quinta-feira, 23 de outubro de 2014

                A MÚSICA,
                           A MEDICINA,
                                        O TEMPO E O MEDO


         Em certo sentido, é preciso ver que a medicina, ao cumprir a sua missão de instaurar uma normalidade equilibrada no corpo e no espírito, só desajuda alguns artistas criadores, os que devem muito (ou tudo) nas suas criações aos desequilíbrios da sua mente, ou mesmo aos aleijões do seu corpo, corpo que também, não raro, para o melhor e para o pior, lhe condiciona essa mente.


       Que seria do mundo cultural sem as perturbações bipolares de Beethoven, Schumann, Edgar Poe, Tchaikovski, Dostoievski, Fernando Pessoa, Lord Byron, Tolstoi, Gauguin; sem a tuberculose de Chopin; sem a depressão alcoólica de Hemingway, de Faulkner, de Tennessee Williams; sem a epilepsia de Van Gogh…
         Por outro lado, que seria do mundo da música se não fosse a medicina a valer aos criadores do segundo escalão da criatividade, os intérpretes, os conexos? Digo dos dedos dos pianistas, da hérnia discal dos maestros, dos joelhos dos bailarinos, das laringes dos cantores…


         A essência da arte do artista está nele próprio, nele inteiro, em corpo e espírito. A técnica e a aprendizagem contam cerca de não muito mais de 20, ou 30%  para o rendimento final.
E todo o grande artista traz obrigatoriamente a sua doença ou a sua saúde para a tela, para o pentagrama, para a folha branca, para a pedra bruta… e para o palco. A doença que lhe entra em conflito com o talento; ou a doença que descobre, provoca e alimenta esse talento. A doença que misteriosamente lhe suscita um particular modo de se exprimir; ou a doença que pode proibi-lo terminantemente de se exprimir. Ou ainda, porque não, o diálogo  permanente entre a doença e a saúde e que define ao Homem os territórios da criatividade e da mediocridade, no conflito eterno entre os doentes geniais e os saudáveis medíocres, os ditos normais, os equilibrados, os correctos!, de expressão e comunicação comparáveis às de todos os outros homens. 


         O mais castiço dos médicos que frequentam a cena lírica pode ser que não seja bem médico, ainda que chame a si mesmo de doutor Dulcamara. Pertence à ópera Elixir de Amor, de Donizetti, e corre mundo a vender um soluto que pode debelar as mais variadas enfermidades. Faz andar os paralíticos, despacha os apopléticos, os asmáticos, os histéricos, os raquíticos, os diabéticos – é o que ele diz; cura os tímpanos, as escrófulas, e até os males de fígado que agora estão na moda… por causa do meu específico, simpático, mirífico, um septuagenário conseguiu ser avô de dez crianças… 

                                                    

         Vamos a ver uma coisa: um médico por acaso também entendido em Verdi, em Puccini, em Bellini, em Rossini, em Wagner poderia, suponho eu, organizar um seminário em que se discutisse tecnicamente o surto de epilepsia do general Otello ao cair em espasmos no 3º acto; em que se abordasse a evolução da tísica que mina duas importantes heroínas do palco lírico, Violetta Valéry, mais conhecida pela Traviata, ou Mimi, a modesta florista de La Bohème. Por exemplo.

                                 
Esse clínico poderia também avançar judiciosos palpites acerca da extraordinária obesidade de Sir John Falstaff, ou da fatal consanguinidade de que vai resultar a morte (real) do Infante D. Carlos de Espanha, consentida (senão ordenada) pelo próprio pai, o rei Filipe II. Saberia esse médico em que parte do próprio corpo o jovem Edgard de Ravenswood, da Lucia de Lammermoor, dá uma facada por forma a permitir-lhe cantar uma ária longa e difícil ainda antes de bater a bota. Um bom especialista explicar-nos-ia o como e o porquê de o barão Scarpia morrer instantaneamente por um único golpe na barriga aplicado com uma simples faca de ir à mesa, ou qual a composição da mistela que La Gioconda dá a outra mulher por forma a simular-lhe a morte e a fazê-la despertar em grande voz no momento conveniente.
     Está visto que na literatura lírica existem intrigas e sub-intrigas romanescas motivadas por patologias diversas. A pobre cantora Antónia, de Os Contos de Hoffmann, de Offenbach, misteriosamente enferma, proibida de cantar e tratada por um médico que é a encarnação do próprio diabo – o que não é caso invulgar mesmo nos nossos dias, segundo me dizem. O sonambulismo de Lady Macbeth e o sonambulismo da própria Sonnambula, de Bellini – de que eu discorreria com gosto no caso de perceber alguma coisa de sonambulismo; como discorreria, se soubesse, do caso famoso de um medicamento ministrado por engano que faz Tristão e Isolda caírem doidamente apaixonados um pelo outro quando, antes de ingerirem a droga, se odiavam. Para não falar da estranha ferida de Amfortas, senhor do Graal, provocada pela ponta aguçada de uma lança e impossível de tratar com anti-inflamatórios ou antibióticos, porque só curada ao toque da mesma ponta da mesma lança que a provocou.


