domingo, 28 de junho de 2020


           PEQUENO ENSAIO SOBRE OS TRAPOS

 

        Não é mau começar por uma citação. Esta. Malraux: aquilo que pesa sobre mim é a minha condição de homem, o facto de envelhecer, de ter uma coisa atroz que é o tempo e que se desenvolve em mim como um cancro, irrevogavelmente.

       E já agora, porque não…T.S.Eliot:

       Para mim tudo era igual e desejável.

       A ambição chega ao findar das forças juvenis.

       Quando sabemos não mais tudo possível.



       Lembro-me muito dos meus avós. Figuras. Personagens inquestionáveis da minha vida de criança e de adolescente. Velhos. E agora posso procurar cá dentro algum vestígio do que pensava quando os via. Nada. Velhos, claro – ou talvez não tão velhos, mas julgados tal pelos meus limitados critérios infanto-juvenis. Figuras que se engastavam nos meus cenários de vida. Velhos porque sim: era o papel deles na minha vida, serem velhos e pedagógicos, com o destino velho deles para cumprir; como eu tinha o meu destino infanto-juvenil, esperançoso; velhos como se sempre o tivessem sido, inexoravelmente, como se tivessem nascido assim naquele cenário caseiro de quatro paredes; ou contratados para desempenhar o único papel que lhes fora distribuído por algum obscuro realizador das vidas, e sem imaginar eu como poderiam eles ter sido, e parecido, em novos. Porque para mim eles nunca tinham sido novos; porque as fotografias que havia lá por casa os apresentavam já envelhecidos, posto que sorridentes, à vista desarmada contentes com a própria condição.

       E sinto-o como um estranho fenómeno, esse, chegar à velhice num implacável assalto ao passado, experiências, afectos, desafectos, tantas dessas banalidades que nos assolam e revivem em nós, e o nosso presente envelhecido vai pouco a pouco deixando de ser concreto e objectivo, porque a todo o momento persiste em instalar-se nos quadros do passado. Um passado que se recobre de presente.



       A residência no passado? Será melhor, na velhice, pretender continuar na vida em memória do que permanecer em realidade? É capaz.

       E os pobres dos criativos? Deve ser desolador quando alguém, que em tempos foi bafejado com certos pendores criativos, se vê, no tempo crepuscular, privado deles, por mais que teime em forçar o desgastado cérebro. Ou talvez não seja exactamente ausência de criatividade; talvez seja preguiça, lentidão de reflexos; talvez seja falta de paciência; ou falta daquela paciência inevitavelmente necessária para convocar esses dons, essas criatividades de outrora – esse fulgor cerebral. Ou ainda, talvez, visto de outra maneira: a falta de disponibilidade interior, ora bolas, a quem é que aos 70 anos pode interessar a minha criatividade? Falta de disponibilidade (paciência) para pensar, sim, e porque na convicção íntima de que passadas as idades todo o pensamento é inútil. Oh, o divino aborrecimento das coisas!

       E assim podem ir envelhecendo mal os que não têm suficiente imaginação para envelhecer bem – envelhecer bem, como é isso, o que é isso?



       E agora lembrei-me dos donjuans das idades mais propícias, os galãs enfatuados do antigo tempo em que os homens gostavam mais de mulheres do que de muitas outras coisas. Para muitos dos que foram donjuans aos 20 ou 30 anos não deve ter havido maturidade. Da juventude à velhice deve ter sido um pulo vertiginoso. O donjuanismo, por outro lado, pode ter-lhes prolongado a juventude, leia-se a imaturidade, até a um estado vizinho do gágá. E por aí tais donjuans recusar-se-iam admitir qualquer estatuto intermédio, qualquer linha de demarcação; ou sim, qualquer limite.

       Um pensamento também para os que juram apés juntos que a velhice tem os seus prazeres. Bem entendido, nada a ver com os prazeres da juventude, ou até mesmo com os da idade madura. Quais prazeres, então? Não sei.

       Vazio, vazio, vazio…



       E se se estipula que o Homem (género humano, já se percebe) vive num estado de escravo das paixões, nada de melhor do que ver-se, naturalmente, livre dessa submissão passional. Nada de melhor? Não sei. Se calhar, o contrário, nada de pior. Pode muito bem ser que o pior da velhice, feitas bem as contas, seja mesmo essa dorida nostalgia de uma servidão passional, da disposição ansiosa para as paixões da vida, excitar-se, embebedar-se, jogar, correr, competir, seduzir. E sendo também preciso ver que se a vida jovem e activa de uma pessoa foi vivida em condições de narcisismo intenso, de ignorância, de idiotia e futilidade, ah, essa pessoa vai ter uma velhice nesses mesmos preparos, abrilhantados, de quando em vez, por uns toques de ridículo social.

