Note-se que eu digo o grande artista; não
digo o grande homem, a grande pessoa, o cidadão exemplar. Por esse não ponho as
mãos no fogo. Livra!
Mas é uma chatice. Uma chatice que o violador
também seja um grande artista. Um grande artista que, como outros (oh, muitos)
não ficarão, para aquilo que à História da Cultura e à memória do mundo mais
importa, na qualidade de violadores, abusadores, bêbedos, católicos praticantes, ortodoxos, tarados,
homossexuais, maníaco-depressivos, cocainómanos, hipocondríacos,
esquizofrénicos, diabéticos, vigaristas, racistas, fascistas, comunistas,
hemofílicos, democratas, aldrabões, benfeitores da sociedade, esmoleres,
narco-traficantes, bons pais, bons maridos e filhos extremosos… uf!, mas
ficarão, isso sim, como grandes artistas. Isso mesmo. Grandes artistas
criadores.
E era bom que me perdoassem o défice de
puritanismo e de correccção político-social a
la page com os tempos, mas é isso mesmo, grandes artistas criadores que
admiro e de quem me irei lembrar com gosto até ao fim da minha vida.
Por Favor
Não Me Morda o Pescoço. Recomendações
(algumas, entre muitas) da Metro Goldwyn
Mayer ao realizador, ao pequeno polaco extremamente criativo chamado Roman
Polanski: evitar realçar o rego dos seios
da rapariga; evitar demasiada nudez da rapariga no banho; as carícias íntimas à
rapariga são inaceitáveis tal como descritas na Cena 101; elminar as expressões
boca suja de sangue e queres uma rapidinha?; mordidelas e chupões não poderão ser aprovados; não podemos aprovar a
expressão Jesus!, em tom
imprecatório; Herbert terá de ser caracterizado como um homossexual, não pomos
objecções, mas pedimos evite qualquer avanço sobre Alfred que não seja na
qualidade de vampiro.
(Ah que engraçado. A qualidade de. A
qualidade de vampiro, de político, de violador... e de grande artista. É sempre
preciso estar atento à qualidade de que falamos quando falamos de um homem.)
Um pequeno polaco dotado de génio criador que
ainda hoje, aos mais de 80 anos e com tantos anos de carreira cumpridos, se vê
perseguido implacavelmente não como grande artista mas como homem. Como
delinquente. E por alegadas malfeitorias sexuais praticadas há um ror de tempo.
E quando os media (e as redes sociais), por ocasião de qualquer entrega de
prémios ou festival de cinema, tratam de o julgar como homem, quando é o
artista que se apresenta a julgamento e não o homem – desse tratarão os
tribunais, obviamente.
A fama violadora (e o proveito, digamos) das
malfeitorias do pequeno polaco genial começa em Hollywood, anos 60/70. E vamos
lá dar uma saltada.
O pequeno polaco extremamente criativo
(violador; eventualmente tarado sexual) Roman Polanski, tratado então, e com
justiça, pelo mundo do cinema como un enfant
prodige, realiza o filme Por Favor
Não Me Morda o Pescoço com a jovem actriz que viria a ser sua mulher,
Sharon Tate, e que pouco depois viria a ser assassinada em Beverly Hills pela
seita de Charles Manson.
A seguir ao êxito estrondoso de Por Favor Não Me Morda o Pescoço (ou A Dança dos Vampiros), Hollywood
propõe-lhe imediatamente a adaptação ao cinema de um best seller, A Semente do
Diabo, ou, originalmente, Rosemary’s
Baby.
O plot
d’A Semente do Diabo, em duas
palavras, conta que a jovem novayorkina Rosemary, influenciada e manobrada por
um casal de velhotes seus simpáticos e sinistros vizinhos, dá à luz um filho do
próprio diabo. Há um sabatth, há uma
possessão diabólica, há médicos inquietantes, tudo dentro de um ambiente banal,
burguês e contado naturalisticamente.