         É o medo que nos leva à medicina, ao médico. É o medo de sofrer, o medo de morrer. E acho que, de certa maneira, é a própria prática da música e do tempo musical, e o medo dela e dele, que pode aproximar a mesma música da medicina e faz dos artistas grandes consumidores do acto médico.
É ver o caso dos pianistas no afã de simular o domínio sobre uma portentosa máquina que lhes escapa, e que tanto recorrem aos feiticeiros da ortopedia por causa daquele malvado quarto dedo que nem sempre funciona na hora do recital, como aos magos da psique para lhes espantarem a fantasmagoria e o medo de deixarem de fazer sentido. Ou dos bailarinos, a correrem Cristianos Ronaldos para os fisioterapeutas com queixas no joelho, nos gémeos, nos adutores, no tendão de Aquiles, na tibiotársica, o menisco, a tendinose...
         Casos interessantes são os dos chefes de orquestra. Uma vida inteira afectada pelo melindroso fluir do tempo musical. Uma vida inteira passada a gesticular música, a sinalizar tempo, de pé, e mais atreitos, se calhar, aos neurocirurgiões, por via das costas, da coluna.



E até tenho belos nomes para meter aqui: o primeiro deles, o celebérrimo Herbert von Karajan, sete operações à coluna ao cabo de uma longa carreira; Daniel Barenboim, caído redondo durante uma récita de Mestres Cantores; James Levine, director musical do Metropolitan Opera de Nova York, constrangido hoje em dia a exercer a profissão sentado numa cadeira construída para ele sob específicas ergonomias.
       
                                
     
       Tudo por causa do gesto e do tempo – o que em música vai dar no mesmo -, e sendo os maestros os donos do tempo musical: nalguns casos os criadores do próprio tempo musical; noutros casos os mercadores (ou implacáveis marcadores) desse tempo musical.
Tempo musical que é o tempo absoluto, o tempo mais que perfeito desta vida, o tempo que encerra todo o tempo, e que por isso intimida quem se mete com ele.
E se algum dia ouvirem um chefe de orquestra dizer “os músicos do meu tempo”, podem crer que não se refere ao bom tempo comum em que ele era jovem. Não, ele refere-se ao tempo musical que marcava com a batuta, que era o verdadeiro tempo dele, e que os tais músicos eram obrigados a seguir.


         E alguns – chefes de orquestra, digo - morreram mesmo no exercício da profissão. Joseph Keilberth, tombado durante uma récita de Tristão e Isolda; ou Dmitri Mitropoulos abatido ao efectivo dos vivos num ensaio de Wozzeck; ou Jascha Horenstein, numa récita de Orfeu - que me lembre assim de repente. E temos o caso do maestro Franco Ferrara, génio da batuta ossanado por todos, mas que quando subia ao pódio para impor o tempo de um concerto desfalecia, e que por via isso passou a carreira a ensinar a outros o mistério do tempo que lhe escapava ao gesto e à cardiopatia. Questão de nervos? Questão de medo? Medo de não ser digno do tempo musical, do tempo todo?
         Mas o medo maior do artista, diga-se o que se disser, é o medo da sua própria e formidável ambição de exprimir o inexprimível.


         Karajan vivia com esse medo e mais com uma dúvida excruciante. Que se passa no corpo de um homem quando dirige uma orquestra? A que alturas andará, e a que níveis do suportável, a pressão arterial do director de orquestra durante as cinco horas de duração de uma normal ópera de Wagner? De que cargas de vontade indómita será ele capaz para dominar o medo do tempo? E tanto assim que, para as sessões de gravação de um Siegfried, se fez observar clinicamente no acto de dirigir, todo ele sensores e fiozinhos ligados a maquinetas. Foi em Março de 1969, e dizem as crónicas que parecia um astronauta.


Nos breves momentos que antecederam o início da função a pulsação dele subia de 67 a 148, descendo vertiginosamente ao normal no preciso instante em que levantava os braços e fazia a música existir, tornando a subir em flecha ao aproximar de um agudo particularmente difícil da soprano.

                                                                        

Terminada a sessão, Karajan vai para a sala de controlo ouvir os takes. Continua ligado às máquinas. E não é que, ouvindo as gravações, a pulsação dele volta a disparar nos mesmos valores e a regressar ao normal nos exactos momentos em que disparara e regressara ao normal horas antes, quando dirigia? Reacção que Karajan tomava como prova de que os estímulos musicais poderiam ocorrer no corpo à revelia da vontade e da razão humanas. Comandados pelo medo, diria eu.
E já para o fim da vida Karajan criou uma fundação para o estudo de ciências que conexão tivessem com a prática musical. Era um curioso dos efeitos da música sobre o Homem, ainda que pensasse que a experiência da sua própria prática musical de tantos anos e o contacto directo que tivera com o fenómeno musical e com a maravilha do tempo fosse mais esclarecedor do que os resultados científicos.
É claro que ele se referia a um certo poder espiritual, esse poder espiritual que ainda mantém nos seus devidos limites o poder científico do Homem moderno. E porque o objectivo da actividade funcional de um músico é alcançar o perfeito intangível, o que equivale a dizer irromper para além dos limites de si próprio – e quando digo si próprio digo do seu próprio corpo, e quando o corpo é a mais poderosa limitação aos prometeicos desplantes do espírito. E assim sem prejuízo do que disse um dia Wittgenstein, de o corpo ser a melhor representação da alma.
Mas também pode ser como o disse um místico qualquer: no interior do corpo de um homem reside toda a História do mundo. É disso que os médicos realmente se ocupam e tratam. Da História do Mundo…


E não se diga que Karajan não era um homem moderno. Era. Moderníssimo! Um furioso das tecnologias mais avançadas. Em 1984 declarava ele o seu ideal de morte. Ou seja, de vida – ideais aliás que podem desembocar no mesmo dilema. 


