domingo, 25 de novembro de 2012



MUDAR A VIDA

        
         

      Sim, eu disse “mudar a vida”. Não disse “mudar de vida”. Parece a mesma coisa, mas pode não ser.
        Este assunto foi-me sugerido há anos, há uns bons anos, ao rever um filme de um cineasta que admiro: Woody Allen. O filme chama-se Another Woman  - Uma Outra Mulher, literalmente, em português.
         A protagonista é professora de Filosofia em Nova York, mulher na casa dos 50 anos. Faz anos de casada e vai jantar fora com o marido e com um casal amigo. Ainda antes de começarem a jantar, uma senhora de uma mesa vizinha dirige-se-lhe: desculpe incomodar, eu fui sua aluna há 20 anos, em Vermont, com certeza que não se lembra de mim…
         Mas a professora tinha uma ideia daquela cara. 
       - Sabe, a senhora mudou a minha vida. 
       – Eu? Mudei a sua vida? 
    –Sim, a senhora era uma inspiração para mim, para todas as mulheres do departamento de Filosofia. Lembro-me das suas aulas. Lembro-me de uma conferência sua sobre ética e responsabilidade moral. As suas ideias ainda hoje me inspiram. 
   A professora ouve a antiga aluna com expressão embaraçada. Acho natural. Pense o ouvinte com que cara ficaria se lhe dissessem uma coisa parecida. 
    - Só lhe queria dizer isto, já a tinha visto neste restaurante mas nunca tinha tido coragem para lhe falar, para lhe dizer como mudou a minha vida.
   Oh, como um professor podia concorrer para uma mudança de vida! Noutros tempos? Ainda hoje? Seja como for, nunca eu tive essa sorte. Se alguns professores me mudaram a vida foi no sentido de nunca mais os frequentar. 
A do filme era uma professora de Filosofia. Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o desemprego.
       Seja como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a propaganda. Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva – ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media. Os poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um cidadão, pode despertar uma consciência individual.
         A Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de moda por alguma razão superiormente determinada foi. Pensar pode ser um perigo. Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias decisórias. Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em Portugal. E não só… o que é pior…
       A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido com maior ou menor habilidade.
     O actor e realizador americano Denis Hopper – suponho que já falecido – numa entrevista que lhe ouvi há anos, dizia a todo o momento, a propósito de um filme, de um livro, de uma personalidade que conhecera e o impressionara, que tinham sido encontros e experiências que lhe haviam mudado a maneira de encarar a vida. Que lhe tinham mudado a vida. E pode perguntar-se: para que serve a arte (e a cultura) senão para mudar a vida das pessoas?
        Pois é, a vida de cada um pode não estar condenada à mediocridade a que cada um se acomodou.
        Quantas vezes dizemos a nós mesmos, e aos outros “ah, isto não é vida!”, ou “isto não é vida para mim!”? E dos que o dizem há os que vão imediatamente à procura de uma vida, de uma mudança. Da mesma forma que há aqueles que, como eu, preferem não procurar e, sem objectivamente procurar, encontrar. Ou como dizia, parece-me, o Picasso, “eu não procuro, encontro”.
        Há os que ficam à espera que a vida deles mude, sem procurarem e sem disponibilidade para encontrar. Em geral, esperam muito tempo. E a vida não muda. Justamente porque estão mais dispostos a procurar do que a encontrar. Mas as portas da nossa vida, a interior como a material, deveriam estar permanentemente abertas. Assim como as janelas do nosso espírito. De outra maneira a vida não muda. Ou demora mais. E com infinitamente menos compensações.
     Mudar a vida. Pode ser uma banalidade que se diz como qualquer outra, que se diz e nunca se faz, não acontece. Uma fórmula. Porque também podemos pensar que num arco de 70, 80 anos de duração de uma vida, ela realmente pouco muda. Não crescemos assim tanto como isso. Mas o mudar até pode não passar – o que não acho pouco – de um retorno às origens  aos valores fundacionais da nossa personalidade.
     Conhecer uma pessoa. Ver um filme. Contemplar um quadro. Ler um livro. Viver uma experiência insólita – e sendo que o viver uma experiência se pode conter numa leitura, no visionamento de um filme, num quadro, num contacto pessoal.  Os afluentes da mudança de vida oferecem-se-nos ao longo da existência. A vida mesma é a maior oportunidade que nos é dada de a mudar. E de mudarmos com ela.