       Alguém, não me lembro agora quem, um francês, parece-me, escreveu que quem em certa idade não tenha o espírito da idade que tem viverá todas as infelicidades inerentes a essa mesma idade que tem.



       Lembro-me outra vez do drama dos donjuans. E o drama é que um velho dom juan nunca, ou raramente, se apaixona de caixão à cova por uma velha da idade dele. Não, não. Apaixona-se (e em geral assim mesmo: de caixão à cova) por uma mulher 30 ou 40 anos mais nova. E assim abre as vias que o podem levar aos cumes da infelicidade. E com consequências tantas vezes trágicas – lembro-me de Lolita. Esse velho dom juan não percebeu nada do processo. Ou não quis. Ou se recusou terminantemente a perceber. Viveu estúpido, e envelheceu não menos estúpido.

       Para a mulher (inteligente, de preferência) os destinos podem ser mais generosos. Disse-o Simone de Beauvoir: detesto a ideia de mulheres velhas, com corpos envelhecidos, a agarrarem-se ao amor.

       Se o que é preciso é envelhecer bem, pode ser que envelhecer bem seja mesmo isso de regressar docemente à infância – à memória dela, claro está.

       Lembro-me de um emérito e cultíssimo frequentador das longas e ociosas tardes da Brasileira dos meus vinte e tal anos, a dizer aos companheiros de mesa na casa dos 50 “eu estou melhor de vida do que vocês, vocês estão a envelhecer e eu não, eu já sou velho”.

       Envelhecer é (também é, ou essencialmente é) uma perda de confiança no nosso corpo. E a perda de confiança no corpo começa pela dor, significa dor – a tal idade do condor.



       Fujo horripilado dos velhos demasiado gentis que se pelam por engraxar os jovens. Os que dizem que o corpo já lhes vai com 70 anos mas que na cabeça (o famoso espirito) ainda conservam o ímpeto dos 18. Vejo por mim: aos 70, para conservar a minha cabeça com os 18 destes tempos teria que me entusiasmar com umas poucas de coisas que detesto, a obsessão do telemóvel, a música da pesada, o humor televisivo a que poucas vezes consigo achar piada, o torrencial cortejo da parolice e do analfabetismo nacional que são os big brother, ou o quem quer namorar com o agricultor; a dependência das novas tecnologias; o andar de carapuço na cabeça; deixar-me agarrar pelo “cavalo”; frequentar o facebook, o twiter, o instagram; combinar encontros com outros às tantas da madrugada para andarmos à porrada. E mais sei lá o quê. Não poderia ter na minha cabeça ímpetos de 18 anos e conformar-me a estar em casa confinado, de pantufas, a ver a vida dos outros e a sair de casa para as consultas, radiografias, análises...

       E dou comigo a pensar que a real indignidade da velhice jovem de espírito pode residir nessa atitude de gostar de fazer dos outros parvos e cegos, o velho que se pretende manter tão jovem (de espirito) como os mais jovens.

Montaigne: por mais decrépito que um homem seja ainda acredita estar a viver uns outros vinte anos. Que Deus me guarde de tal crença.

A missão existencial de um velho: fazer passar as horas; em vez de as reter.

Era Goethe quem achava justo sobreviver à morte só para poder realizar por completo todas as facetas de si que não tivera tempo de desenvolver em vida. Outro relapso e irritante narcísico. 

O velho Somerset Maugham, por seu turno, garante que um amigo próximo de T. E. Lawrence, o celebérrimo Lawrence da Arábia, lhe contou que Lawrence tinha o hábito de guiar a sua moto em excesso de velocidade. Procurava um acidente. Porquê procurar um acidente? É bom não esquecer que o destino lhe fez a vontade e que Lawrence teve o seu acidente e morreu dele com menos de 40 anos. Um estúpido acidente de moto depois de tantos perigos e provações passadas no deserto com os exércitos árabes do príncipe Faisal. E era exactamente o que ele queria, um acidente, e porque só um acidente lhe poderia tirar a vida quando ainda fosse senhor de todas as faculdades físicas e mentais, poupando-o ao que ele próprio chamava da dita indignidade da velhice.



Diz-se que quem nos impõe a chamada indignidade da velhice é a nossa crise da meia-idade. Só mais tarde reparamos (alguns reparam) que essa crise tem que ser interpretada como uma espécie de realinhamento de valores e sensações. A espécie de realinhamento que faria a ponte para uma nova opinião pessoal a respeito da morte – opinião que em boa parte concorre para a dita crise.