Karajan gostaria que na hora da morte o congelassem. E que o fizessem reviver passados 20 anos para que pudesse voltar a gravar todo o repertório usando as tecnologias em vigor daí a 20 anos. Isto foi em 1984, portanto, as tecnologias de 2014. Está então na hora. E confesso que não sei se entretanto alguém já tirou o corpo de Karajan do congelador e o meteu no micro-ondas…

                                                                  

Música é arte do tempo, é arte do momento, esse momento que se faz anunciar, existe, marca a ordem do mundo, passa, e nunca mais volta. O que em música – e quem sabe se em cirurgia – não sair bem no momento preciso é uma perda irreparável. É a perda do tempo. Tempo que comporta em si a condição de ser isso mesmo, irreparável.
A música é o que nos impõe esse tempo irreparável. A música é o que estipula a verdade de cada momento de vida, e nunca a mesma verdade do momento precedente, e nunca a mesma verdade do momento seguinte. Uma ética do irremediável. O tempo de atacar a nota, o tempo de tocar a frase, o tempo de a acabar. E sobre esse tempo irremediável pode pairar um silêncio de cuidados intensivos…  
Por isso é costume dizer-se que qualquer descuido ou imprevisto pode ser a morte do artista.
E é da morte do artista que passarei a falar.
Assim como os maestros que já citei – e provavelmente outros que não me ocorrem ou que desconheço – mais músicos houve a morrerem no local de trabalho. E entre esses que morreram em pleno palco durante uma representação, destaco o caso mais impressionante do célebre barítono norte-americano Leonard Warren, uma das maiores estrelas do MET de Nova York, que viveu 49 anos até à tarde do dia 4 de Março de 1960, em que cantava a Força do Destino, um dos cavalos de batalha dele enquanto maior barítono verdiano do mundo.
Mas cuidado que Warren não se apresentava nessa tarde como ele mesmo. Warren era nessa tarde o nobre espanhol Don Carlos de Vargas que correra seca e meca à procura do homem que lhe raptara e desonrara a irmã e lhe assassinara o pai, e que logo nessa tarde o encontrava, e que, acabado de o encontrar, o ia finalmente matar. Mas antes disso tinha que viver o tempo e cantar uma ária bastante trabalhosa. Urna fatale del mio destino.


Cantada a ária, Don Carlos de Vargas, ou o barítono Leonard Warren, solta um grito – um mi agudo – o gioia!, ó alegria. E cai redondo, e morto, sobre as tábuas sagradas do palco. Estava pronto para matar o infame. Mas o tempo escoou-se rápido e fatal na sua própria vida.
A orquestra pára. Os colegas e o coro precipitam-se dos bastidores e rodeiam o corpo. Há pânico na plateia. O pano desce. Leonard Warren, a grande voz, a grande estrela americana da ópera, está morto. Ataque cardíaco, segundo uns; hemorragia cerebral, segundo outros. Venha o diabo e escolha.
Pode ser caso para perguntar qual é o contabilista, o cabeleireiro, o padeiro ou o advogado que aspira a morrer no próprio local de trabalho, e enquanto trabalha. Tenho a certeza de que poucos.
Leonard Warren morreu de morte macaca, sim, de morte pública, longe da cama onde todos nós gostaríamos de acabar. Mas morreu como todos os artistas de palco gostariam de morrer, a trabalhar, a cumprir o seu destino. Morreu numa situação de ficção. Morreu enquanto personagem melodramática que só pensava em matar. E para cúmulo da ironia que reveste estas coisas da vida, da morte e da arte, poderia perguntar-se se o cidadão judeu-novaiorquino chamado artisticamente de Leonard Warren morreu mesmo, ou se quem morreu foi o tal nobre rancoroso Don Carlos de Vargas que ele fingia ser naquela tarde.


Warren morreu vestido de outro, vestido de Don Carlos de Vargas, a dizer as palavras de Don Carlos de Vargas, a fazer os gestos de Don Carlos de Vargas, a experimentar o ódio e o medo de Don Carlos de Vargas. Mas… ora ora… que Warren morreu é uma maneira de dizer. Dizer que morreu na pele de um outro, de Don Carlos de Vargas. Morreu na pele de um outro que, para complicar ainda mais as coisas, nem sequer existia. É o que se pode chamar a morte do artista.
A Força do Destino. Uma ópera que dá azar, e que, diga-se de passagem, Pavarotti sempre se recusou a cantar. E por isso mesmo. Por medo. Por medo do azar que dá cantá-la. E porque Pavarotti era um homem altamente supersticioso que num dia em que experimentou algum medo se lamentou: E pensar que a minha vida depende de dois ou três centímetros de cartilagem.
O tempo e o medo. O tempo musical mete medo. O medo de o perder. Pode não se estar bem quando ele chega, o tempo musical. O génio teme o tempo. Glenn Gould, o pianista iluminado, o excêntrico hipocondríaco, vivia apavorado com várias coisas, entre elas as correntes de ar e os micróbios. E entre essas coisas também, provavelmente, o poder não estar em condições de defrontar em público uma variação de tempo chamada de Goldberg. E por isso deixou pura e simplesmente de tocar em público e optou pelo estúdio, onde o tempo pode ser reversível.


