quarta-feira, 27 de novembro de 2013


         SCAPIGLIATURA E 
     REGRESSO AO ANTIGO


        Em 1863, Arrigo Boito, poeta e músico, tinha vinte e um anos e integrava o movimento intelectual e artístico italiano que se chamou scapigliatura. Palavrão que se poderá traduzir livremente por libertinagem, por devassidão; ou por desalinhamento e marginalidade relativamente às correntes estéticas tradicionais; ou ainda como equivalente em italiano do francês vie de bohème; uma palavra que deriva de scapigliare, que quer literalmente dizer esguedelhar-se, despentear-se, desgrenhar-se.


Tudo isso está muito certo, mas, para o caso que me interessa, era uma tendência de desalinhados que punha em causa a arte burguesa consagrada (o costume) e que antecedeu o outro movimento estético-intelectual mais famoso, o futurismo.
Arrigo Boito, poeta e músico de vinte e um anos, queria salvar a arte italiana. Para salvar a arte italiana era forçoso virar de pantanas tudo o que então existia e era considerado como arte italiana (o costume). Boito fustigava a vacuidade, a nulidade da música italiana, por exemplo; ou mais duro ainda: a música italiana não passava de uma mentira pegada. Com ele, desalinhados, alinharam – e quanto a nomes mais conhecidos – o músico Franco Faccio e o poeta Emilio Praga. Mais distanciados, há quem diga que também os famosos compositores Alfredo Catalani e Amilcare Ponchielli compartilhavam ideais idênticos; havendo ainda quem fosse mais longe e jurasse a pés juntos que o muito jovem Puccini não andaria muito fora dos princípios da scapigliatura.
Os scapigliati eram jovens impetuosos, irrascíveis e engenhosos – ou como tal se auto-classificavam – que trabalhavam intrepidamente e que só esperavam a ocasião mais favorável para se manifestarem. Porque se sentiam fechados numa jaula. E diziam tudo é uma jaula neste mundo civilizado (1863). E dessa situação derivariam as tiranias, os preconceitos, as convenções, a revolta, a luta, a discórdia. Liberdade, liberdade, liberdade. Liberdade para a arte e para os artistas. Artistas fora da jaula, já!
Boito trabalhava numa tragédia lírica (escrevia-lhe o poema e a música) que iria pôr tudo em pratos limpos na música italiana, quer dizer, a arte musical italiana entraria finalmente nos devidos eixos pela acção dos scapigliati. (O costume.)
A palavra e a música. Qual delas chega primeiro à inspiração? A questão de sempre.
Boito sente cantar na alma uma música subtil que aspira à comunicação com o mundo exterior. É uma força a que falta a componente irrecusável que é a palavra. Palavra que era o meio mais preciso, mais claro, que ao Homem fora concedido para se exprimir. E lá sustentava Boito que a reforma wagneriana, se assim se podia chamar, assentava os seus fundamentos na palavra mais do que na música; Wagner dava privilégio às razões da poesia sobre as razões da música.
E falo disto como preâmbulo ao que vai ser o destino de Arrigo Boito, a palavra inserida na música. Ou o contrário. Conforme se prefira.
Boito estava atento, mais do que aos maneirismos germânicos, à escola francesa. Ritmos verbais novos desencantava ele na dita escola francesa, novas disposições estróficas. E com esses princípios entendia ele dar forma a peças musicais que redundariam em melodramas. De sociedade com Franco Faccio e Emilio Praga produz uma espécie de melodrama scapigliato, sob o título I Profughi Fiamminghi (Os Fugitivos Flamengos; ou Os Exilados Flamengos, tanto faz para o caso). O sucesso não é muito. Ou é mesmo muito pouco.
Põe-se a dúvida: seria aquela peça a estabelecer as bases do novo melodrama italiano? Não. Nem mesmo Boito acreditava nisso. O poema não era sólido dramaturgicamente. Descaía mesmo para os lados do anti-musical. O futuro era a tragédia em música e de momento toda a música era melodrama.
Wagner anuncia ao mundo a estreia do seu Tristan und Isolde. Meyerbeer preparar-se-ia, se fosse vivo, para dar à luz da ribalta a sua última obra, L’Africaine. O mundo musical regurgitava de melodramas.
E Verdi? Bem, para Boito, Verdi não contava muito. Ou antes, sim, o que Verdi fizera era teatro, fascinante, glorioso, fecundo. Verdi era homem de génio, ousado, criador, inovador… grande compositor. Mas ai!, haveria na obra dele um bom número de óperas que não funcionavam, em especial as dos anni di galera, dos anos da juventude, quer-se dizer. Posteriormente, as trouvailles de Verdi revelaram ao público a existência de uma arte séria, verdadeira. Já Verdi o tinha escrito ao compor I Lombardi, é bom que ao compor se seja um pouco vesgo e se deite um olho à arte e outro olho ao público. Sentença animosa (opinava Boito), porque muitos haviam deitado os dois olhos ao público e haviam esquecido os imperativos da arte – com A. E, sim, o artista de génio devia ser vesgo, estrábico. Mas I Lombardi envelhecera. E Rigoletto não. Rigoletto ainda levava os públicos ao delírio.
E Wagner?
Bem vistas as coisas, não, não servia. Um falso apóstolo. Um falso percursor.
Ainda assim, era de assinalar na música dele algum instinto prepotente, uma vigorosa musculação (sic). Mas também os dramas wagnerianos eram ineficazes (que chatice!), eram baixos e ridículos quando avaliados em função daquilo que seria, ou poderia ser, a sua missão na renovação musical europeia.
Antes de mais nada, para Boito, urgia que os novos talentos musicais italianos se pusessem a compor música pura, quartetos, sinfonias, aliás as formas supremas de uma arte independente como a música, e assim antes de se poderem abalançar ao híbrido e ao compósito melodrama – feito de música e atravancado de palavras, ou vice-versa.
E não era tarde nem era cedo: Boito fundava em Milão uma sociedade de concertos decalcada dos modelos franceses de Habeneck e Pasdeloup. A Sociedade do Quarteto. Missão: conservar religiosamente as relíquias da arte instrumental e ser para os jovens e para o público um guia sobre o passado glorioso.


