terça-feira, 27 de maio de 2014

          SEGUNDA VARIAÇÃO IMPERFEITA SOBRE  
                         OS  PEQUENOS PODERES
                                              

Vamos distinguir devidamente as coisas. Ou falamos de poder ou falamos de autoridade.

   
    
                                                              

 Não, claro que não são necessariamente a mesma coisa.
O poder, dizia Jacques Maritain, é uma força que permite obrigar outros. Diferente, já se vê, da autoridade. Uma autoridade é um direito que se tem de mandar. Só a autoridade é instância moral de poder.

                                           
                                                                   


            O poder político é o que é reclamado por quem tem as condições de impor coercivamente a sua vontade. Mas o poder político não foi outorgado, caro leitor, ao seu chefe de secção ou ao seu directorzinho de serviço. Nem um nem outro fazem parte dos eleitos. Esses foram nomeados. Nomeados sabe Deus à custa de quantas pequenas manigâncias ou insignificantes competências técnicas. Só o poder legitimado por uma eleição, quer dizer por uma virtude reconhecida, ainda que eventualmente falsa, parece-me, pode permitir a um sujeito obrigar o comportamento de outros seres livres.


Mas a esse poder deveria ser acrescentada outra categoria que se chama prestígio. O prestígio pessoal significa mais do que uma autoridade, ou seja, significa que no sujeito poderoso existe uma qualidade pessoal real. Não há nenhuma espécie de poder que seja indiscutivelmente moral, ou inegavelmente suportado por uma base moral. O que é moral não é o poder, é a autoridade. A autoridade não só é moral como tem na moral a sua finalidade. Não se fala de uma autoridade meramente técnica, ou de perícia. Fala-se, como é evidente, de moral. Se uma autoridade não guardar em si a ética, pode descambar em poder, em acidente. Autoridade e poder podem ser uma contradição. E por falar em acidente, nenhum poder, a nenhum escalão, é natural, é irrefragável. Todo o poder é um acidente. O poder é uma delegação de outros poderes, e, no caso da política, uma delegação de um povo. Que povo entronizou "poderíos" no prepotente, autoritário e mal criado do meu chefe de serviços?
Mas o meu chefe de serviços recebeu o seu poderzinho por acidente. E o poder dele, tal como o do rei, carece urgentemente, do consentimento, pois só pelo consentimento de outros o acidente que é o poder tem condições para ser exercido.
A autoridade é outra coisa.
A autoridade é um aperfeiçoamento de qualidades humanas intrínsecas. Reconhece-se e consente-se com mais naturalidade do que um poder. A autoridade pode ser independente do reconhecimento e do consentimento de outros, visto que no alcance da autoridade reside o mérito. A autoridade pessoal é criação. Pode mesmo ser segunda natureza.
Alguns pensadores arriscaram dizer que no poder “está-se”, enquanto que autoridade é coisa que se “tem” – ou que se “é”. Não há nada de mais pessoal do que uma autoridade.
Na velha Grécia houve tempo em que o designado cidadão se transformou em súbdito. Mas é a partir da categoria Homem que as sociedades nascem.


No meio disto entra uma figura que por largo tempo me mereceu alguma intelectual simpatia: o déspota esclarecido – não confundir com o seu chefe de vendas.
Pois é. Ele arranjar déspotas ainda se arranja com facilidade. O pior é o esclarecido. Esclarecidos é o que custa mais a arranjar
Não fui só eu a simpatizar com a fórmula de poder do déspota esclarecido. Aristóteles e Platão não iam fora disso. Esse déspota esclarecido atenderia às liberdades civis e seria ele o corpo visível e operacional do Estado.
Existirá liberdade no momento em que o Homem não participa no poder do Estado?

                                                                     

Alguns espíritos defenderam a intervenção, directa ou indirecta, dos cidadãos no poder do Estado, gente como Locke, Spinoza, Montesquieu, Kant ou Rousseau; outros, lá entenderam que só a alguns extractos sociais competia a intervenção no poder do Estado – temos Aristóteles, Marx, Lenine.


Mas houve quem teorizasse que o poder só seria poder se independente da vontade e da intervenção dos destinatários dele, poder.


Max Weber seleccionou três modos históricos de poder. Um - o poder tradicional; dois – o poder carismático; três - o poder racional. Denominador comum e imprescritível: a legitimidade.
Sem legitimidade nenhum poder obtém obediência sem ter que recorrer à força. Sem confiança ou sem autoridade nenhum poder é outra coisa senão força.
Outra questão é o reconhecimento de uma legitimidade de poder. Aliás,uma questão eternamente pendente nas encruzilhadas da História.
O poder tradicional. Era o poder do costume, a violência dos hábitos. Coisa do passado, esse poder é patriarcal, sacerdotal, feudal. Porém, ainda coisa do presente em certas regiões distantes da nossa consciência de empregados urbanos.


O poder carismático. Um poder acrescentado por um estado de graça. Acreditava-se que um homem pudesse ser dotado de clarividências extra-humanas, de dons excepcionais, de uma cintilação pessoal própria que impusesse e induzisse à obediência. Se eu for a ver, o meu chefinho está secretamente convencido que possui esses dons…


Bom, mas isso era no tempo em que os homens se dedicavam inteiramente às causas em que acreditavam. Ou, mais próximo, quando ainda havia o homem providencial para a administração de uma instituição, o homem que tinha uma ideia, um projecto para aquela instituição e que não chegava à instituição para lá cumprir os três anos da ordem e depois seguir para outra freguesia e continuar a sua carreira até ao dia ditoso da sua reforma dourada.
O poder legal, o poder racional. É o poder da burocracia. É o poder que dispara quase sem ser preciso accioná-lo, automático. É o poder dos estados modernos, das empresas modernas. Há regras legais previamente articuladas. Elas funcionam por si, acriticamente. Há apenas que tomar conta delas e não permitir rupturas ou cortes epistemológicos…
Para este tipo de poder o que é pedido é racionalização funcional. E tanto faz que lá esteja este como aquele. O mecanismo jurídico-funcional está montado. E pronto. É preferível estar quieto, não mexer no sistema. Não há ideias. Não há estilo. Não há golpes de asa. Não há chama criativa. Recebe-se o salário, deixam-se passar os três anos, é-se nomeado a seguir para tomar conta do automatismo burocrático de outra instituição e assim sucessivamente. E é-se feliz.