         Medicina e música. Estranha afinidade. Muita? Pouca? Sabe-se lá se nenhuma…
         A Arábia Saudita precisa de médicos portugueses. Veio nos jornais. E paga-lhes bem. Não precisa de músicos. Não dá um chavo por um músico. Não são precisos.
Medicina e música. Uma afinidade que eu diria explanada sobre o tempo e sobre o medo. Mas se a mim me fascina o tempo, o que me apaixona é o medo.
Fazemo-nos músicos para experimentarmos o medo exaltante de tocar, de cantar, de dançar. O medo de experimentar o nosso corpo. O medo de experimentar o tempo e de o falhar; a que corresponde a expectativa da graça divina, que é a de afrontar o tempo e de o vencer.
Ou talvez nos façamos médicos para penetrarmos o segredo da carne perecível que nos contabiliza o enigma do tempo, e que é, por isso mesmo, a nascente de onde brota o medo. O músico vive apaixonadamente o próprio medo criativo, intoxicado pela droga da sua vaidade. Talvez o médico viva angustiadamente o medo dos outros… ou se calhar não… só profissionalmente…
Mas sim, o tempo musical mete medo, porque é naquele dia X, àquela hora Y e naquele minuto Z que a voz do cantor tem de lá estar, que os dedos do pianista ou do violinista têm de funcionar. Há para cumprir a cada noite de récita a fracção mágica do tempo universal. Um segundo antes é cedo demais; um segundo depois é irremediavelmente tarde. E ninguém garante ao cantor e ao instrumentista que naquele preciso segundo em que a voz tem de sair e que os dedos têm de funcionar os deuses sejam misericordiosos e se dignem visitá-los.
Tudo pode depender da disposição física e mental do dia – do tempo. Ou da emoção que seja preciso convocar para aquele momento e não para o outro, o antes ou o depois: a emoção que se convoca e se transmite ao público naquele minuto, uma emoção que é falsa, e que todavia é a mais verdadeira, porque vivida sobre o medo.
Deve haver um tempo médico, um tempo clínico. Que é o tempo do corpo, o tempo que o corpo humano concede ao espírito. Que é o medo que o corpo nos infunde. Como o tempo musical é uma representação maravilhosa desse mesmo tempo do corpo, organizada em gesto, sentida em medo, expressa em som. Música é gesto – e gesto é tempo de o fazer. Allegro, andante, largo, presto, forte, legato, stacato. Música é corpo. É o gesto do regente, é a mão do pianista. Sim, o gesto que desencadeia o transcendente das vidas. Ou o acto médico, ou o gesto cirúrgico que nos adia a morte, adiamento que é outra modalidade da vital transcendência.
E há uma justificação evidente para que nesta minha conversa venham com mais acuidade à baila os cantores do que os instrumentistas. É nos cantores que o medo é maior e que por isso a medicina se faz mais precisa. O instrumento dos sopranos e dos tenores é o próprio corpo – como quem diz, é a própria medicina. A dedicação do músico ao instrumento é a dedicação do cantor ao próprio corpo, a si próprio – um alibi para os narcisismos, está certo.
O cantor não pode mudar de instrumento quando o que tem não está em condições. A laringe humana não se pode afinar como um violino ou um piano. O corpo de um tenor sofre as contingências do corpo de qualquer outro ser humano, frio, chuva, humidade, vento, ar inquinado, calor, angústia, stress. Fatiga-se. Dói. Pesa. Aborrece-se. É no anti-histamínico, no anti-inflamatório, no anti-depressivo que o cantor procura, em última análise, a melhor afinação do seu instrumento.


E já agora acompanhemos Nietzsche na caracterização do órgão fisiológico do medo. O ouvido. O órgão excelentíssimo do músico. E também o órgão do medo e da noite. Ou, mais curiosamente, do medo, da noite e da música. Claro. O ouvido humano distingue a música, classifica-a; como distingue os ruídos, particularmente os ruídos ameaçadores de uma noite, e sendo a música por Nietzsche definida como experiência nocturna. No âmago da floresta, o Homem apura o ouvido, identifica o som, a nota de música ou o aproximar da fera, do perigo. Ao nascer do dia o ouvido atenua as suas funcionalidades, o mundo e a vida tornam-se inteligíveis pelo olhar. Os cegos sonham como todos os outros, todavia, sem imagens visuais, só pela actividade auditiva.

                                                  

Hematomas, edemas nas cordas vocais. Traqueítes. Afonias prolongadas. Como terei voz amanhã de manhã cedo para o ensaio. O tempo e o medo. O tempo e o medo no meu primeiro contacto com um otorrinolaringologista, quando tive muito medo, aquele medo que faz lembrar da medicina. Foi então que consultei um especialista muito reputado que me avaliou o exsudado naso-faríngico e decretou que eu estava pejado de estafilococos aureus patogenicus.


Injecções. Comprimidos. Inalações. Bombinhas. A esperança. O tempo. Depois, a cura, o dissipar do medo. E, anos passados, a rinite a carregar com mais vigor sobre o meu tracto naso-faríngico. Nova experiência do medo. A consulta a um outro facultativo de renome. O meu histórico revelado. Os tais estafilococus etc.. Diz-me ele: ah, graças aos estafilococus aureus patogenicus  há colegas meus que têm prédios no Areeiro.