Numa festança de scapiglilati, Boito exibe-se o seu bocado, faz um brinde e recita um poema dos dele, Ode Sáfica com o Copo na Mão. À saúde da arte italiana, para que ela escape, jovem e vigorosa, ao colete de forças dos velhos e dos cretinos, ela, arte italiana, que do altar onde estava tinha descido e parecia agora encostada à parede de um lupanar – mais ou menos isto.
Ora quem é que se atira ao ar de cólera, ao saber deste poema de Boito? Verdi, o maior nome da arte musical italiana. Aquilo tocava-lhe, que diabo.
Quem encostou a arte italiana à parede do lupanar? Terá sido ele, Verdi, um dos maiores expoentes dessa mesma arte italiana? Fosse ou não fosse, Verdi toma para si, e como ofensa pessoal, o verso de Boito. Verdi produzira até esses dias, em vinte e quatro duros anos de trabalho, outros tantos vinte e quatro melodramas representados em todo o mundo civilizado, e até nos confins da África. Terão sido vinte e quatro anos consumidos para nada?, pergunta.
Alguém pretende compor as coisas. Esse alguém é Franco Faccio – que daí a uns bons anos virá a ser, note-se, o maestro director e criador das últimas óperas de Verdi, escritas, note-se também, sobre libretos de Arrigo Boito.
Faccio escreve a Verdi. Declina o respeito que lhe vota. Também se tocara com a agressividade poética do amigo. Também ele entendia desnecessário revolver de alto a baixo tudo o que de artístico fora feito sob o pretexto da renovação da arte italiana do melodrama. E Faccio escreve outra carta a alguém do círculo estreito das amizades de Verdi, a condessa Clara Maffei, no sentido de a condessa interceder junto do mestre.
Ricordi, o editor, também despeja a sua água na fervura verdiana e defende Boito. Aquilo eram rapaziadas, exuberâncias de juventude, verdades inócuas e mais nada.
Se também eu, com outros, sujei o altar onde estava a música italiana, como diz esse Boito, ele que o limpe então e eu serei o primeiro a lá ir acender uma velinha.
         Mas Verdi não ficou indiferente aos considerandos de Boito e dos outros scapigliati. Aquilo podia ser um aviso. A arte italiana podia ter virado de rumo e apontar agora a novas finalidades. Enriqueciam-se os meios de expressão artística. A excelência dos avanços técnicos na instrumentação e na harmonização tinha dado um salto qualitativo enorme na Alemanha e na França, e esses avanços, sem sombra de dúvida, apontavam para uma renovação das formas e da substância musical mesma. Recusar tomar conhecimento dessa realidade seria um pouco como recusar-se a ouvir bater a aldraba da porta da própria casa.
         Pois é a partir deste incidente provocado pelo jovem Boito, então na casa dos vinte anos, que Verdi se vai dar ao trabalho de refundir, reinstrumentar, ou, em suma, reconstituir sobre fundamentos técnicos mais elaborados e actualizados, a instrumentação e a harmonia de algumas das suas óperas há muito estreadas.
      Toca ao Macbeth, uma das obras de juventude que lhe era mais querida, inaugurar essa leva de revisões.


Dezassete anos antes, Macbeth fora a primeira ópera em que Verdi tentara delinear um melodrama de mais profunda dimensão trágica, poética, musical, tudo o que, de resto, estava na sua mente fazer ao começar a carreira de compositor.
E ao iniciar os trabalhos de revisão da ópera, Verdi diz que lhe encontra defeitos que não gostaria de ter encontrado. A uma solicitação de Paris, acrescenta a Macbeth os bailados indispensáveis ao êxito na Grand Opera. A seguir retoca os trechos que lhe parecem mais débeis – os quais seria uma seca estar para a aqui a descriminar.
Mesmo assim, pode ser interessante transcrever um passo da carta que Verdi escreveu ao editor Ricordi. Vais rir-te quando te disser que para a cena da batalha compuz uma fuga. Uma fuga? Eu que detesto tudo quanto me possa cheirar a escolástico. Eu que há quase trinta anos não escrevia uma fuga…


A estreia do Macbeth reformado dá-se em Paris, a 21 de Abril de 1864, cantado em francês e visto e ouvido respeitosamente, ou talvez com um entusiasmo ligeiro. Reflexões ulteriores levarão Verdi a admitir que, não obstante tudo o que se pudesse aduzir, o Macbeth reformado podia não ser melhor do que o velho Macbeth escrito nos vigores da juventude. Faltava-lhe aquele fôlego impetuoso e criador da versão primeira. Verdi percebe que falhara o intento.
Tudo bem ponderado, o Macbeth resultou em fiasco. Amen. Confesso que não esperava.
Mas Ricordi insiste em fazê-lo representar no Scala. Será outro fiasco, reponta Verdi, opondo-se ao projecto de Ricordi.
No entretanto, o scapigliato Arrigo Boito continua a prezar-se como adversário irredutível quer de Verdi quer de Wagner. E dá conta disso em artigos de jornal. E pela parte criativa que lhe toca está convencido de que a próxima estreia de uma criação sua no Scala, o Mefistofele (um prólogo, cinco actos e um intermezzo sinfónico) abrirá enfim caminho à renovação da música italiana e inaugurará uma nova era na História do teatro musical.