      Para que teria servido a grande literatura se não nos tivesse dado pistas novas sobre o nosso viver?
     E o cinema? Houve filmes que mudaram a minha vida. Dois, três, talvez quatro, em épocas diversas. 
  Romances houve lidos na casa dos 20 que me acompanharam à cabeceira por mais de 20 outros anos, que formaram muito da minha personalidade, e aos quais ainda regresso de quando em vez. Dois, três, quatro, cinco filmes houve que me indicaram alguns caminhos possíveis, e diferentes, de vida, da vida a que o chato destino me teria compelido se não tivesse visto aqueles filmes. Caminhos que eu evitei percorrer.
      Livros que se lêem, filmes que se vêem, pessoas que se conhecem e que contribuem para que nunca mais sejamos os mesmos que fomos antes de os ler, de os ver, de as conhecer.
     Vida é experiência constante. Mudar a vida pode responder a uma necessidade de mudar de experiências, de as procurar novas, outras. Ou de as reviver, velhas.
     Quanto mais curta e jovem é uma vida mais probabilidades tem, naturalmente, de mudar. Até chegarmos a uma certa época em que pouco ou nada poderemos mudar a nossa vida.
      Mas quanto a isso, de vida… vamos lá a ver.. que vida?
      Pois com certeza que há a vida exterior. Há a vida interior. Há a vida física, concreta. Há a vida íntima, reservada, às vezes secreta. Há o sonho, que faz parte da vida mais íntima. Há aquela vida, aquela estranha, misteriosa vida, a vida sexual. Há a vida profissional. Todas elas imbricadas numa só. Há muita vida para viver, e várias vidas à espera de mudar.
    Por vezes, quando sentimos que alguma coisa mudou na nossa vida interior, podemos experimentar o impulso de ir, como disse, à procura dos instrumentos que lhe possam mudar o exterior. E sem garantia de que esse exterior possa mudar um dia, em tempo útil. Mas logo que na nossa vida interior sentimos o clique, metade do caminho da mudança pode estar andado. Pode nem ser para uma vida materialmente melhor. Pode ser só para uma experiência diferente.
     Uma vida diferente pode logo – sem o ser objectivamente – ser melhor do que a que a que tínhamos. Pelo menos até ao próximo clique, quando sentimos algo cá dentro a pedir-nos mais. Partimos para outra, como se diz popularmente, e pode não ser má coisa.
      Não temos só uma, não, temos várias. Vidas. E em verdade vos digo, irmãos, que mal de nós  se só tivermos uma vida para viver. Essa é chata e triste, de certeza. E as vidas que temos em nós mudam e dão lugar a outras. Ou ficam na mesma – se é que se pode dizer que alguma coisa à face da terra e no imparável rolar do tempo fica na mesma.
     Chegados à tal certa idade, depois das diversas mudanças que se operaram em nós e na nossa vida, podemos concluir que essa vida, afinal, pouco mudou. Ou que nunca na nossa vida houve mudanças essenciais. Talvez por não termos aproveitado ao máximo as ocasiões que a própria nossa vida e destino nos ofereceram para mudar alguma coisa. E quando assim é, chegados a certa idade, verificamos com algum desconsolo que a grande e épica vida que foi a nossa, e que foi única, ficou de súbito mais pequena, muito mais pequena.
    De entre as experiências artísticas talvez a música, arte abstracta, sons que sempre sonhamos tornar concretos ao sabor da nossa disposição íntima e dos nossos sentimentos, talvez a música, digo, seja a que menos ensejos nos proporcione de mudar a nossa vida. A audição da grande música pode criar-nos a tendência fácil de nos comprazermos com aquilo que somos, que fazemos, que pensamos, imutável.
       Posso dizer com a mais absoluta das certezas que a minha vida mudou radicalmente numa noite de Março de 1962, a noite em que pela primeira vez na minha vida chata e pré-formatada e burguêsmente destinada, assisti a uma ópera. Coliseu. Simão Boccanegra, com Tito Gobbi no papel titular.