E quando é que teremos a mais aperfeiçoada noção do nosso próprio fim, a melhor opinião sobre a nossa morte? Há quem diga que é na adolescência. Uns zunzuns vagos. Noção a confirmar na meia-idade. Na crise, ora aí está. Causa ou efeito da crise já não sei dizer. As duas coisas. Porque a juventude como quem não quer a coisa se foi e levou com ela a desaustinada noção primeira, a da nossa imortalidade - inviolável.

Há quem porfie em resistir às indignidades físicas, pelo ioga, pelo ginásio, pelos anti-inflamatórios, pelos anti-histamínicos, pelos antibióticos, pela psicanálise, pelos antidepressivos, pela cosmética. Desafiar ousadamente as inevitabilidades e dessas inevitabilidades a do fim último e supremo.

Não seria desengraçado reflectir na duração das idades. Juventude: pode durar 15 anos, talvez dos 20 aos 35. Idade madura: uns 15 anos, dos 35 aos 50, vamos lá. E segue-se a mais longa, a mais penosa das idades, a velhice. Com os avanços da ciência pode chegar a durar 50 anos; ou 40, vá lá 30. Porém vivida com intensidades negativas, cinzentíssimas, dramáticas. Porque nos vai aproximando da sombra final.



Sacha Guitry costumava dizer umas coisas reinadias. As parecenças. Eu, aos sessenta, não me pareço comigo aos trinta. Como um fato, o meu físico não me fica muito bem.

O sentimento de fatalidade, de redução de destino, pode ser um estado muito doloroso aí por volta já dos sessentas. Ouve-se a voz espectral, tão impreterível, tão burocrática, a falar-nos sem contemplações ou compaixão: agora, meu menino, vais ser isto e não aquilo que pensavas ainda poder ser; tudo o que não conseguiste até à data não julgues que o vais conseguir a partir de agora; as esperanças que acalentaste… ai, filho, essas já há muito te ficaram para trás.     

quinta-feira, 4 de junho de 2020


      
        O GRANDE ARTISTA QUE VIOLAVA RAPARIGAS

 



Note-se que eu digo o grande artista; não digo o grande homem, a grande pessoa, o cidadão exemplar. Por esse não ponho as mãos no fogo. Livra!



Mas é uma chatice. Uma chatice que o violador também seja um grande artista. Um grande artista que, como outros (oh, muitos) não ficarão, para aquilo que à História da Cultura e à memória do mundo mais importa, na qualidade de  violadores, abusadores, bêbedos, católicos praticantes, ortodoxos, tarados, homossexuais, maníaco-depressivos, cocainómanos, hipocondríacos, esquizofrénicos, diabéticos, vigaristas, racistas, fascistas, comunistas, hemofílicos, democratas, aldrabões, benfeitores da sociedade, esmoleres, narco-traficantes, bons pais, bons maridos e filhos extremosos… uf!, mas ficarão, isso sim, como grandes artistas. Isso mesmo. Grandes artistas criadores.

E era bom que me perdoassem o défice de puritanismo e de correccção político-social a la page com os tempos, mas é isso mesmo, grandes artistas criadores que admiro e de quem me irei lembrar com gosto até ao fim da minha vida.



Por Favor Não Me Morda o Pescoço. Recomendações (algumas, entre muitas) da Metro Goldwyn Mayer ao realizador, ao pequeno polaco extremamente criativo chamado Roman Polanski: evitar realçar o rego dos seios da rapariga; evitar demasiada nudez da rapariga no banho; as carícias íntimas à rapariga são inaceitáveis tal como descritas na Cena 101; elminar as expressões boca suja de sangue  e  queres uma rapidinha?; mordidelas e chupões não poderão ser aprovados; não podemos aprovar a expressão Jesus!, em tom imprecatório; Herbert terá de ser caracterizado como um homossexual, não pomos objecções, mas pedimos evite qualquer avanço sobre Alfred que não seja na qualidade de vampiro.

(Ah que engraçado. A qualidade de. A qualidade de vampiro, de político, de violador... e de grande artista. É sempre preciso estar atento à qualidade de que falamos quando falamos de um homem.)

Um pequeno polaco dotado de génio criador que ainda hoje, aos mais de 80 anos e com tantos anos de carreira cumpridos, se vê perseguido implacavelmente não como grande artista mas como homem. Como delinquente. E por alegadas malfeitorias sexuais praticadas há um ror de tempo. E quando os media (e as redes sociais), por ocasião de qualquer entrega de prémios ou festival de cinema, tratam de o julgar como homem, quando é o artista que se apresenta a julgamento e não o homem – desse tratarão os tribunais, obviamente.



A fama violadora (e o proveito, digamos) das malfeitorias do pequeno polaco genial começa em Hollywood, anos 60/70. E vamos lá dar uma saltada.