        Claro que horas e horas de conversa poderíamos ter a respeito de cada um destes poderes e respectivos enfoques históricos, e quando por vezes, por acidente, as três categorias se podem fundir num único estilo de mando.
Estilo? Pois estilo, emanação de personalidade é coisa hoje em dia a evitar a todo o custo. Alguns administradores mais parecem robots, indivíduos anestesiados, incapazes de proferir uma palavra a mais ou de tomar uma decisão, nem que ela seja justa e aconselhável.


E aprecie-se a realidade: administradores de empresas industriais que sobem a ministros da Educação, ministros da Saúde que descem a presidentes de conselho de administração de bancos. E por aí fora. Acaba por haver uma unificação no círculo dos poderes de um país, de uma sociedade. Porquê?


Ainda se pergunta? Porque existe uma coincidência de interesses concretos que unificam as prestações de poder, coincidência que circula da instituição militar à política, aos bancos, à indústria. Há coincidência de orígens sociais dos membros do grupo. Há grande afinidade psicológica entre os indivíduos do grupo. Daqui o caso de um administrador do Hospital Júlio de Matos poder continuar descansadamente a sua carreira e o seu currículum como presidente de uma companhia de bailado, ou de um ex-vice-presidente da Galp poder vir a continuar a sua carreira à frente de uma estação de televisão.
Desgraçadamente, a nossa experiência quotidiana dos tempos mais presentes pouco consegue, por muito que se esforce, desencantar uma instância superior de saber no íntimo de uma instância de poder.
Uma pulsão de poder só muito a custo decorre de uma serenidade de saber.  
E não se duvide que o nosso chefe exerce mais ou menos a sua descricionaridade quanto mais for sabedor. Ou seja: quanta mais informação tiver. O que também pode ser entendido por… quanto mais informadores ele tiver na secção.
Não há poder que dure sem informação. É sabido. E da maneira como as coisas estão já não importa muito que essa pretensa informação não passe de boato ou de má língua. Uma mentira dita 50 vezes é uma verdade inquestionável. De forma que se os informadores do meu chefe lhe segredarem aos ouvidos qualquer negativa coisa a meu respeito, mesmo que seja redonda mentira, o meu chefe – se não for de boa qualidade humana - vai passar a olhar para mim e para o meu trabalho em função do que lhe segredarem os informadores que ele teve. Não tenho a mais pequena dúvida sobre isso. E o mais aborrecido é que as minhas possibilidades de defesa contra o falso segredo que o meu chefe guarda a meu respeito são poucas. São nenhumas. Faça eu o que fizer.
Quem poderá traduzir eficazmente para o entendimento do vulgo o sentido da linguagem do poder?
E quando arrepelo os cabelos ao descobrir que o meu pequeno chefe é um tatebitate que não diz uma para a caixa, que não produz um discurso claro e convincente, porque é ignorante e desajeitado na palavra e na relação humana, não há nada a fazer. Se eu ainda pensar à antiga, que poder é linguagem…
É verdade. Houve tempo em que a palavra falada era instrumento de poder, alavanca de domínio. Pelo discurso se chegava ao poder. Pelo discurso se mantinha um poder. Pedia-se: autenticidade (real ou fingida, já se vê) na fala; rigor na demonstração das ideias, clareza nas motivações. Por aí se dominavam os homens.
Hoje? Hoje nada disso serve ao poder. Ou antes: quanto menos disso melhor, porque os poderes já não precisam muito da razão verbalizável para se execerem.
Eu tenho uma parcela, ainda que ínfima, de poder. Porque tenho o direito de poder mudar o homem que exerce o poder político nacional e que é a expressão de um sistema político. Através do meu voto periódico. É pouco, mas é o que se pode arranjar. Não tenho é a mais pequena hipótese de participar na mudança do homem ou homens a quem, no mais concreto da minha vida prática, devo obediência profissional. O meu chefezinho. O meu directorzinho. Ou mesmo o meu presidente ou director-geral. Aí, a minha opinião não conta para nada. Nem ma pedem. Eles não são sujeitos a escrutínio. São técnicos. Em grande parte dos casos não fazem a mínima ideia dos modos de conduzir homens e mulheres, de gerir conflitos, de estimular e congregar vontades criativas. Em certos casos e actividades, a estes chamam-se capatazes.
E além do mais, a democracia ou a democraticidade é coisa que se atenuou, ou deixou mesmo de existir nos locais de trabalho.
Ao correr da História foi de direito mudar violentamente o homem no poder. O chamado tiranicídio. Era legítimo o assassínio se não fosse possível arredá-lo por outros meios da sua tirania. E é claro que hoje não é fácil antever-me a assassinar o tiranete que é o meu chefe de serviço, esse dono e senhor da maior parte do meu tempo acordado e senhor do mais pequeno de todos os poderes absolutos.     


                                                     

Na sua Summa Theologica, o bom do S. Tomás de Aquino até disse: Um governo tirânico não é justo por orientado não para o bem comum, mas para o interesse privado do governante. Não há sedição quando se ataca um governo desta espécie, salvo no caso de a revolta ser tão desordenada que os súbditos sofram maior dano do que o causado pelo governo do tirano.


Mas melhor do que o vulgar tiranicídio era a tomada do poder pela revolução.O tiranicídio afastava o homem do poder, verdade, todavia mantinha desse poder o sistema de governo. E também o tiranicídio, as mais das vezes, era incidente passado em bastidores, entre a cúria dos notáveis que invejava do tirano a tirania e a prosseguia sob o mesmo sistema de valores.


