segunda-feira, 27 de junho de 2016


shakespeare 400 – autenticidade

Nalguns compêndios de teoria literária tem-se notícia de um certo J. M. Robertson, certamente uma autoridade, certamente um estudioso do cânone de Shakespeare, que se aventurou a falar de uma “desintegração” do mesmo Shakespeare.
 
 
Pela letra de J.M. Robertson, Shakespeare reduzir-se-ia à paternidade efectiva e individual de algumas das peças mais celebrizadas, sendo outras (Mercador de Veneza e Júlio César, for instance) uma montagem de retalhos escritos por Marlowe, Greene, Peele, Kyd e outros dramaturgos esquecidos desse tempo.
 
Isto porque este scholar, Robertson, competente detective literário (como lhe chamaria Woody Allen), investigou e detectou incoerências, marcas verbais, paralelismos literários que não colam lá muito bem para o caso de uma autoria única e individualizada.
 
 
Não sei bem porquê, acredito nisto.
 
 
Será uma presunção desse J.M. Robertson, um método falacioso, ou uma arbitrariedade, mas mesmo assim, por puro e rasteiro instinto meu acredito na tese. Que hei-de fazer?
 
 
Tanta disparidade temática, tanta variedade imagética, tanta informação histórica, tanta complexidade filosófica, tanta experiência humana contadas por um único sujeito? Oh, não. A menos que esse a quem alguém atribuiu a designação de William Shakespeare fosse mesmo Deus…
 
 
Robertson seleccionou passagens shakespearianas cuja semelhança com passagens de outros dramaturgos contemporâneos de Shakespeare era flagrante. O que, já se compreende, não quer dizer que Shakespeare não possa ter aqui e ali facilitado, roubado, apropriado de modos alheios, descuidar-se, aviar qualquer coisa que lhe estivesse a jeito por uma urgência de produção.
Também não quer dizer que Shakespeare não posa ter feito uso de estilos diferenciados, não possa ter incorrido, aqui e ali na imitação (quiçá na citação crítica disfarçada).
 
 
         É preciso ver que a arte isabelina era uma arte dita comunitária, uma espécie de criação colectiva como foi moda (e parece que ainda é) no teatro de criação contemporânea, visando o apagamento da individualidade criadora, a star, o divo, e exaltando o génio colectivo, a criatividade das massas contra a predestinação do génio individualista excepcional que se ergue da massa anónima.
 
 
        Na arte isabelina a colaboração diversificada, a parceria, era o costume, e a individualização estilística podia ser deliberadamente diluída, para não dizer completamente apagada a posteridade. E nessa tese já eu embarco.
Mas se assim aconteceu, foi uma circunstância que baralhou a vida do investigador literário e deu azo a equívocos, monumentais equívocos e falsificações, provavelmente. E injustiças. Provavelmente.
 
 
Se a investigação literária pôde detectar alguns passos do homem Will Shakespeare, alguns movimentos e circunstâncias de vida e sociabilidades prováveis, não há documentações categóricas como prova, nem cartas, nem diários, nem memoriais. Há episódios anedóticos de suspeitosa veracidade. Nada de taxativo. Os tentames biográficos, dizem os teóricos, resultaram ou em banalidades ou em factualidades romanceadas.
 
 
Sabemos lá da veracidade da convicção que se generalizou quanto aos momentos depressivos do homem Shakespeare que o possam ter impelido à escrita de sangrentas tragédias ou de amaríssimas comédias, desembocando na pacificação interior que se consubstanciou artisticamente em A Tempestade.
 
 
E nem será despiciendo pensar que as oscilações de estilo e de tema em Shakespeare pudessem ter tido relação com os públicos circunstanciais, o mais popular ao ar livre do Globe Theatre, ou o mais seleccionado e fechado no Blackfriars Theatre.
 
 
Porque ninguém sabe ao certo dos desgostos do homem Shakespeare e não é elegante depreender a vida de um autor pelo cariz das obras que produz.
Não é preciso estar-se deprimido para escrever uma tragédia com muitos mortos e feridos, e nem se vai a correr escrever uma comédia quando se está contente que nem um rato. Não vamos imputar aos autores, por amor de Deus, que simplismo!, as ideias e as tendências das suas personagens.
 
 
Na época de Shakespeare os métodos biográficos não eram de forma nenhuma os que se viriam a impor em épocas subsequentes e a posteridade não seria ainda um dado que afectasse seriamente a consciência de um autor isabelino, e nem ele pretenderia talvez exibir-se ao mundo como personalidade pela interposta pessoa/personagem que criava.
 
