MUDAR A VIDA
Sim, eu disse “mudar a vida”. Não disse “mudar de vida”. Parece a mesma coisa, mas pode não ser.
Este assunto foi-me sugerido há anos, há uns
bons anos, ao rever um filme de um cineasta que admiro: Woody Allen. O filme chama-se Another Woman - Uma Outra Mulher, literalmente, em
português.
A protagonista é professora de Filosofia em Nova York,
mulher na casa dos 50 anos. Faz anos de casada e vai jantar fora com o marido e
com um casal amigo. Ainda antes de começarem a jantar, uma senhora de uma mesa
vizinha dirige-se-lhe: desculpe incomodar, eu fui sua aluna há 20 anos, em
Vermont, com certeza que não se lembra de mim…
Mas a professora tinha uma ideia daquela cara.
- Sabe,
a senhora mudou a minha vida.
– Eu? Mudei a sua vida?
–Sim, a senhora era uma
inspiração para mim, para todas as mulheres do departamento de Filosofia.
Lembro-me das suas aulas. Lembro-me de uma conferência sua sobre ética e
responsabilidade moral. As suas ideias ainda hoje me inspiram.
A professora
ouve a antiga aluna com expressão embaraçada. Acho natural.
Pense o ouvinte com que cara ficaria se lhe dissessem uma coisa parecida.
- Só
lhe queria dizer isto, já a tinha visto neste restaurante mas nunca tinha tido
coragem para lhe falar, para lhe dizer como mudou a minha vida.
Oh, como um professor podia concorrer para uma mudança
de vida! Noutros tempos? Ainda hoje? Seja como for, nunca eu tive essa sorte.
Se alguns professores me mudaram a vida foi no sentido de nunca mais os
frequentar.
A do filme era uma professora de Filosofia. Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o
ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos
aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o
desemprego.
Seja
como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se
suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os
políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a
propaganda. Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva
– ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media. Os
poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um
cidadão, pode despertar uma consciência individual.
A
Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que
consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de
moda por alguma razão superiormente determinada foi. Pensar pode ser um perigo.
Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias
decisórias. Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de
desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em
Portugal. E não só… o que é pior…
A Filosofia
pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a
escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido
com maior ou menor habilidade.
O actor
e realizador americano Denis Hopper – suponho que já falecido – numa entrevista
que lhe ouvi há anos, dizia a todo o momento, a propósito de um filme, de um
livro, de uma personalidade que conhecera e o impressionara, que tinham sido
encontros e experiências que lhe haviam mudado a maneira de encarar a vida. Que
lhe tinham mudado a vida. E pode perguntar-se: para que serve a arte (e a cultura)
senão para mudar a vida das pessoas?
Pois é,
a vida de cada um pode não estar condenada à mediocridade a que cada um se
acomodou.
Quantas
vezes dizemos a nós mesmos, e aos outros “ah, isto não é vida!”, ou “isto não é
vida para mim!”? E dos que o dizem há os que vão imediatamente à procura de uma
vida, de uma mudança. Da mesma forma que há aqueles que, como eu, preferem não
procurar e, sem objectivamente procurar, encontrar. Ou como dizia, parece-me, o
Picasso, “eu não procuro, encontro”.
Há os
que ficam à espera que a vida deles mude, sem procurarem e sem disponibilidade
para encontrar. Em geral, esperam muito tempo. E a vida não muda. Justamente
porque estão mais dispostos a procurar do que a encontrar. Mas as portas da
nossa vida, a interior como a material, deveriam estar permanentemente
abertas. Assim como as janelas do nosso espírito. De outra maneira a vida não
muda. Ou demora mais. E com infinitamente menos compensações.
Mudar a
vida. Pode ser uma banalidade que se diz como qualquer outra, que se diz e
nunca se faz, não acontece. Uma fórmula. Porque também podemos pensar que num
arco de 70, 80 anos de duração de uma vida, ela realmente pouco muda. Não
crescemos assim tanto como isso. Mas o mudar até pode não passar – o que não
acho pouco – de um retorno às origens aos valores fundacionais da nossa
personalidade.