Mas chegou o tempo em que Sherrill Milnes, o sucessor de Leonard Warren no estrelato do MET de Nova York, experimentou o medo.
Artista de carreira fulgurante. Voz de extensões ilimitadas e de poderes expressivos consideráveis. Grande bravura. Grande brilhantismo. Fama mundial. Mas a certa altura a voz rendia-lhe em pleno pelos seus 20 minutos e depois cansava-se, pesava, faltava. Milnes sofria horrores, suava em bica no decorrer das récitas. Problemas técnicos de base? Milnes pensava o que todos pensamos quando sentimos um órgão a falhar: já lá iam tantos anos a cantar com êxito estrondoso sobre a mesma base técnica e nunca lhe tinha acontecido nada que se parecesse com aquilo. E era como shakespeareanamente me disse esse tal primeiro otorrino que consultei: aquilo que nunca aconteceu acontece seguramente um dia. Sim, uma questão de dias. Vivemos suspensos numa questão de dias.        
Em fins de 81, Milnes está em Londres para cantar Simão Boccanegra no Covent Garden e sente-se mal e enche-se de medo. Um médico londrino. Uma hora de exame. Conclusão: ruptura de um vaso capilar numa das cordas vocais, numa das tais membranas de dois ou três centímetros de que depende a vida de um cantor – como disse Pavarotti.
Cirurgia de laser. Uma lotaria. Podia dar para continuar a carreira, ou podia deixá-lo afónico para sempre. Toda a vida e subsistência de Milnes estão ameaçadas, dependem daquele estranho caso de ruptura milimétrica nos seus poucos centímetros de membrana.
Boston. Milnes dá entrada no Massachusetts General Hospital sob nome suposto. Janeiro de 82. Ninguém no mundo da ópera e da edição discográfica pode saber que o maior barítono da América e um dos maiores do mundo se vai sujeitar a uma cirurgia no seu instrumento de trabalho. Milnes, claro, está em pânico. A fortuna bafejara-o muito generosamente até aí, mas o reverso, a hora da pouca sorte, podia estar a chegar. Uma questão de dias.
Uma semana após a operação, tudo voltara à mesma. E em Agosto de 1984 Sherrill Milnes volta ao hospital do Massachusetts. Segunda intervenção a laser. Nos meios da ópera consta que Sherrill Milnes, o grande barítono, está a morrer. Operação. Recuperação. O tempo. Repouso. O tempo. Aproxima-se o dia do grande concerto comemorativo do Centenário do Metropolitan de Nova York. Milnes não quer deixar de comparecer. Mas nem o cirurgião mais desembaraçado lhe garante que possa comparecer. O medo.


Uma noite, está para começar a conversar com a mulher, mas nem começa. Porque não pode. Nem o mais leve sussurro lhe sai da garganta. Duas operações de alto risco. Para nada. A carreira acabou. Sentia-se enlouquecer. A medicina não o ajudou. Mas não morreu. Ainda é vivo.
Quem morreu foi outro infeliz barítono, este italiano, outro dos maiores de todos os tempos, Ettore Bastianini. Um grande. Reclamado no mundo inteiro. Mas em 1963, depois de sete papéis cantados na Ópera de Viena desaparece subitamente da cena lírica mundial. Por dois meses ninguém sabe dele. O tempo. Que se passa? Ninguém sabe o que se passa. Reaparece no Scala em Rigoletto. O medo. A voz não lhe responde nos momentos capitais. É pateado. Vai cantar a Chicago e lá recorre à medicina. Faz-se observar. Diagnóstico: cancro na laringe. O medo.


Isola-se. Químio e rádio na Suíça. Retoma a carreira. Quanto mais o cancro se desenvolvia mais volume de voz ele tinha, dizia-se. E suspende de novo a carreira. Por quatro meses. O tempo. Regressa aos palcos em 1965. No Met de Nova York. Força do Destino, ópera muito fatal e de muito mau agoiro, como vimos. O público não gosta. Medo. O mundo artístico é cruel e ninguém sabia do drama que Ettore Bastianini estava a viver.
A 11 de Dezembro de 1965 decide pôr um fim definitivo a uma gloriosa carreira que se transformara em tormento insuportável. Iria para a sua casa em Sirmione, nas margens do Lago de Garda, aguardar a morte. E foi. Sozinho. O tempo e o medo. Era uma questão de dias. E cumpridos os dias, a morte chega. Em Janeiro de 1967. Com 44 anos.
No caso dos músicos fadados para o mais alto rendimento profissional, e para a grande carreira internacional, haverá sempre que escolher entre, das duas uma: ser um escravo de si mesmo, do seu talento e da sua ambição, ou ser um cidadão livre. Escolher entre ter ou não ter medo, entre convocar ou não convocar os rigores do tempo.


E se Bastianini e Milnes e Warren traziam a doença para o palco, o lendário tenor Lauri Volpi só trazia saúde. Não apreciava especialmente a medicina no seu trabalho, e daí que exigisse em contrato a prerrogativa de ser ele mesmo, e não o médico do teatro (como era de uso) a decidir se estava ou não em condições de cantar, se estava ou não doente, se podia ou não cancelar uma actuação por motivo de doença. Era o único no mundo artístico com essa cláusula. E pode dizer-se que Lauri Volpi usou e abusou dela. Bastava que pouco antes de começar o espectáculo estivesse à porta do seu camarim e visse alguém aproximar-se com uma cesta de flores. Ah, obrigado (dizia ele), lindas flores, muito obrigado. Desculpe, as flores não são para si. Não são para mim? Então para quem são estas flores? São para a soprano ali do camarim ao lado. Para a soprano? Esta noite não canto. Estou doente, muito doente. E voltava para o camarim, vestia-se e ia à vida dele.
A férrea vontade de vencer o medo e a arriscada ousadia de confrontar o tempo podem prejudicar o juízo inteligente quando canalizadas para uma única obsessão de grande carreira.
E é assim que Franco Corelli, o escultural, o enorme, o heroico tenor dos anos 50 e 60, levou a vida na expectativa torturante e quotidiana de perder a voz. Era uma questão de dias. 30 anos de grande carreira iguais a 30 anos de pânico diário. Dizem que se injectava antes das récitas. Não sei. Sei que aparecia pálido como um morto – eu vi. Mas se se injectava seria com quê? Diziam uns que com um preparado à base de cortisona; diziam outros que com água destilada, só para ter a sugestão de ter tomado qualquer coisa capaz de lhe restituir a voz que na imaginação alucinada sentia faltar-lhe; diziam ainda outros que se injectava com cocaína, ou com qualquer outra coisa parecida que soubesse fazer o que ele não sabia: defrontar o tempo e vencer o medo…
No fim extemporâneo da carreira (carreira que era na verdade a sua doença), com cinquenta e poucos anos, ainda cheio de voz, idolatrado em todo o mundo lírico, deu uma surpreendente entrevista à Newsweek. O medo.