 
Haverá uma pessoa, um ser humano singular por detrás de Macbeth, de Hamlet, de Prospero, ou haverá várias?
 
 
Shakespeare foi alguma vez a Veneza, a Verona, à Dinamarca?
 
 
Shakespeare foi alguma vez na vida militar, advogado, lavrador, ou judeu?
Com pilhas da graça, a actriz Ellen Terry chegou mesmo a perguntar à intelectualidade investigatória do seu tempo se Shakespeare não terá sido também mulher, já que o critério biográfico se apresentava tão escandalosamente simplista.
 
 
Mas está muito bem. Alinho na ideia de Keats: o poeta é tudo e nada. Tanto gosto lhe dá conceber um Iago como uma Imogene. Um poeta é a coisa menos poética deste mundo, porque não tem identidade, está constantemente a dar forma e a preencher uma outra pessoa.
 
                                          

Ou lá podemos cair na síntese de Bernard Shaw: não, não foi Shakespeare que escreveu Hamlet, Romeo e Julieta, Rei Lear, não, quem escreveu isso tudo foi um fulano que por acaso também era natural de Stratford, por acaso nascido no mesmo dia de Shakespeare, e que por improvável acaso também se chamava Shakespeare…
 
 
E acrescento com respeito a versões definitivas das peças: não as há absoluta e inquestionavelmente definitivas. Nunca as houve, a despeito de gerações de scholars se terem dedicado às mais aturadas pesquizas.
 
 
Nenhuma das versões existentes de cada peça pode, por conseguinte, ser considerada autêntica.
Há as versões aparecidas a partir de 1594, os in quarto, e as de 1623, os in folio – apenas questão de formato.
         Outra incerteza, em muitos casos, são as fontes. E as fontes foram os ditos livros de ponto, ou cadernos de actores que eram cópias feitas a partir de circunstanciais representações.
 
 
         Especialistas há que situam o ponto fulcral das dificuldades de autenticidade apresentadas pela obra de Shakespeare no facto de o autor ser um homem de teatro, que vivia do teatro e no teatro, um prático, um homem que trabalhava para concretas e materiais representações sem cuidados (ou pelo menos sem exagerados cuidados) com a posteridade. Quer-se dizer, sem cuidados de saber que o que fazia viria também a ser Literatura.
 
 
         O caso das datas. A Tempestade, um exemplo. Foi estabelecido que teria sido o último drama shakespeariano, com toda a aparente probabilidade escrito depois de 1610. Mas esta tese irrefutável também contou com as suas refutações. A principal delas teve a ver com a descoberta da peça de um certo Jakob Ayrer, de Nuremberg, Die Schöne Sidea, datada de 1595, glosando uma história muito semelhante à de A Tempestade.
 
 
         Ora acontece que a partir de 1593 os actores ingleses passaram a ir em digressão a Nuremberg representar peças inglesas. E logo se disse que a peça do tal Jakob Ayrer tinha sido influenciada pelo que ele havia visto nos espectáculos dos ingleses. O que imediatamente deu lugar a suposições de que A Tempestade poderia remontar a data anterior a 1610.
 
 
            A questão também poderá ser posta às avessas. Quando os actores ingleses regressaram de Nuremberg, Shakespeare tê-los-ia ouvido falar no drama do alemão e ter-se-ia interessado pelo assunto, e tê-lo-ia tratado à moda dele.
 
 
         Ou então, tanto Shakespeare como Ayrer se basearam na mesma lenda e beberam da mesma fonte – não esquecendo, ainda, uma novela espanhola de Antonio de Eslava, intitulada Noches de Invierno versando idêntico assunto.
         O problema das fontes é, aliás, central a grande parte da novelística e da dramaturgia clássicas. Não podemos esquecer que as tragédias gregas eram dramatizações de mitologias que todo o povo de Atenas conhecia de cor, ponto de partido para o entendimento dos subentendidos e dos subtextos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
 
         Em Shakespeare temos as fontes da realidade histórica dramatizada sobre as tábuas do palco. Mas não só. Porque há as fontes especificamente literárias, como é o caso da novelística italiana, fonte recorrente das mais afamadas obras da dramaturgia shakespeariana. Já não falando das fontes dos dramas espanhóis. Já não falando das fontes dos clássicos franceses. Ou não falando até de Goethe e Schiller.