Conhecer
uma pessoa. Ver um filme. Contemplar um quadro. Ler um livro. Viver uma
experiência insólita – e sendo que o viver uma experiência se pode conter numa
leitura, no visionamento de um filme, num quadro, num contacto pessoal. Os afluentes da mudança de vida
oferecem-se-nos ao longo da existência. A vida mesma é a maior oportunidade que
nos é dada de a mudar. E de mudarmos com ela.
Para
que teria servido a grande literatura se não nos tivesse dado pistas novas
sobre o nosso viver?
Romances
houve lidos na casa dos 20 que me acompanharam à cabeceira por mais de 20
outros anos, que formaram muito da minha personalidade, e aos quais ainda
regresso de quando em vez. Dois, três, quatro, cinco filmes houve que me
indicaram alguns caminhos possíveis, e diferentes, de vida, da vida a que o
chato destino me teria compelido se não tivesse visto aqueles filmes. Caminhos
que eu evitei percorrer.
Livros
que se lêem, filmes que se vêem, pessoas que se conhecem e que contribuem para
que nunca mais sejamos os mesmos que fomos antes de os ler, de os ver, de as
conhecer.
Vida é
experiência constante. Mudar a vida pode responder a uma necessidade de mudar
de experiências, de as procurar novas, outras. Ou de as reviver, velhas.
Quanto
mais curta e jovem é uma vida mais probabilidades tem, naturalmente, de mudar.
Até chegarmos a uma certa época em que pouco ou nada poderemos mudar a nossa
vida.
Mas
quanto a isso, de vida… vamos lá a ver.. que vida?
Pois
com certeza que há a vida exterior. Há a vida interior. Há a vida física,
concreta. Há a vida íntima, reservada, às vezes secreta. Há o sonho, que faz
parte da vida mais íntima. Há aquela vida, aquela estranha, misteriosa vida, a
vida sexual. Há a vida profissional. Todas elas imbricadas numa só. Há muita
vida para viver, e várias vidas à espera de mudar.
Por
vezes, quando sentimos que alguma coisa mudou na nossa vida interior, podemos
experimentar o impulso de ir, como disse, à procura dos instrumentos que lhe
possam mudar o exterior. E sem garantia de que esse exterior possa mudar um
dia, em tempo útil. Mas logo que na nossa vida interior sentimos o clique, metade
do caminho da mudança pode estar andado. Pode nem ser para uma vida
materialmente melhor. Pode ser só para uma experiência diferente.
Uma
vida diferente pode logo – sem o ser objectivamente – ser melhor do que a que a
que tínhamos. Pelo menos até ao próximo clique, quando sentimos algo cá dentro a
pedir-nos mais. Partimos para outra, como se diz popularmente, e pode não ser
má coisa.
Não
temos só uma, não, temos várias. Vidas. E em verdade vos digo, irmãos, que mal
de nós se só tivermos uma vida para
viver. Essa é chata e triste, de certeza. E as vidas que temos em nós mudam e
dão lugar a outras. Ou ficam na mesma – se é que se pode dizer que alguma coisa
à face da terra e no imparável rolar do tempo fica na mesma.
Chegados à tal certa idade, depois das diversas mudanças que se operaram em nós e na nossa
vida, podemos concluir que essa vida, afinal, pouco mudou. Ou que nunca na
nossa vida houve mudanças essenciais. Talvez por não termos aproveitado ao
máximo as ocasiões que a própria nossa vida e destino nos ofereceram para mudar
alguma coisa. E quando assim é, chegados a certa idade, verificamos com algum
desconsolo que a grande e épica vida que foi a nossa, e que foi única, ficou de
súbito mais pequena, muito mais pequena.
De entre
as experiências artísticas talvez a música, arte abstracta, sons que sempre
sonhamos tornar concretos ao sabor da nossa disposição íntima e dos nossos
sentimentos, talvez a música, digo, seja a que menos ensejos nos proporcione de
mudar a nossa vida. A audição da grande música pode criar-nos a tendência fácil
de nos comprazermos com aquilo que somos, que fazemos, que pensamos, imutável.
Posso dizer com a mais absoluta das certezas que a minha vida mudou
radicalmente numa noite de Março de 1962, a noite em que pela primeira vez na
minha vida chata e pré-formatada e burguêsmente destinada, assisti a uma ópera.
Coliseu. Simão Boccanegra, com Tito Gobbi no papel titular.
