A qualidade aristocrática
pode existir mesmo numa classe social desacreditada. Veja-se a classe dos
artistas, os tocadores, os funâmbulos, os mágicos, os cómicos, os actores.
Uma aristocracia
profissional, por dizer assim, que nada tem a ver com o nascimento ou com os
sangues azulados, que é adquirida e que tem apenas a ver com o talento, porque
aristocracia numa actividade profissional menos vulgar, que não está ao alcance
de qualquer um, e para mais quando nessa actividade se atinge uma excelência
que está ao alcance de mesmo muito poucos.
E
é uma aristocracia mesmo bem fechada. Os artistas, os cómicos, foram gente
historicamente marcada pela indignidade, olhada em séculos passados pelas
classes dominantes com a máxima desconfiança, apenas um furinho acima dos
vagabundos, dos ladrões.
É
bem o caso dos actores shakespeareanos. Uma estirpe ínclita e destacada no
círculo britânico da profissão de actor. Laurence Olivier presta-nos alguns
informes que reputo interessantíssimos para quem, claro, se interesse por estas
coisas inúteis, ociosas e fascinantes da cultura.
Chamam-se
à conversa quatro nomes cimeiros da específica representação shakespeareana. Richard Burbage, David Garrick. Edmund
Kean e Henry Irving – uma galeria de imortais que nenhum dos mortais ainda
vivos alguma vez viu representar.
Aliás,
cada um deles distanciado cerca de um século do que se lhe seguiu, e nem
Burbage viu representar Garrick, nem Garrick viu representar Kean, nem Kean viu
representar Irving. E nem nenhum foi portanto discípulo do seu predecessor. Mas
Laurence Olivier pode distinguir processos e qualidades comuns a todos eles –
distinguir ou conjecturar – tradições, princípios, uma moral.
Burbage,
por exemplo, contemporâneo, colega e amigo do próprio Shakespeare, treinou um
actor para lhe suceder, Joseph Taylor. E treinou-o particularmente num papel,
Hamlet. E foi este Joseph Taylor o segundo Hamlet da História do teatro, o
segundo ensinado pelo primeiro de todos, o criador do papel, o tal Burbage.
E
depois, um certo Thomas Betterton torna a representar Hamlet, depois de estudar
o papel com Sir William D’Avenant, que tinha tido a sorte de ainda ter visto
representar Joseph Taylor, o tal segundo Hamlet.
E
depois Garrick, que vem a fazer o Hamlet beneficiando da aprendizagem com
velhos actores que haviam pertencido à companhia de Betterton.
E depois Kean, a fazer o Hamlet segundo dicas
apanhadas a um ou outro que tinha ainda trabalhado com Garrick.
E
por fim Henry Irving, seguindo as tradições ouvidas a algum sobrevivente das
companhias de Kean.
Mas
para Richard Burbage resta a subida honra de ter sido o primeiro actor
shakespeareano.
Olivier
interroga-se sobre como teriam sido as relações de trabalho entre o dramaturgo
e o seu primeiro actor. Quem teria tido primeiro as ideias. Qual o grau de
contribuição que um grande actor possa ter dado à criação original do escritor.
Não se sabe. Shakespeare daria a Burbage conta da situação dramática que
pretendia e Burbage improvisaria muita coisa? Burbage teria inspirado
Shakespeare para escrever uma cena assim ou assado, segundo as características
dele como actor? Não se sabe. Mas desconfia-se sempre, não é?
A
linguagem isabelina. O auge da língua inglesa, pois talvez não tenha havido
propriamente língua inglesa antes de Shakespeare. Antes de Shakespeare ou antes
de Burbage, que era quem a falava ao povo?
Seria
Burbage mesmo um grande actor, ou seria apenas um fulano que aparecia muito lá
pelo Globe, acamaradava com os artistas, tornara-se amigo de Shakespeare, e
que, não sendo de todo desajeitado, passara a ser aquele que Shakespeare tinha
mais à mão para lhe desenrascar alguns papéis e lhe vestir as fantasias, o tal
homem que esteve no lugar certo no tempo certo?