Essa estreia foi aguardada com impaciência e desencadeou paixões mesmo antes de subir à cena, pondo em confronto os adeptos do “velho” e os do “novo”.
E, como curiosidade, diga-se que na programação do Scala, a seguir à novidade da estreia de Mefistofele, seria a vez do D. Carlo de Verdi.
E ainda como outra curiosidade, e insólita, diga-se que a direcção musical do Mefistofele, primeiramente entregue a Alberto Mazzucato, é-lhe retirada e adjudicada ao autor, Boito – na visão do empresário, de forma a concentrar a tríade melodramática numa só pessoa, poeta, compositor e chefe de orquestra. Nada de muito estranho em princípio. O estranho é que o scapigliato autor e director musical nunca na vida tinha dirigido coisíssima nenhuma, nem orquestras nem coros nem nada, e além disso tinha pouquíssimos dias para preparar nem mais nem menos do que um prólogo, cinco actos e um intermezzo sinfónico.
O Mefistofele de Boito vai a cena no dia 5 de Março de 1868 e cai fragorosamente entre gritos, assobios, insultos, pateadas. A direcção do Scala resolve dividir a obra em dois espectáculos, metade num dia e metade noutro. Mas nem assim. A atitude de desafio e de desprezo pelo público ostentada por Boito também não ajudou nada à festa e cada noite de espectáculo acabava em ruidoso escândalo. E o Mefistofele, a auspiciosa obra que renovaria – e salvaria - o teatro musical italiano é retirado do cartaz do Scala.
O tempo passa. Estamos em 1871 e Boito recebe uma carta de Wagner – que luxo! Brief an einem Italienischen Freund – a um jovem amigo italiano. Wagner felicita Boito. Porquê? Porque Boito vertera para versos italianos o poema de Lohengrin, que a 1 de Novembro desse ano de 1871 tivera em Bolonha a sua estreia italiana – a primeira de uma ópera de Wagner. E com grande êxito. Aquilo era mesmo a ópera do futuro.  


Boito, é claro, faz muita gala nos cumprimentos do mestre tedesco e faz publicar a carta no jornal La Perseveranza. E esquece-se das suas anteriores bocas desdenhosas, “o falso apóstolo”, “o falso percursor”. E Wagner vai longe. Exalta a inteligência e a paixão do público  italiano e deprecia a inteligência e a paixão do público germânico. Confessa admiração por Rossini e Bellini e pela bravura do génio itálico, ao qual, desde o Renascimento, a modernidade devia as suas artes.
Mas adiante.


Em 1873 já Boito tenta uma aproximação a Verdi. Boito é agora um homem importante. Está conselheiro municipal em Milão. Nessa qualidade dá um parecer favorável a execução da Missa de Requiem à memória de Manzoni e desfaz-se em loas à obra e ao autor – Verdi.
4 de Outubro de 1875 é o dia em que Boito vê o seu Mefistofele (entretanto muito revisto e reformado) estrear no Comunale de Bolonha. Mantinham-se as convicções dos scapigliati: aquele Mefistofele era a promessa de uma nova arte italiana, era o começo de uma profícua evolução para o melodrama, era o conúbio exemplar entre as duas formas de expressão musical italiana e alemã, cujo destino inescapável seria integrarem-se, influenciarem-se mutuamente – ou eliminarem-se e destruírem-se mutuamente, pelo que pensava Verdi.
Mas o Mefistofele reformado é mesmo um enorme sucesso.


Em 1878 Verdi tem sessenta e cinco anos. Está na idade da reforma. E ele pensa mesmo nisso, em reformar-se e não compor mais. Sessenta e cinco anos, porque pouco antes chegara à conclusão de ter nascido em 1813 e não em 1814.
Verdi anda mal disposto. A vida política inquieta-o. Assassinaram o rei Umberto. Não imagina como ando nervoso, rabujento, irritado. Não sei porquê. Mas é assim. Que tempos estes! Onde iremos nós acabar? Leio os jornais, muitíssimos jornais, e leio livros péssimos. Quando estou de mau humor dá-me para ler os livros mais celerados. Oh, quantos tristes acontecimentos neste 1878.
No ano seguinte, Verdi está à cata de novos argumentos para óperas. Diz aos amigos que não tenciona compor mais. Não é verdade. Em segredo procura um assunto digno, sério, artístico, que lhe convenha aos talentos da velhice. E até nem se importava que fosse uma história divertida e não um dramalhão como aqueles do passado, apesar do veridicto do Rossini, quando disse que ele, Verdi, não era talhado para a ópera cómica.
Escreve ao editor Giulio Ricordi: mas veja lá…há vinte anos que procuro um libreto de ópera cómica, e agora que sei que é possível encontrá-lo saem artigos de jornal que parece que já me começam a assobiar e a patear a obra antes de ela estar escrita. Mas se por acaso, por fatalidade ou por desgraça, o meu mau génio me levar a escrever a tal ópera cómica, pela sua parte não tenha medo, irei arruinar outro editor.
Pode ser que seja o Falstaff a ocupar o pensamento de Verdi. Já em 1868 corria esse boato nos meios musicais, sim, que ele até já teria composto muita coisa para um eventual e futuro Falstaff. O que foi energicamente desmentido. Por ele e pelos amigos mais chegados.
E afinal, quem andava a pensar no assunto do libreto para uma ópera cómica de Verdi era mesmo o editor Ricordi. A pensar no caso e a pensar na pessoa que haveria de incumbir-se da tarefa.
Tal pessoa seria o inimigo dos tempos pretéritos. Arrigo Boito, o poeta de alto vôo, o scapigliato. Ricordi não o levara a sério por muitos e bons anos, sobretudo depois do escândalo do Mefistofele no Scala. Mas a disposição de Ricordi mudara. O desgrenhado intelectual aprumara-se. O Mefistofele reformado de Bolonha constituíra um triunfo pessoal para Boito e fazia carreira em todos os principais teatros de Itália. Boito já escrevera excelentes libretos para outros compositores, o mais celebrizado deles para La Gioconda, de Ponchielli. Fizera-o não assinando com o verdadeiro nome, antes assinando Tobia Gorrio, o anagrama.
Ricordi pensa nos passos a dar. Um dos mais importantes – ou o mais importante – seria aproximar Boito de Verdi. Com respeito a Boito não seria difícil. Verdi seria muito mais duro de convencer.
 As gentes do meio musical milanês insistem com Verdi. Então, para quando a nova ópera? Então porquê esse tão longo silêncio depois da Aida? Estou velho. Tenho que deixar o lugar para os novos, replicava o mestre.
Num hotel da Via Manzoni, em Milão, a seguir ao jantar, Franco Faccio, o maestro, e o editor Ricordi estão à conversa com Verdi e a mulher. Conversa vai, conversa vem, alguém fala no Otello. Fala no Otello, fala em Shakespeare. E fala no Boito.