      Num quadro de realidade mais crua e concreta, evidentemente que a minha vida não mudou nada nessa noite, nem nas noites, muitas, que se seguiram. A  minha vida mudou, e de forma radical, dentro de mim. Foi o corte com o destino que se operou. Tinha 18 anos. Uma boa idade para mudar a vida, sem dúvida. Tinha 18 anos e tinha descoberto uma coisa. Uma coisa transcendente ao meu real imediato. Tinha descoberto uma nova aventura para viver, para lá do futebol e das miúdas, e queria com a máxima força viver essa aventura. E a parte mais importante da minha vida que se seguiu a essa noite foi justamente passada a viver aquela aventura de música e drama antigo, aquele excesso emocional e estético, aquele gesto, aquela luz, aquela celebração, aquela tragédia.
        Na verdade, o que então pensei foi que gostaria de ter uma actividade ou profissão que me levasse a viver a aventura o mais por dentro possível, como participante da cerimónia. Não sabia como nem a fazer o quê, mas fiquei a saber que não descansaria enquanto não achasse maneira de mudar a minha vida naquele sentido.
      Mas mesmo vivendo a aventura por fora, só como ouvinte e espectador, a experiência seria muito forte e transfiguradora, e a minha vida tinha mudado. Foi a minha primeira mudança de vida – escolhida por mim, bem entendido. Nunca mais fui o mesmo. Era como se tivesse descoberto em mim a existência secreta de outra pessoa. Uma espécie maravilhosa de salvação da alma.
      Até que chega o dia em que a minha vida muda mesmo naquele sentido. E a minha vida real tornou-se irreal. Maravilhosamente irreal na sua realidade. 
     Temos muitas vidas. Muitas vidas para transformar noutras vidas. Muitas vidas para dar uso e sentido à nossa vida, a única.
     Ai de quem tenha só uma vida, repito. Ter só uma vida é prisão, é dependência, é ideia fixa, é mania. Quem tem só uma vida vai chatear-se de morte a pensar exclusivamente naquela vida. Na SUA vida – o protagonista de si próprio.
    Mas também haverá que pensar e mudar as vidas que não são a nossa. Sim, também, quando somos o encontro de alguém; a experiência que alguém achou em nós e lhe mudou a vida – sermos a modos que a professora do filme do Woody Allen.
    As vidas que não são a nossa, mas que no contexto dos outros, do quotidiano, no contacto com os outros, são vidas que criamos, uma vida de outros criada em nós. O encontro, a experiência, a troca, sempre. E inventamos em nós e para nós as vidas dos outros. Imaginamos cenas, roupas, móveis, tudo o que se passa com outros; e ponderamos, e criticamos, e aconselhamos as atitudes e as decisões dos outros como se fossem as nossas, as vidas que outros nos contam como suas. Solidarizamo-nos. Repudiamos. Entusiasmamo-nos. Desesperamos. Vidas que, dependendo das afeições ou da proximidade que temos deles, e com eles, passam a ser parte da nossa própria  vida, e a ser uma alegria ou uma ralação para nós.
       As vidas dos outros, sim, mudadas ou por mudar, vêm ter connosco, com a nossa vida, e muitas mais vezes do que nos possamos dar conta. E passam a ser também responsabilidade nossa, vida nossa, que muitas das vezes até achamos que valia a pena mudarem um pouco.
      “Meta-se na sua vida”, dizem-nos nos nossos mais inglórios momentos de impertinência. Mas não somos nós que temos de nos meter na nossa vida. É a nossa vida vida que tem de meter-se em nós. E às vezes não se mete. Às vezes é a vida dos outros que se mete mais em nós do que a nossa.
      E desde logo porque a minha vida não sou eu. Era o que faltava. Eu sou eu e a minha vida é a minha vida. Eu não me posso mudar muito, mas à minha vida posso. Quantas vezes uma tarefa, uma obrigação, nos leva a dizer “ai eu não tenho vida para isto”. Lá está a independência. Eu tenho que poder mandar na minha vida, e não é a minha vida que tem que mandar em mim – embora muitas vezes o seja.  Quer dizer, eu tenho vida, a vida que se foi criando e que eu criei em mim, para mim, e que pode ou não permitir-me fazer isto ou aquilo em vez daquilo ou daqueloutro. Eu tenho-me a mim. Tenho o meu ser. Não tenho, em absoluto, a minha vida, ou a vida que gostaria, ou precisaria, de ter. E ter para quê? Para ser mais completa e agradavelmente eu.
