SCAPIGLIATURA E
REGRESSO AO ANTIGO
Em
1863, Arrigo Boito, poeta e músico, tinha vinte e um anos e integrava o
movimento intelectual e artístico italiano que se chamou scapigliatura. Palavrão que se poderá traduzir livremente por
libertinagem, por devassidão; ou por desalinhamento e marginalidade
relativamente às correntes estéticas tradicionais; ou ainda como equivalente em
italiano do francês vie de bohème; uma
palavra que deriva de scapigliare,
que quer literalmente dizer esguedelhar-se, despentear-se, desgrenhar-se.
Tudo isso está muito certo,
mas, para o caso que me interessa, era uma tendência de desalinhados que punha
em causa a arte burguesa consagrada (o costume) e que antecedeu o outro
movimento estético-intelectual mais famoso, o futurismo.
Arrigo Boito, poeta e músico
de vinte e um anos, queria salvar a arte italiana. Para salvar a arte italiana
era forçoso virar de pantanas tudo o que então existia e era considerado como
arte italiana (o costume). Boito fustigava a vacuidade, a nulidade da música italiana,
por exemplo; ou mais duro ainda: a música italiana não passava de uma mentira
pegada. Com ele, desalinhados, alinharam – e quanto a nomes mais conhecidos – o
músico Franco Faccio e o poeta Emilio Praga. Mais distanciados, há quem diga
que também os famosos compositores Alfredo Catalani e Amilcare Ponchielli
compartilhavam ideais idênticos; havendo ainda quem fosse mais longe e jurasse
a pés juntos que o muito jovem Puccini não andaria muito fora dos princípios da
scapigliatura.
Os scapigliati eram jovens impetuosos, irrascíveis e engenhosos – ou
como tal se auto-classificavam – que trabalhavam intrepidamente e que só
esperavam a ocasião mais favorável para se manifestarem. Porque se sentiam
fechados numa jaula. E diziam tudo é uma
jaula neste mundo civilizado (1863). E dessa situação derivariam as
tiranias, os preconceitos, as convenções, a revolta, a luta, a discórdia.
Liberdade, liberdade, liberdade. Liberdade para a arte e para os artistas.
Artistas fora da jaula, já!
Boito trabalhava numa tragédia
lírica (escrevia-lhe o poema e a música) que iria pôr tudo em pratos limpos na
música italiana, quer dizer, a arte musical italiana entraria finalmente nos
devidos eixos pela acção dos scapigliati.
(O costume.)
A palavra e a música. Qual
delas chega primeiro à inspiração? A questão de sempre.
Boito sente cantar na alma
uma música subtil que aspira à comunicação com o mundo exterior. É uma força a
que falta a componente irrecusável que é a palavra. Palavra que era o meio mais
preciso, mais claro, que ao Homem fora concedido para se exprimir. E lá
sustentava Boito que a reforma wagneriana, se assim se podia chamar, assentava
os seus fundamentos na palavra mais do que na música; Wagner dava privilégio às
razões da poesia sobre as razões da música.
E falo disto como preâmbulo
ao que vai ser o destino de Arrigo Boito, a palavra inserida na música. Ou o
contrário. Conforme se prefira.
Boito estava atento, mais do
que aos maneirismos germânicos, à escola francesa. Ritmos verbais novos
desencantava ele na dita escola francesa, novas disposições estróficas. E com
esses princípios entendia ele dar forma a peças musicais que redundariam em
melodramas. De sociedade com Franco Faccio e Emilio Praga produz uma espécie de
melodrama scapigliato, sob o título I Profughi Fiamminghi (Os Fugitivos Flamengos; ou Os Exilados Flamengos, tanto faz para o
caso). O sucesso não é muito. Ou é mesmo muito pouco.
Põe-se a dúvida: seria aquela
peça a estabelecer as bases do novo melodrama italiano? Não. Nem mesmo Boito
acreditava nisso. O poema não era sólido dramaturgicamente. Descaía mesmo para
os lados do anti-musical. O futuro era a tragédia em música e de momento toda a
música era melodrama.
Wagner anuncia ao mundo a
estreia do seu Tristan und Isolde.
Meyerbeer preparar-se-ia, se fosse vivo, para dar à luz da ribalta a sua última
obra, L’Africaine. O mundo musical
regurgitava de melodramas.
E Verdi? Bem, para Boito,
Verdi não contava muito. Ou antes, sim, o que Verdi fizera era teatro, fascinante, glorioso, fecundo. Verdi era
homem de génio, ousado, criador, inovador… grande compositor. Mas ai!, haveria
na obra dele um bom número de óperas que não funcionavam, em especial as dos anni di galera, dos anos da juventude,
quer-se dizer. Posteriormente, as trouvailles
de Verdi revelaram ao público a existência de uma arte séria, verdadeira. Já
Verdi o tinha escrito ao compor I
Lombardi, é bom que ao compor se seja um pouco vesgo e se deite um olho à arte
e outro olho ao público. Sentença animosa (opinava Boito), porque muitos
haviam deitado os dois olhos ao público e haviam esquecido os imperativos da
arte – com A. E, sim, o artista de génio devia ser vesgo, estrábico. Mas I Lombardi envelhecera. E Rigoletto não. Rigoletto ainda levava os públicos ao delírio.
E Wagner?
Bem vistas as coisas, não,
não servia. Um falso apóstolo. Um falso percursor.
Ainda assim, era de assinalar
na música dele algum instinto prepotente,
uma vigorosa musculação (sic). Mas também os dramas wagnerianos eram
ineficazes (que chatice!), eram baixos e ridículos quando avaliados em função
daquilo que seria, ou poderia ser, a sua missão na renovação musical europeia.
Antes de mais nada, para
Boito, urgia que os novos talentos musicais italianos se pusessem a compor
música pura, quartetos, sinfonias, aliás as formas supremas de uma arte
independente como a música, e assim antes de se poderem abalançar ao híbrido e
ao compósito melodrama – feito de música e atravancado de palavras, ou vice-versa.
E não era tarde nem era cedo:
Boito fundava em Milão uma sociedade de concertos decalcada dos modelos
franceses de Habeneck e Pasdeloup. A Sociedade do Quarteto. Missão: conservar religiosamente as relíquias da
arte instrumental e ser para os jovens e para o público um guia sobre o passado
glorioso.