Laurence
Olivier pende para o caso de Burbage ser mesmo bom, muito bom mesmo. Porque um
artista como Shakespeare não confiaria a parte mais carnuda e complexa da sua
obra a um borra-botas. Sabe-se lá. O que se sabe é que bom, vulgar, ou mau,
toca a Richard Burbage ser o criador de nem menos do que Hamlet, Lear e Othello.
Não é brinquedo. E não seria empresa para qualquer.
Será
que Shakespeare e Burbage teriam a noção de estar a criar “coisas” com plena
validade para daí a quatrocentos anos? Acreditariam que daí a quatrocentos anos
ainda haveria público para se emocionar com aqueles textos, ainda haveria
actores a esgatanharem-se para representar tais personagens?
Ou
será que Shakespeare e Burbage trabalhavam para o momento que passava,
unicamente para o presente, o seu tempo, e porque sabiam que o teatro, sem
rádio nem cinema nem televisão era, tal a música, uma arte do momento que
passa?
No
entanto, alguns comentadores da época disseram maravilhas do actor Burbage. E
não só em Shakespeare.
E
no epitáfio de Burbage alguém escreveu mais ou menos (este inglês antigo!) que ele morreu e com ele um mundo morreu. Não
mais Hamlet, Lear ou o Mouro degenerado. Esses viveram nele e morreram para
sempre com ele. Mais ou menos isto.
Passados
mais de cem anos sobre a morte do primeiro Hamlet, como disse, David Garrick
estuda o papel com alguém que ainda fez parte do grupo de Thomas Betterton, o
mais próximo herdeiro da linhagem de Burbage.
Quando
o fenómeno David Garrick rebenta na cena londrina, a vida teatral dormitava num
marasmo de mediocridade lírica, romântica, sem grande significado. O
aparecimento de Garrick mudou tudo.
A
19 de Outubro de 1741, Garrick estreia o Ricardo III. Era (foi) um
acontecimento. Sobretudo para quantos, na época, iam ao teatro por puro
entretenimento e não se queriam maçar com problemas. E Garrick, pelo estilo
próprio de debitar e de se mover em cena pôs os mais cépticos em alvoroço.
Garrick rompia com todo um sistema de meias tintas. E os críticos não acharam
muito próprio aquele estilo.
O
público, habituado a um certo e monótono mecanicismo no debitar dos papéis – a
elevação declamatória da voz dando automaticamente lugar ao já esperado
anti-climax – surpreendeu-se deveras com a novidade de uma voz sempre modulada,
variada de inesperadas inflexões, com um perfeito conhecimento e domínio da
personagem.
Foi
a espantação geral. O público, surpreso, a simpatizar com o vilão Richard. E no
fim o aplauso interminável. Estava assegurada a continuidade da linhagem
ilustre. Garrick manteve-se nos cartazes teatrais londrinos até à hora da
morte, em 1779. He
must have been very special, indeed, diz Laurence Olivier. Era o primeiro special one em
Londres. Mais tarde chegaria o Mourinho.
Quando ele (Garrick) caminha no palco entre
diversos outros personagens, mesmo quando não exprime medo, esperança, suspeita,
ou seja que emoção for, os olhos da audiência imediatamente lhe procuram a
figura, porque ele se move entre outras personagens como se fosse um homem
entre marionetes – escreveu um contemporâneo de Garrick. E mais: ele
comanda na perfeição todos os músculos do corpo e a sua força cénica não é pura
ilusão. Ele é de facto muito forte, e todavia espantosamente ágil e
flexível.
Olivier
aprecia Garrick como o actor completo. Seis anos após a sua estreia em Londres,
1747, Garrick toma de sociedade o Teatro Real Drury Lane.