      Muitas vezes não tenho é tempo. Tempo para ter vida. E se não tenho tempo não tenho vida. Porque vida é tempo. E tempo limitado. E condicionado. E contado. Vida é tempo, e vida é talento e/ou inépcia. A minha vida é o espaço e é o tempo e é a acção que me concedo (ou os outros me concedem, ou a vida mesma me concede) de ser eu. Mas a minha vida não sou eu. Mal de mim, se fosse. Era uma limitação demasiada.
      A minha vida não sou eu, mas se não tiver vida não posso ser eu. A minha vida apenas me pode conceder que eu seja eu.
     A minha vida, pois, é um meio. Um meio para ser eu. Não, a minha vida não é um fim. Embora o seja, porque eu sou eu para quê, afinal de contas? Ora essa, eu sou eu para viver a minha vida, a minha vida que não sou eu mas que é minha, e que, tendo embora muitas, fora desta não tenho outra.
      Um outro filme. E por sinal também de Woody Allen. Ana e Suas Irmãs. Um filme visto uma vez, duas, e que revisto em certa idade mudou a minha vida, e mudou no sentido de lhe esbater os contornos perfeitos, ideais, optimísticos. Uma banalidade, também, mas muito poderosa.
    Woody Allen é produtor de televisão. É um hipocondríaco desastrado e inábil. Um dia, sente uma tontura, sente ter perdido a audição no ouvido direito. Segundos depois de se ter queixado ao médico já não tinha a certeza de ser no direito ou no esquerdo. Exames feitos. Perda de sensibilidade para decibéis altos. Bem, lá por causa disso, deixo de ir à ópera. Tonturas? Zumbidos? Sim, agora que o médico falava disso, sim, oh sim, tonturas, zumbidos. Novos testes. 
     - Qual é a pior das hipóteses, doutor? 
     - Um tumor cerebral.
    Woody Allen vive em pânico antes dos novos testes. Ouve campainhas a tocar. Pergunta à secretária se também ouve campainhas a tocar. Sim, ouve. Há dois telefones a tocar ao mesmo tempo no gabinete.
    Raio X. Uma zona cinzenta a aparecer na radiografia que o médico confessa não ter esperado encontrar. Recomenda-se um TAC ao cérebro. Woody Allen sai desfeito do hospital. Tenta concentrar-se, auto-encorajar-se. Tem calma, ele não disse que tu tinhas alguma coisa, só não gostou da mancha na radiografia, tem calma, pá, estás em Nova York, a tua cidade, cheia de gente, de trânsito, de montras, de restaurantes, tu não podes desaparecer assim, tu sempre foste a médicos e as notícias foram sempre boas.
    O médico dispõe as chapas. Mostra-lhe o tumor. Só para lhe dizer que a operação ao cérebro não iria resolver nada. Woody Allen sente-se a contas com a eternidade.
   No plano seguinte, o espectador percebe que a primeira versão da cena era uma projecção do imaginário de Woody Allen a preparar-se para o pior. Na segunda versão, o médico dispõe as chapas e diz que está tudo bem, não há motivo para alarme, ele não tem nada no cérebro.
    Woody Allen sai do hospital do Monte Sinai aos pulos de alegria. Era como se tivesse adquirido uma nova vida. O resultado favorável dos exames mudara-lhe a vida.
     Woody Allen dá pulos de alegria ao sair do hospital. Mas, de repente, pára. E pensa. E deprime-se.
     Pensa: estamos presos por um fio; as coisas, tudo, de um momento para o outro podem perder o sentido. Mas ele não estava a morrer com um tumor no cérebro! Pois não, não estava. Por agora. Não vou morrer hoje, nem amanhã, nem depois de amanhã. Mas um dia estarei nessa situação. E essa situação, real e inevitável, é alguma coisa que ao longo da vida vamos escondendo no fundo da nossa mente.