 No dia seguinte, Faccio traz o Boito à presença de Verdi. E três dias depois o Boito entrega a Verdi um primeiro esquiço de um libreto de Otello. Verdi lê e gosta. E louva.
- Faça-o – quase ordena. – Essa poesia será sempre boa, para si, para mim, para outros.
Ricordi, o editor, pôe-se em campo para tratar da logística do projecto. Pede a Verdi que o receba e o aloje, a ele e ao Boito, lá na casa de Sant’Agata. O libreto está pronto. Está na hora de deitar mãos à obra.
Mas Verdi não vai daí abaixo, não se convence com duas cantigas. Escreve ao Ricordi.
Se eu acho o libreto absolutamente bom, fico, de certo modo, comprometido. Se apesar de muito bom eu não gostar dele, será muito duro dizer na cara do Boito a minha opinião. Não, não. Você foi demasiado longe e é bom que pare antes que começam as bisbilhotices, as anedotas e os boatos. O melhor é mandarem-me o poema acabado para que eu o leia com calma e possa manifestar a minha opinião sem que ela comprometa ou constranja quem quer que seja. Só depois de aplainadas as arestas eu ficarei contente de os receber cá em casa, a si e ao Boito.
Boito manda o libreto de Otello a Sant’Agata e fica à espera, ansioso evidentemente, ansioso por poder ir ter com Verdi, por poder discutir pessoalmente o trabalho, corrigi-lo, enfim, levar o projecto a bom porto.
Boito fora conquistado pela grandeza intelectual e moral de Verdi, e conquistado de forma a queimar a etapa da normal admiração e a saltar para incondicional devoção.





       REGRESSAR AO ANTIGO PODE SER     
                          UM PROGRESSO

A discussão do libreto de Otello é feita por carta. Boito corrige, modifica, reescreve as passagens menos conseguidas, seguindo as sugestões do compositor quanto a movimentos de cena, situações dramáticas e diálogos. Primeiro vinha a música. Quer dizer, Verdi modelava a nova ópera sem se ater ao guião poético proposto por Boito. Era a música, uma vez mais, que definia o drama; ou era o drama a sujeitar-se uma vez mais ao melos.
A figura de Iago ocupava uma posição mais determinante na mente de Verdi do que propriamente a do protagonista, Otello, aquele que dava o título à peça. Mas o Otello ainda não é uma escolha definitiva. Verdi ainda não quer assumir compromissos. Ricordi bem teima, bem tenta persuadir o seu compositor, mas nunca mais vê chegado o dia de partir com Boito para Sant’Agata e de se sentarem os três a trabalhar.
Ao serão, Verdi conversa com a mulher.
- Eu tenho este defeito, que queres. Empenho-me muito. Demasiado. Ligo-me demasiado depressa às pessoas e aos projectos. E depois as coisas ficam muito adiantadas, as coisas avançam depressa demais… e eu não me posso deixar… compreendes… não me quero ver constrangido moralmente a fazer alguma coisa que não quero fazer.
- E ainda pensas que tudo na peça nasce da figura do pérfido Iago?
- Sim. O libreto nasce de uma simples palavra de Iago, quando faz o brinde, um momento de alegria…
- Uma coisa puxa a outra…
- E eu entrei nisto às cegas, sabes bem.
- Pois sei. Não tinhas uma ideia precisa…
- Não tinha não. E apesar dos versos belíssimos desse Boito, ainda não… o projecto anda não está completo na minha cabeça, de onde parto, onde chego, por onde passo. Não tenho as ideias claras. E vês tu porque não me quero envolver até a um ponto em que me seja difícil recuar…


O trabalho de composição de uma nova ópera para um homem já de certa idade, nem que ele se chame Giuseppe Verdi, não é empresa de somenos. E ainda para mais quando a validade estética da tradição operática italiana, de que ele era, à época, o expoente máximo e de maior ressonância mundial, vinha de há tempo a ser posta em causa pelo movimento renovador alemão, especificamente representado na pessoa de Richard Wagner.
Verdi está danadinho por entrar na competição de prestígio entre o génio itálico e o génio germânico, isso está. Mas já não tem trinta anos e está bem ciente disso. Ou seja, não se sente suficientemente seguro das armas de que dispõe para afrontar as comparações no contexto de uma nova ordem musical que lhe está a ser imposta de fora. E por isso mede com rigor as dificuldades. Não pode voltar a ser o artista das gloriosas, mas ultrapassadas, fórmulas do Trovador, do Rigoletto ou da Aida, recitativo-ária-cabaletta, duos, trios, concertantes e por aí fora, em previsível sequência. O que vem da Alemanha é a melodia contínua, a orquestração descritiva e participante na acção, no processo dramatúrgico. Não é brincadeira. Por isso vai fazendo esboços, tentames, experimentando ao piano possíveis soluções músico-dramáticas não habituais na paleta de recursos técnicos que era a dele até aí.
Giulio Ricordi tenta um estratagema psicológico que reconduza Verdi ao teatro. Propõe-lhe reformar a partitura de um Simão Boccanegra praticamente desaparecido do repertório dos teatros. Estando como está a partitura, é impossível – argumenta Verdi. – Não é preciso retocar nada no 1º acto. Nem no último. E nem sequer no 3º acto, salvo um ou outro compasso. Talvez refazer o 2º acto, dar-lhe relevo, variedade, mais vida. Fazer de Boccanegra uma ópera verista? Porque não? Shakespeare era um verista. Sem o saber. Era um verista de inspiração. E nós por aqui somos veristas por cálculo.
Verdi entendia que a arte, à força de um pretenso progresso, estava a voltar atrás. A arte a que falta espontaneidade, naturalidade, simplicidade, já não é arte.
Mas então, quem é que Ricordi sugeria para ajudar a estabelecer as bases dramatúrgicas de um Boccanegra reformado? Pergunta Verdi. E Ricordi não hesita na resposta. Ora quem… Boito. E aceitará ele o encargo? Veremos.


E viram. E Boito aceitou muito gostosamente. Ele e Verdi continuaram a discutir o Otello, mas aquele projecto intermédio do Boccanegra vinha a calhar como trabalho exploratório. Era um trabalho de menor dimensão e propício a um primeiro contacto profissional sobre uma obra acabada, coisa muito diferente da concepção de uma obra de raíz. Pois que se pusesse de lado por uns tempos o Otello e que se concentrassem na reorganização dramática do Boccanegra.