E se falo nisto é para evidenciar o especial
talento do execrável homem Polanski para tratar argumentos um tanto isso mesmo,
execráveis, ou marginais, neste caso ocultistas e satânicos, facto que se virá
a reflectir um pouco mais tarde na sua vida pessoal e familiar.
Polanski também estava à vontade (oh, se estava)
em assuntos de sexo, de liberdade cívica e sexual, bem ao compasso da época,
finais dos anos 60, os hippies. O que
também terá consequências na sua vida privada.
Um dia, os pais polacos (ou melhor: o pai e a
madrasta) de Polanski vêm da Polónia comunista visitar o flho a Beverly Hills.
E vão-se embora desconsolados. Acham que Roman está a levar uma vida por demais
extravagante (adjectivo ainda assim piedoso para a devassidão que ia por lá em
alcool, drogas e sexo), e avisam-no, meu filho, estás a viver dentro de uma
bola de sabão e a bola de sabão pode rebentar-te na cara de um momento para o
outro.
Roman, a viver à grande na capital mundial do
cinema, cheio de sucesso, estava nas suas sete quintas. E no entanto,
queixava-se. Queixava-se de uma praga que parece atacar de novo (ou talvez
tenha atacado sempre) o lado mercantil da criação artística. Diz ele assim: os executivos dos estúdios não passavam de
advogados e agentes com pouca imaginação artística. A sua crença era de que
quando uma ideia funcionava podia ser utilizada uma e outra vez – e mais outra
ainda. Da mesma forma que quando um realizador obtinha êxito num certo género
era tão prisioneiro da sua imagem como um actor-tipo.
A imagem, sim. A imagem que desde esses
primeiros tenpos hollywoodescos se lhe agarrou à pele para sempre - e que,
diga-se de passagem, ele não se esqueceu de cultivar na vida privada.
Polanski queria uma carreira fulgurante em
Hollywood para ficar rico. Mas também não queria realizar um filme que não
tivesse sido escrito por ele. Queria
singrar à minha maneira. Não me enquadrava no padrão convencional de Hollywood.
Começa a tornar-se amigo íntimo de várias
personalidades do ramo, Peter Sellers, Warren Beaty, Peter Lawford, o
cabeleireiro das estrelas Jay Sebring, Jack Nicholson e Angelica Huston, além
de outros menos notórios. Consumiam o folclore da época, astrologia,
misticismo, percepções extra-sensoriais, marijuana, LSD, coca, alcool,
pulseiras, colares, aneis, caftãs, extravagâncias comportamentais, sexo em
grupo. E Polanski começa a viajar muito entre Hollywood e Londres – Londres,
uma das capitais, por assim dizer, da civilização dos Sixties.
Sharon Tate era uma estrela em ascensão. Era
uma beleza de entontecer, realçada pela maneira de vestir, as mini-mini-saias
eróticas, inocentes, românticas e vulneráveis (segundo Polanski), que fariam
dela uma das primeiras mulheres a exibir símbolos de emancipação feminina e
liberdade sexual. Os homens admiravam-na. As mulheres invejavam-na.
Certo
dia, Sharon pediu-me que definisse a mulher ideal. Tu. Ela riu. A sério. O que
gostarias tu que eu fosse e não sou. Não queria que fosses diferente do que és.
Bruce Lee, outra futura e
fagueira estrela de Hollywood em ascensão, disse a Polanski: tu e Sharon entender-se-ão tão bem como uma
casa envolta em chamas.
E Roman Polanski e Sharon Tate casaram-se. Em
King’s Road, Chelsea, Londres. Sharon com um mini-vestido de tafetá creme,
Polanski de casaco eduardiano de veludo verde-azeitona. Eram um par da moda. Os
fotógrafos da imprensa mundial cairam sobre eles como aves de rapina – aliás,
os papparazzi viriam a ser uma praga na vida de Polanski.