Num
quadro de realidade mais crua e concreta, evidentemente que a minha vida não
mudou nada nessa noite, nem nas noites, muitas, que se seguiram. A minha vida mudou, e de forma radical, dentro
de mim. Foi o corte com o destino que se operou. Tinha 18 anos. Uma boa idade
para mudar a vida, sem dúvida. Tinha 18 anos e tinha descoberto uma coisa. Uma
coisa transcendente ao meu real imediato. Tinha descoberto uma nova aventura
para viver, para lá do futebol e das miúdas, e queria com a máxima força viver
essa aventura. E a parte mais importante da minha vida que se seguiu a essa
noite foi justamente passada a viver aquela aventura de música e drama antigo,
aquele excesso emocional e estético, aquele gesto, aquela luz, aquela
celebração, aquela tragédia.
Na
verdade, o que então pensei foi que gostaria de ter uma actividade ou profissão
que me levasse a viver a aventura o mais por dentro possível, como participante
da cerimónia. Não sabia como nem a fazer o quê, mas fiquei a saber que não
descansaria enquanto não achasse maneira de mudar a minha vida naquele sentido.
Mas
mesmo vivendo a aventura por fora, só como ouvinte e espectador, a experiência
seria muito forte e transfiguradora, e a minha vida tinha mudado. Foi a minha
primeira mudança de vida – escolhida por mim, bem entendido. Nunca mais fui o
mesmo. Era como se tivesse descoberto em mim a existência secreta de outra
pessoa. Uma espécie maravilhosa de salvação da alma.
Até que
chega o dia em que a minha vida muda mesmo naquele sentido. E a minha vida real
tornou-se irreal. Maravilhosamente irreal na sua realidade.
Temos
muitas vidas. Muitas vidas para transformar noutras vidas. Muitas vidas para
dar uso e sentido à nossa vida, a única.
Ai de
quem tenha só uma vida, repito. Ter só uma vida é prisão, é dependência, é
ideia fixa, é mania. Quem tem só uma vida vai chatear-se de morte a pensar
exclusivamente naquela vida. Na SUA vida – o protagonista de si próprio.
Mas
também haverá que pensar e mudar as vidas que não são a nossa. Sim, também,
quando somos o encontro de alguém; a experiência que alguém achou em nós e lhe
mudou a vida – sermos a modos que a professora do filme do Woody Allen.
As
vidas que não são a nossa, mas que no contexto dos outros, do quotidiano, no
contacto com os outros, são vidas que criamos, uma vida de outros criada em
nós. O encontro, a experiência, a troca, sempre. E inventamos em nós e para nós
as vidas dos outros. Imaginamos cenas, roupas, móveis, tudo o que se passa com
outros; e ponderamos, e criticamos, e aconselhamos as atitudes e as decisões
dos outros como se fossem as nossas, as vidas que outros nos contam como suas.
Solidarizamo-nos. Repudiamos. Entusiasmamo-nos. Desesperamos. Vidas que,
dependendo das afeições ou da proximidade que temos deles, e com eles, passam a
ser parte da nossa própria vida, e a ser
uma alegria ou uma ralação para nós.
As
vidas dos outros, sim, mudadas ou por mudar, vêm ter connosco, com a nossa
vida, e muitas mais vezes do que nos possamos dar conta. E passam a ser também
responsabilidade nossa, vida nossa, que muitas das vezes até achamos que valia
a pena mudarem um pouco.
“Meta-se
na sua vida”, dizem-nos nos nossos mais inglórios momentos de impertinência.
Mas não somos nós que temos de nos meter na nossa vida. É a nossa vida vida que
tem de meter-se em nós. E às vezes não se mete. Às vezes é a vida dos outros
que se mete mais em nós do que a nossa.
E desde
logo porque a minha vida não sou eu. Era o que faltava. Eu sou eu e a minha
vida é a minha vida. Eu não me posso mudar muito, mas à minha vida posso. Quantas
vezes uma tarefa, uma obrigação, nos leva a dizer “ai eu não tenho vida para
isto”. Lá está a independência. Eu tenho que poder mandar na minha vida, e não
é a minha vida que tem que mandar em mim – embora muitas vezes o seja. Quer dizer, eu tenho vida, a vida que se foi
criando e que eu criei em mim, para mim, e que pode ou não permitir-me fazer
isto ou aquilo em vez daquilo ou daqueloutro. Eu tenho-me a mim. Tenho o meu
ser. Não tenho, em absoluto, a minha vida, ou a vida que gostaria, ou precisaria,
de ter. E ter para quê? Para ser mais completa e agradavelmente eu.