Numa festança de scapiglilati, Boito exibe-se o seu bocado, faz um brinde e
recita um poema dos dele, Ode Sáfica com
o Copo na Mão. À saúde da arte italiana, para que ela escape, jovem e
vigorosa, ao colete de forças dos velhos e dos cretinos, ela, arte italiana,
que do altar onde estava tinha descido e parecia agora encostada à parede de um
lupanar – mais ou menos isto.
Ora quem é que se atira ao ar
de cólera, ao saber deste poema de Boito? Verdi, o maior nome da arte musical
italiana. Aquilo tocava-lhe, que diabo.
Quem encostou a arte italiana
à parede do lupanar? Terá sido ele, Verdi, um dos maiores expoentes dessa mesma
arte italiana? Fosse ou não fosse, Verdi toma para si, e como ofensa pessoal, o
verso de Boito. Verdi produzira até esses dias, em vinte e quatro duros anos de
trabalho, outros tantos vinte e quatro melodramas representados em todo o mundo
civilizado, e até nos confins da África. Terão sido vinte e quatro anos
consumidos para nada?, pergunta.
Alguém pretende compor as
coisas. Esse alguém é Franco Faccio – que daí a uns bons anos virá a ser,
note-se, o maestro director e criador das últimas óperas de Verdi, escritas,
note-se também, sobre libretos de Arrigo Boito.
Faccio escreve a Verdi.
Declina o respeito que lhe vota. Também se tocara com a agressividade poética
do amigo. Também ele entendia desnecessário revolver de alto a baixo tudo o que
de artístico fora feito sob o pretexto da renovação da arte italiana do
melodrama. E Faccio escreve outra carta a alguém do círculo estreito das
amizades de Verdi, a condessa Clara Maffei, no sentido de a condessa interceder
junto do mestre.
Ricordi, o editor, também
despeja a sua água na fervura verdiana e defende Boito. Aquilo eram rapaziadas,
exuberâncias de juventude, verdades inócuas e mais nada.
Se também eu, com outros, sujei o altar onde estava a música
italiana, como diz esse Boito, ele que o limpe então e eu serei o primeiro a lá
ir acender uma velinha.
Mas Verdi não ficou indiferente aos considerandos de Boito e dos
outros scapigliati. Aquilo podia ser
um aviso. A arte italiana podia ter virado de rumo e apontar agora a novas
finalidades. Enriqueciam-se os meios de expressão artística. A excelência dos avanços
técnicos na instrumentação e na harmonização tinha dado um salto qualitativo
enorme na Alemanha e na França, e esses avanços, sem sombra de dúvida,
apontavam para uma renovação das formas e da substância musical mesma. Recusar
tomar conhecimento dessa realidade seria um pouco como recusar-se a ouvir bater
a aldraba da porta da própria casa.
Pois é a partir deste
incidente provocado pelo jovem Boito, então na casa dos vinte anos, que Verdi
se vai dar ao trabalho de refundir, reinstrumentar, ou, em suma, reconstituir
sobre fundamentos técnicos mais elaborados e actualizados, a instrumentação e a
harmonia de algumas das suas óperas há muito estreadas.
Toca ao Macbeth, uma das obras de juventude que
lhe era mais querida, inaugurar essa leva de revisões.
Dezassete anos antes, Macbeth fora a primeira ópera em que
Verdi tentara delinear um melodrama de mais profunda dimensão trágica, poética,
musical, tudo o que, de resto, estava na sua mente fazer ao começar a carreira
de compositor.
E ao iniciar os trabalhos de
revisão da ópera, Verdi diz que lhe encontra defeitos que não gostaria de ter
encontrado. A uma solicitação de Paris, acrescenta a Macbeth os bailados indispensáveis ao êxito na Grand Opera. A seguir
retoca os trechos que lhe parecem mais débeis – os quais seria uma seca estar
para a aqui a descriminar.
Mesmo assim, pode ser
interessante transcrever um passo da carta que Verdi escreveu ao editor
Ricordi. Vais rir-te quando te disser que
para a cena da batalha compuz uma fuga. Uma fuga? Eu que detesto tudo quanto me
possa cheirar a escolástico. Eu que há quase trinta anos não escrevia uma fuga…
A estreia do Macbeth reformado dá-se em Paris, a 21
de Abril de 1864, cantado em francês e visto e ouvido respeitosamente, ou
talvez com um entusiasmo ligeiro. Reflexões ulteriores levarão Verdi a admitir
que, não obstante tudo o que se pudesse aduzir, o Macbeth reformado podia não ser melhor do que o velho Macbeth escrito nos vigores da
juventude. Faltava-lhe aquele fôlego impetuoso e criador da versão primeira.
Verdi percebe que falhara o intento.
Tudo bem ponderado, o Macbeth resultou em fiasco.
Amen. Confesso que não esperava.
Mas Ricordi insiste em
fazê-lo representar no Scala. Será outro
fiasco, reponta Verdi, opondo-se ao projecto de Ricordi.
No entretanto, o scapigliato Arrigo Boito continua a
prezar-se como adversário irredutível quer de Verdi quer de Wagner. E dá conta
disso em artigos de jornal. E pela parte criativa que lhe toca está convencido
de que a próxima estreia de uma criação sua no Scala, o Mefistofele (um prólogo, cinco actos e um intermezzo sinfónico) abrirá enfim caminho à renovação da música
italiana e inaugurará uma nova era na História do teatro musical.
Essa estreia foi aguardada
com impaciência e desencadeou paixões mesmo antes de subir à cena, pondo em
confronto os adeptos do “velho” e os do “novo”.
E, como curiosidade, diga-se
que na programação do Scala, a seguir à novidade da estreia de Mefistofele, seria a vez do D. Carlo de Verdi.
E ainda como outra
curiosidade, e insólita, diga-se que a direcção musical do Mefistofele, primeiramente entregue a Alberto Mazzucato, é-lhe
retirada e adjudicada ao autor, Boito – na visão do empresário, de forma a
concentrar a tríade melodramática numa só pessoa, poeta, compositor e chefe de
orquestra. Nada de muito estranho em princípio. O estranho é que o scapigliato autor e director musical
nunca na vida tinha dirigido coisíssima nenhuma, nem orquestras nem coros nem
nada, e além disso tinha pouquíssimos dias para preparar nem mais nem menos do
que um prólogo, cinco actos e um
intermezzo sinfónico.