      E depois há uma parte com piada em que ele confessa à secretária que, na perspectiva do tumor, tinha comprado uma caçadeira para pôr termo à vida e evitar os sofrimentos do cancro. O problema eram os pais. Quer dizer, para evitar aos pais o desgosto do seu suicídio teria de os abater primeiro. E também a umas tias que lhe eram muito afeiçoadas: teria de as matar para lhes poupar o desgosto do seu suicídio. Seria um banho de sangue: outro problema que o tumor no cérebro lhe colocava.
      E em verdade vos digo, caros ouvintes (sou eu a falar agora): este filme (genial todo ele, de resto) e esta sequência, mudaram a minha vida. É verdade. Nunca mais pensei como pensava – ou não pensava, despreocupadamente. Passei a pensar como a personagem do Woody Allen. Um dia estarei naquela situação.
     E mais fortemente pensei assim depois de passar dos 50. E a vida nunca mais teve o mesmo sabor. Outros sabores teve. Não o mesmo. A minha vida tinha mudado. Mas depois disso, as hipóteses de a mudar foram encurtando até ao zero. E nunca mais me deu o mesmo prazer o acto de viver a minha vida. A minha vida estava a circular-me ao lado. Eu passava a ser só eu. Não sei se era o meu eu que ultrapassava a vida, se, pelo contrário, a minha vida, nas suas inevitabilidade e finitude, me ultrapassava a mim, fora da minha vontade de mudança, fora do meu desejo de permanência.
      Há uma idade para se ter um primeiro conhecimento da morte
     Serei eu a determinar a minha vida, a fazer a minha vida… ou a fazer pela vida, como se costuma dizer? Em parte, sim, claro, é óbvio. Toda a gente sabe que sim, vida, futuro, destino – tal como fui eu a realizar o meu passado. Eu? Ou os outros mais do que eu? Os outros, o mundo, a geografia, a genética, a economia, a política, a família, essas entidades a fazerem a minha vida tanto, ou muito mais, do que eu a fiz? Claro que sim. Mas que vida? A exterior e visível? A interior?
    Ser por ser, eu sou mais a minha vida interior do que a exterior. Sou. Mais as minhas tendências, os meus gostos, as minhas paixões, o meu clube. Sou mais isso do que os meus repetidos actos quotidianos, a maior parte deles automáticos e sugeridos por vontades que me são exteriores.
     A nossa vida social, pública, pode ser uma anti-vida. Pode ser mais a vida dos outros do que a nossa. Tenho que me vestir assim ou assado, tenho que ir ali e acolá. Tenho que dizer isto assim-assim. Tenho que calar aquilo. O ponto em que a minha vida possa ser eu é aquele ponto interior que há em mim e faz de mim o que eu sou.
     O que mais verdadeiramente eu sou – e a minha vida é – pode não ser aquilo que os outros mais facilmente apreendem de mim. E agora até me lembrei de alguns serial killers, ou pedófilos, ou terroristas. Quem são eles? Que vida verdadeira e interior é a deles? Nasceram criminosos, ou mudaram por qualquer apelo, experiência, livro, filme, encontro? Esse apelo estava neles, na vida interior deles, ou chegou-lhes da vida que corre paralela, mas exterior a eles?
      Mudar a vida. Bem, mudar a vida pode ser a simplística fórmula de exprimir o quanto uma coisa, facto, história ou pessoa me impressionou.  Pode ser mais do que isso, claro. E mais do que isso é a fatalidade do real. Pode ser. Porque também, tal como as vidas, há realidades ilusórias. Por paradoxal que pareça. Até há realidades fictícias, quero eu dizer, uma realidade interpretada por ela mesma, nela mesma, a viver por ela mesma, realidade.
      Uma vida real e fictícia, sim acontece, na realidade como na ficção. Um mundo que pode não existir mas que nos sentimos a vivê-lo. A espaços. A espasmos. Em capítulos. E em zonas distintas da consciência, se as há. Em sombras e claridades. Como toda nossa vida, não?
     E agora saltam-me aos olhos umas palavras do Dalai Lama: os homens perdem a saúde para  juntar dinheiro, e perdem dinheiro para recuperar a saúde. Pensam ansiosamente no futuro e esquecem o presente, e de tal modo que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se fossem morrer. E morrem como se nunca tivessem vivido.