O cartaz do Scala está pobre para a temporada de 1880/1881. Será possível refundir o Boccanegra a tempo de se incluído na programação? Verdi escreve a Boito: há uma ópera que pode despertar um grande interesse no público, e não percebo porque é que Autor e Editor se obstinam em deixá-la de lado. Falo de Mefistofele. Seria um momento muito propício, e Você prestaria um excelente serviço à arte e a tudo.
Mas não. Boito não aceita o alvitre. Não quer dar a sua ópera ao Scala. Ainda tem muito viva a recordação da forma como foi lá tratado na estreia da primeira versão do Mefistofele.
Então pense no Boccanegra. Talvez pudéssemos encontrar um bom ponto de partida para o final do 1º acto, porque quanto ao resto será refazer um verso ou outro e uma ou outra frase musical. Pense nisso e escreva-me assim que tiver alguma ideia.
O libreto do Boccanegra escrito pelo Piave, Francesco Maria Piave, o libretista original, parecera a Boito uma espécie de mesa côxa.
Verdi proíbe que se pense já num novo Boccanegra para o cartaz de seja que teatro for. Haverá tempo para o apresentar, e mesmo assim só se a reescrita resultar bem.
Verdi repensa esse renovado Simão Boccanegra enquanto de férias em Génova - o preciso lugar da acção da ópera. Está a passar uma das suas temporadas habituais no palácio principesco dos Dória.

Mas não vale a pena entrar agora em pormenores, por interessantes que sejam, sobre o tema de “como se faz uma ópera”. Interessante para quem se possa eventualmente interessar por estas insignificâncias talvez seja dizer que as personagens baritonais, geralmente os vilões de ópera, versejadas por Boito tinham um recorte dramático muito semelhante, o monólogo de Paolo Albiani no Simão Boccanegra recorda o monólogo escrito pelo mesmo Boito (sob pseudónimo) para o vilão Barnaba, de La Gioconda, de Ponchielli, e ambos sugerem o monólogo de Iago que anos mais tarde Boito escreverá para o Otello verdiano.
Há que notar uma outra e também interessante coisa: Verdi apreciava os belos versos nos libretos que se propunha musicar, e os de Boito eram de primeira água; se Verdi apreciava e preferia os versos de mimosa inspiração, preferia por outro lado os versos defeituosos, ou mesmo feiosos, se o objectivo fosse descrever personagens ou pensamentos detestáveis. Creio que no teatro é louvável o talento de não fazer a grande música e de saber s’éffacer, tal como nos poetas é melhor muitas vezes usar em vez do bonito verso a palavra cénica evidente e eficaz.
Concluído o trabalho de retocar o Boccanegra, Boito alegra-se pela obra acabada e Verdi observa-lhe, como o prático de teatro que também é, que a obra deles só estaria acabada no fim do ensaio geral. Se realmente lá conseguirmos chegar.
E o Boccanegra revisto e corrigido acaba mesmo por ser representado no Scala como a última ópera da saison, a 24 de Março de 1881.
Nesse tempo, corre uma petição dos milaneses para que seja erigida no foyer do Scala uma estátua de Verdi, ao lado das dos falecidos que lá estão, Rossini e Donizetti. Instado a dar o seu consentimento, Verdi diz que sim numa primeira abordagem, e volta atrás com o “sim” numa fase posterior, por causa do barulho que certamente se fará a seu respeito. E depois corre outra petição para reparar uma injustiça gritante. Então e Bellini, uma das estrelas mais brilhantes do melodrama oitocentista italiano, não terá direito a uma estátua no Scala? Evidentemente que tem. Assim sendo, há que pôr no átrio do Scala, no mesmo dia, duas estátuas em vez de uma.
Boito já se recuperou do mal-estar da estreia desgraçada do Mefistofele no Scala e pronto-não-se-fala-mais-nisso autoriza uma reposição da obra já revista no mesmo Scala. Reposição que obtém grande êxito, diga-se.
Não pense que me esqueci do poema do Otello – escreve Boito a Verdi. – Tenho pensado muito nele, mas por causa das récitas de Mefistofele tem-me faltado a tranquilidade necessária. Dentro de dois dias poderei ocupar-me exclusivamente do Mouro.
Verdi pensa fazer o Otello sem coros, mas Boito manda-lhe uns versos para um coro do 2º acto e Verdi reconsidera e admite que seria uma loucura isentar o Otello de uma participação coral.


As duas estátuas, Bellini e Verdi, são inauguradas no átrio do Scala. Grande cerimónia. Verdi prima pela ausência. Tudo aquilo significa que sou velho (o que é verdade, enfim), que sou um veterano condenado à invalidez. Foi um erro ter consentido naquilo da estátua, um erro meu e de outros.
Fosse por se considerar velho, Verdi pareceu alheado por um tempo das coisas da música. Ocupo-me dos campos, das pequenas fábricas, do tratamento dos terrenos, e assim passam os meus dias sem nada feito de útil.
Vai uma temporada para Génova, como é costume, em Génova está sol e calor e em Milão há frio e nevoeiro. Ninguém sabe em que ocupa ele o tempo e é estranho para os amigos mais chegados o silêncio e o recolhimento a que se votou. Em Génova sai do Palácio Doria pela manhã, vai misturar-se com o povo das ruas, vai ao mercado, às compras. À tarde sai outra vez a passeio, mas agora de carruagem. Acompanha a mulher à missa de domingo mas escusa-se a entrar na igreja e espera por ela à saída.
Passa outro ano e Verdi não se decide quanto ao projecto do Otello. Está às voltas com outra das óperas do passado, o Don Carlo. Também aquele Don Carlo precisava de uma limpeza que lhe abrisse uma larga carreira nos teatros. Estava prolixo e pesado por demais e padecia de uma cor cénica uniforme. Tinha que se tratar disso.
A meio de Fevereiro de 1883 chega a notícia da morte inesperada de Wagner. Em Veneza. Verdi declara uma pena profunda. Triste! Triste! Wagner morreu. Lendo ontem a notícia fiquei mortificado. Não há discussão. É uma grande individualidade que desaparece, um nome que deixa uma marca fortíssima na História da Arte.