E vou ter que saltar sobre uma quantidade de
factos interessantes e ir direito ao meu ponto capital na vida do pequeno
polaco genial e violador, na vida real e pessoal, quero eu dizer, na vida
extra-cinema. E não posso deixar de dizer que Polanski vivia apaixonadíssimo
pela mulher e que faziam amor todas as noites, e, fazendo amor todas as noites,
no entendimento de Sharon Tate, nada lhes poderia afectar seriamente a relação.
E Sharon engravidou. E foi de Londres para a
Califórnia, enquanto Roman ficava, por razões profissionais.
Ela
abraçou-me com muita força, apertando a barriga contra o meu corpo, a
recordar-me o bébé. No momento em que a abraçava e beijava,
assaltou-me um pensamento fugidio e estranho... não voltarás a vê-la. Se
nada tivesse acontecido, era possível que eu não me tivesse lembrado deste
pressentimento.
Califórnia assolada por uma vaga de calor.
Sharon, grávida, em Beverly Hills, a sentir-se mal disposta. O bébé para nascer
daí a duas ou três semanas. Eram sete da tarde em Londres quando alguém recebe
um telefonema de Los Angeles. 9 de Agosto de 1969. Um sábado. É um amigo de
Roman quem atende o telefonema. Houve um
desastre na casa. Qual casa? Na tua. Morreram todos.
E este todos
eram Sharon e uns quantos amigos que lá estariam de visita – mais tarde vem a
saber-se que o escritor Jerzy Kosinski escapou porque as malas dele se tinham
perdido no aeroporto de Los Angeles e ele não tinha podido chegar a tempo à
casa dos Polanski em Beverly Hills.
Quando ouviu dizer que tinham morrido todos,
Polanski, em Londres, clamou em voz alta não,
não, não... pensando nalgum desastre natural, um desabamento de terras… e
se alguns tivessem ficado soterrados ainda poderiam ser salvos… que Sharon ainda esteja viva, por favor, pensei… Roman, eles foram
assassinados. Polanski, em estado de choque, começa a bater violentamente
com a cabeça nas paredes.
Ainda em estado de choque, parte para Los
Angeles sob o efeito de tranquilizantes. Tinha a sensação de que Sharon não
estava morta e poderia aparecer de um momento para o outro.
Como muitos (os ginjas de hoje e os jovens dessa época, como eu,
que se interessavam por cinema) devem estar lembrados, Sharon Tate e o grupo de
amigos que estavam a passar o serão lá em casa foram assassinados e mutilados
com requintes de barbarismo pela seita de Charles Manson. Porquê? Talvez por
engano.
O caso espalhou o terror pela comunidade de
Hollywood. O funeral das vítimas, diz Polanski, foi semelhante à estreia de um
filme de terror.
Os media
começam a actuar e aludem à vida em casa dos Polanski:
bacanais constantes, consumo desmedido de todo o tipo de drogas, magia negra,
satanismo. Hollywood, diz Polanski, esforçava-se por encontrar uma explicação
que descarregasse as culpas sobre as próprias vítimas e assim reduzisse a
ameaça que pairava sobre a própria Hollywood como um todo. Sharon e os que
tinham morrido eram responsáveis pelas próprias mortes, porque tinham alinhado
em práticas sinistras e convivido com as pessoas erradas. Nada do género
poderia alguma vez suceder às pessoas vulgares, decentes e tementes a Deus.
Títulos da imprensa da época: SHARON TINHA QUE MORRER. Os Polanski, em
suma, segundo a moral dos media
americanos, tinham-se habilitado, haviam atraído sobre eles a desgraça. Você fez aqueles filmes? Levou aquela vida?
Logo, morre assim.
A Newsweek titula: UM POLICIAL FASCINANTE. E escreve: fascinante como o mistério foi a visão que os assassinos proporcionaram
da surpreendente sub-cultura de Hollywood em que se movia o elenco das
personagens. Todas as conversas dos habitantes da região não saem dos temas
da droga, do misticismo e do sexo em grupo.