        


 

 

 

segunda-feira, 20 de junho de 2016


shakespeare 400 – louis jouvet
 
                       


         Shakespeare diz (Hamlet, Acto 2, Cena II) que a natureza do comediante é contra a natureza, que é horrível, e, ao mesmo tempo, admirável. Resume tudo isso numa única palavra: Monstruous.
 
                                                                             
 
        O que é horrível no comediante não é uma mentira, porque ele não mente. Não é uma mistificação, porque ele não mistifica. Não é uma hipocrisia, porque ele aplica a sua monstruosa sinceridade a ser o que não é e não a exprimir o que não sente, mas a sentir o imaginário.
 
 
 
        O que impressiona o filósofo Hamlet, tanto como outras das suas aparições do Inferno, é, num ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico.
 
                                                                      
 

domingo, 12 de junho de 2016


SHAKESPEARE 400 – WOODY ALLEN

 
 

       De Shakespeare Woody Allen gosta mais da escrita (belíssima, superior) do que do lado teatral dessa escrita.
 
 
      Não lhe acha graça às comédias. Magníficos diálogos em comédias grosseiras, quase estúpidas, popularuchas. Sublimes momentos de tragédia, porém de organização cénica defeituosa.
       Falando de prémios, não, não dizem nada a Woody Allen, nada de mais, lá ficam nas vitrinas da casa a encher-se de pó, não mudam em nada a vida do premiado, não lhe trazem saúde, não lhe prolongam a vida.
 
 
      Nenhum reconhecimento, nem o mais prestigiante, afecta a vida que se tem e lhe acrescenta mais conforto ou mais equilíbrio.
       Cá por mim, não estou muito de acordo. Mas também quem sou eu para estar ou não de acordo? Nunca me deram nenhum prémio – ah, sim, uma medalha militar (se se lhe pode chamar prémio) que anda aí por casa, sei lá bem onde, a apanhar pó, isso mesmo, e que não acrescentou nada à minha vida.
 
 
       Na opinião de Woody Allen, nem Shakespeare teria achado especial piada aos prémios que lhe dessem – que não lhe deram.
       E nem mesmo as póstumas homenagens que lhe fizeram, e fazem, significam alguma coisa.
       E nem significariam alguma coisa de mais mesmo que ele fosse vivo e na noite de estreia de Hamlet lhe chegasse uma valente dor dentes.
 
 
        Se o público não gosta do teu trabalho continua a trabalhar. Das duas, uma: ou o público acabará por mudar de opinião, ou ficarás desempregado, e com razão. E quando os espectadores te chamam génio tapa os ouvidos e pergunta a ti mesmo: se eu sou um génio, que diabo de coisa serão Shakespeare, Mozart, Einstein?
 
 
       Não era que se considerasse um autor destituído de talento, mas, depois de morto, Woody Allen não se ralaria muito se lhe pegassem nos filmes e nos negativos e os deitassem ao lixo – desde que deixassem alguma coisita para os herdeiros, bem entendido.
 
 
      O grande Shakespeare não está melhor agora do que o escriba sem talento que escrevia comédias e tragédias na Inglaterra isabelina sem encontrar alguém disposto a encená-las.
       Mais do que continuar a viver na cabeça e no coração do público, prefiro continuar a viver no meu apartamento. 



sexta-feira, 3 de junho de 2016


shakespeare 400 - aristocracia


 


A qualidade aristocrática pode existir mesmo numa classe social desacreditada. Veja-se a classe dos artistas, os tocadores, os funâmbulos, os mágicos, os cómicos, os actores.
Uma aristocracia profissional, por dizer assim, que nada tem a ver com o nascimento ou com os sangues azulados, que é adquirida e que tem apenas a ver com o talento, porque aristocracia numa actividade profissional menos vulgar, que não está ao alcance de qualquer um, e para mais quando nessa actividade se atinge uma excelência que está ao alcance de mesmo muito poucos.
E é uma aristocracia mesmo bem fechada. Os artistas, os cómicos, foram gente historicamente marcada pela indignidade, olhada em séculos passados pelas classes dominantes com a máxima desconfiança, apenas um furinho acima dos vagabundos, dos ladrões.
 
 
É bem o caso dos actores shakespeareanos. Uma estirpe ínclita e destacada no círculo britânico da profissão de actor. Laurence Olivier presta-nos alguns informes que reputo interessantíssimos para quem, claro, se interesse por estas coisas inúteis, ociosas e fascinantes da cultura.
 