Muitas
vezes não tenho é tempo. Tempo para ter vida. E se não tenho tempo não tenho
vida. Porque vida é tempo. E tempo limitado. E condicionado. E contado. Vida é
tempo, e vida é talento e/ou inépcia. A minha vida é o espaço e é o tempo e é a
acção que me concedo (ou os outros me concedem, ou a vida mesma me concede) de
ser eu. Mas a minha vida não sou eu. Mal de mim, se fosse. Era uma limitação
demasiada.
A minha
vida não sou eu, mas se não tiver vida não posso ser eu. A minha vida apenas me
pode conceder que eu seja eu.
A minha
vida, pois, é um meio. Um meio para ser eu. Não, a minha vida não é um fim.
Embora o seja, porque eu sou eu para quê, afinal de contas? Ora essa, eu sou eu
para viver a minha vida, a minha vida que não sou eu mas que é minha, e que,
tendo embora muitas, fora desta não tenho outra.
Um
outro filme. E por sinal também de Woody Allen. Ana e Suas Irmãs. Um
filme visto uma vez, duas, e que revisto em certa idade mudou a minha vida, e
mudou no sentido de lhe esbater os contornos perfeitos, ideais, optimísticos.
Uma banalidade, também, mas muito poderosa.
Woody
Allen é produtor de televisão. É um hipocondríaco desastrado e inábil. Um dia,
sente uma tontura, sente ter perdido a audição no ouvido direito. Segundos
depois de se ter queixado ao médico já não tinha a certeza de ser no direito ou
no esquerdo. Exames feitos. Perda de sensibilidade para decibéis altos. Bem, lá
por causa disso, deixo de ir à ópera. Tonturas? Zumbidos? Sim, agora que o
médico falava disso, sim, oh sim, tonturas, zumbidos. Novos testes.
- Qual é a
pior das hipóteses, doutor?
- Um tumor cerebral.
Woody
Allen vive em pânico antes dos novos testes. Ouve campainhas a tocar. Pergunta
à secretária se também ouve campainhas a tocar. Sim, ouve. Há dois telefones a
tocar ao mesmo tempo no gabinete.
Raio X.
Uma zona cinzenta a aparecer na radiografia que o médico confessa não ter
esperado encontrar. Recomenda-se um TAC ao cérebro. Woody Allen sai desfeito do
hospital. Tenta
concentrar-se, auto-encorajar-se. Tem calma, ele não disse que tu tinhas
alguma coisa, só não gostou da mancha na radiografia, tem calma, pá, estás em
Nova York, a tua cidade, cheia de gente, de trânsito, de montras, de
restaurantes, tu não podes desaparecer assim, tu sempre foste a médicos e as
notícias foram sempre boas.
O
médico dispõe as chapas. Mostra-lhe o tumor. Só para lhe dizer que a operação
ao cérebro não iria resolver nada. Woody Allen sente-se a contas com a
eternidade.
No
plano seguinte, o espectador percebe que a primeira versão da cena era uma
projecção do imaginário de Woody Allen a preparar-se para o pior. Na segunda
versão, o médico dispõe as chapas e diz que está tudo bem, não há motivo para
alarme, ele não tem nada no cérebro.
Woody
Allen sai do hospital do Monte Sinai aos pulos de alegria. Era como se tivesse
adquirido uma nova vida. O resultado favorável dos exames mudara-lhe a vida.
Woody
Allen dá pulos de alegria ao sair do hospital. Mas, de repente, pára. E pensa.
E deprime-se.
Pensa:
estamos presos por um fio; as coisas, tudo, de um momento para o outro podem
perder o sentido. Mas ele não estava a morrer com um tumor no cérebro! Pois
não, não estava. Por agora. Não vou morrer hoje, nem amanhã, nem depois de
amanhã. Mas um dia estarei nessa situação. E essa situação, real e inevitável,
é alguma coisa que ao longo da vida vamos escondendo no fundo da nossa mente.