O pequeno polaco extremamente criativo (violador; eventualmente tarado sexual) Roman Polanski, tratado então, e com justiça, pelo mundo do cinema como un enfant prodige, realiza o filme Por Favor Não Me Morda o Pescoço com a jovem actriz que viria a ser sua mulher, Sharon Tate, e que pouco depois viria a ser assassinada em Beverly Hills pela seita de Charles Manson.

A seguir ao êxito estrondoso de Por Favor Não Me Morda o Pescoço (ou A Dança dos Vampiros), Hollywood propõe-lhe imediatamente a adaptação ao cinema de um best seller, A Semente do Diabo, ou, originalmente, Rosemary’s Baby.



O plot d’A Semente do Diabo, em duas palavras, conta que a jovem novayorkina Rosemary, influenciada e manobrada por um casal de velhotes seus simpáticos e sinistros vizinhos, dá à luz um filho do próprio diabo. Há um sabatth, há uma possessão diabólica, há médicos inquietantes, tudo dentro de um ambiente banal, burguês e contado naturalisticamente.



E se falo nisto é para evidenciar o especial talento do execrável homem Polanski para tratar argumentos um tanto isso mesmo, execráveis, ou marginais, neste caso ocultistas e satânicos, facto que se virá a reflectir um pouco mais tarde na sua vida pessoal e familiar.

Polanski também estava à vontade (oh, se estava) em assuntos de sexo, de liberdade cívica e sexual, bem ao compasso da época, finais dos anos 60, os hippies. O que também terá consequências na sua vida privada.

Um dia, os pais polacos (ou melhor: o pai e a madrasta) de Polanski vêm da Polónia comunista visitar o flho a Beverly Hills. E vão-se embora desconsolados. Acham que Roman está a levar uma vida por demais extravagante (adjectivo ainda assim piedoso para a devassidão que ia por lá em alcool, drogas e sexo), e avisam-no, meu filho, estás a viver dentro de uma bola de sabão e a bola de sabão pode rebentar-te na cara de um momento para o outro. 



Roman, a viver à grande na capital mundial do cinema, cheio de sucesso, estava nas suas sete quintas. E no entanto, queixava-se. Queixava-se de uma praga que parece atacar de novo (ou talvez tenha atacado sempre) o lado mercantil da criação artística. Diz ele assim: os executivos dos estúdios não passavam de advogados e agentes com pouca imaginação artística. A sua crença era de que quando uma ideia funcionava podia ser utilizada uma e outra vez – e mais outra ainda. Da mesma forma que quando um realizador obtinha êxito num certo género era tão prisioneiro da sua imagem como um actor-tipo.

A imagem, sim. A imagem que desde esses primeiros tenpos hollywoodescos se lhe agarrou à pele para sempre - e que, diga-se de passagem, ele não se esqueceu de cultivar na vida privada.
 


Polanski queria uma carreira fulgurante em Hollywood para ficar rico. Mas também não queria realizar um filme que não tivesse sido escrito por ele. Queria singrar à minha maneira. Não me enquadrava no padrão convencional de Hollywood.

Começa a tornar-se amigo íntimo de várias personalidades do ramo, Peter Sellers, Warren Beaty, Peter Lawford, o cabeleireiro das estrelas Jay Sebring, Jack Nicholson e Angelica Huston, além de outros menos notórios. Consumiam o folclore da época, astrologia, misticismo, percepções extra-sensoriais, marijuana, LSD, coca, alcool, pulseiras, colares, aneis, caftãs, extravagâncias comportamentais, sexo em grupo. E Polanski começa a viajar muito entre Hollywood e Londres – Londres, uma das capitais, por assim dizer, da civilização dos Sixties.



Sharon Tate era uma estrela em ascensão. Era uma beleza de entontecer, realçada pela maneira de vestir, as mini-mini-saias eróticas, inocentes, românticas e vulneráveis (segundo Polanski), que fariam dela uma das primeiras mulheres a exibir símbolos de emancipação feminina e liberdade sexual. Os homens admiravam-na. As mulheres invejavam-na.

Certo dia, Sharon pediu-me que definisse a mulher ideal. Tu. Ela riu. A sério. O que gostarias tu que eu fosse e não sou. Não queria que fosses diferente do que és. Bruce Lee, outra futura e fagueira estrela de Hollywood em ascensão, disse a Polanski: tu e Sharon entender-se-ão tão bem como uma casa envolta em chamas.  

E Roman Polanski e Sharon Tate casaram-se. Em King’s Road, Chelsea, Londres. Sharon com um mini-vestido de tafetá creme, Polanski de casaco eduardiano de veludo verde-azeitona. Eram um par da moda. Os fotógrafos da imprensa mundial cairam sobre eles como aves de rapina – aliás, os papparazzi  viriam a ser uma praga na vida de Polanski.