Não nasci para ser cantor. Sempre tive medo de cantar. No começo não tinha o dó sobreagudo e tinha medo. Depois, com o estudo, adquiri o dó sobreagudo com facilidade, mas morria de medo só á ideia de o perder. Podia passar umas três horas seguidas a ouvir a minha voz gravada à procura dos defeitos. Ficava exausto. Muitas vezes, logo de manhã, a minha voz não respondia. Se era dia de descanso e não tinha récita, passava horas a experimentar a voz, a ver se ainda a tinha. Precisava urgentemente de descansar, mas não conseguia dormir de contentamento, se a récita me tinha corrido bem. Não conseguia dormir de angústia se ela me tinha corrido mal. E Corelli remata com uma pergunta ao entrevistador: você acha que isto era vida?
Não era. Para ele não era.
Oiça, amigo, isto não era vida. Isto seria a vida de um prisioneiro, um prisioneiro metido num quarto de hotel, a ouvir-se a si próprio à procura dos seus defeitos, a olhar estupidamente para a televisão e a fazer paciências. E oiça, amigo, eu nasci livre. Eu nasci em Ancona a 50 metros do mar.
Mas também temos o caso dos destemidos. Por exemplo, os irredutíveis fumadores da cena lírica. Ah, a recusa olímpica do medo, o desafiar do tempo. Fumam alegremente toda a vida sem medo de perder a voz. Enrico Caruso é o primeiro deles, e o mais ilustre, a voz histórica. Foi submetido a duas operações aos pulmões, incluindo corte de costelas, e realizadas no próprio quarto de hotel novaiorquino onde residia – tinha 17 quartos permanentemente por conta dele.


A convalescer na terra natal, Nápoles, é entrevistado pelos jornalistas americanos que querem saber da recuperação e se o MET contaria com ele na temporada seguinte. O tempo. Estava tudo bem. Sim, sim, reapareceria na temporada de 1921/1922.
Mas enquanto respondia aos jornalistas não parava de fumar. Espanto. E não deixa de fumar? Deixar de fumar, eu? Quem deixa de fumar são os doentes, amigo, e eu sinto-me em grande forma.
Foi uma questão de dias. O imortal Caruso morreu uma semana depois desta entrevista. Com 48 anos. Sem medo. E depois de esgotada a qualidade do tempo que o destino preparara para ele.
E Di Stefano, o grande companheiro da Callas, fumador incansável. Aliás, ao contrário do que se pudesse pensar, Di Stefano tinha-se na conta não de um grande cantor que pecaminosamente fumava, mas de um homem livre, um fumador que por acaso até cantava. Mas só veio a morrer com oitenta e tantos anos, no Quénia, depois de se envolver numa zaragata com uns homens que lhe assaltavam a casa.


Fumadores… ah… e Dietrich Fischer-Dieskau, e Ferrucio Tagliavini, e Cesare Siepi, e Tito Gobbi, e Piero Cappuccilli, e, e… houve até quem dissesse que a Callas e a Caballé também apreciavam o seu cigarrito…
 Pois todos esses e mais o puríssimo Beniamino Gigli, que só deixou de fumar aos 44 anos e por promessa feita à mãe. E outros, e outros, e outros. Muitos outros. Os que não tiveram medo. Os que se gozaram do tempo.
O azar está sempre à espreita do artista de palco, isso é verdade, e por isso muitos deles, acusando a droga do medo artístico, consultam regularmente bruxos, cartomantes, videntes, astrólogos e deitam terra de cemitério à porta do camarim do rival.
O músico está capaz de recorrer a todas a mesinhas desde que elas lhe dissipem o medo, o medo de ser, de ser artista, lhe revelem as ideais propriedades do tempo e lhe garantam a melhoria da performance.
Mas quem é senhor do seu medo até pode cantar com o diafragma remendado.
Numa noite de 1943, no Porto, enquanto ceava com amigos, depois de ter cantado La Bohème, o grande tenor português Tomás Alcaide, sentiu uma agudíssima dor no estômago. Hérnia diafragmática estrangulada. A carreira dele já não estava grande coisa, depois de ter deixado de cantar em Itália e em França devido à guerra (o tempo, a História do mundo), mas, como é evidente, depois daquele incidente, as coisas não melhoraram para Tomás Alcaide.
Uma questão de dias.
Cinco meses e meio de hospital com operações e sucessivas complicações pós-operatórias. O tempo. Resultado: diafragma remendado com a metade esquerda já de si paralisada; conta do banco nas lonas; voz sem ninguém poder dizer ao certo se estava perdida ou não. O regresso do medo.