 O mundo musical italiano está ansioso. Espera de Verdi algo de grande. O Otello? Ou o Iago? Escreve a Ricordi. Não, não quer ser ele o grande mestre da lírica nacional. Não está, nem nunca esteve, nas minhas intenções ser mestre de ninguém. Deus me livre! E quanto ao Iago, ou melhor, ao Otello, Verdi declara não ter ainda escrito nem uma nota, e nem ao menos saber quando de facto a escreverá, se escrever.
Refaz entretanto o Don Carlo, reduzindo-o a quatro actos. Ficava mais cómodo e melhor artisticamente, mais conciso, mais enérgico. Os teatros andavam mal (pensava ele), e de tal modo andavam mal que um após outro estavam condenados a fechar, o que tornava inútil perder tempo e energias a compor uma ópera.
Ah, sim, a saúde! Não pensava nela desde há muitos anos, mas hoje não sei como será o futuro. Os anos já são demasiados e eu estou quase a pensar que a vida é a coisa mais estúpida. Ou pior ainda, a coisa mais inútil. Que fazemos? Que fizemos? Que faremos? A resposta a isto é humilhante, tristíssima. Nada!
10 de Janeiro de 1884. Vai a cena o Don Carlo em quatro actos – reduzido a proporções mais humanas. Verdi dirigiu os ensaios muito bem disposto, com um vigor juvenil, escrupuloso ao máximo, sempre, no inspirar os seus cantores para a interpretação daquele que é um dos seus trabalhos predilectos. É um Don Carlo novo, pode dizer-se, mas os amigos das comparações conheciam tão pouco o Don Carlo velho que aceitaram este sem especulações nem dúvidas.
Encontra-se com Boito em Génova. Sugere-lhe novas alterações na tragédia shakespeariana. E com respeito a música? Já começou a compor? Não se sabe.
Boito vai seguidamente cometer uma gaffe que pode deitar a perder todo o projecto de Otello.
Foi o seguinte: em Nápoles, Boito é convidado pelos professores do Conservatório para uma jantarada comemorativa do sucesso do Mefistofele renovado; perguntam-lhe como vai o caso do libreto para a nova ópera verdiana, esse tal Iago, e a resposta dele vem publicada no jornal Piccolo: que tinha escrito aquele libreto um tanto a contragosto, e que depois de o acabar lamentara-se de não poder ser ele mesmo a musicá-lo.
Alguém chega a Verdi o exemplar do jornal e Verdi lê o comentário de Boito. Põe-se imediatamente a escrever ao amigo comum, o maestro Franco Faccio.
Você sabe bem como as coisas se passaram. Não obriguei ninguém a escrever-me libreto algum. O pior é que o Boito, ao lamentar-se de não ser ele a escrever a música do seu próprio libreto faz supor que não espera ouvi-lo como ele quereria depois de musicado por mim. Estou a escrever-lhe por ser Você o mais velho e fiel amigo de Boito, e gostaria de lhe pedir o favor de quando regressar a Milão ir ter com ele e dizer-lhe de viva voz que eu, sem sombra de ressentimento, lhe devolverei intacto o manuscrito. Apesar de o libreto ser propriedade minha, estou disposto a oferecer-lho logo que ele entenda musicá-lo e assim contribuir para a glória da arte que todos amamos.
Era a segunda vez que Boito se mostrava inconveniente para com Verdi. Eram os resquícios da antiga scapigliatura, provavelmente.
Para Giuseppina, o incidente podia fazer parte de uma campanha de muitas pressões que o mundo musical exercia sobre Verdi para compor o Otello (ou o Iago, como toda a gente chamava ao projecto), e era uma táctica que ela entendia contra-indicada, sendo Verdi a pessoa que era.
Chegado a Milão, Boito toma conhecimento da carta de Verdi ao Faccio e comunica a Verdi que de maneira nenhuma aceitaria a restituição do original do libreto e que os sentimentos dele nada têm a ver com a interpretação grosseira que o redactor do Piccolo lhes dera.
Verdi continua a ir a jogo. Escreve ao Boito. Diz que lê pouco os jornais e que não acredita piamente em tudo o que eles dizem. A pergunta que lhe fizeram em Nápoles, creio que muito à queima-roupa, foi, no mínimo, curiosa, e podia esconder intenções não expressas claramente. Acredito que Você não tivesse respondido exactamente como foi transcrito pelo jornal, mas deve ter respondido de maneira a dar azo aos comentários que deu.
 Verdi achava inútil falar mais longamente do caso, desde o momento em que Boito não lhe aceitava a oferta do manuscrito do libreto. Estava-se a falar demais de um Otello que ainda ninguém (nem o próprio autor) sabia bem o que era. Já se passou demasiado tempo a falar do Otello. São demasiados os anos que levo de vida. É já demasiado o meu tempo de serviço. Mas o público ainda não me disse muito claramente Basta! A conclusão de Verdi era que o sucedido com o Boito em Nápoles lançara qualquer coisa de frio sobre aquele Otello ainda embrionário e rigidificara (sic) a mão que já lhe começara a escrever alguns compassos. O que se passaria a seguir ninguém o sabia. Mas fico feliz por esta explicação que tivemos. Só tenho pena que ela não tivesse acontecido logo que Você regressou de Nápoles.
Todos continuavam a chamar Iago ao projecto. Verdi insiste muito em chamar-lhe Otello – é verdade que é o pérfido Iago que mexe os cordelinhos da intriga, mas é Otello que age, que ama, que é ciumento, que mata. Ia para cinco anos que o público e a impaciente comunidade musical esperava por aquele Otello, por aquele Iago, ou fosse lá pelo que fosse, contanto que se tratasse de uma nova ópera de Verdi. Um Verdi que na realidade se sente indeciso, que não se sente muito seguro de si e das suas faculdades. E é quando recebe de Boito mais um trecho poético para juntar ao já escrito libreto. Nem mais nem menos do que os versos do que viria a ser designado como o Credo de Iago. Poderoso e shakespeariano em tudo, considera Verdi, radiante, convidando logo Boito para uma estada na casa de Sant’Agata.