 
Chamam-se à conversa quatro nomes cimeiros da específica representação shakespeareana. Richard Burbage, David Garrick. Edmund Kean e Henry Irving – uma galeria de imortais que nenhum dos mortais ainda vivos alguma vez viu representar.
Aliás, cada um deles distanciado cerca de um século do que se lhe seguiu, e nem Burbage viu representar Garrick, nem Garrick viu representar Kean, nem Kean viu representar Irving. E nem nenhum foi portanto discípulo do seu predecessor. Mas Laurence Olivier pode distinguir processos e qualidades comuns a todos eles – distinguir ou conjecturar – tradições, princípios, uma moral.
 
 
Burbage, por exemplo, contemporâneo, colega e amigo do próprio Shakespeare, treinou um actor para lhe suceder, Joseph Taylor. E treinou-o particularmente num papel, Hamlet. E foi este Joseph Taylor o segundo Hamlet da História do teatro, o segundo ensinado pelo primeiro de todos, o criador do papel, o tal Burbage.
 
 
E depois, um certo Thomas Betterton torna a representar Hamlet, depois de estudar o papel com Sir William D’Avenant, que tinha tido a sorte de ainda ter visto representar Joseph Taylor, o tal segundo Hamlet.
 
 
E depois Garrick, que vem a fazer o Hamlet beneficiando da aprendizagem com velhos actores que haviam pertencido à companhia de Betterton.
 
 
 E depois Kean, a fazer o Hamlet segundo dicas apanhadas a um ou outro que tinha ainda trabalhado com Garrick.
 
E por fim Henry Irving, seguindo as tradições ouvidas a algum sobrevivente das companhias de Kean.
 
 
Mas para Richard Burbage resta a subida honra de ter sido o primeiro actor shakespeareano.
Olivier interroga-se sobre como teriam sido as relações de trabalho entre o dramaturgo e o seu primeiro actor. Quem teria tido primeiro as ideias. Qual o grau de contribuição que um grande actor possa ter dado à criação original do escritor. Não se sabe. Shakespeare daria a Burbage conta da situação dramática que pretendia e Burbage improvisaria muita coisa? Burbage teria inspirado Shakespeare para escrever uma cena assim ou assado, segundo as características dele como actor? Não se sabe. Mas desconfia-se sempre, não é?
 
A linguagem isabelina. O auge da língua inglesa, pois talvez não tenha havido propriamente língua inglesa antes de Shakespeare. Antes de Shakespeare ou antes de Burbage, que era quem a falava ao povo?
Seria Burbage mesmo um grande actor, ou seria apenas um fulano que aparecia muito lá pelo Globe, acamaradava com os artistas, tornara-se amigo de Shakespeare, e que, não sendo de todo desajeitado, passara a ser aquele que Shakespeare tinha mais à mão para lhe desenrascar alguns papéis e lhe vestir as fantasias, o tal homem que esteve no lugar certo no tempo certo?
 
 
Laurence Olivier pende para o caso de Burbage ser mesmo bom, muito bom mesmo. Porque um artista como Shakespeare não confiaria a parte mais carnuda e complexa da sua obra a um borra-botas. Sabe-se lá. O que se sabe é que bom, vulgar, ou mau, toca a Richard Burbage ser o criador de nem menos do que Hamlet, Lear e Othello. Não é brinquedo. E não seria empresa para qualquer.
Será que Shakespeare e Burbage teriam a noção de estar a criar “coisas” com plena validade para daí a quatrocentos anos? Acreditariam que daí a quatrocentos anos ainda haveria público para se emocionar com aqueles textos, ainda haveria actores a esgatanharem-se para representar tais personagens?
Ou será que Shakespeare e Burbage trabalhavam para o momento que passava, unicamente para o presente, o seu tempo, e porque sabiam que o teatro, sem rádio nem cinema nem televisão era, tal a música, uma arte do momento que passa?
 
 
No entanto, alguns comentadores da época disseram maravilhas do actor Burbage. E não só em Shakespeare.
E no epitáfio de Burbage alguém escreveu mais ou menos (este inglês antigo!) que ele morreu e com ele um mundo morreu. Não mais Hamlet, Lear ou o Mouro degenerado. Esses viveram nele e morreram para sempre com ele. Mais ou menos isto.
Passados mais de cem anos sobre a morte do primeiro Hamlet, como disse, David Garrick estuda o papel com alguém que ainda fez parte do grupo de Thomas Betterton, o mais próximo herdeiro da linhagem de Burbage.
 