O grupo. O grupo estaria a divertir-se nessa
noite com um certo tipo de magia e de drogas, e com a presença de um conhecido hippy jamaicano, dealer e adepto do voodoo.
Os amigos especulavam que os crimes eram consequência natural de um ritual
satânico de execução simulada, acabando em tragédia por via do efeito dos
alucinogéneos. A TIME escreve: foi
uma cena tão macabra como as explorações dos filmes de Polanski sobre as
facetas recônditas e sombrias da personalidade humana. Jay Sebring (o cabeleireiro), mutilado e marcado estava apenas vestido
com uns calções de pugilista. Um dos seios de Miss Tate foi cortado e havia um
X traçado no seu estômago. É difícil saber o papel que a droga desempenha no
mundo de Polanski, que é famoso pelos
seus filmes macabros. Etc.
Lá está: é o estranho – mas talvez natural -
problema da confusão que se faz entre a vida pessoal do artista criador e o seu
trabalho. E quando, muitas das vezes, as opiniões e os actos das personagens
são tomados à letra e como sendo as opiniões e os actos daquele que as criou.
Porque há também bastas questões de moral envolvidas no simples consumo de
cultura ou na simples fruição de actos de cultura. E pronto. O artista criador
sabe que é assim e não se pode queixar. Ninguém o mandou meter-se naquelas
vidas. Ninguém o mandou comportar-se e opinar para lá do puritanismo, da hipocrisia
e da correcção burguesa convencional que conforma os mundos.
O próprio Polanski é interrrogado como
suspeito. John Phillips, do grupo The
Mammas and the Papas, também é ouvido como suspeito. Todos os amigos da
comunidade de Hollywood o são até que se descubram os verdadeiros assassinos.
Aliás, Charles Manson, segundo Polanski, era um autor frustrado de canções.
Fala Polanski em directo: a raiva de
Manson assemelhava-se à do actor desprezado, o tipo que procura vingar-se nos
outros pela sua falta de talento e sucesso. A amargura e a frustração foram os
prováveis motivos que o levaram a atacar a casa que julgava pertencer a Terry
Melcher e a vingar-se de alguém que tinha recusado gravar um disco das suas
composições medíocres .
A morte
de Sharon é o único marco da minha vida que interessa. Antes da sua morte eu
navegava num mar calmo de esperança e de optimismo. Um psiquiatra que consultei
avisou-me de que eu levaria quatro anos de luto até superar esta sensação.
Levou-me muito mais do que isso.
A seguir, para não desmerecer da sua
reputação de autor de temas ocultos, violentos, macabros e sangrentos, Polanski
filma Macbeth.
E é contratado pela Vogue para se responsabilizar estética, artística e literariamente
por um número especial. Escolhe colaboradores literários. Ele próprio vai a
locais exóticos fotografar modelos. Ás Seychelles, por exemplo. E sempre
acompanhado de garotas estonteantes. Uma delas é Nastassia Kinski, 15 anos, com
quem mantém uma relação.
Esse número especial é feito e mais tarde a Vogue propõe-lhe novos projectos, sempre envolvendo
fotografias artísticas de jovens modelos. O pequeno polaco está a ser empurrado
pelo destino para a sua futura reputação.
E nos arrabaldes de Beverly Hills Polanski
conhece Sandra, típica adolescente californiana que namora com um cinturão
negro de karaté, filha de Jane, uma
actriz sem trabalho que vive com um tipo que é editor de uma revista chamada Marijuana Monthly, que fornece
noticiários da marijuana, faz
propaganda da marijuana, obviamente,
e da despenalização das drogas leves.
Polanski e Sandra vão fazer uma sessão de
fotografia para o campo. Tirar blusas, vestir blusas… pôr soutiens, tirar soutiens,
poses provocatórias, olhares fixos de desejo simulado para aumentar o sex-appeal, indiferenças estudadas, a
adolescente que se quer mostrar cool.