O conselho dos clínicos era um ano de repouso e nunca mais pensar em cantar. O tempo. Conselho que ele não seguiu, diga-se. E estreou em S. Carlos – onde misteriosamente até então nunca tinha cantado – com um Pescadores de Pérolas. Mal pensado. Ópera mal escolhida em vista das circunstâncias; ópera que lhe pedia fôlego de gato e domínio absoluto do diafragma para os efeitos de mezzo forte, crescendo e diminuendo que lhe tinham acrescentado fama. Ópera mal escolhida, digo. A voz badalou-lhe aflitivamente, apoiada por um diafragma esburacado. Foi aplaudido por cortesia. Nunca mais foi o mesmo.        
O grande Beniamino Gigli, ídolo incomparável dos meus avós, cantou em S. Carlos já bem entrado na idade. Quando era novo e estudava canto em Roma, na Academia de Santa Cecília, era um rapazinho anafado, de muito alimento, mas muito pobre, e sempre esganado com fome. Fosse por isso, as suas amizades mais chegadas eram cozinheiros, e alguns deles trabalhavam nas boas casas da alta burguesia romana.


Pois pelo final dos anos 40, já sessentão, já uma lenda viva da ópera, já laureado vencedor do tempo e do medo, vem Gigli cantar a S. Carlos. Em tom de queixume, mostra a um funcionário do teatro com quem se tinha travado de amizades um contrato em nome dele para um país sul-americano. Um contrato em que o espaço das condições financeiras estava em branco, e onde ele, Gigli, poderia escrever a soma que muito bem lhe apetecesse. E dizia ele: está a ver como são as coisas e como é a vida? Quando eu era muito novo andava permanentemente cheio de fome e não tinha dinheiro para comer nas quantidades que o meu estômago me pedia; hoje, com 60 anos, apresentam-me um contrato financeiramente ilimitado, em que eu posso ganhar o que quiser… hoje, que não posso comer isto por causa da úlcera, que não posso comer aquilo por causa da diabetes, que não posso comer aqueloutro porque me faz subir a tensão, porque me dá cabo do estômago, do fígado, da vesícula, dos intestinos
No palco, a tocar, a dançar, a cantar, a declamar, em verdade vos digo que ninguém, nem o artista mais pintado, pode prever o que lhe possa acontecer – ou o que o medo lhe possa induzir de desconchavo, ou as perfídias que o tempo lhe reserva.
Contei-lhes alguns casos tristes, e até dramáticos, que acabaram mal. Os que acabam bem não ferem a atenção dos cronistas, como as boas notícias não fazem vender jornais.
                                                                                             

E, vendo as coisas pelo outro lado, talvez o cardíaco Leonard Warren nem tivesse chegado àquele dia e àquela malvada récita da Força do Destino se não tivesse tomado diligentemente as pílulas que o médico lhe receitara – quais, não sei. Porque há um tempo artístico feito para ser vivido sem medo. Há. É uma questão de dias, mas há.


A lesão na corda vocal de Sherrill Milnes já lá andaria se calhar desde os primeiros tempos da carreira e não se manifestara mais cedo porque talvez ele tomasse religiosamente as injecções – quais, não sei.

                                                                                              

O desenlace fatal de Bastianini foi sendo retardado pela quimioterapia. Pela medicina, que tem a propriedade de iludir o tempo e retardar o medo.
A hérnia do nosso Tomás Alcaide talvez tivesse sido disfarçada e o estrangulamento adiado, uma questão de dias, por efeito de alguns cuidados médicos.


Até ao dia infeliz em que o nosso corpo cobardemente se revela o maior inimigo do nosso espírito e da nossa vontade e o que de mal nunca fisicamente nos aconteceu, acontece.
Warren, apesar de judeu, era cardíaco, e era católico, e levava uma vida espartana. Mas, como numa novela do Garcia Marquez ou numa tragédia de Sófocles, a sua morte estava anunciada. Questão de dias. Como há as rouquidões anunciadas por uma má técnica vocal, as hérnias anunciadas por exagero nos esforços do músculo, as decadências anunciadas por deficiências congénitas. Questão de dias. O tempo. A categoria de vida que nos toca a todos, mesmo que pelos nossos feitos ou qualidades nos chamem imortais. E nós sabemos disso – o medo – ainda que façamos por esquecer. Não devia ser assim, mas até os médicos adoecem e morrem – pelo menos é o que eles dizem…
Medos antecipados, e desgraças anunciadas. Como anunciada estava a prematura decadência de um dos nomes maiores da cena musical de todos os tempos.
Trata-se do estranho caso da grande lombriga. 

                                                                           

A grande lombriga aplicada ao ventre de uma excelsa artista que, parecendo que não, trazia para o palco e para as personagens a que dava corpo a sua considerável miopia, a sua helénica tragédia e o seu medo indomável na hora de cantar.
Quando, em 1954, Maria Meneghini Callas aparece no mundo da música e do society como paradigma da elegância feminina, porque acabara de perder 36 quilos, as histórias e os boatos nunca mais pararam.
Em todo o caso, parece que foi ela mesma a lançar para o mundo a história sensacional daquela repentina magreza. O estranho caso da grande lombriga. Uma bicha solitária por ela deliberadamente ingerida com uma taça de Dom Pérignon a acompanhar.
Mas enfim… parece que era tudo falso. Sim, falso esse caso da grande lombriga declarado por ela. Dizem os entendidos que semelhante animal engolfado nas entranhas e a absorver-lhe as calorias que ingeria nunca por nunca ser lhe poderia proporcionar uma perda de peso tão radical. Talvez lhe proporcionasse, mais do que elegância e estilo, umas cólicas, uns gazes fétidos e umas solturas de morrer. Uma ténia nunca poderia apropriar-se de 40 quilos de cantora lírica – ainda por cima grega.
E então, Maria Callas, para efeitos publicitários, ou mentia descaradamente e estava a caçoar com os jornalistas sequiosos de notícias retumbantes; ou estaria mesmo convencida de ter ingerido a bicha que alguém à sorrelfa lhe deixara cair na taça de champanhe; ou ainda, ingerido a lombriga acidentalmente na carne que comia, e porque era muito chegada ao seu bifito, de preferência apresentado cru, à moda tártara, mesmo a pedi-las, mesmo a pedir que lhe metessem uma desapercebida lombriga pelo meio...