 
Quando o fenómeno David Garrick rebenta na cena londrina, a vida teatral dormitava num marasmo de mediocridade lírica, romântica, sem grande significado. O aparecimento de Garrick mudou tudo.
 
 
A 19 de Outubro de 1741, Garrick estreia o Ricardo III. Era (foi) um acontecimento. Sobretudo para quantos, na época, iam ao teatro por puro entretenimento e não se queriam maçar com problemas. E Garrick, pelo estilo próprio de debitar e de se mover em cena pôs os mais cépticos em alvoroço. Garrick rompia com todo um sistema de meias tintas. E os críticos não acharam muito próprio aquele estilo.
 
 
O público, habituado a um certo e monótono mecanicismo no debitar dos papéis – a elevação declamatória da voz dando automaticamente lugar ao já esperado anti-climax – surpreendeu-se deveras com a novidade de uma voz sempre modulada, variada de inesperadas inflexões, com um perfeito conhecimento e domínio da personagem.
Foi a espantação geral. O público, surpreso, a simpatizar com o vilão Richard. E no fim o aplauso interminável. Estava assegurada a continuidade da linhagem ilustre. Garrick manteve-se nos cartazes teatrais londrinos até à hora da morte, em 1779. He must have been very special, indeed, diz Laurence Olivier. Era o primeiro special one em Londres. Mais tarde chegaria o Mourinho.
 
 
Quando ele (Garrick) caminha no palco entre diversos outros personagens, mesmo quando não exprime medo, esperança, suspeita, ou seja que emoção for, os olhos da audiência imediatamente lhe procuram a figura, porque ele se move entre outras personagens como se fosse um homem entre marionetes – escreveu um contemporâneo de Garrick. E mais: ele comanda na perfeição todos os músculos do corpo e a sua força cénica não é pura ilusão. Ele é de facto muito forte, e todavia espantosamente ágil e flexível. 
Olivier aprecia Garrick como o actor completo. Seis anos após a sua estreia em Londres, 1747, Garrick toma de sociedade o Teatro Real Drury Lane.
 
 
Terá sido um bom director, com o pormenor de ter instituído a disciplina na companhia, o que era coisa pouco comum então. Disciplina, nitidez de elocução e de movimento, concentração. Antes dele, cada actor permitia-se ter a sua versão do original de cada autor que representava.
 
 
O improviso era a norma. Garrick acabou com isso e corria com o actor que mostrasse menos respeito para com o público e/ou para com o texto que declamava.

 
Em rigor, disciplina, organização, homogeneidade de talentos e inovação – e salvas as devidas diferenças – Laurence Olivier inclina-se a pensar que a companhia de Garrick no Drury Lane pudesse ter sido percursora das companhias famosas existentes dois séculos depois, como as do Berliner Ensemble, do Teatro de Arte de Moscovo, do Piccolo Teatro de Milão ou da Royal Shakespeare Company.
Porque para conseguir fazer passar uma verdadeira ideia de teatro o menos recomendável é ter um primeiro actor muito bom e um grupo de acólitos de costas para o público só para fazer brilhar a estrela da companhia. O que é indispensável é dispor de um grupo de actores que acreditem no que fazem e contribuam para o trabalho colectivo. Não há papéis secundários. O Terceiro Homem de Armas que está imóvel e mudo à esquerda alta tem de acreditar que a peça é sobre um Terceiro Homem de Armas postado imóvel e mudo à esquerda alta. E se a personagem não vem no texto discriminada com um nome, cabe ao actor que a representa inventar um nome para ela – ainda que nunca tenha que o dizer. E assim como o nome, o actor deve inventar para a sua personagem uma família, uma história pessoal, um passado. Era assim que Olivier via as coisas numa companhia de teatro que valesse pelo conjunto.
 
 
Um detalhe do espírito inovador deste Garrick: até então, nos teatros, havia não um espaço para o público, mas dois. Quer dizer, o público, além da normal plateia, também ocupava o palco durante a representação. E isso ao ponto de poder haver tantos espectadores no palco que os actores mal se podiam mexer. E isso ao ponto de os espectadores meterem conversa com os actores. E isso ao ponto de durante a cena de Hamlet com o Espectro, o chapéu do actor que fazia de Hamlet lhe ter caído da cabeça e um dos espectadores do palco ter atravessado a cena, ter pegado no chapéu e tê-lo devolvido a Hamlet.
Pois Garrick acabou com tudo isto, ou seja, com o público no palco, para grande consternação de muita gente, alargando o espaço da plateia e dos eventuais camarotes, também para não perder dinheiro com a inovação.
 