E vou ter que saltar sobre uma quantidade de factos interessantes e ir direito ao meu ponto capital na vida do pequeno polaco genial e violador, na vida real e pessoal, quero eu dizer, na vida extra-cinema. E não posso deixar de dizer que Polanski vivia apaixonadíssimo pela mulher e que faziam amor todas as noites, e, fazendo amor todas as noites, no entendimento de Sharon Tate, nada lhes poderia afectar seriamente a relação.



E Sharon engravidou. E foi de Londres para a Califórnia, enquanto Roman ficava, por razões profissionais.

Ela abraçou-me com muita força, apertando a barriga contra o meu corpo, a recordar-me o bébé. No momento em que a abraçava e beijava, assaltou-me um pensamento fugidio e estranho... não voltarás a vê-la.  Se nada tivesse acontecido, era possível que eu não me tivesse lembrado deste pressentimento.



Califórnia assolada por uma vaga de calor. Sharon, grávida, em Beverly Hills, a sentir-se mal disposta. O bébé para nascer daí a duas ou três semanas. Eram sete da tarde em Londres quando alguém recebe um telefonema de Los Angeles. 9 de Agosto de 1969. Um sábado. É um amigo de Roman quem atende o telefonema. Houve um desastre na casa. Qual casa? Na tua. Morreram todos.  



E este todos eram Sharon e uns quantos amigos que lá estariam de visita – mais tarde vem a saber-se que o escritor Jerzy Kosinski escapou porque as malas dele se tinham perdido no aeroporto de Los Angeles e ele não tinha podido chegar a tempo à casa dos Polanski em Beverly Hills.

Quando ouviu dizer que tinham morrido todos, Polanski, em Londres, clamou em voz alta não, não, não... pensando nalgum desastre natural, um desabamento de terras… e se alguns tivessem ficado soterrados ainda poderiam ser salvos… que Sharon ainda esteja viva, por  favor, pensei… Roman, eles foram assassinados. Polanski, em estado de choque, começa a bater violentamente com a cabeça nas paredes. 

Ainda em estado de choque, parte para Los Angeles sob o efeito de tranquilizantes. Tinha a sensação de que Sharon não estava morta e poderia aparecer de um momento para o outro.



Como muitos (os ginjas de hoje e os jovens dessa época, como eu, que se interessavam por cinema) devem estar lembrados, Sharon Tate e o grupo de amigos que estavam a passar o serão lá em casa foram assassinados e mutilados com requintes de barbarismo pela seita de Charles Manson. Porquê? Talvez por engano.

O caso espalhou o terror pela comunidade de Hollywood. O funeral das vítimas, diz Polanski, foi semelhante à estreia de um filme de terror.



Os media começam a actuar e aludem à vida em casa dos Polanski: bacanais constantes, consumo desmedido de todo o tipo de drogas, magia negra, satanismo. Hollywood, diz Polanski, esforçava-se por encontrar uma explicação que descarregasse as culpas sobre as próprias vítimas e assim reduzisse a ameaça que pairava sobre a própria Hollywood como um todo. Sharon e os que tinham morrido eram responsáveis pelas próprias mortes, porque tinham alinhado em práticas sinistras e convivido com as pessoas erradas. Nada do género poderia alguma vez suceder às pessoas vulgares, decentes e tementes a Deus.

Títulos da imprensa da época: SHARON TINHA QUE MORRER. Os Polanski, em suma, segundo a moral dos media americanos, tinham-se habilitado, haviam atraído sobre eles a desgraça. Você fez aqueles filmes? Levou aquela vida? Logo, morre assim.



A Newsweek  titula: UM POLICIAL FASCINANTE. E escreve: fascinante como o mistério foi a visão que os assassinos proporcionaram da surpreendente sub-cultura de Hollywood em que se movia o elenco das personagens. Todas as conversas dos habitantes da região não saem dos temas da droga, do misticismo e do sexo em grupo.



O grupo. O grupo estaria a divertir-se nessa noite com um certo tipo de magia e de drogas, e com a presença de um conhecido hippy jamaicano, dealer e adepto do voodoo. Os amigos especulavam que os crimes eram consequência natural de um ritual satânico de execução simulada, acabando em tragédia por via do efeito dos alucinogéneos. A  TIME  escreve: foi uma cena tão macabra como as explorações dos filmes de Polanski sobre as facetas recônditas e sombrias da personalidade humana. Jay Sebring (o cabeleireiro), mutilado e marcado estava apenas vestido com uns calções de pugilista. Um dos seios de Miss Tate foi cortado e havia um X traçado no seu estômago. É difícil saber o papel que a droga desempenha no mundo de Polanski, que é famoso pelos seus filmes macabros. Etc.