Perguntei-lhe quando tinha feito amor
pela primeira vez. Aos 8 anos. Com quem? Um miúdo lá da rua. Com essa idade,
percebes, Roman, a gente nem sabe que acontece…
Noutra sessão, vão dar ao luxuoso condomínio
fechado que era partilhado pelo casal Jack Nicholson/Angelica Huston e por
Marlon Brando. Foram para a piscina dos Nicholson. Abriram uma garrafa de
champanhe. Despiram-se. Nadaram um pouco. Sandra meteu-se no jacuzzi que havia perto da piscina.
Polanski continuava a fotografá-la. A certa altura a jovem diz-lhe que não se
sente bem. O vapor está a fazer-lhe mal à asma. Não sabia que eras asmática. Responde-me
que deixara os remédios em casa. Diz-me: acho melhor descansar, senão sou capaz
de desmaiar.
Foram para um quarto do rés-de-chão da casa
dos Nicholson onde Polanski dormira várias noites num tempo em que lá fora
hóspede. Envolveram-se em toalhões e começaram a secar-se um ao outro. Ela disse que estava a sentir-se melhor e em
seguida, e muito suavemente, comecei a beijá-la e a acariciá-la. Passado algum
tempo conduzia-a até ao divã. Não
havia qualquer dúvida em relação à experiência e à desinibição de Sandra.
Bem, senhoras e senhores… claro… está visto…
Polanski vem a escrever no seu livro de memórias que a jovem correspondeu…
Ouviu-se o motor de um carro que subia a
rampa. Era Angelica Huston que regressava.
Polanski leva a rapariga a casa. Mostra à mãe
dela e ao amante os slides tirados. Fumam um charro. Os outros não ligam
meia aos slides e Polanski estranha.
Nessa noite ainda se encontra com Robert de Niro que lhe dá um livro de onde
quer tirar um argumento para protagonizar.
E passa o dia seguinte na sua suite de hotel a trabalhar noutro
argumento. Um amigo oferece-lhe uns comprimidos de ácido que ele mete num
frasco de medicamentos. Está combinado ir nessa noite ao cinema com amigos.
Quando
vai a sair do hotel, um homem vai ter com ele… e mostra-me um distintivo… Mister Polanski? Departamento de Polícia de
Los Angeles. Posso falar consigo? Trago um mandato de captura…
Violação?,
repeti, chocado e surpreendido. Posso falar com o meu advogado? Não podia. Ainda não fora detido. Vamos ao seu quarto, mr. Polanski. Também
temos um mandato de busca. E dê-me o comprimido que está a tentar esconder aí
na mão. E também há um mandato de busca a casa de mr. Jack Nicholson…
Em casa de Nicholson havia, evidentemente,
erva. Na carteira de Angelica Hustou havia um pouco de cocaína. Tudo para a
esquadra.
O pequeno polaco genial fica detido. Depois,
há uma fiança, já se sabe. Sai. Mete-se no carro do advogado. Ligam o rádio. O
noticiário de última hora abre com a notícia da prisão do realizador Roman
Polanski por violação de menor. O hotel devia estar a rebentar de fotógrafos e
jornalistas. Ao ouvir os noticiários fiquei
a saber que o meu mundo caía por terra. Nada na minha vida me preparara para a
ideia de que pudesse ser um criminoso. Era como saber-me vítima de uma doença
fatal e prolongada para a qual não havia solução.
Seis acusações - fornecimento de substância de controlo a uma
menor; culpado de acto volptuoso e lascivo; culpado de relações sexuais
condenadas por lei; perversão; sodomia; violação mediante uso de drogas.
E a perseguição pública e mediática ao grande
artista criador e ao homem desprezível e violador de raparigas começa nesse
dia. Até hoje.
Senti-me
um pária. A agente
artística de Polanski quer correr com ele, não
podemos ter um violador na nossa agência. Hollywood inteira pensava o
mesmo. Ninguém, ou poucos, queriam ser, ou continuar a ser, amigos de um
violador.