 
Com o desaparecimento de Garrick, o teatro inglês tornou às velhas tradições do casuístico e da improvisação, a tradição do ensemble artístico esfumou-se e só vem a reencontrar-se já à entrada do século XX com outro expoente da aristocracia shakespeareana, Henry Irving.
Mas quem no entretanto empunha o glorioso bastão é Edmund Kean, o tal que até mereceu de Sartre uma peça sobre ele - adaptada de outra de um contemporâneo de Kean, Alexandre Dumas. Edmund Kean que nasce em 1787 e vai dominar o britânico e teatral século XIX.
 
 
Talvez Kean não fosse homem para desenvolver projectos de conjunto. Talvez fosse uma personalidade para brilhar solitária. Segundo Olivier, era mesmo.
Olivier destaca na envergadura de Edmund Kean a sua dedicação. Dedicação à ideia de teatro, de representação. Dedicação, quiçá, à sua própria personalidade egótica de actor. Dedicação, determinação. O homem (ou a mulher, já se vê) que quer chegar, ver e vencer, digamos, precisa muito disso. São qualidades cruciais para quem quer ser um grande na arte de representar.
 
 
O actor é um ser egocêntrico e preparado para escalar a montanha de dificuldades que se lhe apresentarem, cego e surdo ao que o rodeia, fixado no objectivo que quer atingir, o topo, o máximo. Pode ser que, chegado ao cimo, atingida a realização plena dos seus desígnios, ele ainda tenha alguns amigos, e seguramente que esses amigos serão pessoas excepcionais.
Determinação. Contava-se que Kean, que morava no lado sul do Tamisa, sabendo que no Drury Lane, na parte norte, se representava o Mercador de Veneza e que alguém muito bom encarnava Shylock, quis tanto ir ver a peça que, sem dinheiro para o transporte, resolveu meter-se ao Tamisa e atravessá-lo a nado.
 
 
Edmund Kean consumiu-se na dedicação ao trabalho e na busca do reconhecimento geral até aos 44 anos. Deslocava-se de cidade para cidade, incansável, com a família, em condições ingratas, à procura de trabalho de actor, ao ponto de um dos filhos lhe morrer no meio de uma estrada durante uma dessas viagens. Lutou como um titã para aceder aos meios sociais a que não pertencia. E bebia muito. Tipo temperamental, autista, desbragado, bêbedo, não seria fulano agradável ao convívio. Os grandes amigos que tinha eram os que bebiam com ele pelas tascas e pelos pubs de estrada. Era outro special one.
Coleridge escreveu sobre Kean: é como ler Shakespeare entre súbitos relâmpagos de luz intensa.
 E Hazzlitt, na obra View of the English Stage, ao vê-lo em Ricardo III: ele dava a mais alta animação ao papel, sem que ninguém o ultrapassasse. Em quem arriscava tanto pouco havia, de facto, a censurar. A progressão da personagem, da manhosa adulação à abusiva humildade, era marcada ao longo da acção pela voz e pelo olhar. Parecia o tentador aproximando-se da presa, certo de conseguir. O rei Ricardo não aparecia como um amante, mas como um actor a exibir a sua superioridade mental e o seu poder, fazendo dos outros joguete da sua vontade.
 
 
Foi de assombro a primeira noite de Edmund Kean no Teatro Real. Não ensaiou com os colegas. Nesse tempo era mesmo assim, um pouco talvez como na ópera no tempo das grandes vozes.
Kean, apesar da baixa estatura física, era uma star. A cena estava montada, a estrela chegava e movia-se no palco como queria, marcava o tempo da representação e tudo se lhe subordinava. Kean era então uma completa novidade na cena londrina. Os empresários talvez o tivessem visto trabalhar na província e fiaram-se mais do que tudo na popularidade dele. O teatro estava a deitar por fora para ver o desconhecido famoso que ia representar Shylock. No intervalo, o público do Drury Lane passou palavra ao público do teatro vizinho e rival, o Covent Garden, e os do Covent Garden foram para o Drury Lane e no fim da função já lá não cabia um alfinete. Edmund Kean estava consagrado como um divo, um ídolo, um príncipe da estirpe shakespeariana.
 