Lá está: é o estranho – mas talvez natural - problema da confusão que se faz entre a vida pessoal do artista criador e o seu trabalho. E quando, muitas das vezes, as opiniões e os actos das personagens são tomados à letra e como sendo as opiniões e os actos daquele que as criou. Porque há também bastas questões de moral envolvidas no simples consumo de cultura ou na simples fruição de actos de cultura. E pronto. O artista criador sabe que é assim e não se pode queixar. Ninguém o mandou meter-se naquelas vidas. Ninguém o mandou comportar-se e opinar para lá do puritanismo, da hipocrisia e da correcção burguesa convencional que conforma os mundos.



O próprio Polanski é interrrogado como suspeito. John Phillips, do grupo The Mammas and the Papas, também é ouvido como suspeito. Todos os amigos da comunidade de Hollywood o são até que se descubram os verdadeiros assassinos. Aliás, Charles Manson, segundo Polanski, era um autor frustrado de canções. Fala Polanski em directo: a raiva de Manson assemelhava-se à do actor desprezado, o tipo que procura vingar-se nos outros pela sua falta de talento e sucesso. A amargura e a frustração foram os prováveis motivos que o levaram a atacar a casa que julgava pertencer a Terry Melcher e a vingar-se de alguém que tinha recusado gravar um disco das suas composições medíocres .

A morte de Sharon é o único marco da minha vida que interessa. Antes da sua morte eu navegava num mar calmo de esperança e de optimismo. Um psiquiatra que consultei avisou-me de que eu levaria quatro anos de luto até superar esta sensação. Levou-me muito mais do que isso.



A seguir, para não desmerecer da sua reputação de autor de temas ocultos, violentos, macabros e sangrentos, Polanski filma Macbeth.

E é contratado pela Vogue para se responsabilizar estética, artística e literariamente por um número especial. Escolhe colaboradores literários. Ele próprio vai a locais exóticos fotografar modelos. Ás Seychelles, por exemplo. E sempre acompanhado de garotas estonteantes. Uma delas é Nastassia Kinski, 15 anos, com quem mantém uma relação.



Esse número especial é feito e mais tarde a Vogue  propõe-lhe novos projectos, sempre envolvendo fotografias artísticas de jovens modelos. O pequeno polaco está a ser empurrado pelo destino para a sua futura reputação. 

E nos arrabaldes de Beverly Hills Polanski conhece Sandra, típica adolescente californiana que namora com um cinturão negro de karaté, filha de Jane, uma actriz sem trabalho que vive com um tipo que é editor de uma revista chamada Marijuana Monthly, que fornece noticiários da marijuana, faz propaganda da marijuana, obviamente, e da despenalização das drogas leves.

Polanski e Sandra vão fazer uma sessão de fotografia para o campo. Tirar blusas, vestir blusas… pôr soutiens, tirar soutiens, poses provocatórias, olhares fixos de desejo simulado para aumentar o sex-appeal, indiferenças estudadas, a adolescente que se quer mostrar cool. Perguntei-lhe quando tinha feito amor pela primeira vez. Aos 8 anos. Com quem? Um miúdo lá da rua. Com essa idade, percebes, Roman, a gente nem sabe que acontece…



Noutra sessão, vão dar ao luxuoso condomínio fechado que era partilhado pelo casal Jack Nicholson/Angelica Huston e por Marlon Brando. Foram para a piscina dos Nicholson. Abriram uma garrafa de champanhe. Despiram-se. Nadaram um pouco. Sandra meteu-se no jacuzzi que havia perto da piscina. Polanski continuava a fotografá-la. A certa altura a jovem diz-lhe que não se sente bem. O vapor está a fazer-lhe mal à asma. Não sabia que eras asmática. Responde-me que deixara os remédios em casa. Diz-me: acho melhor descansar, senão sou capaz de desmaiar.

Foram para um quarto do rés-de-chão da casa dos Nicholson onde Polanski dormira várias noites num tempo em que lá fora hóspede. Envolveram-se em toalhões e começaram a secar-se um ao outro. Ela disse que estava a sentir-se melhor e em seguida, e muito suavemente, comecei a beijá-la e a acariciá-la. Passado algum tempo conduzia-a até ao divã. Não havia qualquer dúvida em relação à experiência e à desinibição de Sandra.

Bem, senhoras e senhores… claro… está visto… Polanski vem a escrever no seu livro de memórias que a jovem correspondeu…

Ouviu-se o motor de um carro que subia a rampa. Era Angelica Huston que regressava.

Polanski leva a rapariga a casa. Mostra à mãe dela e ao amante os slides  tirados. Fumam um charro. Os outros não ligam meia aos slides e Polanski estranha. Nessa noite ainda se encontra com Robert de Niro que lhe dá um livro de onde quer tirar um argumento para protagonizar.