Frequentei
ainda assim restaurantes e as casas de outras pessoas, embora soubesse que na
maioria dos casos fora convidado como objecto de curiosidade. Muitas pessoas se
mostravam compreensivas. Estavam de facto ansiosas de se gabarem de ter
conhecido o famoso violador de Hollywood. De uma noite para a outra atravessara
a linha de demarcação entre as pessoas decentes e a escumalha.
A Columbia julga e sentencia o homem, e
desinteressa-se bruscamente do artista e dos projectos de filme para o qual
Polanski estava a escrever o guião. A companhia de seguros não quer,
evidentemente, saber do artista e trata com o homem ao recusar a renovação do
seguro da casa de Londres. O artista quer que a Vogue declare que ele estava a fotografar por conta da revista.
Não. Lá na revista tinham sido interrogados pela Interpol e tinham declarado
que nada sabiam do caso.
Eu sabia
porquê. A Vogue vivia do chic, do super-rico e sofisticado jet-set. Agora que o volumoso e lustroso número VOGUE
POR ROMAN POLANSKI repousava em todas as
mesas de pequeno almoço da alta roda, eles desejavam esquecer que esse número
existira.
Interrogatórios. Trâmites judiciais. Admitir
a culpa/não admitir a culpa. Que culpa? Haver ou não haver julgamento. Jane, a
mãe da rapariga é chamada ao gabinete do promotor para ser interrogada. A
adolescente, Sandra, fica na sala de espera com Bob, o amante da mãe, o tal da
revista de marijuana, e são vistos abraçados, enlaçados apaixonadamente.
Polanski diz: não se tratava do abraço
carinhoso de um homem mais velho que conforta a rapariguinha – era algo mais: a
perna dela estava entre as dele. Alguém vai contar isso ao juíz. Não deve
ter adiantado grande coisa ao destino de Polanski.
Polanski especifica as diferenças da lei
americana de estado para estado: na
Geórgia, as relações sexuais interditas por lei
aplicavam-se a jovens até aos 12 anos. Na Califórnia, a idade do
consentimento era os 18 anos. Em 1976, 25% dos que tinham sido dados como
culpados deste tipo de crime no estado da Califórnia haviam sido postos em
liberdade condicional e entre eles havia professores e polícias. E lá
estava ele para comparecer a mais uma audiência no tribunal.
Fazia anos que Sharon Tate tinha morrido. Vai
sozinho ao cemitério. Recolhe-se, ajoelha. Do meio dos arbustos sai um homem
que dispara flashes. Polanski
enfurece-se. Exige-lhe o filme. Arranca-lhe a máquina, tira dela o filme,
deixa-a ao funcionário do cemitério. O fotógrafo não faz mais nada: vai ao
gabinete do promotor de Justiça e apresenta queixa: roubo de propriedade, má
conduta, assalto e fuga. Para ajudar o pai que é velho…
Vai ter que se submeter a exames
psiquiátricos. Na prisão. Penitenciária de Chino, Los Angeles. Por uns 90 dias.
Estavamos
no pátio. Os presos estavam sentados em bancos ou deitados na relva. Quando
avancei, começaram a acenar e a gritar, eh, Polanski, como é que
vai isso, Polanski? A minha chegada à
penitenciária de Chino fora transmitida em directo pela TV e
eles tinham assistido. A travessia do portão foi um eco da minha experiência de
teatro em criança. Tal como Gagatek, o palhaço que deixou o palco para se
misturar com os espectadores, eu saira de um ecran de TV e adquirira vida
diante de uma audiência de presos.
Na penitenciária, Polanski não gozava dos
recreios no pátio. Poderia expor-me a
perigo fisico, não por causa da natureza do meu crime, mas por causa da minha
celebridade. Você é um alvo natural, dizem-lhe. Este lugar é igual a todos
os outros. As pessoas querem publicidade porque isso as torna conhecidas. E só
para esse fim alguém pode matá-lo. Oferece-se voluntariamente para os serviços
de limpeza da prisão.