 
Kean, estrela de primeira grandeza, e depois o maior actor clássico do seu tempo, foi uma jogada no escuro para a empresa do Drury Lane, um risco. Um risco que saiu certo. O Drury Lane estava nas lonas financeiramente e a chegada de Kean mudou completamente as coisas.
O testmunho material que resta de Kean, fico a saber, existe no British Museum e é uma cópia do Ricardo III em que um insignificante assistente de palco se deu ao trabalho de anotar as inflexões do mestre. Por aí se colhe alguma ideia (ou especulação) sobre a representação rítmica de Kean, sobre, talvez, a sonoridade da voz. E fora isso, nada mais senão os comentários já referidos de Coleridge e Hazzlitt.
Olivier, analisando o documento, pensa que a abordagem de Kean às personagens andaria próxima da modernidade de fins do século XX. Kean deve ter desprezado o modo romântico em voga e aberto caminho a uma nova frescura, uma outra verdade interpretativa, realista, naturalista, certamente agressiva para o público do tempo, habituado ao actor da moda, o inefável, etéreo e romanticíssimo John Phillip Kemble.
 
 
Mas o que estava ainda em vigor nos teatros londrinos era o atirar com toda a sorte de coisas para o palco, para o actor canastrão que não agradasse. E Kean, tal como conheceu a loucura do aplauso, também, para o fim da vida, experimentou alguns desses dissabores.
         - Ó Sô Kean, você está bêbedo! - gritou-lhe uma voz em Liverpool, por volta de 1830, logo depois da primeira tirada de Ricardo III, aquela do inverno do nosso descontentamento.
Tinha estado toda a tarde a beber e a recordar velhos tempos com o colega que representava o Duque de Buckingham. Ouvindo a invectiva do espectador, Kean parou, calou-se, olhou para a plateia, e vociferou:
- Se você acha que eu estou bêbedo, então espere até ver o Buckingam entrar em cena.
Sartre, na sua peça, justamente intitulada Kean, faz-lhe dizer: torna-se-me incompreensível a razão porque a Inglaterra me coloca simultaneamente tão alto e tão baixo. Sou um rei ou sou um palhaço? Devo estar doido de orgulho. É impossível que não me considerem o maior, o maior de todos. Quem possui o meu génio? E todavia sinto-me habitado pela mais profunda humildade. O meu génio é nada. Nada mais do que uma maneira de dizer as palavras, de fazer gestos. Nada mais do que um golpe de prestidigitação. Sou o homem que todas as noites se faz desaparecer a si próprio.
 
 
Um certo Leigh Hunt escreveu sobre Kean: exibiu o seu sarcasmo, a sua doçura, o seu pathos, a sua inexcedível graça, a sua galante levitação, a sua desmesurada dignidade e a sua figura pequena tornou-se absolutamente alta e tocou os cumes da grandeza moral nas vestes de Othello.
       Ou ainda: vêmo-lo rodeado por três ou quatro pessoas, todas elas mais altas do que ele, mas ele, tão gracioso, tão tranquilo, tão superior, tão nobremente possuído por si mesmo faz com que lhe atribuamos uma estatura moral que se confunde de imediato com uma estatura física.
E nenhum outro, até ao aparecimento de Henry Irving, foi menino para tomar em mãos o nobilíssimo bastão shakespeariano que Kean empunhara.
 
 
Irving, que nasceu cinco anos depois da morte de Kean, nunca o viu representar, evidentemente, mas viria a elegê-lo como seu ídolo. E iniciada a carreira não decorreu muito tempo até que fosse ele the talk of the town e tivesse o teatro inglês na palma da mão.
Dedicação. Determinação. Qualidades decisivas no armamento do actor e que Henry Irving possuía em graus semelhantes aos antepassados na aristocracia shakespeariana. E a tal ponto que na noite de 25 de Novembro de 1871, às tantas da noite, após um retumbante triunfo no Teatro Lyceum, de regresso a casa com a mulher, Florence, numa carruagem alugada, Irving vira-se para ela e atira-lhe:
- Pois bem, minha querida, não faltará muito tempo para passarmos a ter a nossa própria carruagem e a nossa parelha de cavalos.
A mulher replica-lhe:
- Não me diga que você pensa continuar nestas loucuras de teatro pelo resto da sua vida!
Irving, acto contínuo, iam em Hyde Park Corner, ordena ao cocheiro que pare a carruagem, sai, e já no chão tira o chapéu, inclina-se, e diz:
- Então desejo-lhe muito boa noite, minha querida, nunca mais nos voltaremos a encontrar.
Florence seguiu para casa sozinha e Irving nunca mais voltou a casa nem nunca mais voltou a ver ou a falar com a mulher.
 