Terá sido um bom
director, com o pormenor de ter instituído a disciplina na companhia, o que era
coisa pouco comum então. Disciplina, nitidez de elocução e de movimento,
concentração. Antes dele, cada actor permitia-se ter a sua versão do original
de cada autor que representava.
O improviso era a norma. Garrick acabou com
isso e corria com o actor que mostrasse menos respeito para com o público e/ou
para com o texto que declamava.
Em
rigor, disciplina, organização, homogeneidade de talentos e inovação – e salvas
as devidas diferenças – Laurence Olivier inclina-se a pensar que a companhia de
Garrick no Drury Lane pudesse ter sido percursora das companhias famosas
existentes dois séculos depois, como as do Berliner Ensemble, do Teatro de Arte
de Moscovo, do Piccolo Teatro de Milão ou da Royal Shakespeare Company.
Porque
para conseguir fazer passar uma verdadeira ideia de teatro o menos recomendável
é ter um primeiro actor muito bom e um grupo de acólitos de costas para o
público só para fazer brilhar a estrela da companhia. O que é indispensável é
dispor de um grupo de actores que acreditem no que fazem e contribuam para o
trabalho colectivo. Não há papéis secundários. O Terceiro Homem de Armas que
está imóvel e mudo à esquerda alta tem de acreditar que a peça é sobre um
Terceiro Homem de Armas postado imóvel e mudo à esquerda alta. E se a
personagem não vem no texto discriminada com um nome, cabe ao actor que a
representa inventar um nome para ela – ainda que nunca tenha que o dizer. E assim
como o nome, o actor deve inventar para a sua personagem uma família, uma
história pessoal, um passado. Era assim que Olivier via as coisas numa
companhia de teatro que valesse pelo conjunto.
Um
detalhe do espírito inovador deste Garrick: até então, nos teatros, havia não
um espaço para o público, mas dois. Quer dizer, o público, além da normal
plateia, também ocupava o palco durante a representação. E isso ao ponto de
poder haver tantos espectadores no palco que os actores mal se podiam mexer. E
isso ao ponto de os espectadores meterem conversa com os actores. E isso ao
ponto de durante a cena de Hamlet com o Espectro, o chapéu do actor que fazia
de Hamlet lhe ter caído da cabeça e um dos espectadores do palco ter
atravessado a cena, ter pegado no chapéu e tê-lo devolvido a Hamlet.
Pois
Garrick acabou com tudo isto, ou seja, com o público no palco, para grande
consternação de muita gente, alargando o espaço da plateia e dos eventuais
camarotes, também para não perder dinheiro com a inovação.
Com
o desaparecimento de Garrick, o teatro inglês tornou às velhas tradições do
casuístico e da improvisação, a tradição do ensemble artístico
esfumou-se e só vem a reencontrar-se já à entrada do século XX com outro
expoente da aristocracia shakespeareana, Henry Irving.
Mas
quem no entretanto empunha o glorioso bastão é Edmund Kean, o tal que até
mereceu de Sartre uma peça sobre ele - adaptada de outra de um contemporâneo de Kean, Alexandre Dumas. Edmund Kean que nasce em 1787 e vai
dominar o britânico e teatral século XIX.
Talvez
Kean não fosse homem para desenvolver projectos de conjunto. Talvez fosse uma
personalidade para brilhar solitária. Segundo Olivier, era mesmo.
Olivier
destaca na envergadura de Edmund Kean a sua dedicação. Dedicação à ideia de
teatro, de representação. Dedicação, quiçá, à sua própria personalidade egótica
de actor. Dedicação, determinação. O homem (ou a mulher, já se vê) que quer
chegar, ver e vencer, digamos, precisa muito disso. São qualidades cruciais
para quem quer ser um grande na arte de representar.
O
actor é um ser egocêntrico e preparado para escalar a montanha de dificuldades
que se lhe apresentarem, cego e surdo ao que o rodeia, fixado no objectivo que
quer atingir, o topo, o máximo. Pode ser que, chegado ao cimo, atingida a
realização plena dos seus desígnios, ele ainda tenha alguns amigos, e seguramente
que esses amigos serão pessoas excepcionais.