Mas a causa da indecisão de Verdi podia estar no ânimo negativo com que vai passando aqueles dias de conhecimento da própria velhice, do próprio declínio físico, a querer resignar-se ao curso natural das coisas da vida. Nasce-se, gasta-se a vida as mais das vezes inutilmente, chega a época dos achaques, das doenças, e depois… Amen. Trabalhar tanto, e depois ter que morrer… sim, resignava-se, mas, no fundo de si, não se conformava com esse curso natural das coisas e da vida, um curso que não lhe parecia muito natural, e muito menos racional. De resto, uma ou outra sensação penosa é fruto dos 70.
Está com setenta anos, é verdade, e sente que vai baquear por causa do coração, como o pai. Trata de ir passar uns dias às termas de Montecatini – passará depois a ir com frequência. O médico das termas examina-o. O coração dele está cansado. Nada de mais. Trabalhou muito toda a vida, sofreu. Não era caso para especiais cuidados com o coração. Podia dedicar-se ao trabalho, desde que a nova ópera não o obrigasse a excessos.
Em Génova continua a acompanhar a mulher à igreja. E continua a ficar à porta. Toca-o a fé cristã, sem dúvida, mas não compartilha dessa fé.
Boito chega a Sant’Agata para novas sessões de trabalho. A Itália está sob um surto de cólera. Aqui não temos medo dos micróbios, não sentirá o cheiro a ácido fénico.
Trabalham. Uns dias. E Boito vai-se embora de Sant’Agata. Chegava o mês de Novembro e Verdi parava de compor para se dedicar a trabalhos menores. Regular as contas das propriedades, pagar a feitores, camponeses, pastores. Gostaria de poder arrendar tudo o que tinha de seu só para não ter que se preocupar com o cultivo das terras ou com o tratamento dos animais. Dias laboriosos, trabalhos antipáticos, sem poesia, dias de negócios, de números, coisa prosaica. Mas infelizmente sem isto não se come. Pobre condição humana. E nós, que nos temos na conta de grandes pessoas, espíritos superiores… ora ora!
Continua, mesmo assim, e sem embargo de tantas dúvidas, ter grande fé na arte. Prevê: qualquer dia aparecerá por aí um rapagão de génio que irá varrer tudo o que de medíocre hoje se faz em música e nos reconduzirá à música dos nossos belos tempos, eliminando-lhe os defeitos e utilizando as modernas técnicas… as boas técnicas. Sim, a súmula do que sempre pretendera fazer: conciliar o passado com o presente, voltar ao antigo como forma de progresso.
A 9 de Outubro de 1885 o Otello está quase pronto. E Verdi faz anos. Setenta e dois. É o dia terrível, hoje – escreve à condessa Maffei. E como tudo passara tão depressa, com tantos acontecimentos, tristes, alegres, tantas fadigas, tantos dias felizes e tantas desilusões. Na nossa idade temos necessidade de nos apoiarmos. Ainda não há muitos anos julgava eu que me bastava a mim mesmo, que não tinha precisão de ninguém. Presunçoso que eu era! Só agora começo a perceber a fundo que sou velho, bastante velho…
Boito está em Roma. Aceitou ser delegado do governo italiano ao Congresso Musical de Viena. Pede conselhos a Verdi. Verdi recomenda-lhe que insista no problema do diapasão universal para as orquestras, que devia estar a 864 vibrações; ele que declare abertamente, publicamente, e em voz bem alta que o diapasão de 870 é um erro crasso. Mas cautela com a língua. Firmeza sem impertinências. E ceder se não houver outra saída.
Apesar de andar por este mundo há tanto tempo e de ter assistido a tanta coisa, aprendi pouco, e a costela de camponês ficou sempre intacta em mim, e são muitas as vezes que em mim o aldeão de Roncole aparece em toda a sua grandeza.
Em fins de 1885 toda a gente o procura a propósito do anunciado Otello. É o barítono Victor Maurel a recordar-lhe a promessa feita de ser ele a criar o papel de Iago, e que de caminho o aconselha, já que os teatros em Itália andam mal, a estrear o Otello na Opera Comique de Paris – não pode ser, a ópera está escrita em italiano e pelo menos na estreia deverá ser cantada em italiano. É Gailhard, director da Grand Opera também de Paris, que vai propositadamente a Génova e lhe pede a estreia do Otello no seu teatro – a ópera ainda não está acabada, e está escrita em italiano, em bom italiano, e em italiano deve ser cantada na estreia. É o empresário do Scala que quer ter a certeza de que a nova ópera de Verdi está pronta a estrear.


Já anda a pensar nos cantores, nos que serão os criadores da obra sobre as tábuas do palco. O tenor Tamagno habilita-se ao papel do Mouro. Maurel dá por adquirido que será ele a encarnar o Iago – já que foi ele o criador do renovado Simão Boccanegra. E a soprano para a Desdémona? Um caso a ver. O Boito que vá ouvindo sopranos, a Teodorini, a Bellincioni, a Bendazzi-Secchi. E Boito ouve essas cantoras e o relatório que faz leva Verdi a replicar-lhe sim, está bem, não pensemos mais nelas.
Vai a Paris. Nem sabe bem porquê. Para tomar ares refinados. Para se mexer um pouco. Para ouvir o Maurel antes de lhe confiar a criação do papel de Iago. Quinze dias.
E afinal o Otello ainda não está pronto. Ainda há retoques para lhe dar. Ainda há muitas decisões a tomar quanto a instrumentação e harmonia.
Já tinha tomado as decisões necessárias no tocante a cantores – a questão do maestro estava automaticamente resolvida, seria o amigo Franco Faccio; e Desdémona seria por sua vez uma amiga de Faccio, Romilda Pantaleoni. Agora era o tempo de tratar dos cenários, do guarda-roupa, dos arranjos de cena. É um pintor de Parma, Alfredo Edel, que vai a Veneza estudar o que há nos museus e nas pinacotecas – bons tempos, digo eu, em que o maravilhoso género ópera ainda estava a fazer-se (e a renovar-se) em todas as componentes, e toda a estética respeitava a fidelidade epocal, ao contrário dos tristes dias de hoje, os dias da destruição do que havia de maravilhoso no género ópera e em que a renovação é feita pelo lado do grotesco, em que o Otello (seja ele de quem for, Verdi, ou Rossini, ou até de Shakespeare) pode ser vestido com as roupas da moda punk, rasta, gótika da rua e a acção pode ser transferida para uma esquadra de polícia, para um escritório da Baixa, ou mesmo, sabe-se lá, como diria Woody Allen, para uma cabine telefónica.