O Mefistofele de Boito vai a cena no dia 5 de Março de 1868 e cai
fragorosamente entre gritos, assobios, insultos, pateadas. A direcção do Scala
resolve dividir a obra em dois espectáculos, metade num dia e metade noutro.
Mas nem assim. A atitude de desafio e de desprezo pelo público ostentada por
Boito também não ajudou nada à festa e cada noite de espectáculo acabava em
ruidoso escândalo. E o Mefistofele, a
auspiciosa obra que renovaria – e salvaria - o teatro musical italiano é
retirado do cartaz do Scala.
O tempo passa. Estamos em
1871 e Boito recebe uma carta de Wagner – que luxo! Brief an einem Italienischen Freund – a um jovem amigo italiano. Wagner
felicita Boito. Porquê? Porque Boito vertera para versos italianos o poema de Lohengrin, que a 1 de Novembro desse ano
de 1871 tivera em Bolonha a sua estreia italiana – a primeira de uma ópera de
Wagner. E com grande êxito. Aquilo era mesmo a ópera do futuro.
Boito, é claro, faz muita
gala nos cumprimentos do mestre tedesco e faz publicar a carta no jornal La Perseveranza. E esquece-se das suas
anteriores bocas desdenhosas, “o falso apóstolo”, “o falso percursor”. E Wagner
vai longe. Exalta a inteligência e a paixão do público italiano e deprecia a inteligência e a paixão
do público germânico. Confessa admiração por Rossini e Bellini e pela bravura
do génio itálico, ao qual, desde o Renascimento, a modernidade devia as suas
artes.
Mas adiante.
Em 1873 já Boito tenta uma
aproximação a Verdi. Boito é agora um homem importante. Está conselheiro
municipal em Milão. Nessa qualidade dá um parecer favorável a execução da Missa
de Requiem à memória de Manzoni e desfaz-se em loas à obra e ao autor – Verdi.
4 de Outubro de 1875 é o dia
em que Boito vê o seu Mefistofele
(entretanto muito revisto e reformado) estrear no Comunale de Bolonha.
Mantinham-se as convicções dos scapigliati:
aquele Mefistofele era a promessa de
uma nova arte italiana, era o começo de uma profícua evolução para o melodrama,
era o conúbio exemplar entre as duas formas de expressão musical italiana e
alemã, cujo destino inescapável seria integrarem-se, influenciarem-se mutuamente
– ou eliminarem-se e destruírem-se mutuamente, pelo que pensava Verdi.
Mas o Mefistofele reformado é mesmo um enorme sucesso.
Em 1878 Verdi tem sessenta e
cinco anos. Está na idade da reforma. E ele pensa mesmo nisso, em reformar-se e
não compor mais. Sessenta e cinco anos, porque pouco antes chegara à conclusão
de ter nascido em 1813 e não em 1814.
Verdi anda mal disposto. A
vida política inquieta-o. Assassinaram o rei Umberto. Não imagina como ando nervoso, rabujento, irritado. Não sei porquê. Mas
é assim. Que tempos estes! Onde iremos nós acabar? Leio os jornais, muitíssimos
jornais, e leio livros péssimos. Quando estou de mau humor dá-me para ler os
livros mais celerados. Oh, quantos tristes acontecimentos neste 1878.
No ano seguinte, Verdi está à
cata de novos argumentos para óperas. Diz aos amigos que não tenciona compor
mais. Não é verdade. Em segredo procura um assunto digno, sério, artístico, que
lhe convenha aos talentos da velhice. E até nem se importava que fosse uma
história divertida e não um dramalhão como aqueles do passado, apesar do
veridicto do Rossini, quando disse que ele, Verdi, não era talhado para a ópera
cómica.
Escreve ao editor Giulio Ricordi:
mas veja lá…há vinte anos que procuro um
libreto de ópera cómica, e agora que sei que é possível encontrá-lo saem
artigos de jornal que parece que já me começam a assobiar e a patear a obra
antes de ela estar escrita. Mas se por acaso, por fatalidade ou por desgraça, o
meu mau génio me levar a escrever a tal ópera cómica, pela sua parte não tenha
medo, irei arruinar outro editor.
Pode ser que seja o Falstaff a ocupar o pensamento de Verdi.
Já em 1868 corria esse boato nos meios musicais, sim, que ele até já teria
composto muita coisa para um eventual e futuro Falstaff. O que foi energicamente desmentido. Por ele e pelos
amigos mais chegados.
E afinal, quem andava a
pensar no assunto do libreto para uma ópera cómica de Verdi era mesmo o editor
Ricordi. A pensar no caso e a pensar na pessoa que haveria de incumbir-se da
tarefa.
Tal pessoa seria o inimigo
dos tempos pretéritos. Arrigo Boito, o poeta de alto vôo, o scapigliato. Ricordi não o levara a
sério por muitos e bons anos, sobretudo depois do escândalo do Mefistofele no Scala. Mas a disposição
de Ricordi mudara. O desgrenhado intelectual aprumara-se. O Mefistofele reformado de Bolonha
constituíra um triunfo pessoal para Boito e fazia carreira em todos os
principais teatros de Itália. Boito já escrevera excelentes libretos para
outros compositores, o mais celebrizado deles para La Gioconda, de Ponchielli. Fizera-o não assinando com o verdadeiro
nome, antes assinando Tobia Gorrio, o anagrama.
Ricordi pensa nos passos a
dar. Um dos mais importantes – ou o mais importante – seria aproximar Boito de
Verdi. Com respeito a Boito não seria difícil. Verdi seria muito mais duro de
convencer.
As gentes do meio musical milanês insistem com
Verdi. Então, para quando a nova ópera? Então porquê esse tão longo silêncio depois
da Aida? Estou velho. Tenho que deixar o lugar para os novos, replicava o
mestre.
Num hotel da Via Manzoni, em
Milão, a seguir ao jantar, Franco Faccio, o maestro, e o editor Ricordi estão à
conversa com Verdi e a mulher. Conversa vai, conversa vem, alguém fala no Otello. Fala no Otello, fala em Shakespeare. E fala no Boito.
No dia seguinte, Faccio traz o Boito à
presença de Verdi. E três dias depois o Boito entrega a Verdi um primeiro
esquiço de um libreto de Otello.
Verdi lê e gosta. E louva.