De uma maneira ou de outra, com ou sem ténia, o certo é que Maria Callas, em 1951, em Florença, fizera uma audição para Rudolf Bing, o patrão do maior teatro de ópera das américas, o tal MET de Nova York. Estava gordíssima. Era uma mastronça e tanto. E Bing não ficou entusiasmado. Mas, lá por causa disso… sim, poderia cantar no MET, Bing é que não dava mais do que 400 dólares por ela em cada récita.


Negociação vai, negociação vem, ela quer mais do que os choradinhos $400. Mas também era uma questão de dias. Passa um ano, passam dois (o tempo), e no verão de 1954 a Callas faz um ultimato ao MET de Nova York: ou lhe dão 750 dólares por noite, ou o MET nunca ouvirá a voz de Madame Callas.
E vai a Nova York. E bate ao postigo de Mr. Bing. E Mr. Bing abre o postigo, olha para ela e tem uma tontura de cabeça por ver a mastronça que audicionara dois anos antes em Florença transformada num chiquíssimo corpo flexível vestido pelos grandes costureiros da Europa.


 E a parada de madame Callas sobe um pouco mais, e Mr. Bing tem que perder o amor a 800 dele em cada noite que madame Callas abrir a boca no MET. Não porque cante melhor do que quando era uma tronchuda e cantara na audição de Florença, segundo disse o próprio Bing, mas porque estava fisicamente muito mais apresentável a uma audiência novaiorquina.
O caso é que, passados anos (o tempo), a refinada e magríssima madame Callas começa a perder a voz – e a ganhar ainda mais medo. E vai perdendo, perdendo, perdendo a voz, até se retirar prematuramente de cena.
Diagnóstico – dermatomiositis.

                                                                                  

Uma doença que era segredo muito bem guardado e que a minava desde 1960, ainda nova – aliás, a Callas nunca chegou a ser velha, morreu com 53 anos.
Médicos da Universidade de Bolonha dedicaram-se ao caso. Ouviram exaustivamente, e comparativamente, gravações da diva e chegaram a essa conclusão.
 A dermatomiositis vai enfraquecendo os músculos do corpo, sem excluir, evidentemente, os músculos comprometidos no acto de cantar. A maleita punha-lhe na pele uma cor vagamente azulada, deixava-lhe manchas vermelhas no lado direito do pescoço e marcas nas mãos. Tratamento: esteróides e anti-inflamatórios. Uma questão de dias, em todo o caso…
Disseram – como é costume dizer-se à falta de explicação para certas coisas – que os abaixamentos vocais da Callas e os sucessivos cancelamentos de actuações tinham causa psico-somática. Mas o testemunho (só em 2002) de um dos médicos que a tinha assistido, Mario Giacovazzi, colocou as coisas nos devidos pontos, depois de ter guardado reserva profissional por muitos anos. Aquilo era uma doença rara, que logo por um bambúrrio da pouca sorte fora bater a porta de um dos maiores fenómenos do mundo do espectáculo e da grande música dos tempos modernos.


(E tudo isto para nada dizer da magna e extravagante questão físio-musical que foi a época dos castrados dos séculos XVII e XVIII.)
Música e medicina.
Richard Wagner, no dia 19 de Janeiro de 1883, no Palácio Vendramin, em Veneza, declarou que meterem-lhe uma sonda no estômago era um atentado aos seus direitos pessoais. Uma questão de moral pessoal, sem dúvida. E uma questão de dias. Porque depois dessa declaração Wagner não chegou a durar um mês.

                                                     

         Tudo isto foram músicas, artistas, personalidades, e talvez medicinas, que pertenceram a um outro tempo, a um tempo de humanidades, a um tempo que ainda nos convidava, citando Goethe, a dizer ao momento que passava “pára, és belo”. Um tempo que nunca mais achará paralelo com um momento que nos é presente e nos será futuro, e obsessivo, de bancos, de banqueiros, de mercados, de taxas de juro, de contenção de custos, de maximização de lucros, de desemprego sistémico, de divertimento vazio, em completo desprestígio da cultura e das humanidades. Um momento que não apetece mandar parar porque ele é apenas muito prático e funcional, e não absolutamente belo.


Ainda assim, e falando de música, da grande música, e de medicina, apraz-me notar a magnífica afinidade entre ambas, dizendo: ai daquele que mais tarde ou mas cedo na sua vida, e seja o momento que for que passe, numa alegria enorme, numa aflição, numa depressão, numa exaltação, não tenha que recorrer aos efeitos de uma e de outra, da música, da medicina… porque todos, tarde ou cedo, uma questão de dias, teremos de vencer o medo, ou conviver com ele revertendo o tempo, redimindo o corpo e o espírito. Pela medicina. Mas também pela música.