 

E passa o dia seguinte na sua suite de hotel a trabalhar noutro argumento. Um amigo oferece-lhe uns comprimidos de ácido que ele mete num frasco de medicamentos. Está combinado ir nessa noite ao cinema com amigos.

 Quando vai a sair do hotel, um homem vai ter com ele… e mostra-me um distintivo… Mister Polanski? Departamento de Polícia de Los Angeles. Posso falar consigo? Trago um mandato de captura…

Violação?, repeti, chocado e surpreendido. Posso falar com o meu advogado? Não podia. Ainda não fora detido. Vamos ao seu quarto, mr. Polanski. Também temos um mandato de busca. E dê-me o comprimido que está a tentar esconder aí na mão. E também há um mandato de busca a casa de mr. Jack Nicholson…

Em casa de Nicholson havia, evidentemente, erva. Na carteira de Angelica Hustou havia um pouco de cocaína. Tudo para a esquadra.



O pequeno polaco genial fica detido. Depois, há uma fiança, já se sabe. Sai. Mete-se no carro do advogado. Ligam o rádio. O noticiário de última hora abre com a notícia da prisão do realizador Roman Polanski por violação de menor. O hotel devia estar a rebentar de fotógrafos e jornalistas. Ao ouvir os noticiários fiquei a saber que o meu mundo caía por terra. Nada na minha vida me preparara para a ideia de que pudesse ser um criminoso. Era como saber-me vítima de uma doença fatal e prolongada para a qual não havia solução.

Seis acusações -  fornecimento de substância de controlo a uma menor; culpado de acto volptuoso e lascivo; culpado de relações sexuais condenadas por lei; perversão; sodomia; violação mediante uso de drogas.

E a perseguição pública e mediática ao grande artista criador e ao homem desprezível e violador de raparigas começa nesse dia. Até hoje.



Senti-me um pária. A agente artística de Polanski quer correr com ele, não podemos ter um violador na nossa agência. Hollywood inteira pensava o mesmo. Ninguém, ou poucos, queriam ser, ou continuar a ser, amigos de um violador.

Frequentei ainda assim restaurantes e as casas de outras pessoas, embora soubesse que na maioria dos casos fora convidado como objecto de curiosidade. Muitas pessoas se mostravam compreensivas. Estavam de facto ansiosas de se gabarem de ter conhecido o famoso violador de Hollywood. De uma noite para a outra atravessara a linha de demarcação entre as pessoas decentes e a escumalha.

A Columbia julga e sentencia o homem, e desinteressa-se bruscamente do artista e dos projectos de filme para o qual Polanski estava a escrever o guião. A companhia de seguros não quer, evidentemente, saber do artista e trata com o homem ao recusar a renovação do seguro da casa de Londres. O artista quer que a Vogue declare que ele estava a fotografar por conta da revista. Não. Lá na revista tinham sido interrogados pela Interpol e tinham declarado que nada sabiam do caso.

Eu sabia porquê. A Vogue vivia do chic, do super-rico e sofisticado jet-set. Agora que o volumoso e lustroso número VOGUE POR ROMAN POLANSKI repousava em todas as mesas de pequeno almoço da alta roda, eles desejavam esquecer que esse número existira.



Interrogatórios. Trâmites judiciais. Admitir a culpa/não admitir a culpa. Que culpa? Haver ou não haver julgamento. Jane, a mãe da rapariga é chamada ao gabinete do promotor para ser interrogada. A adolescente, Sandra, fica na sala de espera com Bob, o amante da mãe, o tal da revista de marijuana, e são vistos abraçados, enlaçados apaixonadamente. Polanski diz: não se tratava do abraço carinhoso de um homem mais velho que conforta a rapariguinha – era algo mais: a perna dela estava entre as dele. Alguém vai contar isso ao juíz. Não deve ter adiantado grande coisa ao destino de Polanski. 

Polanski especifica as diferenças da lei americana de estado para estado: na Geórgia, as relações sexuais interditas por lei  aplicavam-se a jovens até aos 12 anos. Na Califórnia, a idade do consentimento era os 18 anos. Em 1976, 25% dos que tinham sido dados como culpados deste tipo de crime no estado da Califórnia haviam sido postos em liberdade condicional e entre eles havia professores e polícias. E lá estava ele para comparecer a mais uma audiência no tribunal.

Fazia anos que Sharon Tate tinha morrido. Vai sozinho ao cemitério. Recolhe-se, ajoelha. Do meio dos arbustos sai um homem que dispara flashes. Polanski enfurece-se. Exige-lhe o filme. Arranca-lhe a máquina, tira dela o filme, deixa-a ao funcionário do cemitério. O fotógrafo não faz mais nada: vai ao gabinete do promotor de Justiça e apresenta queixa: roubo de propriedade, má conduta, assalto e fuga. Para ajudar o pai que é velho…

Vai ter que se submeter a exames psiquiátricos. Na prisão. Penitenciária de Chino, Los Angeles. Por uns 90 dias.