- Faça-o – quase ordena. –
Essa poesia será sempre boa, para si, para mim, para outros.
Ricordi, o editor, pôe-se em
campo para tratar da logística do projecto. Pede a Verdi que o receba e o aloje,
a ele e ao Boito, lá na casa de Sant’Agata. O libreto está pronto. Está na hora
de deitar mãos à obra.
Mas Verdi não vai daí abaixo,
não se convence com duas cantigas. Escreve ao Ricordi.
Se eu acho o libreto absolutamente bom, fico, de certo modo,
comprometido. Se apesar de muito bom eu não gostar dele, será muito duro dizer
na cara do Boito a minha opinião. Não, não. Você foi demasiado longe e é bom
que pare antes que começam as bisbilhotices, as anedotas e os boatos. O melhor
é mandarem-me o poema acabado para que eu o leia com calma e possa manifestar a
minha opinião sem que ela comprometa ou constranja quem quer que seja. Só
depois de aplainadas as arestas eu ficarei contente de os receber cá em casa, a
si e ao Boito.
Boito manda o libreto de Otello a Sant’Agata e fica à espera,
ansioso evidentemente, ansioso por poder ir ter com Verdi, por poder discutir pessoalmente
o trabalho, corrigi-lo, enfim, levar o projecto a bom porto.
Boito fora conquistado pela
grandeza intelectual e moral de Verdi, e conquistado de forma a queimar a etapa
da normal admiração e a saltar para incondicional devoção.
REGRESSAR AO ANTIGO PODE
SER
UM PROGRESSO
A discussão do libreto de
Otello é feita por carta. Boito
corrige, modifica, reescreve as passagens menos conseguidas, seguindo as
sugestões do compositor quanto a movimentos de cena, situações dramáticas e
diálogos. Primeiro vinha a música. Quer dizer, Verdi modelava a nova ópera sem
se ater ao guião poético proposto por Boito. Era a música, uma vez mais, que
definia o drama; ou era o drama a sujeitar-se uma vez mais ao melos.
A figura de Iago ocupava
uma posição mais determinante na mente de Verdi do que propriamente a do
protagonista, Otello, aquele que dava o título à peça. Mas o Otello ainda não é uma escolha
definitiva. Verdi ainda não quer assumir compromissos. Ricordi bem teima, bem
tenta persuadir o seu compositor, mas nunca mais vê chegado o dia de partir com
Boito para Sant’Agata e de se sentarem os três a trabalhar.
Ao serão, Verdi conversa
com a mulher.
- Eu tenho este defeito,
que queres. Empenho-me muito. Demasiado. Ligo-me demasiado depressa às pessoas
e aos projectos. E depois as coisas ficam muito adiantadas, as coisas avançam
depressa demais… e eu não me posso deixar… compreendes… não me quero ver
constrangido moralmente a fazer alguma coisa que não quero fazer.
- E ainda pensas que tudo
na peça nasce da figura do pérfido Iago?
- Sim. O libreto nasce de
uma simples palavra de Iago, quando faz o brinde, um momento de alegria…
- Uma coisa puxa a outra…
- E eu entrei nisto às
cegas, sabes bem.
- Pois sei. Não tinhas
uma ideia precisa…
- Não tinha não. E apesar
dos versos belíssimos desse Boito, ainda não… o projecto anda não está completo
na minha cabeça, de onde parto, onde chego, por onde passo. Não tenho as ideias
claras. E vês tu porque não me quero envolver até a um ponto em que me seja
difícil recuar…
O trabalho de composição
de uma nova ópera para um homem já de certa idade, nem que ele se chame
Giuseppe Verdi, não é empresa de somenos. E ainda para mais quando a validade
estética da tradição operática italiana, de que ele era, à época, o expoente
máximo e de maior ressonância mundial, vinha de há tempo a ser posta em causa
pelo movimento renovador alemão, especificamente representado na pessoa de
Richard Wagner.
Verdi está danadinho por
entrar na competição de prestígio entre o génio itálico e o génio germânico,
isso está. Mas já não tem trinta anos e está bem ciente disso. Ou seja, não se
sente suficientemente seguro das armas de que dispõe para afrontar as
comparações no contexto de uma nova ordem musical que lhe está a ser imposta de
fora. E por isso mede com rigor as dificuldades. Não pode voltar a ser o artista
das gloriosas, mas ultrapassadas, fórmulas do Trovador, do Rigoletto ou
da Aida, recitativo-ária-cabaletta, duos, trios, concertantes e
por aí fora, em previsível sequência. O que vem da Alemanha é a melodia
contínua, a orquestração descritiva e participante na acção, no processo
dramatúrgico. Não é brincadeira. Por isso vai fazendo esboços, tentames,
experimentando ao piano possíveis soluções músico-dramáticas não habituais na
paleta de recursos técnicos que era a dele até aí.
Giulio Ricordi tenta um
estratagema psicológico que reconduza Verdi ao teatro. Propõe-lhe reformar a
partitura de um Simão Boccanegra praticamente
desaparecido do repertório dos teatros. Estando
como está a partitura, é impossível – argumenta Verdi. – Não é preciso retocar nada no 1º acto. Nem
no último. E nem sequer no 3º acto, salvo um ou outro compasso. Talvez refazer
o 2º acto, dar-lhe relevo, variedade, mais vida. Fazer de Boccanegra uma ópera verista? Porque
não? Shakespeare era um verista. Sem o
saber. Era um verista de inspiração. E nós por aqui somos veristas por cálculo.
Verdi entendia que a
arte, à força de um pretenso progresso, estava a voltar atrás. A arte a que falta espontaneidade,
naturalidade, simplicidade, já não é arte.
Mas então, quem é que
Ricordi sugeria para ajudar a estabelecer as bases dramatúrgicas de um Boccanegra reformado? Pergunta Verdi. E
Ricordi não hesita na resposta. Ora quem… Boito. E aceitará ele o encargo?
Veremos.
E viram. E Boito aceitou
muito gostosamente. Ele e Verdi continuaram a discutir o Otello, mas aquele projecto intermédio do Boccanegra vinha a calhar como trabalho exploratório. Era um
trabalho de menor dimensão e propício a um primeiro contacto profissional sobre
uma obra acabada, coisa muito diferente da concepção de uma obra de raíz. Pois
que se pusesse de lado por uns tempos o Otello
e que se concentrassem na reorganização dramática do Boccanegra.
