parede os carregadores das suas metralhadoras.


Claro que os policias eram falsos, eram gente de Capone disfarçada, e entre esses estaria um certo Sam Giancana, que anos mais tarde ocuparia o lugar do padrinho da Mafia de Chicago, amicíssimo de Frank Sinatra, por sinal, como já tivemos ocasião de verificar em textos anteriores.
No filme Quanto Mais Quente Melhor não se fala do nome de Capone, mas é fácil de atingir que o gangster bem vestido, de polainas brancas, a quem chamam de Spats (polainas) Colombo não é senão uma figuração de Capone. E o engraçado é que, no filme, o papel de chefe do gang, ou seja, de Al Capone, é desempenhado com muita propriedade por aquele tal actor muito tido e achado nos meios mafiosos de que já aqui falei, George Raft.
Nos dias seguintes, a imprensa comentou o massacre de S. Valentim sempre no pressuposto de que fora obra de polícias comprometidos nalgum caso de corrupção. Com o andar do tempo, vem a descobrir-se que se tratara de uma encomenda de Capone e tornou a haver pressões sobre a autoridade do estado federal. Havia que fazer alguma coisa para pôr fim ao crescimento do gangsterismo e consequentes carnificinas.
Quem ficou preocupado a sério com o audacioso golpe de Capone para se descartar do gang chamado de North Side, foi Lucky Luciano no seu quartel general de Nova York. Curiosamente, a Mafia novaiorquina onde pontificava Luciano, era chamada de Sindicato.
Lucky Luciano era um criminoso de vistas largas, correctas  e democráticas, e projectava reestruturar e modernizar o mundo do crime organizado. Desse processo não fazia parte o recurso a massacres como o de Chicago do dia de S. Valentim. É então que Luciano convoca todos os chefões mafiosos para uma reunião magna atinente à adopção de novos processos. Mas tudo teria de ser feito democraticamente – sim, senhores, o crime foi também uma instância da democracia americana. É essa convenção mafiosa que Billy Wilder retrata com pilhas de graça em Quanto Mais Quente Melhor. No filme, o conclave terá lugar em Miami; na realidade, aconteceu mesmo, entre 13 e 16 de Maio de 1929, no President Hotel, de Atlantic City. E lá apareceram os nomes mais sonantes do crime americano da época, Capone, Lucky Luciano, Alberto Anastasia, Bugsy Siegel, Longy Zwillman. A imprensa estava presente.
Luciano propõe exactamente a formação de uma comissão de âmbito nacional onde, democraticamente, todas as famílias estivessem representadas, e ficando democraticamente assente que todo o assassinato a ser cometido só o seria depois de autorizado pela tal comissão. Tudo claro, limpo, democrático.
- Se os tiroteios e os massacres não acabam depressa, não faltará muito para estarmos todos inscritos no desemprego – tirada final da alocução de Lucky Luciano. 
Que diria a isso o napolitano Mister Alfonso Gabriel Capone?
Sim, alguém pergunta ao empoado Alfonso Capone se está disposto a apresentar-se voluntariamente à prisão e cumprir uma levíssima pena, só para aplacar a opinião pública e fazer as coisas acalmarem. A resposta de Capone foi levantar-se de repente, atirar com a cadeira e desferir um irado chorrilho de obscenidades, gritando:
- Deixem lá, rapazes, descansem… descansem que vocês ainda vão  ouvir falar de mim!
Discutido o melindroso item com os seus conselheiros, Capone teve de dar razão ao seu inimigo de infância, Lucky Luciano. A prisão podia resultar numa chance para ele.
Dois dias depois, Capone e um dos seus capangas são detidos por posse ilegal de armas e levados para a penitenciária de  Filadelfia. Os polícias que o foram prender, claro, faziam parte da lista de pagamentos do gang. Aliás, Capone pagou 20.000 dólares a cada um deles pela sua própria prisão. Dez meses de prisão numa cela atapetada, telefone para longa distância, cómoda, sofá e um rádio.
O telefone do irmão, Ralph, que ficou à testa dos negócios, é que estava sob escuta, e por aí a policia tomou conhecimento de muitos dos negócios ilegais de Capone, designadamente, e em tempo de lei seca, uma quantidade de cervejarias. Essas cervejarias clandestinas começam então a ser invadidas e destruídas pela polícia federal.
O homem que vai andar furiosamente na cola de Capone é um detective federal chamado Eliot Ness, imortalizado pela televisão e por um filme de Brian de Palma, Os Incorruptíveis  - com o Kevin Kostner
A guerra mais a sério contra Capone arranca depois de o presidente Hoover ter visitado em Miami Beach um bairro de gangsters. Hoover afirmou ter visto mulheres nuas a dançar em volta de uma fogueira enquanto alguns dos gangsters disparavam para o ar. 
Não sei se o que impressionou mais o presidente Hoover foram as mulheres nuas se os gangsters aos tiros. O que se sabe é que Hoover declarou que era finalmente preciso fazer alguma coisa contra aquele estado de coisas.
A Capone teríam que lhe pegar pelo lado da contabilidade. Da contabilidade com o fisco. Mas começariam pelo nº 2 de Capone, Frank Nitti. Calcularam-lhe os ganhos e as despesas e não viram documento probatório de que tivesse algum dia pago impostos. Cadeia com ele. 18 meses. E multa de 10.000 dólares.
A seguir foi o irmão de Capone, Ralph. Três anos numa penitenciária do Kansas.
Al Capone nunca conseguiria realizar o sonho de voltar a Los Angeles e por lá se radicar. E assim porque nunca conseguiu infiltrar-se nos sindicatos do crime que dominavam Hollywood, roubando as quotizações aos associados, extorquindo dinheiro aos estúdios. Não o fez Capone em Hollywood. Mas houve muito quem o fizesse.


A Proibição acaba em 5 de Dezembro de 1933. Às mafias toca-lhes inventar novos meios de enriquecimento ilícito. Hollywood acena-lhes. Hollywood é uma tentação. 
E Capone tem sucessores em Chicago. Sucessores mais modernizados e profissionais do que ele, e que planeiam alto e em grande. Por exemplo, apoderarem-se das grandes companhias produtoras de filmes.