 
Como Kean, a representação de Irving era marcada pela realidade, pela verdade, apresentando a personagem em explosões de personalidade, nos tais relâmpagos encantatórios de intensa e humana luz.
 
 
E quanto a mais afinidades entre os dois grandes actores, fora o enorme talento, possivelmente uma, só, ambos morreram sem um tostão. Mas também não era essa a ideia de vida para um e para o outro, certamente, enriquecer pelo próprio talento. Pelo menos Irving chegou a dizer a alguém:
- Estou pobre, mas também tenho a certeza de que se vim a este mundo para alguma coisa não foi para amealhar dinheiro.
 
 
A geração shakespeariana de Laurence Olivier foi teatralmente formada sobre a memória de Irving. Olivier nasceria dois anos depois da morte de Irving, ocorrida em 1905. E a memória de Irving chega-lhe naturalmente pelo conhecimento de velhos actores que ainda tinham visto Irving. E assim a linhagem aristocrática dos intérpretes de Shakespeare prosseguia.
E nesta ordem aristocrática de ideias, Olivier nota que o grande actor, antes de mais, é aquele que quer ser mesmo actor, e não aquele que anda metido em teatradas e diz, “bem, se eu chumbar nos meus exames à Faculdade de Direito dedico-me ao teatro”. Não era nada esse o pensamento de um actor dos grandes tempos de Burbage e Garrick e Kean, ou mesmo de Irving. O ser actor tem de ser muito mais do que um falhanço noutros propósitos. Mesmo que nunca chegue a ser grande.
 
 
Se ainda nos tempos de juventude de Olivier o actor ficava um tanto nas margens da sociedade, imagine-se nos tempos de Garrick e Kean – não falando já de Burbage. Nesses tempos, um homem ou era actor porque se sentia nascido para tal, ou, das duas uma: seguia o seu caminho nas margens sociais, ou morria – e se não morria teria preferido a morte do que viver outra vida que não fosse a da sua vocação.
Olivier admite que Burbage, Garrick, Kean ou Irving, todos eles inovadores na sua arte, chegaram ao teatro no tempo próprio, no tempo em que o teatro precisava deles, precisava da vitalidade que cada um deles lhe trouxe, e sendo que depois de cada um deles o teatro inglês não seria mais o mesmo que fora antes de cada um deles.
 
 
Dentro desta restrita linhagem shakespeariana dois notáveis outsiders ao universo inglês se agigantam para nela enfileirar de direito. Fala-se dos americanos Edwin Booth e John Barrymore – o último deles com influência real e grande na vida artística do próprio Laurence Olivier.
 
 
Olivier corria a apreciar e a aprender com Barrymore de cada vez que ele actuava em Inglaterra. Achava-o um actor de outro planeta. Tudo nele era excitante, original, carismático, perfeito – até o inglês dele era perfeito. E John Barrymore é decisivo nas escolhas de vida de Laurence Olivier, convencendo-o de que o lugar dele era mesmo no palco, a viver a tragédia de Hamlet.
 
 
Depois de Irving, uma vez mais, a representação de Shakespeare voltava à mesma rotina sequencial e soporífera de árias e inflexões postiças, poéticas, bonitas, mas, como ele diz, castradas. Barrymore punha masculinidade e sensualidade viril no que dizia e fazia em palco. Até o sol podia desaparecer quando John Barrymore entrava em cena.
 
 
E foi esta aristocracia que, segundo Olivier, iluminou os firmamentos do teatro shakespeariano – ou o teatro em geral – para sempre.
E Laurence Olivier com estes exemplos compreendeu depressa que o importante não é estar em primeiro lugar e em grandes parangonas no cartaz. O importante é ser o melhor. É este o princípio, e a moral desta extravagante aristocracia.
 
              

                                                                         
                                                       
                                             
Á qual, por minha conta, acrescentaria uma boa quantidade de outros nomes e de outros aristocráticos génios cronologicamente mais próximos de nós... Gielgud, Brannagh, Ralph Richardson, O'Toole, Burton, Paul Schofield, Derek Jacobi, Anthony Hopkins, Donald Wolfitt...