O cartaz do Scala está
pobre para a temporada de 1880/1881. Será possível refundir o Boccanegra a
tempo de se incluído na programação? Verdi escreve a Boito: há uma ópera que pode despertar um grande
interesse no público, e não percebo porque é que Autor e Editor se obstinam em
deixá-la de lado. Falo de Mefistofele.
Seria um momento muito propício, e Você prestaria um excelente serviço à arte e
a tudo.
Mas não. Boito não aceita
o alvitre. Não quer dar a sua ópera ao Scala. Ainda tem muito viva a recordação
da forma como foi lá tratado na estreia da primeira versão do Mefistofele.
Então pense no Boccanegra. Talvez
pudéssemos encontrar um bom ponto de partida para o final do 1º acto, porque
quanto ao resto será refazer um verso ou outro e uma ou outra frase musical.
Pense nisso e escreva-me assim que tiver alguma ideia.
O libreto do Boccanegra escrito pelo Piave, Francesco
Maria Piave, o libretista original, parecera a Boito uma espécie de mesa côxa.
Verdi proíbe que se pense
já num novo Boccanegra para o cartaz
de seja que teatro for. Haverá tempo para o apresentar, e mesmo assim só se a
reescrita resultar bem.
Verdi repensa esse
renovado Simão Boccanegra enquanto de
férias em Génova - o preciso lugar da acção da ópera. Está a passar uma das
suas temporadas habituais no palácio principesco dos Dória.
Mas não vale a pena
entrar agora em pormenores, por interessantes que sejam, sobre o tema de “como
se faz uma ópera”. Interessante para quem se possa eventualmente interessar por
estas insignificâncias talvez seja dizer que as personagens baritonais,
geralmente os vilões de ópera, versejadas por Boito tinham um recorte dramático
muito semelhante, o monólogo de Paolo Albiani no Simão Boccanegra recorda o monólogo escrito pelo mesmo Boito (sob
pseudónimo) para o vilão Barnaba, de La
Gioconda, de Ponchielli, e ambos sugerem o monólogo de Iago que anos mais
tarde Boito escreverá para o Otello verdiano.
Há que notar uma outra e
também interessante coisa: Verdi apreciava os belos versos nos libretos que se propunha
musicar, e os de Boito eram de primeira água; se Verdi apreciava e preferia os
versos de mimosa inspiração, preferia por outro lado os versos defeituosos, ou
mesmo feiosos, se o objectivo fosse descrever personagens ou pensamentos
detestáveis. Creio que no teatro é
louvável o talento de não fazer a grande música e de saber s’éffacer, tal como nos poetas é melhor muitas vezes
usar em vez do bonito verso a palavra cénica evidente e eficaz.
Concluído o trabalho de
retocar o Boccanegra, Boito alegra-se
pela obra acabada e Verdi observa-lhe, como o prático de teatro que também é,
que a obra deles só estaria acabada no fim do ensaio geral. Se realmente lá conseguirmos chegar.
E o Boccanegra revisto e corrigido acaba mesmo por ser representado no
Scala como a última ópera da saison,
a 24 de Março de 1881.
Nesse tempo, corre uma
petição dos milaneses para que seja erigida no foyer do Scala uma estátua de Verdi, ao lado das dos falecidos que
lá estão, Rossini e Donizetti. Instado a dar o seu consentimento, Verdi diz que
sim numa primeira abordagem, e volta atrás com o “sim” numa fase posterior, por
causa do barulho que certamente se fará a seu respeito. E depois corre outra
petição para reparar uma injustiça gritante. Então e Bellini, uma das estrelas
mais brilhantes do melodrama oitocentista italiano, não terá direito a uma
estátua no Scala? Evidentemente que tem. Assim sendo, há que pôr no átrio do
Scala, no mesmo dia, duas estátuas em vez de uma.
Boito já se recuperou do
mal-estar da estreia desgraçada do Mefistofele
no Scala e pronto-não-se-fala-mais-nisso autoriza uma reposição da obra já
revista no mesmo Scala. Reposição que obtém grande êxito, diga-se.
Não pense que me esqueci do poema do Otello – escreve Boito a
Verdi. – Tenho pensado muito nele, mas
por causa das récitas de Mefistofele
tem-me faltado a tranquilidade necessária. Dentro de dois dias poderei
ocupar-me exclusivamente do Mouro.
Verdi pensa fazer o Otello sem coros, mas Boito manda-lhe
uns versos para um coro do 2º acto e Verdi reconsidera e admite que seria uma
loucura isentar o Otello de uma
participação coral.
As duas estátuas, Bellini
e Verdi, são inauguradas no átrio do Scala. Grande cerimónia. Verdi prima pela
ausência. Tudo aquilo significa que sou
velho (o que é verdade, enfim), que sou um veterano condenado à invalidez. Foi
um erro ter consentido naquilo da estátua, um erro meu e de outros.
Fosse por se considerar
velho, Verdi pareceu alheado por um tempo das coisas da música. Ocupo-me dos campos, das pequenas fábricas,
do tratamento dos terrenos, e assim passam os meus dias sem nada feito de útil.
Vai uma temporada para
Génova, como é costume, em Génova está sol e calor e em Milão há frio e
nevoeiro. Ninguém sabe em que ocupa ele o tempo e é estranho para os amigos
mais chegados o silêncio e o recolhimento a que se votou. Em Génova sai do
Palácio Doria pela manhã, vai misturar-se com o povo das ruas, vai ao mercado,
às compras. À tarde sai outra vez a passeio, mas agora de carruagem. Acompanha
a mulher à missa de domingo mas escusa-se a entrar na igreja e espera por ela à
saída.
Passa outro ano e Verdi não
se decide quanto ao projecto do Otello.
Está às voltas com outra das óperas do passado, o Don Carlo. Também aquele Don Carlo precisava de uma limpeza que lhe
abrisse uma larga carreira nos teatros. Estava prolixo e pesado por demais e
padecia de uma cor cénica uniforme. Tinha que se tratar disso.
A meio de Fevereiro de
1883 chega a notícia da morte inesperada de Wagner. Em Veneza. Verdi declara
uma pena profunda. Triste! Triste! Wagner
morreu. Lendo ontem a notícia fiquei mortificado. Não há discussão. É uma
grande individualidade que desaparece, um nome que deixa uma marca fortíssima
na História da Arte.