Morre a grande amiga de sempre, a condessa Clara Maffei. Verdi sente que o existencial e angustiante vazio se alarga em volta dele. O provisório antídoto pode estar no trabalho. O Otello. Está quase. A 29 de Outubro de 1886 escreve ao Boito: amanhã ou depois, espero bem, escreverei a última nota da instrumentação. E desafia-o a tentar ele mesmo a tradução do libreto para francês. Assim como assim, mais hoje mais amanhã, a ópera será dada em Paris. Pois era. E para isso teria de inventar um bailado. E inventa um bailado. Que primeiro ficaria no 2º acto, que mais tarde passaria para o 3º acto, e que hoje em dia – em benefício da fluência da acção – já não se ouve.
De Génova, manda aos serviços de copisteria do editor Ricordi o que faltava para imprimir Otello. Sente um aperto no coração. Está a separar-se para sempre da forma escrita do que pode prever como sendo o seu último trabalho. A sua criação deixava de lhe pertencer por inteiro. Pobre Otello, já não voltarás mais à minha mão.

                                 

 (E fico eu agora a saber que a partitura autógrafa de Otello, guardada nos arquivos da Casa Ricordi, é de todas a mais atormentada em rasuras, emendas, cortes, acrescentos. Coisa nunca vista atá aí nos originais verdianos.)
O trabalho extenuante que se segue é o de ensinar aos cantores as respectivas partes. Tamagno tem uma voz demasiada. Verdi vê-se aflito para o refrear nas passagens mais íntimas ou mais subtís do papel. O barítono Maurel está perfeito na insídia de Iago – um papel que Verdi lhe diz poder ser quase todo cantado a meia voz.
No princípio de Janeiro de 1887, Verdi e Giuseppina hospedam-se em Milão no hotel do costume.
Impõe-se repristinar uma prática já tradicional em cada estreia de uma nova ópera de Verdi no Scala. E a prática é levar à cena uma ópera das antigas, uma das que maior favor tenham colhido da parte do público. É por isso que antes dos trabalhos finais de preparação da nova ópera o Scala programa uma Aida, e precisamente com os principais cantores do Otello, o Tamagno, a Pantaleoni e o Maurel.

Verdi é agraciado pelo rei com a Grã Cruz de San Lazaro e San Maurizio. Com votos de Sua Majestade para que goze ainda por longos anos da glória que conquistou.
E começam os ensaios de apuro.
A expectativa do público e da crítica é enorme, como seria de prever. Correm os boatos. Que os preços dos bilhetes serão aumentados a números proibitivos. Que os cantores receberão autênticas fortunas de cachet. Que o editor vendeu os direitos por uma soma exorbitante. Exageros… abusos - reclama Verdi.
Começam a chegar a Milão individualidades de toda a Europa culta. Martucci, Tosti, Massenet, Marchetti, pelo lado dos compositores; os poetas Du Locle e Giacosa; os empresários: o Carvalho, da Opera Comique, e o Gailhard, da Grand Opera; os críticos, Depanis; os políticos, Clemenceau.
Ensaio geral a 3 de Fevereiro. Verdi não quer ver ninguém na plateia durante o ensaio geral. Os críticos queixam-se. Nada podem fazer contra a decisão do velho.
Dois dias depois sobre o pano.
Acolhimento entusiástico. Verdi aclamado no fim de cada trecho.
Mas mais do que entusiasmo há a surpresa, a quase perplexidade.  Aquele é outro Verdi. Aquele é um Verdi novo aos setenta e muitos anos.
A organização harmónica do concertante do 3º acto deixa o público e os entendidos de boca aberta, sem saberem o que pensar. O poeta Giacosa comenta: numa conversação normal há pessoas que dizem dez palavras por minuto, e há outras que dizem cem durante o mesmo minuto, e tudo acontece enquanto o tempo vai passando por igual medida para todas elas. Pois bem, o que Verdi nesse concertante do 3º acto (que só ouvido) fez foi conservar a mesma duração de cada compasso para a diversa quantidade de palavras que cada personagem profere.
Um crítico, Basevi, acerca do mesmo tema: o concertante do 3º acto do Otello, em vez de quatro ou cinco diferentes personagens (a cantar ao mesmo tempo frases metricamente semelhantes, acrescentaria eu), comporta dez personagens. O que explicava as razões do público para achar difícil aquele 3º acto. Uma vez que se entra no pensamento do autor, em lugar de se notar uma sobreescrita no concertante do 3º acto, encontra-se um exemplo do que pode ser o belo harmónico.
Resumindo muito, a proximidade a Wagner poderia estar na ausência de números absolutamente fechados, árias e duetos. Os números, as cenas, os episódios, eram diferenciados, conservando todavia as efusões mais líricas e as passagens narrativas dentro de uma visão subtilmente unitária. A distinção residia no desenho harmónico, na cor instrumental, no carácter de escrita vocal de cada personagem, tudo ligado pelo discreto fio condutor tonal e estilístico. 
Foram pedidos bis. O coro Fuoco di gioia, a Ave Maria e (estranho para os dias de hoje) o interlúdio de contrabaixos do último acto. O bis pedido para o Credo de Iago não foi concedido.



Terminada a récita, um mar de gente entusiasmada lá foi a correr até ao hotel onde Verdi se hospedava. Gritaram cá da rua. Queriam vê-lo. Verdi tinha acabado de chegar, estava à conversa com os seus cantores e com algumas outras personalidades que o cumprimentavam. Mas resolveu assomar à varanda do hotel e agradecer, acompanhado pelos seus cantores. Nisto, o tenor Tamagno, faz sinal ao povo que está na rua e pede silêncio. Conseguido o silêncio, de improviso, com aquela sua potentíssima voz, canta a seco a saudação inicial de Otello, o famoso Esultate. E mil bocas populares, segundo a crónica, gritaram vivas.