E
depois há uma parte com piada em que ele confessa à secretária que, na
perspectiva do tumor, tinha comprado uma caçadeira para pôr termo à vida e
evitar os sofrimentos do cancro. O problema eram os pais. Quer dizer, para evitar
aos pais o desgosto do seu suicídio teria de os abater primeiro. E também a
umas tias que lhe eram muito afeiçoadas: teria de as matar para lhes poupar o
desgosto do seu suicídio. Seria um banho de sangue: outro problema que o tumor
no cérebro lhe colocava.
E em
verdade vos digo, caros ouvintes (sou eu a falar agora): este filme (genial
todo ele, de resto) e esta sequência, mudaram a minha vida. É verdade. Nunca
mais pensei como pensava – ou não pensava, despreocupadamente. Passei a pensar
como a personagem do Woody Allen. Um dia estarei naquela situação.
E mais
fortemente pensei assim depois de passar dos 50. E a vida nunca mais teve o
mesmo sabor. Outros sabores teve. Não o mesmo. A minha vida tinha mudado. Mas
depois disso, as hipóteses de a mudar foram encurtando até ao zero. E nunca
mais me deu o mesmo prazer o acto de viver a minha vida. A minha vida estava a
circular-me ao lado. Eu passava a ser só eu. Não sei se era o meu eu que
ultrapassava a vida, se, pelo contrário, a minha vida, nas suas inevitabilidade
e finitude, me ultrapassava a mim, fora da minha vontade de mudança, fora do
meu desejo de permanência.
Há uma
idade para se ter um primeiro conhecimento da morte
Serei
eu a determinar a minha vida, a fazer a minha vida… ou a fazer pela vida, como
se costuma dizer? Em parte, sim, claro, é óbvio. Toda a gente sabe que sim,
vida, futuro, destino – tal como fui eu a realizar o meu passado. Eu? Ou os
outros mais do que eu? Os outros, o mundo, a geografia, a genética, a economia,
a política, a família, essas entidades a fazerem a minha vida tanto, ou muito
mais, do que eu a fiz? Claro que sim. Mas que vida? A exterior e visível? A
interior?
Ser por
ser, eu sou mais a minha vida interior do que a exterior. Sou. Mais as minhas
tendências, os meus gostos, as minhas paixões, o meu clube. Sou mais isso do
que os meus repetidos actos quotidianos, a maior parte deles automáticos e
sugeridos por vontades que me são exteriores.
A nossa
vida social, pública, pode ser uma anti-vida. Pode ser mais a vida dos outros
do que a nossa. Tenho que me vestir assim ou assado, tenho que ir ali e acolá.
Tenho que dizer isto assim-assim. Tenho que calar aquilo. O ponto em que a
minha vida possa ser eu é aquele ponto interior que há em mim e faz de mim o
que eu sou.
O que
mais verdadeiramente eu sou – e a minha vida é – pode não ser aquilo que os
outros mais facilmente apreendem de mim. E agora até me lembrei de alguns serial
killers, ou pedófilos, ou terroristas. Quem são
eles? Que vida verdadeira e interior é a deles? Nasceram criminosos, ou mudaram
por qualquer apelo, experiência, livro, filme, encontro? Esse apelo estava
neles, na vida interior deles, ou chegou-lhes da vida que corre paralela, mas
exterior a eles?
Mudar a
vida. Bem, mudar a vida pode ser a simplística fórmula de exprimir o quanto uma
coisa, facto, história ou pessoa me impressionou. Pode ser mais do que isso, claro. E mais do
que isso é a fatalidade do real. Pode ser. Porque também, tal como as vidas, há
realidades ilusórias. Por paradoxal que pareça. Até há realidades fictícias,
quero eu dizer, uma realidade interpretada por ela mesma, nela mesma, a viver
por ela mesma, realidade.
Uma
vida real e fictícia, sim acontece, na realidade como na ficção. Um mundo que
pode não existir mas que nos sentimos a vivê-lo. A espaços. A espasmos. Em
capítulos. E em zonas distintas da consciência, se as há. Em sombras e claridades.
Como toda nossa vida, não?
E agora
saltam-me aos olhos umas palavras do Dalai Lama: os homens perdem a saúde
para juntar dinheiro, e perdem dinheiro
para recuperar a saúde. Pensam ansiosamente no futuro e esquecem o presente, e
de tal modo que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como
se fossem morrer. E morrem como se nunca tivessem vivido.