O mundo musical italiano está ansioso. Espera
de Verdi algo de grande. O Otello? Ou
o Iago? Escreve a Ricordi. Não, não
quer ser ele o grande mestre da lírica nacional. Não está, nem nunca esteve, nas minhas intenções ser mestre de ninguém.
Deus me livre! E quanto ao Iago,
ou melhor, ao Otello, Verdi declara
não ter ainda escrito nem uma nota, e nem ao menos saber quando de facto a escreverá,
se escrever.
Refaz entretanto o Don Carlo, reduzindo-o a quatro actos.
Ficava mais cómodo e melhor artisticamente, mais conciso, mais enérgico. Os
teatros andavam mal (pensava ele), e de tal modo andavam mal que um após outro
estavam condenados a fechar, o que tornava inútil perder tempo e energias a
compor uma ópera.
Ah, sim, a saúde! Não pensava nela desde há muitos anos, mas
hoje não sei como será o futuro. Os anos já são demasiados e eu estou quase a
pensar que a vida é a coisa mais estúpida. Ou pior ainda, a coisa mais inútil.
Que fazemos? Que fizemos? Que faremos? A resposta a isto é humilhante,
tristíssima. Nada!
10 de Janeiro de 1884. Vai
a cena o Don Carlo em quatro actos – reduzido a proporções mais humanas.
Verdi dirigiu os ensaios muito bem disposto, com um vigor juvenil, escrupuloso
ao máximo, sempre, no inspirar os seus cantores para a interpretação daquele
que é um dos seus trabalhos predilectos. É
um Don Carlo novo, pode dizer-se, mas
os amigos das comparações conheciam tão pouco o Don Carlo velho que aceitaram este sem especulações
nem dúvidas.
Encontra-se com Boito em
Génova. Sugere-lhe novas alterações na tragédia shakespeariana. E com respeito
a música? Já começou a compor? Não se sabe.
Foi o seguinte: em
Nápoles, Boito é convidado pelos professores do Conservatório para uma
jantarada comemorativa do sucesso do Mefistofele
renovado; perguntam-lhe como vai o caso do libreto para a nova ópera verdiana,
esse tal Iago, e a resposta dele vem
publicada no jornal Piccolo: que
tinha escrito aquele libreto um tanto a contragosto, e que depois de o acabar
lamentara-se de não poder ser ele mesmo a musicá-lo.
Alguém chega a Verdi o
exemplar do jornal e Verdi lê o comentário de Boito. Põe-se imediatamente a
escrever ao amigo comum, o maestro Franco Faccio.
Você sabe bem como as coisas se passaram. Não obriguei ninguém a
escrever-me libreto algum. O pior é que o Boito, ao lamentar-se de não ser ele
a escrever a música do seu próprio libreto faz supor que não espera ouvi-lo
como ele quereria depois de musicado por mim. Estou a escrever-lhe por ser Você
o mais velho e fiel amigo de Boito, e gostaria de lhe pedir o favor de quando
regressar a Milão ir ter com ele e dizer-lhe de viva voz que eu, sem sombra de
ressentimento, lhe devolverei intacto o manuscrito. Apesar de o libreto ser
propriedade minha, estou disposto a oferecer-lho logo que ele entenda musicá-lo
e assim contribuir para a glória da arte que todos amamos.
Era a segunda vez que
Boito se mostrava inconveniente para com Verdi. Eram os resquícios da antiga scapigliatura, provavelmente.
Para Giuseppina, o
incidente podia fazer parte de uma campanha de muitas pressões que o mundo
musical exercia sobre Verdi para compor o Otello
(ou o Iago, como toda a gente
chamava ao projecto), e era uma táctica que ela entendia contra-indicada, sendo
Verdi a pessoa que era.
Chegado a Milão, Boito
toma conhecimento da carta de Verdi ao Faccio e comunica a Verdi que de maneira
nenhuma aceitaria a restituição do original do libreto e que os sentimentos
dele nada têm a ver com a interpretação grosseira que o redactor do Piccolo lhes dera.
Verdi continua a ir a
jogo. Escreve ao Boito. Diz que lê pouco os jornais e que não acredita piamente
em tudo o que eles dizem. A pergunta que
lhe fizeram em Nápoles, creio que muito à queima-roupa, foi, no mínimo,
curiosa, e podia esconder intenções não expressas claramente. Acredito que Você
não tivesse respondido exactamente como foi transcrito pelo jornal, mas deve
ter respondido de maneira a dar azo aos comentários que deu.
Verdi achava inútil falar mais longamente do
caso, desde o momento em que Boito não lhe aceitava a oferta do manuscrito do
libreto. Estava-se a falar demais de um Otello
que ainda ninguém (nem o próprio autor) sabia bem o que era. Já se passou demasiado tempo a falar do Otello.
São demasiados os anos que levo de vida.
É já demasiado o meu tempo de serviço. Mas o público ainda não me disse muito
claramente Basta! A conclusão de Verdi era que o sucedido com o Boito em
Nápoles lançara qualquer coisa de frio sobre aquele Otello ainda embrionário e rigidificara (sic) a mão que já lhe
começara a escrever alguns compassos. O que se passaria a seguir ninguém o
sabia. Mas fico feliz por esta explicação
que tivemos. Só tenho pena que ela não tivesse acontecido logo que Você
regressou de Nápoles.
Todos continuavam a
chamar Iago ao projecto. Verdi
insiste muito em chamar-lhe Otello – é
verdade que é o pérfido Iago que mexe os cordelinhos da intriga, mas é Otello
que age, que ama, que é ciumento, que mata. Ia para cinco anos que o público e
a impaciente comunidade musical esperava por aquele Otello, por aquele Iago,
ou fosse lá pelo que fosse, contanto que se tratasse de uma nova ópera de
Verdi. Um Verdi que na realidade se sente indeciso, que não se sente muito
seguro de si e das suas faculdades. E é quando recebe de Boito mais um trecho
poético para juntar ao já escrito libreto. Nem mais nem menos do que os versos
do que viria a ser designado como o Credo
de Iago. Poderoso e shakespeariano em
tudo, considera Verdi, radiante, convidando logo Boito para uma estada na
casa de Sant’Agata.