Se no tempo da ditadura a classe dirigente era limitada ao único partido existente e os bons eram mesmo bons (ainda que poucos), os maus estavam de uma maneira ou de outra circunscritos, e era sempre à obediência ao regime que se devia, achavamos nós, a sua qualidade de chefes ou directores de alguma coisa.


Com a democracia – e a níveis de função pública ou empresas do Estado - começou a haver escassez de pessoal que, não sendo desde logo de considerar político, é pessoal que faz falta às encomendas do mando, faz falta aos partidos para nomeações quando chega a vez desses partidos estarem no poder e proceder ao controlo dos aparelhos do Estado.
E está claro que a margem de escolha dos melhores em democracia -ainda por cima portuguesa – encolheu substancialmente.
Todos sabemos que Portugal ocupa um lugar cimeiro no concerto dos países que, por mediocridade generalizada e falta de ofertas aliciantes, deixam fugir os seus melhores para o estrangeiro.
Depois há os que são mesmo bons. Têm que entrar para um partido dos de poder, senão nada feito…
Depois há os mesmo bons que não estão para se incomodar. Não aparecem e por isso não são facilmente nomeáveis.
Depois há os mesmo bons que desprezam os caciques dos partidos e a sua lógica. Não podem ser nomeados para nada.
Depois há os mesmo bons que correm para o sector privado.
Depois há os mesmo bons que se dispõem a tornar-se medíocres por pura e irreprimível ambição. Podem ser nomeados, sob certas condições.
A maioria são de dar vontade de rir de mediocridade, ignorância e avidez pelo dinheiro e pelo mando – nem que seja pouco. Imediatamente nomeados seja para o que for.
Acho que o crescimento louco da massa dos ambiciosos deu cabo da virtual qualidade da nossa democracia. Querem ganhar dinheiro, muito dinheiro, depressa, querem ter um estatuto depressa, querem fazer carreira depressa. São pessoas manuseáveis, manobráveis, obedecem cegamente a quem manda se lhes acenam com um naco de carne ou um torrão de açúcar. Nunca levantam problemas. Os partidos deitam-lhes a mão muito depressa. São nomeados para chefes e directores disto e daquilo muito depressa. E a gente que os ature. E a gente que lhes sofra as consequências da incompetência ou da impreparação para o comando, da vaidade da ambição, e… quantas vezes, da idiotia.
Ele há fartos candidatos aos poderes, grandes e pequenos, tantos que aquele que o ambicione verdadeiramente para si não se pode prender com picuínhas, tem de ser implacável, competitivo, impiedoso, seguro, senhor do seu tempo e do seu gesto. E assim, quer nas manobras necessárias à obtenção do poder como nos processos indispensáveis para o perpetuar. 
Outro acicate não possuo para os flancos picar de meu intento senão esta ambição – um tirada do Macbeth.
Mas o poder do nosso chefe de secção –nem que seja o maior déspota – não sofre das usuras que costumam sofrer os poderes superiores de Estado e de governação, os poderes dos eleitos. Todo o poder destes está, desde o primeiro dia da sua vigência – e pelo menos teoricamente - ameaçado. Lá está: faz parte. É o segmento de consentimento de que cada poder precisa, o vírus devastador que o começa a minar desde o primeiro dia de expectativas.
Os poderes de Estado, de governo, têm a obrigação de curar dos seus sustentáculos, a chamada base social de apoio. Mas esses sustentáculos são frágeis. O poder do meu chefe de secção, como depende do arbítrio de um director, de um administrador, e tem nele o seu sustentáculo, não é tão frágil como foi o poder do general De Gaulle em 1958, ou em 1968. Por exemplo.
Só se o meu chefe  de secção entrar em conflito aberto com os seus maiores. Situação em que, no geral, eles não caem – a menos que sejam pessoas excepcionais. Que no geral não são.
Só se o chefe de secção entrar em perda de prestígio aos olhos do director que o protege. Mas também só se ele for parvo – e for justo, simpático e dialogante com o pessoal – é que desgasta o seu pequeno poder e a sua graciosa imagem junto da administração.
Mas não se pense que o noso antipático chefe de serviços vai dar de mão do seu pequeno estatuto de poder, ou sequer mudar de atitude, só porque os subordinados não gostam dele, ou porque algum subordinado até já se queixou dele com razão ao nível hierárquico superior.
A propósito, alguém deu saída àquela minha queixa, tive alguma resposta? Alguém me deu alguma explicação ou satisfação? Ora aí está. O poderzinho que os chefinhos exercem na nossa democracia é olímpico. Mas se ninguém deu saída à minha reclamação sobre os actos do meu chefe, bom, isso quer dizer que eu tinha razão na minha queixa. Foi esse o meu erro: ter razão perante os meus chefes.
A democracia portuguesa dos empregos não perdoa a quem tem razão e não seja chefe de alguma coisa. Oxalá que não venha eu a pagar a razão que tive com língua de palmo…
Se há animal político nesta vida é o animal que detém um poder. Por pequeno que seja. Uma questão de instinto. Porque nestas matérias os instintos são dois, e entrecruzáveis e complementares um do outro, e o primeiro deles é o instinto que o meu pequeno chefe tem de mandar, sendo o segundo instinto aquele que eu tenho de lhe obedecer. E é, entre outras coisas, por instinto, que o poder tende a fortalecer-se e a reproduzir-se.
Dizia Montesquieu: o poder chega até onde o detêm. E não serei eu, que sou homem comum e simples, a ter o poder de deter o poder do meu pequeno chefe.
Fala-se aqui de pequenos chefes – e não de chefes tout court – porque estamos em Portugal e em Portugal, infelizmente, está-se em pequeno e tudo se torna cada dia mais pequeno ao ponto de ser mais o chefinho ou o directorzeco quem mais directamente perturba a vida de cada um de nós do que o ministro ou o chefe de Estado – ou a hierarquia de Bruxelas, claro.
Pequenino, pequenino, meu querido Portugal. Small is beautiful. É o que nos tem valido.