Determinação.
Contava-se que Kean, que morava no lado sul do Tamisa, sabendo que no Drury
Lane, na parte norte, se representava o Mercador de Veneza e que alguém
muito bom encarnava Shylock, quis tanto ir ver a peça que, sem dinheiro para o
transporte, resolveu meter-se ao Tamisa e atravessá-lo a nado.
Edmund
Kean consumiu-se na dedicação ao trabalho e na busca do reconhecimento geral
até aos 44 anos. Deslocava-se de cidade para cidade, incansável, com a família,
em condições ingratas, à procura de trabalho de actor, ao ponto de um dos
filhos lhe morrer no meio de uma estrada durante uma dessas viagens. Lutou como
um titã para aceder aos meios sociais a que não pertencia. E bebia muito. Tipo
temperamental, autista, desbragado, bêbedo, não seria fulano agradável ao
convívio. Os grandes amigos que tinha eram os que bebiam com ele pelas tascas e
pelos pubs de estrada. Era outro special one.
Coleridge
escreveu sobre Kean: é como ler Shakespeare entre súbitos relâmpagos de luz
intensa.
E
Hazzlitt, na obra View of the English Stage, ao vê-lo em Ricardo III:
ele dava a mais alta animação ao papel, sem que ninguém o ultrapassasse. Em
quem arriscava tanto pouco havia, de facto, a censurar. A progressão da personagem,
da manhosa adulação à abusiva humildade, era marcada ao longo da acção pela voz
e pelo olhar. Parecia o tentador aproximando-se da presa, certo de conseguir. O
rei Ricardo não aparecia como um amante, mas como um actor a exibir a sua
superioridade mental e o seu poder, fazendo dos outros joguete da sua vontade.
Foi
de assombro a primeira noite de Edmund Kean no Teatro Real. Não ensaiou com os
colegas. Nesse tempo era mesmo assim, um pouco talvez como na ópera no tempo
das grandes vozes.
Kean,
apesar da baixa estatura física, era uma star. A cena estava montada, a
estrela chegava e movia-se no palco como queria, marcava o tempo da
representação e tudo se lhe subordinava. Kean era então uma completa novidade
na cena londrina. Os empresários talvez o tivessem visto trabalhar na província
e fiaram-se mais do que tudo na popularidade dele. O teatro estava a deitar por
fora para ver o desconhecido famoso que ia representar Shylock. No intervalo, o
público do Drury Lane passou palavra ao público do teatro vizinho e rival, o
Covent Garden, e os do Covent Garden foram para o Drury Lane e no fim da função
já lá não cabia um alfinete. Edmund Kean estava consagrado como um divo, um
ídolo, um príncipe da estirpe shakespeariana.
Kean,
estrela de primeira grandeza, e depois o maior actor clássico do seu tempo, foi
uma jogada no escuro para a empresa do Drury Lane, um risco. Um risco que saiu
certo. O Drury Lane estava nas lonas financeiramente e a chegada de Kean mudou
completamente as coisas.
O
testmunho material que resta de Kean, fico a saber, existe no British Museum e
é uma cópia do Ricardo III em que um insignificante assistente de palco
se deu ao trabalho de anotar as inflexões do mestre. Por aí se colhe alguma
ideia (ou especulação) sobre a representação rítmica de Kean, sobre, talvez, a
sonoridade da voz. E fora isso, nada mais senão os comentários já referidos de
Coleridge e Hazzlitt.
Olivier,
analisando o documento, pensa que a abordagem de Kean às personagens andaria
próxima da modernidade de fins do século XX. Kean deve ter desprezado o modo
romântico em voga e aberto caminho a uma nova frescura, uma outra verdade
interpretativa, realista, naturalista, certamente agressiva para o público do
tempo, habituado ao actor da moda, o inefável, etéreo e romanticíssimo John Phillip Kemble.