Mas a causa da indecisão
de Verdi podia estar no ânimo negativo com que vai passando aqueles dias de
conhecimento da própria velhice, do próprio declínio físico, a querer
resignar-se ao curso natural das coisas da vida. Nasce-se, gasta-se a vida as mais das vezes inutilmente, chega a época
dos achaques, das doenças, e depois… Amen. Trabalhar tanto, e depois ter que
morrer… sim, resignava-se, mas, no fundo de si, não se conformava com esse
curso natural das coisas e da vida, um curso que não lhe parecia muito natural,
e muito menos racional. De resto, uma ou outra
sensação penosa é fruto dos 70.
Está com setenta anos, é
verdade, e sente que vai baquear por causa do coração, como o pai. Trata de ir
passar uns dias às termas de Montecatini – passará depois a ir com frequência. O
médico das termas examina-o. O coração dele está cansado. Nada de mais.
Trabalhou muito toda a vida, sofreu. Não era caso para especiais cuidados com o
coração. Podia dedicar-se ao trabalho, desde que a nova ópera não o obrigasse a
excessos.
Em Génova continua a acompanhar
a mulher à igreja. E continua a ficar à porta. Toca-o a fé cristã, sem dúvida,
mas não compartilha dessa fé.
Boito chega a Sant’Agata
para novas sessões de trabalho. A Itália está sob um surto de cólera. Aqui não temos medo dos micróbios, não
sentirá o cheiro a ácido fénico.
Trabalham. Uns dias. E
Boito vai-se embora de Sant’Agata. Chegava o mês de Novembro e Verdi parava de
compor para se dedicar a trabalhos menores. Regular as contas das propriedades,
pagar a feitores, camponeses, pastores. Gostaria de poder arrendar tudo o que
tinha de seu só para não ter que se preocupar com o cultivo das terras ou com o
tratamento dos animais. Dias laboriosos,
trabalhos antipáticos, sem poesia, dias de negócios, de números, coisa
prosaica. Mas infelizmente sem isto não se come. Pobre condição humana. E nós,
que nos temos na conta de grandes pessoas, espíritos superiores… ora ora!
Continua, mesmo assim, e
sem embargo de tantas dúvidas, ter grande fé na arte. Prevê: qualquer dia aparecerá por aí um rapagão de
génio que irá varrer tudo o que de medíocre hoje se faz em música e nos
reconduzirá à música dos nossos belos tempos, eliminando-lhe os defeitos e
utilizando as modernas técnicas… as boas técnicas. Sim, a súmula do que
sempre pretendera fazer: conciliar o passado com o presente, voltar ao antigo
como forma de progresso.
A 9 de Outubro de 1885 o Otello está quase pronto. E Verdi faz
anos. Setenta e dois. É o dia terrível,
hoje – escreve à condessa Maffei. E como tudo passara tão depressa, com
tantos acontecimentos, tristes, alegres, tantas fadigas, tantos dias felizes e
tantas desilusões. Na nossa idade temos
necessidade de nos apoiarmos. Ainda não há muitos anos julgava eu que me
bastava a mim mesmo, que não tinha precisão de ninguém. Presunçoso que eu era!
Só agora começo a perceber a fundo que sou velho, bastante velho…
Boito está em Roma.
Aceitou ser delegado do governo italiano ao Congresso Musical de Viena. Pede
conselhos a Verdi. Verdi recomenda-lhe que insista no problema do diapasão
universal para as orquestras, que devia estar a 864 vibrações; ele que declare
abertamente, publicamente, e em voz bem alta que o diapasão de 870 é um erro
crasso. Mas cautela com a língua. Firmeza sem impertinências. E ceder se não
houver outra saída.
Apesar de andar por este mundo há tanto tempo e de ter assistido
a tanta coisa, aprendi pouco, e a costela de camponês ficou sempre intacta em
mim, e são muitas as vezes que em mim o aldeão de Roncole aparece em toda a sua
grandeza.
Em fins de 1885 toda a gente
o procura a propósito do anunciado Otello.
É o barítono Victor Maurel a recordar-lhe a promessa feita de ser ele a
criar o papel de Iago, e que de caminho o aconselha, já que os teatros em
Itália andam mal, a estrear o Otello na
Opera Comique de Paris – não pode ser, a ópera está escrita em italiano e pelo
menos na estreia deverá ser cantada em italiano. É Gailhard, director da Grand
Opera também de Paris, que vai propositadamente a Génova e lhe pede a estreia
do Otello no seu teatro – a ópera ainda não está acabada, e está
escrita em italiano, em bom italiano, e em italiano deve ser cantada na
estreia. É o empresário do Scala que quer ter a certeza de que a nova ópera
de Verdi está pronta a estrear.
Já anda a pensar nos
cantores, nos que serão os criadores da obra sobre as tábuas do palco. O tenor
Tamagno habilita-se ao papel do Mouro. Maurel dá por adquirido que será ele a
encarnar o Iago – já que foi ele o criador do renovado Simão Boccanegra. E a soprano para a Desdémona? Um caso a ver. O
Boito que vá ouvindo sopranos, a Teodorini, a Bellincioni, a Bendazzi-Secchi. E
Boito ouve essas cantoras e o relatório que faz leva
Verdi a replicar-lhe sim, está bem, não
pensemos mais nelas.
Vai a Paris. Nem sabe bem
porquê. Para tomar ares refinados. Para se mexer um pouco. Para ouvir o Maurel
antes de lhe confiar a criação do papel de Iago. Quinze dias.
E afinal o Otello ainda não está pronto. Ainda há
retoques para lhe dar. Ainda há muitas decisões a tomar quanto a instrumentação
e harmonia.
Já tinha tomado as
decisões necessárias no tocante a cantores – a questão do maestro estava
automaticamente resolvida, seria o amigo Franco Faccio; e Desdémona seria por
sua vez uma amiga de Faccio, Romilda Pantaleoni. Agora era o tempo de tratar
dos cenários, do guarda-roupa, dos arranjos de cena. É um pintor de Parma,
Alfredo Edel, que vai a Veneza estudar o que há nos museus e nas pinacotecas –
bons tempos, digo eu, em que o maravilhoso género ópera ainda estava a fazer-se
(e a renovar-se) em todas as componentes, e toda a estética respeitava a
fidelidade epocal, ao contrário dos tristes dias de hoje, os dias da destruição
do que havia de maravilhoso no género ópera e em que a renovação é feita pelo
lado do grotesco, em que o Otello
(seja ele de quem for, Verdi, ou Rossini, ou até de Shakespeare) pode ser
vestido com as roupas da moda punk, rasta, gótika da rua e a acção pode ser transferida para uma esquadra de
polícia, para um escritório da Baixa, ou mesmo, sabe-se lá, como diria Woody
Allen, para uma cabine telefónica.