Porque o nosso problema de gente comum, relativamente aos poderzinhos que nos amargam a vida, é eles estarem livres de fiscalização a sério. Desde logo porque quem deu o poderzinho ao meu chefinho foi o directorzinho por quem ele bebe os ares e de quem ele conhece as fragilidades.
Embora, teoricamente, todo o poder em democracia esteja sujeito a fiscalização… a gente sabe como é. Teoricamente. Virtualmente. E restaria saber a qualidade de quem fiscalizava quem.
Não quero com isto dizer que não haja bons e grandes chefes no nosso pequeno mundo do trabalho, mas foi por estas e por outras que se fizeram revoluções. Foi quando os poderes, em certo sentido tirânicos, se fortaleceram e se multiplicaram a tal ponto que reclamaram a intervenção de outros poderes ainda mais tirânicos.
O que por vezes esquecemos no nosso figadal conflito com o nosso chefe de secção, ou director de serviços, ou administrador de pelouro, é que o poder de todos eles é um elo da mesma cadeia. Eles são solidários nos interesses. Integram o mesmo grupo de interesses. Um grupo a que se ouviu chamar em tempos mais contestatários de classe dirigente.


Quando de normal escriturário o meu colega Lopes é nomeado chefe de sector, não tenho dúvidas, eternamente subordinado que sou, que ao acolher o pobre do Lopes no seu novo gabinete alguém lhe disse: “Bom dia Lopes, bem vindo à classe dirigente desta casa”. A partir daqui não lhe vale a pena fingir-me o grande amigo que nunca fui do Lopes, não vale a pena falar-lhe do seu Sporting, não vale a pena aconselhar paternalmente o Lopes sobre o serviço enquanto tomo a bica com ele…
Nem vale a pena, por mais razão que tenha, queixar-me superiormente das decisões do meu chefe e ex-colega Lopes. Tudo o que ele faz passa a estar bem feito e é encoberto e apadrinhado pelo grupo a que passou a pertencer, a classe dirigente. Não tardará muito e o pobre do Lopes começará ridiculamente a jogar golfe e a ir à ópera com a feiosa da mulher dele – da qual, aliás, se divorciará em breve para se enrolar com a secretária.
Toda a classe dirigente, seja no seu pequeno escritório de loja de ferragens, seja no armazém de secos e molhados, seja na General Motors ou na  Microsoft, tem por objectivo primeiro, além de auto-aumentar o seu vencimento, proteger-se das críticas e das queixas seja de quem for, e sobretudo das dos subordinados.
Todo o real poder é exercido não por pessoas singulares mas por um grupo dirigente. O indivíduo poderoso é só a ponta de um iceberg director. Não vale a pena dizer mal dele. Ele passou a ser um dos da elite.
Quem detém afinal o poder real nas sociedades modernas?, apetece perguntar.


Uma tese elitista: o poder só pode pertencer a um escol de indivíduos, a tal elite; um escol muito homogéneo, muito unido, quase impossível de arredar. Outros falarão de uma tese mais plural. Nâo há uma classe dirigente como nos tempos arcaicos e sacerdotais. Há diversas categorias dirigentes que tanto podem colaborar como combater-se, mas que, também por isso, acabam por se equilibrar. Só os malandros dos marxistas é que continuam a pensar que existe uma classe de sacerdotes ungidos para o mando e falam de uma classe dirigente emanada de uma classe dominante burguesa e capitalista.


Nos tempos recentes assistimos à chegada à instituição onde trabalhamos de um novo gestor. Acreditamos que agora sim, as coisas vão de facto entrar nos eixos, que é aquele o homem que vem trazer à instituição ideias novas, processos modernos, justiça laboral, força de endireitar o que há muito anda torto na casa. Deixemos passar um mês, dois, três…


Ao cabo de uns meses de acção – mais frequentemente inacção – concluímos que esse novo dirigente não era messias nenhum, não trazia na manga qualquer solução, não tinha na mente a mais pequena ideia, nova ou velha, e que foi para ali por acaso, nomeado por alguém para preencher o seu currículum e prosseguir a sua carreira até que alguém, alguma entidade, o coloque noutro sítio, onde ele continuará por acaso, sem fazer ondas, o seu curriculum, onde prosseguirá a sua carreira.


Uma vez perguntei a alguém muito tido e achado nas gestões e administrações e que chegou a ser gestor: qual é a primeira coisa que um administrador faz ou pretende saber no primeiro dia em que toma contacto com uma empresa. Responderam-me: discutir a marca e o modelo do carro a que o lugar lhe dá direito.


Uma das inevitabilidades do poder é que esse mesmo poder se define e se afirma pela possibilidade dada a quem o detém de abusar dele.
Abusos do poder, corrupção do poder (ou pelo poder), e outras coisas que tais. Por princípio eram práticas que nos quiseram convencer estar confinadas aos regimes políticos ditatoriais, autocráticos, fascistóides. O desenvolvimento da nossa democracia permitiu-nos perceber, e em certos casos experimentar na pele, que não era totalmente assim e que na democracia os nichos de poder abusivo e as práticas abusivas dos poderes grandes e pequenos podiam ser uma praga que acabasse por corroer a credibilidade desse sistema perfeitíssimo que nos convenceram de ser a democracia parlamentar representativa.
Nenhum sistema político tem, porém, o exclusivo do abuso de poder.


Na democracia capitalista, o príncipe é o partido - e o respectivo aparelho. E o esmagador poder económico engendrou outros poderes, reforçou-os, tornou-os influentes, decisivos, desorientou a balança dos equilíbrios e criou a confusão entre o que seja um poder real e efectivo e um poder apenas aparente.


Ora uma das preocupações magnas dos teóricos da democracia deveria, a meu ver, residir no apuramento cada vez mais efectivo de mecanismos atenuadores do abuso de poderes, seja da parte de instâncias do Estado e instituições ou empresas, seja da parte de individualidades ou pequenos funcionários. Mas não. Parece que quem influencia e goza de algum estatuto se dá muito bem no reino da arbitrariedade e minimiza o problema. E já se percebe que um primeiríssimo pontapé de saida para obviar à questão dos abusos de poder seria o convite à melhorada e mais ampla participação das possíveis vítimas dos abusos de poder nas decisões desse poder.