Mas
o que estava ainda em vigor nos teatros londrinos era o atirar com toda a sorte
de coisas para o palco, para o actor canastrão que não agradasse. E Kean, tal
como conheceu a loucura do aplauso, também, para o fim da vida, experimentou
alguns desses dissabores.
-
Ó Sô Kean, você está bêbedo! -
gritou-lhe uma voz em Liverpool, por volta de 1830, logo depois da primeira
tirada de Ricardo III, aquela do inverno do nosso descontentamento.
Tinha
estado toda a tarde a beber e a recordar velhos tempos com o colega que
representava o Duque de Buckingham. Ouvindo a invectiva do espectador, Kean
parou, calou-se, olhou para a plateia, e vociferou:
-
Se você acha que eu estou bêbedo,
então espere até ver o Buckingam entrar em cena.
Sartre,
na sua peça, justamente intitulada Kean, faz-lhe dizer: torna-se-me incompreensível a razão porque
a Inglaterra me coloca simultaneamente tão alto e tão baixo. Sou um rei ou sou
um palhaço? Devo estar doido de orgulho. É impossível que não me considerem o
maior, o maior de todos. Quem possui o meu génio? E todavia sinto-me habitado
pela mais profunda humildade. O meu génio é nada. Nada mais do que uma maneira
de dizer as palavras, de fazer gestos. Nada mais do que um golpe de prestidigitação.
Sou o homem que todas as noites se faz desaparecer a si próprio.
Um
certo Leigh Hunt escreveu sobre Kean: exibiu o seu sarcasmo, a sua doçura, o
seu pathos, a sua inexcedível graça, a sua galante levitação, a sua desmesurada
dignidade e a sua figura pequena tornou-se absolutamente alta e tocou os cumes
da grandeza moral nas vestes de Othello.
Ou ainda: vêmo-lo
rodeado por três ou quatro pessoas, todas elas mais altas do que ele, mas ele,
tão gracioso, tão tranquilo, tão superior, tão nobremente possuído por si mesmo
faz com que lhe atribuamos uma estatura moral que se confunde de imediato com
uma estatura física.
E
nenhum outro, até ao aparecimento de Henry Irving, foi menino para tomar em
mãos o nobilíssimo bastão shakespeariano que Kean empunhara.
Irving,
que nasceu cinco anos depois da morte de Kean, nunca o viu representar,
evidentemente, mas viria a elegê-lo como seu ídolo. E iniciada a carreira não
decorreu muito tempo até que fosse ele the talk of the town e tivesse o
teatro inglês na palma da mão.
Dedicação.
Determinação. Qualidades decisivas no armamento do actor e que Henry Irving
possuía em graus semelhantes aos antepassados na aristocracia shakespeariana. E
a tal ponto que na noite de 25 de Novembro de 1871, às tantas da noite, após um
retumbante triunfo no Teatro Lyceum, de regresso a casa com a mulher, Florence,
numa carruagem alugada, Irving vira-se para ela e atira-lhe:
-
Pois bem, minha querida, não faltará
muito tempo para passarmos a ter a nossa própria carruagem e a nossa parelha de
cavalos.
A
mulher replica-lhe:
-
Não me diga que você pensa continuar
nestas loucuras de teatro pelo resto da sua vida!
Irving,
acto contínuo, iam em Hyde Park Corner, ordena ao cocheiro que pare a
carruagem, sai, e já no chão tira o chapéu, inclina-se, e diz:
-
Então desejo-lhe muito boa noite,
minha querida, nunca mais nos voltaremos a encontrar.
Florence
seguiu para casa sozinha e Irving nunca mais voltou a casa nem nunca mais
voltou a ver ou a falar com a mulher.
Como
Kean, a representação de Irving era marcada pela realidade, pela verdade,
apresentando a personagem em explosões de personalidade, nos tais relâmpagos
encantatórios de intensa e humana luz.