Morre a grande amiga de
sempre, a condessa Clara Maffei. Verdi sente que o existencial e angustiante
vazio se alarga em volta dele. O provisório antídoto pode estar no trabalho. O Otello. Está quase. A 29 de Outubro de
1886 escreve ao Boito: amanhã ou depois,
espero bem, escreverei a última nota da instrumentação. E desafia-o a
tentar ele mesmo a tradução do libreto para francês. Assim como assim, mais
hoje mais amanhã, a ópera será dada em Paris. Pois era. E para isso teria de
inventar um bailado. E inventa um bailado. Que primeiro ficaria no 2º acto, que
mais tarde passaria para o 3º acto, e que hoje em dia – em benefício da
fluência da acção – já não se ouve.
De Génova, manda aos serviços
de copisteria do editor Ricordi o que faltava para imprimir Otello. Sente um aperto no coração. Está
a separar-se para sempre da forma escrita do que pode prever como sendo o seu
último trabalho. A sua criação deixava de lhe pertencer por inteiro. Pobre Otello, já não voltarás mais à minha mão.
(E fico eu agora a saber que a partitura
autógrafa de Otello, guardada nos
arquivos da Casa Ricordi, é de todas a mais atormentada em rasuras, emendas,
cortes, acrescentos. Coisa nunca vista atá aí nos originais verdianos.)
O trabalho extenuante que
se segue é o de ensinar aos cantores as respectivas partes. Tamagno tem uma voz
demasiada. Verdi vê-se aflito para o refrear nas passagens mais íntimas ou mais
subtís do papel. O barítono Maurel está perfeito na insídia de Iago – um papel
que Verdi lhe diz poder ser quase todo cantado a meia voz.
No princípio de Janeiro de
1887, Verdi e Giuseppina hospedam-se em Milão no hotel do costume.
Impõe-se repristinar uma
prática já tradicional em cada estreia de uma nova ópera de Verdi no Scala. E a
prática é levar à cena uma ópera das antigas, uma das que maior favor tenham
colhido da parte do público. É por isso que antes dos trabalhos finais de
preparação da nova ópera o Scala programa uma Aida, e precisamente com os principais cantores do Otello, o Tamagno, a Pantaleoni e o
Maurel.
Verdi é agraciado pelo
rei com a Grã Cruz de San Lazaro e San Maurizio. Com votos de Sua Majestade
para que goze ainda por longos anos da glória que conquistou.
E começam os ensaios de
apuro.
A expectativa do público
e da crítica é enorme, como seria de prever. Correm os boatos. Que os preços
dos bilhetes serão aumentados a números proibitivos. Que os cantores receberão
autênticas fortunas de cachet. Que o
editor vendeu os direitos por uma soma exorbitante. Exageros… abusos - reclama Verdi.
Começam a chegar a Milão
individualidades de toda a Europa culta. Martucci, Tosti, Massenet, Marchetti,
pelo lado dos compositores; os poetas Du Locle e Giacosa; os empresários: o
Carvalho, da Opera Comique, e o Gailhard, da Grand Opera; os críticos, Depanis;
os políticos, Clemenceau.
Ensaio geral a 3 de
Fevereiro. Verdi não quer ver ninguém na plateia durante o ensaio geral. Os
críticos queixam-se. Nada podem fazer contra a decisão do velho.
Dois dias depois sobre o
pano.
Acolhimento entusiástico.
Verdi aclamado no fim de cada trecho.
Mas mais do que
entusiasmo há a surpresa, a quase perplexidade.
Aquele é outro Verdi. Aquele é um Verdi novo aos setenta e muitos anos.
A organização harmónica
do concertante do 3º acto deixa o público e os entendidos de boca aberta, sem
saberem o que pensar. O poeta Giacosa comenta: numa conversação normal há
pessoas que dizem dez palavras por minuto, e há outras que dizem cem durante o
mesmo minuto, e tudo acontece enquanto o tempo vai passando por igual medida
para todas elas. Pois bem, o que Verdi nesse concertante do 3º acto (que só
ouvido) fez foi conservar a mesma duração de cada compasso para a diversa
quantidade de palavras que cada personagem profere.
Um crítico, Basevi,
acerca do mesmo tema: o concertante do 3º
acto do Otello, em vez de quatro ou
cinco diferentes personagens (a cantar ao mesmo tempo frases metricamente
semelhantes, acrescentaria eu), comporta
dez personagens. O que explicava as razões do público para achar difícil
aquele 3º acto. Uma vez que se entra no
pensamento do autor, em lugar de se notar uma sobreescrita no concertante do 3º
acto, encontra-se um exemplo do que pode ser o belo harmónico.
Resumindo muito, a
proximidade a Wagner poderia estar na ausência de números absolutamente
fechados, árias e duetos. Os números, as cenas, os episódios, eram
diferenciados, conservando todavia as efusões mais líricas e as passagens
narrativas dentro de uma visão subtilmente unitária. A distinção residia no
desenho harmónico, na cor instrumental, no carácter de escrita vocal de cada
personagem, tudo ligado pelo discreto fio condutor tonal e estilístico.
Foram pedidos bis. O coro Fuoco di gioia, a Ave Maria e (estranho para os dias de hoje) o
interlúdio de contrabaixos do último acto. O bis pedido para o Credo
de Iago não foi concedido.
Terminada a récita, um
mar de gente entusiasmada lá foi a correr até ao hotel onde Verdi se hospedava.
Gritaram cá da rua. Queriam vê-lo. Verdi tinha acabado de chegar, estava à
conversa com os seus cantores e com algumas outras personalidades que o cumprimentavam.
Mas resolveu assomar à varanda do hotel e agradecer, acompanhado pelos seus
cantores. Nisto, o tenor Tamagno, faz sinal ao povo que está na rua e pede
silêncio. Conseguido o silêncio, de improviso, com aquela sua potentíssima voz,
canta a seco a saudação inicial de Otello, o famoso Esultate. E mil bocas populares, segundo a crónica, gritaram vivas.