E já se percebe que outro pontapé de saída seria o da fiscalização constante e efectiva - e penalizadora! - dos actos do poder, mesmo pequeno. Porque nenhum poder, de esquerda, de direita, de presidente, de ministro, ou de chefe de serviços deve deixar de ser efectiva e imparcialmente fiscalizado.
Bom, mas isso já significaria a entrada num estádio superior de cidadania e de democracia política que cada vez parece mais distante. Para não dizer utópico.
Muitos dos que já foram por alguma razão postos fora desta problemática, provavelmente nem sonham o quanto, hoje, a empresa, as instituições públicas, enfim, o local de trabalho, é factor de fundas angústias existênciais, causas de suicídio, ou, enfim, agravos da saúde mental de tantos cidadãos trabalhadores. Muitos – a maioria? - dos problemas pessoais de quem trabalha são gerados no emprego e são reflectidos e desenvolvidos posteriormente em casa, no segredo do casal, na privacidade da família, na aspiração quase dolorosa de uma aposentação antecipada, ou com os resultados drásticos, ou bastas vezes trágicos, que se lêem nos jornais.
A grande neurose da descrença e da improdutividade nacionais fortalece-se nos locais de trabalho e tem por causadores muitos pequenos chefes e directores que, sem prejuízo das capacidades e competências técnicas que tenham, não possuem a mínima sensibilidade para a direcção de seres humanos. É o problema ingente, colossal, do poder.
E o problema do poder não é para ser exclusivamente posto ao nível do Estado e das instâncias oficiais mais visíveis e mais intocáveis. Também deveria pôr-se no plano da apreciação dos pequenos actos e critérios arbitrários, injustos e algumas vezes incompetentes dos chefezinhos e directorzinhos de muita instituição. Inclusivé das que vivem do dinheiro do Estado democrático, sim...
E enfim, todos nós temos as nossas experiências. Se fossemos a falar de todo o tipo de experiências e de todas as implicações delas… nunca mais acabávamos…


quarta-feira, 21 de maio de 2014

    VARIAÇÃO IMPERFEITA SOBRE OS                PEQUENOS  PODERES



Escrevo a pensar naqueles que, como eu, sempre foram na vida mandados, subordinados, sempre estiveram na vida profissional sob a alçada descricionária de outros.
A palavra poder pode incomodar-nos. Há tendência para olhar de través qualquer tema que possa implicar a existência ou o exercício de um poder, mesmo de um poderzinho, o poderzinho que sai dos pequenos poderosos e ataca os pequenos subordinados.
Poder. Poder. Qualquer um que ele seja, nem que só o do chefe de secção, do chefe de repartição, parece demasiadas vezes de direito divino, digo, um poder nem que seja somente delegado, subdelegado. E sempre que um desses “poderíos” nos incomoda ou interfere com o nosso bem estar ou equilíbrio emocional, podemos sempre dizer que foi um poder que “subiu à cabeça” do seu detentor, que o seu detentor se embebedou de poder, que engravidou de poder – nem que seja o pobre chefezinho de um escritório ou repartição de meia dúzia de gatos.
Olhamos muitas vezes os nossos chefes como ambiciosos, sequiosos também eles de um poder, mesmo que seja pequeno. E olhamos o colega mais preparado, mais competente ou inteligente do que nós na presunção de que se ele é tão preparado, competente e inteligente o é por uma motivação única: a ambição do poder, “o que ele quer é poder, o que ele é é um mandão”. 
E concluímos, e cada vez mais, que muitos dos que detêm um poder sobre outras pessoas, na verdade, não têm mais objectivo na vida do que esse: ter um poderzinho sobre os outros. E que até, na maior parte dos casos, não estão preparados para esse poder, não foram preparados para ter qualquer poder sobre outros seres vivos.
Noutros casos não é questão de preparação mental, é mesmo questão de falta de qualidade humana interior, essa que é, na minha opinião, a primeira das condições para se outorgar um poder a alguém. Qualidade humana, sentido de justiça, integridade pessoal em primeiro lugar. Só depois deveriam vir as qualificações técnicas e profissionais.
Mas, tristemente, nos tempos que correm, a qualidade pessoal – e mesmo intelectual – dos que têm poder sobre nós é lamentável. E continuo a pensar que essa é uma das razões para o atraso português a vários títulos, a vários níveis, especialmente no caso dos que têm um pequeno poder intermédio e que grande parte das vezes, nas instituições, são mais parte de cada problema do que da sua solução.
Fica bem uma tirada da Electra, de Sófocles: Se bem que a justiça não está no que eu digo mas no que tu pensas.Todavia, se devo viver em liberdade importa-me obedecer em tudo a quem manda.
É uma gravíssima encruzilhada na nossa vida pessoal, e sobretudo profissional… exercer uma liberdade e obedecer em tudo a quem nos manda… quando poder e liberdade se oprimem, se desencontram continuamente e frequentemente se anulam.
O saber, em tempos de antanho, foi  matéria sujeita a alta reserva e confidencialidade e posto fora do alcance dos simples, do vulgo. Porquê? Porque os antigos, os medievos, sabiam-na toda. E como a sabiam toda, sabiam que o saber proporcionava o poder. E o poder não era coisa para entregar ao primeiro bicho-careta ambicioso que aparecesse. E se não se lhe podia entregar o poder era porque não se lhe podia facultar o saber. E vice-versa, claro está.
Na Antiguidade, e nas mentalidades mais esotéricas, o poder era realmente coisa reservada aos eleitos, a bem dizer, aos iniciados. A alguns poderia ser facultada a aprendizagem, o saber, o que faria deles iniciados, o que os tornaria eleitos, e a esses, pela sua qualidade e sabedoria humanas, poderia ser concedido o poder, na certeza de que o vulgo, por uma consciência ancestral de vida, tendia a obedecer cegamente àquele que mostrasse mais sabedoria. E daqui decorrem algumas coisas eventualmente desagradáveis, como o messianismo, de cujas reflorescências tardias milhões sofreram as consequências entre 1933 e 1945.
Mas já nos antigos a elite do saber e do poder aspirava ao domínio total dos corpos e das consciências. E para esse domínio ser mais total, o que convinha era manter as massas na mais perfeita das ignorâncias. O saber era guardado em segredo. Quem o detinha ascendia à dominância. Podia à sua vontade condenar os povos à escravidão.
Ou então criavam-se escolas. Escolas em torno de um iluminado. E lá se preparavam os espíritos para conter os saberes mais reservados – cultura é isto: preparação do espírito para receber o conhecimento. Esses iriam ser os chefes.
O saber dos chefes inevitavelmente haverá de conduzi-los a convicções malsãs, entre elas a da sua superioridade face ao comum dos que lhe obedecem. Mas enfim, não é preciso ir à Idade Média. Isso é o que se vê hoje todos os dias nos locais de trabalho. A superioridade arrogante e avassaladora de muitos dos que nos chefiam, as suas certezas absolutas, a sua infalibilidade na gestão do pessoal, enfim, uma série de condições que criam no subordinado um espírito de rebelião - muitas vezes ódio. O que não aproveita a ninguém.
Os homens acabam sempre por se revelar maus, se a necessidade não os obriga a ser bons, lá dizia o velho Maquiavel.
Bem entendido que, acerca destas coisas do poder, quer do grande quer do mais pequeno, o velho Maquiavel é uma fonte inexaurível, e basta lê-lo com atenção para perceber… das duas, uma: ou a qualidade de um tecnicamente bom chefe – o que não significa exactamente a boa qualidade da pessoa dele; ou a deficiente qualidade técnica e operacional de um chefe quando não cumpre determinados preceitos do mando – o que até poderá querer dizer que ele nem é má pessoa, sendo por isso mesmo mau chefe.
Ah, sim, estou convencido de que a verdadeira natureza de um homem vem ao de cima em muitas situações limite, e uma delas é porem-no a mandar noutros homens. É difícil resistir à revelação da verdade sobre si próprio quando se tem algum mando. É o que diz o povo: se queres ver o vilão põe-lhe o pau na mão.
Os homens são tão simples e tão obedientes às necessidades do momento que quem engana encontra sempre quem se deixe enganar - outra das patetices do velho Maquiavel.  