Na sala de convívio da penitenciária: uma vez, após eu ter feito um comentário
sarcástico sobre o chefe da polícia de Los Angeles que acabava de ser
entrevistado na TV, fui abordado por um indivíduo que não conhecia, um mexicano
pálido, com o cabelo negro e oleoso. Queres que dê cabo dele? Como? Vou
sair em liberdade condicional para a semana… o chefe da polícia… se quiseres,
acabo com a raça dele. Custa-te cinco notas.
Um dos guardas fez um relatório sobre o preso
Roman Polanski – o homem. O preso
Polanski adaptou-se à vida da prisão de forma eficiente. Passa o tempo na sua
cela a ler ou a escrever. Sai da cela e faz exercício e vê TV ou joga xadrês.
Ofereceu-se como voluntário para vigilância do dormitório durante as noites e
desempenha as suas funções eficientemente. Polanski é um organizador e um líder
e não se serviu da sua posição social como alavanca ou muleta, dando-se bem com
o pessoal e com os outros presos.
Liberdade condicional. Ou não. O juíz hesita.
Aeroporto internacional de Los Angeles. Falta
um quarto de hora para o vôo da British com destino a Londres. Polanski compra
o último lugar no avião.
Em Londres, o tempo está húmido e frio. O
advogado telefona de Los Angeles surpreendendo-se por sabê-lo em Londres.
Deixara-o numa posição melindrosa. Não me
interessava o que pudesse acontecer agora. Preferia tudo a ter de viver como
naquele passado meio ano. Suportara a vergonha e o incómodo da imprensa,
perdera dois trabalhos como realizador e estivera preso. Sentia uma alegria
quase paranóica.
Deambula porém pelos quartos sem aquecimento
e não sabe o que fazer da vida. Há algo de errado naquilo tudo. Não se sente em
segurança. A depressão invadiu-me. Apanha
nessa mesma noite um avião para Paris.
O
edifício em frente do meu apartamento em Paris, um 3º andar perto dos Champs
Elysées, estava com andaimes onde se empoleiravam como corvos fotógrafos com
lentes telescópicas destinadas a apanhar cada um dos meus movimentos. Os mais
persistentes montaram guarda, dia e noite, em sacos de dormir…
E quando o cão é mau todos o atiçam, lá dizia
o povo antigamente, e a partir desses dias o pequeno polaco genial, inocente ou
culpado (ou as duas coisas), caiu vítima da própria fama e foi um
ver-se-te-avias de acusações de estupro, abuso e violação, quem sabe se por
raparigas que queriam fazer carreira no cinema e não conseguiram; raparigas que
foram para a cama com ele consentidamente, jubilosamente (sabe-se lá) e
passados trinta anos aproveitaram a maré do me
too e vieram a publico acusá-lo. E assim até hoje, quando o pequeno polaco
já vai nos oitentas.
Mas tudo isto para que o hipotético leitor
faça o favor de não ficar com a sensação de que Polanski não passa de ser cenas
escandalosas ou vidas dissolutas.
O homem? Deus me livre, repito, de pôr as
mãos no fogo por ele. Não me interessa a qualidade do homem. Do que não me
poderei esquecer é de que foi ele o genial autor – para além dos filmes já
citados – de Faca na Água, O Beco,
Repulsa, What?, O Inquilino, Piratas, Frantic, Tess, Macbeth, O Pianista, O Escritor Fantasma e do mais recentemente
afamado (e vilipendiado) J’Accuse.
Mais hoje ou mais amanhã, de uma forma ou de
outra, é bem capaz de haver um preço a pagar pela sociedade, pela civilização,
pelos bons costumes, pelo politicamente correcto. Pagar pelo génio criador que
nos dulcifica a vida. Se é justo ou não, não sei.