E
quanto a mais afinidades entre os dois grandes actores, fora o enorme talento,
possivelmente uma, só, ambos morreram sem um tostão. Mas também não era essa a
ideia de vida para um e para o outro, certamente, enriquecer pelo próprio
talento. Pelo menos Irving chegou a dizer a alguém:
-
Estou pobre, mas também tenho a
certeza de que se vim a este mundo para alguma coisa não foi para amealhar
dinheiro.
A
geração shakespeariana de Laurence Olivier foi teatralmente formada sobre a
memória de Irving. Olivier nasceria dois anos depois da morte de Irving,
ocorrida em 1905. E a memória de Irving chega-lhe naturalmente pelo
conhecimento de velhos actores que ainda tinham visto Irving. E assim a
linhagem aristocrática dos intérpretes de Shakespeare prosseguia.
E
nesta ordem aristocrática de ideias, Olivier nota que o grande actor, antes de
mais, é aquele que quer ser mesmo actor, e não aquele que anda metido em teatradas
e diz, “bem, se eu chumbar nos meus exames à Faculdade de Direito dedico-me ao
teatro”. Não era nada esse o pensamento de um actor dos grandes tempos de
Burbage e Garrick e Kean, ou mesmo de Irving. O ser actor tem de ser muito mais
do que um falhanço noutros propósitos. Mesmo que nunca chegue a ser grande.
Se
ainda nos tempos de juventude de Olivier o actor ficava um tanto nas margens da
sociedade, imagine-se nos tempos de Garrick e Kean – não falando já de Burbage.
Nesses tempos, um homem ou era actor porque se sentia nascido para tal, ou, das
duas uma: seguia o seu caminho nas margens sociais, ou morria – e se não morria
teria preferido a morte do que viver outra vida que não fosse a da sua vocação.
Olivier
admite que Burbage, Garrick, Kean ou Irving, todos eles inovadores na sua arte,
chegaram ao teatro no tempo próprio, no tempo em que o teatro precisava deles,
precisava da vitalidade que cada um deles lhe trouxe, e sendo que depois de
cada um deles o teatro inglês não seria mais o mesmo que fora antes de cada um
deles.
Dentro
desta restrita linhagem shakespeariana dois notáveis outsiders ao
universo inglês se agigantam para nela enfileirar de direito. Fala-se dos
americanos Edwin Booth e John Barrymore – o último deles com influência real e
grande na vida artística do próprio Laurence Olivier.
Olivier
corria a apreciar e a aprender com Barrymore de cada vez que ele actuava em
Inglaterra. Achava-o um actor de outro planeta. Tudo nele era excitante,
original, carismático, perfeito – até o inglês dele era perfeito. E John
Barrymore é decisivo nas escolhas de vida de Laurence Olivier, convencendo-o de
que o lugar dele era mesmo no palco, a viver a tragédia de Hamlet.
Depois
de Irving, uma vez mais, a representação de Shakespeare voltava à mesma rotina
sequencial e soporífera de árias e inflexões postiças, poéticas, bonitas, mas,
como ele diz, castradas. Barrymore punha masculinidade e sensualidade viril no
que dizia e fazia em palco. Até o sol podia desaparecer quando John Barrymore
entrava em cena.
E
foi esta aristocracia que, segundo Olivier, iluminou os firmamentos do teatro
shakespeariano – ou o teatro em geral – para sempre.
E
Laurence Olivier com estes exemplos compreendeu depressa que o importante não é
estar em primeiro lugar e em grandes parangonas no cartaz. O importante é ser o
melhor. É este o princípio, e a moral desta extravagante aristocracia.
Á qual, por minha conta, acrescentaria uma boa quantidade de outros nomes e de outros aristocráticos génios cronologicamente mais próximos de nós... Gielgud, Brannagh, Ralph Richardson, O'Toole, Burton, Paul Schofield, Derek Jacobi, Anthony Hopkins, Donald Wolfitt...