O poder pode… segundo um senhor chamado Talcott Parsons, ser um subsistema económico, na medida em que se levantam paralelos óbvios entre uma ciência política e uma ciência económica. O poder seria então qualquer coisa igual a moeda. O modelo definidor de um poder pode ser a moeda. Donde, o poder não ser mais do que um instrumento de troca nos subsistemas políticos.
(Compreende-se, não? Basta ler os jornais e ver a televisão.)
Como a moeda, o poder circula, é móvel, é activo, desloca-se incessantemente, aumenta e diminui. Pode criar-se um crédito político. Podem-se acrescentar parcelas à quantidade de um poder. A vitória numas eleições coloca os políticos eleitos na posição de um banqueiro. A vitória numa eleições é uma concessão feita de poder, um depósito feito pelos eleitores que será a todo o momento revogável. O crédito que é o poder sujeita-se, como o crédito monetário, às variações. Há inflacção e deflacção no poder.
Pois é. O poder é simbólico. Como o dinheiro.
Tal como uma moeda, o poder tem valor de troca mas não tem valor de uso. O poder vale pelo que permite obter - e nunca nos esqueçamos disto nestes dias conturbados e nos que estarão para vir.
Como intermediário simbólico generalizado e reconhecido instrumento de troca, como o dinheiro, o poder é, por isso… legítimo.
Estive há dias, por acaso, a ler um livro de Luis Nandim de Carvalho. Teoria e Prática da Maçonaria. (Maçonaria não podia faltar a uma conversa sobre o poder). Fiquei a saber que é o entendimento e o aprofundamento da percepção de Deus, a Sua relação com o universo e com os seres humanos o que constitui a essência  da organização maçónica. É bonito. E julguei ter percebido que é a posse desse entendimento que constitui em si mesma uma fonte de poder. Sim, mas um poder que não é laico, racional. Um poder que não é temporal. Um poder que é espiritual, e que todavia subordina, define, ajuíza e legitima todo o poder temporal.
Segundo Nandim de Carvalho, todo o poder material será sujeito à aferição racional da sua legitimidade e da sua justiça pelo poder espiritual – e o cidadão comum perguntar-se-à a que poder espiritual reportam os abusos e as arbitrariedades dos seus chefes e directores, que são os primeiros poderes a que o cidadão, para ganhar a sua vida honradamente, está sujeito a obedecer.
Segundo os maçons (quais deles?), o poder, na sua essência, é ético. O poder é ético por sujeito a regras intemporais e universais muito anteriores à própria estrutura humana de vida. Um poder que se exime a toda a contestação profana, temporal. A outorga desse poder espiritual e ético seria feita somente após uma iniciação que conduzisse os candidatos ao poder a uma interiorização espiritual e a uma vivência profunda. 
Em termos esotéricos, seria um poder que dimanasse de uma prévia experiência de morte e de renascimento; uma purificação vivida pelo homem comum. Só por esses meios o candidato a um poder ascenderia aos mistérios sagrados do universo. E este seria o poder do Ser, oposto ao poder do Ter. O Ser poder como qualidade espiritualmente oposta ao mero Ter poder.
Ao poder deveria corresponder uma proporção de responsabilidade. Deveria. Mas a quantos actos arbitrários, incompetentes ou disparatados de um poder, mesmo pequeno, corresponde alguma consequência castigatória?
Quer dizer que o poder, mesmo o do chefe de secção de uma chafarica (é desses que preferencialmente falo), configura alguma sacralização, algum do tal direito divino, sou chefe porque sim, sou chefe porque sou eu, e enganar-se qualquer um se engana, e errar é humano, desde que seja eu a errar, sou chefe, sou inamovível, sei coisas a respeito dos que me nomearam chefe que me permitem ser chefe impunemente por muito e muito tempo, e mesmo porque aqueles que me conferiram este poder não são melhores do que eu e nem serão muito capazes de reconhecer os meus erros e as minhas insuficiências, e nem eles têm moral para me tirar o poder que me deram a não ser para me alcandorarem a outro poder maior, posto que eu sei de sobra as razões por que eles chegaram ao poder que têm…
E nestes considerandos subjectivos estará também alguma da razão do atraso da democracia portuguesa.
Claro que conforme o escalão do poder a responsabilidade vai apertando. Formalmente, digamos. Porque também a impunidade é mais presente. E no topo, está a dita responsabilidade política, e sobre essa, estamos conversados…

