SHAKESPEARE
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– A VERDADE DE CADA UM
Passei a noite a ler os sonetos do porcalhão do Shakespeare.
Dois terços dos sonetos são evidentemente dedicados a um jovem. Em cerca de 30
sonetos ele declara que O ama ou lhe chama “querido rapaz”, ou qualquer coisa
no género. Como é que pastores da igreja e professores podem fechar os olhos a
esta deplorável propensão do poeta nacional? - escreveu
um Graham Green de 22 anos, nos seus tempos de Oxford.
Green
atacava Shakespeare, sim, porém, não mais a obra do que o homem. Mesmo assim,
não deixando de ver Shakespeare como o mais insigne poeta do conservadorismo
que nos tempos modernos se chamaria de establishment.
Outra voz
relevantíssima do firmamento literário universal, T.S. Eliot, disse isto acerca
do pensamento e da emoção: o poeta que
pensa é apenas o poeta que pode exprimir o equivalente emocional do pensamento.
Toda a grande poesia dá a ilusão de uma visão da vida. Quando ingressamos no
mundo de Homero, Sófocles, Virgílio, Dante ou Shakespeare tendemos a acreditar
que estamos a apreender algo que pode ser expresso intelectualmente, porque
toda a emoção tende para uma formulação intelectual.
Como bem
notou Arthur Miller, quem, ao longo das idades, se lembrou alguma vez dos
críticos que arrasaram Shakespeare no seu tempo? Tanto de Shakespeare como de
Moliére, Strindberg, Tchekov…
Se sempre
houve quem dissesse que a escrita de teatro só deveria contar para a
consideração de ser literatura desde o momento em que a cena, o palco, lhe
desse existência real, houve ainda quem ousasse mais longe (Harold Bloom),
dizendo que que a escrita de teatro nunca, em caso algum, seria de considerar
literatura, posto que literatura era a arte da palavra lida, mais complexa,
mais ambiciosa, de maior exigência estética e intelectual para o leitor do que
a palavra dita no palco poderia esperar do espectador. Ressalvando todavia uma
única excepção: Shakespeare. Porque para um completo entendimento, uma frutuosa
compreensão e um acrescentado prazer a tirar das peças de Shakespeare seria
absolutamente essencial lê-las.
Como também
alguém desvalorizou a importância das peças de teatro de tessitura totalmente
inventada, e porque os máximos expoentes da dramaturgia universal, Shakespeare,
claro (e Ésquilo, e Sófocles, e Eurípedes) articularam as suas obras sobre um
lastro de historicidade, lendas seculares, factos, realidades, ou ainda antigas
invenções baseadas em realidades históricas.
Já Hitler
apreciava mais Shakespeare (luxuosamente encadernado em couro e ciosamente guardado
em Berchtesgaden) do que apreciava o seu compatriota Goethe. Shakespeare era
superior a Goethe em todos os aspectos. Shakespeare excitava a imaginação
histórica de Hitler enquanto os poetas seus compatriotas desperdiçavam o
talento que tinham em insignificantes intrigas e rivalidades familiares. Não
obstante toda a Alemanha tivesse proclamado que Goethe e Shakespeare eram da
mesma igualha artística e intelectual.
E mesmo
no que se prendia com questões judaicas (tão caras), Hitler lamentava que o
século alemão das Luzes tivesse produzido uma obscura obra, Nathan, o Sábio (nunca ouvi falar),
história de um rabino que logra a reconciliação entre cristãos, muçulmanos e
judeus, quando Shakespeare oferecia ao mundo o seu Mercador de Veneza.
Citava
amiúde Hamlet e apreciava
especialmente Júlio Cesar, peça de
que chegou a esquiçar um décor de fachadas para o 1º acto – correu até o boato
de que ele esperava pelos Idos de Março para tomar decisões capitais…
Peter
Ustinov dizia que a literatura psiquiátrica estava bem longe de ter sido
estreada por Freud. Muito antes de Freud já Shakespeare tinha trabalhado, e
muito, e bem, no assunto – já para não referir Dostoievski.
Somerset
Maugham escreveu que só uma profunda idolatria se recusava a ver em Shakespeare
as negligências da vida dele, e até nas personagens que construía, porque
Shakespeare sacrificava tudo aos efeitos de cena.
E Wagner?
Enquanto Shakespeare nos mostrava o mundo tal
como era, Goethe dava-nos a serenidade do espirito livre que o contempla –
assim o entendia Wagner.
Wagner assumia-se devedor de
Shakespeare – como dos gregos, como de Goethe, está visto; como de Beethoven.
Sonhava poder chegar à fala especialmente com Shakespeare e Beethoven.
Considerava-se o herdeiro musical de Beethoven, e escolheu o assunto
shakespeariano de Measure For Measure
para uma das primeiras óperas Das
Libesverbot.
Martin
Amis afirma que o teatro é evidentemente inferior ao romance e à poesia. E
pergunta-se pelos dramaturgos que duraram no favor do público mais de um
século. Os quais vêm a ser… Shakespeare. Shakespeare e quem mais?
Injusto.
Acho eu, quando ele disse que depois de Shakespeare se ia à procura de um
qualquer “norueguês sepulcral”. E até tinha graça essa coisa de Shakespeare ser
dramaturgo. Era uma das melhores piadas de Deus.
Eduardo III e Sir
Thomas More – peças atribuídas a Shakespeare que depois lhe foram retiradas
da autoria. Que terá sido feito delas?
A primeira edição shakespeariana aparece em
1623, e realizada segundo um critério dos seus amigos. Parece que Shakespeare
participou pessoalmente, ainda, num plano geral de edição da obra, que no
entanto nunca chegou a ver concretizado.
O pecúlio lexical do Bardo são 30.000 palavras.
Ou então atentemos numa outra estatística que estabelece 29.066 vocábulos
diferentes para um total de 884.647 palavras.
Que interesse tem isto?
No testamento de Messer William Shakespeare nem
sombra de referência às suas obras.
Estranho.
Há quem diga que ele esperaria beneficiar os
herdeiros pela edição das peças após a sua morte, porque, entre os autores
teatrais da época, só um felizardo teve a dita de ver as obras editadas antes
de morrer, Ben Johnson.
Para a edição de Shakespeare as peças foram
copiadas e recopiadas, algumas ainda em vida do autor, é certo, mas sabe Deus
como, sabe-se lá por quem, sabe-se lá se bem se mal. Porque as variantes são
imensas. Quem fez a divisão dos actos, quem acrescentou didascálias para
clarificar cenas, etc., etc.? Sabe-se lá.
E dizer de caminho (quanto a traduções) que a
célebre tirada To be or not to be foi
traduzida por Voltaire assim: demeure, il
faut choisir et passer à l’instant de la vie a la mort et de l’être au néant.