Estavamos no pátio. Os presos estavam sentados em bancos ou deitados na relva. Quando avancei, começaram a acenar e a gritar, eh, Polanski, como é que vai isso, Polanski? A minha chegada à penitenciária de Chino fora transmitida em directo pela TV e eles tinham assistido. A travessia do portão foi um eco da minha experiência de teatro em criança. Tal como Gagatek, o palhaço que deixou o palco para se misturar com os espectadores, eu saira de um ecran de TV e adquirira vida diante de uma audiência de presos.

Na penitenciária, Polanski não gozava dos recreios no pátio. Poderia expor-me a perigo fisico, não por causa da natureza do meu crime, mas por causa da minha celebridade. Você é um alvo natural, dizem-lhe. Este lugar é igual a todos os outros. As pessoas querem publicidade porque isso as torna conhecidas. E só para esse fim alguém pode matá-lo. Oferece-se voluntariamente para os serviços de limpeza da prisão.

Na sala de convívio da penitenciária: uma vez, após eu ter feito um comentário sarcástico sobre o chefe da polícia de Los Angeles que acabava de ser entrevistado na TV, fui abordado por um indivíduo que não conhecia, um mexicano pálido, com o cabelo negro e oleoso. Queres que dê cabo dele? Como? Vou sair em liberdade condicional para a semana… o chefe da polícia… se quiseres, acabo com a raça dele. Custa-te cinco notas.



Um dos guardas fez um relatório sobre o preso Roman Polanski – o homem. O preso Polanski adaptou-se à vida da prisão de forma eficiente. Passa o tempo na sua cela a ler ou a escrever. Sai da cela e faz exercício e vê TV ou joga xadrês. Ofereceu-se como voluntário para vigilância do dormitório durante as noites e desempenha as suas funções eficientemente. Polanski é um organizador e um líder e não se serviu da sua posição social como alavanca ou muleta, dando-se bem com o pessoal e com os outros presos.

Liberdade condicional. Ou não. O juíz hesita.

Aeroporto internacional de Los Angeles. Falta um quarto de hora para o vôo da British com destino a Londres. Polanski compra o último lugar no avião.



Em Londres, o tempo está húmido e frio. O advogado telefona de Los Angeles surpreendendo-se por sabê-lo em Londres. Deixara-o numa posição melindrosa. Não me interessava o que pudesse acontecer agora. Preferia tudo a ter de viver como naquele passado meio ano. Suportara a vergonha e o incómodo da imprensa, perdera dois trabalhos como realizador e estivera preso. Sentia uma alegria quase paranóica.

Deambula porém pelos quartos sem aquecimento e não sabe o que fazer da vida. Há algo de errado naquilo tudo. Não se sente em segurança. A depressão invadiu-me. Apanha nessa mesma noite um avião para Paris.

O edifício em frente do meu apartamento em Paris, um 3º andar perto dos Champs Elysées, estava com andaimes onde se empoleiravam como corvos fotógrafos com lentes telescópicas destinadas a apanhar cada um dos meus movimentos. Os mais persistentes montaram guarda, dia e noite, em sacos de dormir…



E quando o cão é mau todos o atiçam, lá dizia o povo antigamente, e a partir desses dias o pequeno polaco genial, inocente ou culpado (ou as duas coisas), caiu vítima da própria fama e foi um ver-se-te-avias de acusações de estupro, abuso e violação, quem sabe se por raparigas que queriam fazer carreira no cinema e não conseguiram; raparigas que foram para a cama com ele consentidamente, jubilosamente (sabe-se lá) e passados trinta anos aproveitaram a maré do me too e vieram a publico acusá-lo. E assim até hoje, quando o pequeno polaco já vai nos oitentas.

Mas tudo isto para que o hipotético leitor faça o favor de não ficar com a sensação de que Polanski não passa de ser cenas escandalosas ou vidas dissolutas.

O homem? Deus me livre, repito, de pôr as mãos no fogo por ele. Não me interessa a qualidade do homem. Do que não me poderei esquecer é de que foi ele o genial autor – para além dos filmes já citados – de Faca na Água, O Beco, Repulsa, What?, O Inquilino, Piratas, Frantic, Tess, Macbeth, O Pianista, O Escritor Fantasma e do mais recentemente afamado (e vilipendiado) J’Accuse.

Mais hoje ou mais amanhã, de uma forma ou de outra, é bem capaz de haver um preço a pagar pela sociedade, pela civilização, pelos bons costumes, pelo politicamente correcto. Pagar pelo génio criador que nos dulcifica a vida. Se é justo ou não, não sei.