Nos escalões baixos e intermédios do poder é onde talvez se pratiquem mais os abusos, e até porque esses poderzinhos são cobertos por outros poderzinhos ligeiramente maiores que se solidarizam com os pequenos poderzinhos num esquema magistral e diabolicamente montado de encobrimentos, de abusos, culpas e responsabilidades – e impunidades.
Divertimento sem consequências para quem comete os abusos do pequeno poder, mas coisas por vezes humilhantes para quem sofre e atura as consequências desse pequeno poder devastador e impune.
Do que eu gostei mesmo, por exemplo, no 25 de Abril, foi que de um dia para o outro, literalmente de um dia para o outro, deixou de haver chefes. E ainda mais, deixou de haver chefes tirânicos, prepotentes. De um dia para o outro todos os nossos chefes de serviços e de secção se reclamaram de democratas, de muito humanos e nos recordaram aquela vez no passado, em que estivemos doentes, em que chegámos sistematicamente atrasados ao serviço e as boas maneiras (mentira) com que sempre nos trataram.
Ninguém pode obrigar um pobre chefe de repartição a ter uma coluna vertebral saudável.
E quando começaram a ser saneados, foi o bom e o bonito. Eram todos comunistas. Todos amigos do povo. Todos – mesmo os que pacoviamente haviam antes usado brasão - tinham ascendência operária.
Mas é claro, tudo isso tinha que acabar. E acabou. Nem os pequeníssimos poderes dos mais insignificantes chefes podiam cair na rua da amargura dos eternos e mentalmente destituídos subordinados.
É velha esta, mas é imbatível, e é inevitável em quaisquer variações retóricas, mesmo imperfeitas, que se ensaiem em torno do poder. Trata-se da famosa carta de Platão.
Vi que o género humano não mais será libertado do mal se não forem ligados ao poder os verdadeiros filósofos, ou se os hierarcas do Estado não forem tornados, por favor divino, verdadeiros filósofos.
Alguma vez o hipotético leitor descobriu no seu directorzeco de serviços uma vocação filosófica, um ritmo filosofal de pensamento, palavra e acção?
Haverá algum sentido mágico-teológico no poder? Ah, claro que sim. Eu acredito nisso. Por isso se diz que o poder sobe à cabeça. E sobe à cabeça como o poder mágico de uma droga, e como uma droga pode bem o poder provocar alterações de consciência.

Mas será que a própria sacralidade do lugar de poder desencadeia sintomas de terror e pânico nos que obedecem ao ponto de nem para si mesmos o questionarem?
Interroga-se Carl Gustav Jung, se uma aspiração à autoridade – ou ao poder, acrescentaria eu – é algo de não específico em colisão com o reverso da alma, um sintoma de regressão; ou se a mesma aspiração à autoridade é de carácter secundário. O poder do Eu. A aspiração à autoridade, diz Jung, é um demónio tão grande como Eros, e é tão velha e tão original como esse mesmo Eros.


Evidente, senhores. O poder é uma erótica. Claro que é. Olhemos bem para o nosso chefe ou director, distingamos-lhe no suor frio os traços da sensualidade irreprimível quando nos dá pressa  a  um determinado serviço.
Amor e perfeição de comportamento: meios excelentes para alcançar uma autoridade, para se ascender a um poder. E a vontade? A vontade, ainda segundo Jung, é a alavanca que força o reconhecimento dos outros.
É bem inquietante o que diz Jung sobre a autoridade – eu chamar-lhe-ia poder, se quisesse manter a tensão dicotómica entre uma coisa e outra, autoridade versus poder. E note-se a autoridade, ou o poder, exercido pela criança sobre os pais…
O poder da criança sobre os pais leva-nos ao comportamento daquele nosso colega de escritório engraxador e manteigueiro dos chefes por tão ambicioso em lhes ocupar o lugar. Eis a criança: atenciosa e obediente para os pais se tiver na ideia uma benesse que deles dependa. E essa é uma sofisticadíssima forma de poder.
A criança pode manobrar os poderes de pai e de mãe e usá-los em seu benefício, pondo-os um contra o outro nesta ou naquela coisa que deseja para si. A manifestação do amor pode ser a maneira óptima de atingir uma posição. E fica sempre bem. E é interpretada em geral como positiva quando afinal foi um acto inflexível de poder.
Aliás, deixemo-nos de coisas, o amor contém em si mesmo finalidades. Finalidades que uma vez obtidas fazem decrescer a quantidade e a qualidade de amor, ou a exuberância da manifestação desse amor. Talvez aí um dos sentidos do actual desgaste do casamento e da célula familiar, observadas as coisas de certa e ímpia maneira. O amor e as suas mais evidentes demonstrações podem não ser a música celestial que lhes costumamos associar. O amor pode ser – acho que geralmente é – uma categoria, ou uma das manifestações do poder humano.
Mas o poder é uma neurose.
No diagnóstico de Jung, não há melhor numa casa de família – eu diria mesmo num local de trabalho – do que uma neurose manifesta para a obtenção de acréscimos de poder sobre os outros. E os neuróticos sabem-no bem. Tenho conhecido alguns neuróticos que à pala das crises neuróticas e de temperamento com que flagelam os superiores acabam por conseguir o que querem mesmo que a isso tenham menos direito do que os outros, os menos neuróticos.
A neurose é também um belo meio de tiranizar uma casa de família, um atelier, uma oficina, um escritório ou um grupo profissional. A neurose, através das suas crises visíveis, reais ou simuladas, gera a compaixão, compaixão que pode ser usada também como alavanca de poder. Uma crise neurótica bem administrada no tempo, no modo e no espaço convenientes, confere ao neurótico um poder tirânico sobre os que lhe estão próximos.
Apanhados numa posição moralmente cimeira de autoridade no seio da família ou no local de trabalho, um neurótico não tem contemplações e exerce um verdadeiro poder, e mais nefasto por não ser um poder de direito, operacional, oficial, por ser apenas um poder psicológico, moral, que desencadeia obrigações e sujeições por parte dos outros.
Emmanuel Mounier entendia que o poder de um tirano engendrava uma ordem que era falsa.
De um autoritarismo nasce uma falsa ordem de vida e de funções.
Um individualismo exacerbado no exercício de um poder tende para a criação de uma anarquia.
     Há séculos que o poder deixou de ser concentrado, monolítico, monocéfalo – como diria Foucault. Cada vez mais o poder é parcelar. Difuso. Exacto: é nessa balbúrdia que jogam os nossos chefinhos para se aguentarem no balanço.
Os poderes são erigidos sobre continuidades e descontinuidades de consenso. E certos centros de poder conjunturalmente se agigantam por sobre o consentimento ou a debilidade de outros poderes.
Até há pouco tempo era impensável conceber sequer que um chefe de qualquer sector ou instituição pudesse ser um idiota. Mas ainda um destes dias, olhando para a montra de uma livraria, surpreendi um título. Não me lembro já bem, mas era mais ou menos “como lidar com um idiota”. Um livro que era um daqueles manuais à americana, rápidos, para ensinar a fazer qualquer coisa de prático. E logo na capa se colocava a eventualidade de o nosso chefe – ou patrão - poder ser um idiota e nós termos toda a vantagem de aprender a lidar com ele.
Em certa época de vida tive um chefe que não era exactamente um idiota – não era nem deixava de ser, porque era um tipo importante. E se eu lhe apresentava, por hipótese, um texto destinado a ser cortado e eu me inclinava para uma dada passagem que poderia ser suprimida, ele discordava automaticamente – ele era o chefe. Quando, pelo contrário, eu entendia que certo parágrafo era essencial, pois logo ele repontava que não, que se havia alguma coisa a cortar deveria ser aquele parágrafo que eu achava indispensável. É que não se tratava de saber se era eu ou ele quem tinha razão. Tratava-se de marcar que ali o chefe era ele. Nada havia então a fazer para além de albardar o burro à vontade do dono. Até ao momento em que, a contra-gosto, comecei a entrar-lhe no jogo idiota e a dizer desnecessárias algumas passagens que considerava importantes. Só para ele discordar e as manter. E ele discordava e mantinha-as.
Este é um episódio clássico do tipo mais comezinho do chefe inseguro de si e dos seus poderes, sobretudo os intelectuais.
Pois. Diz-se com toda a facilidade mal do chefe ou do director, ou de seja quem for que tenha uma migalhinha de poder descricionário, mas ninguém fala do calvário das invejas que esse pobre desgraçado do chefe que não foi contemplado com o carisma, com o talento, com a iniciática, ou com o favor dos deuses, terá de aguentar ao longo da sua vida profissional da parte daqueles que afinal apenas o invejam, que afinal o que querem é o lugar que ele ocupa. Mas também, cuidado com a inveja de um chefe por um subordinado. Amigos, é fogo!
Porém… no fundo das nossas justificadíssimas razões de queixa do nosso chefezinho de serviço, lá mesmo bem no fundo, não poderemos negar uma fugaz e vesga sombra de inveja pelo lugar que ele ocupa. E não é só por causa do vencimento melhorado. É por coisas mais profundas. Ou mais incompreensíveis.
Se eu mandasse fazia, se eu mandasse acontecia, eu é que havia de mandar naquilo… então é que tu ias ver como era…
Cada um de nós, no âmago da nossa falsa modéstia, oculta no seio a vibração de um tirano, não tenhamos ilusões. Cada um de nós abriga no seu gesto o fulgor de um regenerador, muitas vezes de um salvador. Porque é que os chefes não vêem as coisas com a clarividência com que nós as vimos, e quando a nossa visão é a melhor, é a única possível?
Livremo-nos, torno a dizer, de, pelos nossos talentos naturais, despertarmos a inveja de um chefe…
Falas de uma peça de Sartre, As Moscas. Júpiter fala com Egisto e diz-lhe: Odeias-me, mas somos aparentados; foi à minha imagem que te criei: um rei é um deus sobre a terra, nobre e sinistro como um deus. Ambos fazemos reinar a ordem. Tu em Argos e eu no mundo: o mesmo segredo nos pesa no coração, o doloroso segredo dos deuses e dos reis: os homens são livres, Egisto, tu sabe-lo. Eles, homens, é que não sabem.


E Egisto replica: é verdade; há 15 anos que represento esta comédia para esconder dos homens o seu próprio poder.
    E na mesma peça de Sartre, Júpiter, o deus dos deuses, sintetizando o princípio do poder, dirá que há 100 mil anos que dança diante dos homens. É preciso que os homens me olhem. Enquanto tiverem os olhos pregados em mim esquecem-se de olhar para si próprios.
Não olhemos demasiado para o nosso chefe. Não nos esqueçamos de nós mesmos.
A menos que aspiremos um dia a ser chefes, evitemos copiar o padrão de gravatas e o estilo dos fatos do nosso chefe. 
O chefe, mesmo que seja só de escritório, também existe para isso, para ser olhado, e acha a sua lógica de ser no mísero facto de os seus pobres subordinados o procurarem imitar.