A MÚSICA,
A MEDICINA,
O TEMPO E O
MEDO
Em certo sentido, é preciso ver que a medicina, ao
cumprir a sua missão de instaurar uma normalidade equilibrada no corpo e no
espírito, só desajuda alguns artistas criadores, os que devem muito (ou tudo)
nas suas criações aos desequilíbrios da sua mente, ou mesmo aos aleijões do seu
corpo, corpo que também, não raro, para o melhor e para o pior, lhe condiciona
essa mente.
Que
seria do mundo cultural sem as perturbações bipolares de Beethoven, Schumann,
Edgar Poe, Tchaikovski, Dostoievski, Fernando Pessoa, Lord Byron, Tolstoi,
Gauguin; sem a tuberculose de Chopin; sem a depressão alcoólica de Hemingway,
de Faulkner, de Tennessee Williams; sem a epilepsia de Van Gogh…
Por
outro lado, que seria do mundo da música se não fosse a medicina a valer aos
criadores do segundo escalão da criatividade, os intérpretes, os conexos? Digo
dos dedos dos pianistas, da hérnia discal dos maestros, dos joelhos dos
bailarinos, das laringes dos cantores…
A
essência da arte do artista está nele próprio, nele inteiro, em corpo e
espírito. A técnica e a aprendizagem contam cerca de não muito mais de 20, ou
30% para o rendimento final.
E todo o
grande artista traz obrigatoriamente a sua doença ou a sua saúde para a tela,
para o pentagrama, para a folha branca, para a pedra bruta… e para o palco. A
doença que lhe entra em conflito com o talento; ou a doença que descobre,
provoca e alimenta esse talento. A doença que misteriosamente lhe suscita um
particular modo de se exprimir; ou a doença que pode proibi-lo terminantemente
de se exprimir. Ou ainda, porque não, o diálogo
permanente entre a doença e a saúde e que define ao Homem os territórios
da criatividade e da mediocridade, no conflito eterno entre os doentes geniais
e os saudáveis medíocres, os ditos normais, os equilibrados, os correctos!, de
expressão e comunicação comparáveis às de todos os outros homens.
O
mais castiço dos médicos que frequentam a cena lírica pode ser que não seja bem
médico, ainda que chame a si mesmo de doutor Dulcamara. Pertence à ópera Elixir de Amor, de Donizetti, e corre
mundo a vender um soluto que pode debelar as mais variadas enfermidades. Faz andar os paralíticos, despacha os
apopléticos, os asmáticos, os histéricos, os raquíticos, os diabéticos – é
o que ele diz; cura os tímpanos, as
escrófulas, e até os males de fígado que agora estão na moda… por causa do meu
específico, simpático, mirífico, um septuagenário conseguiu ser avô de dez
crianças…
Vamos
a ver uma coisa: um médico por acaso também entendido em Verdi, em Puccini, em
Bellini, em Rossini, em Wagner poderia, suponho eu, organizar um seminário em
que se discutisse tecnicamente o surto de epilepsia do general Otello ao cair
em espasmos no 3º acto; em que se abordasse a evolução da tísica que mina duas
importantes heroínas do palco lírico, Violetta Valéry, mais conhecida pela
Traviata, ou Mimi, a modesta florista de La
Bohème. Por exemplo.
Esse
clínico poderia também avançar judiciosos palpites acerca da extraordinária
obesidade de Sir John Falstaff, ou da fatal consanguinidade de que vai resultar
a morte (real) do Infante D. Carlos de Espanha, consentida (senão ordenada)
pelo próprio pai, o rei Filipe II. Saberia esse médico em que parte do próprio
corpo o jovem Edgard de Ravenswood, da Lucia
de Lammermoor, dá uma facada por forma a permitir-lhe cantar uma ária longa
e difícil ainda antes de bater a bota. Um bom especialista explicar-nos-ia o
como e o porquê de o barão Scarpia morrer instantaneamente por um único golpe
na barriga aplicado com uma simples faca de ir à mesa, ou qual a composição da
mistela que La Gioconda dá a outra mulher por forma a simular-lhe a morte e a
fazê-la despertar em grande voz no momento conveniente.
Está
visto que na literatura lírica existem intrigas e sub-intrigas romanescas
motivadas por patologias diversas. A pobre cantora Antónia, de Os Contos de Hoffmann, de Offenbach,
misteriosamente enferma, proibida de cantar e tratada por um médico que é a
encarnação do próprio diabo – o que não é caso invulgar mesmo nos nossos dias,
segundo me dizem. O sonambulismo de Lady Macbeth e o sonambulismo da própria Sonnambula, de Bellini – de que eu
discorreria com gosto no caso de perceber alguma coisa de sonambulismo; como
discorreria, se soubesse, do caso famoso de um medicamento ministrado por
engano que faz Tristão e Isolda caírem doidamente apaixonados um pelo outro
quando, antes de ingerirem a droga, se odiavam. Para não falar da estranha
ferida de Amfortas, senhor do Graal, provocada pela ponta aguçada de uma lança
e impossível de tratar com anti-inflamatórios ou antibióticos, porque só curada
ao toque da mesma ponta da mesma lança que a provocou.
É
o medo que nos leva à medicina, ao médico. É o medo de sofrer, o medo de
morrer. E acho que, de certa maneira, é a própria prática da música e do tempo
musical, e o medo dela e dele, que pode aproximar a mesma música da medicina e
faz dos artistas grandes consumidores do acto médico.
É ver o
caso dos pianistas no afã de simular o domínio sobre uma portentosa máquina que
lhes escapa, e que tanto recorrem aos feiticeiros da ortopedia por causa
daquele malvado quarto dedo que nem sempre funciona na hora do recital, como
aos magos da psique para lhes espantarem a fantasmagoria e o medo de deixarem
de fazer sentido. Ou dos bailarinos, a correrem Cristianos Ronaldos para os
fisioterapeutas com queixas no joelho, nos gémeos, nos adutores, no tendão de
Aquiles, na tibiotársica, o menisco, a tendinose...
Casos
interessantes são os dos chefes de orquestra. Uma vida inteira afectada pelo
melindroso fluir do tempo musical. Uma vida inteira passada a gesticular
música, a sinalizar tempo, de pé, e mais atreitos, se calhar, aos
neurocirurgiões, por via das costas, da coluna.
E até
tenho belos nomes para meter aqui: o primeiro deles, o celebérrimo Herbert von
Karajan, sete operações à coluna ao cabo de uma longa carreira; Daniel
Barenboim, caído redondo durante uma récita de Mestres Cantores; James Levine, director musical do Metropolitan
Opera de Nova York, constrangido hoje em dia a exercer a profissão sentado numa
cadeira construída para ele sob específicas ergonomias.
Tudo
por causa do gesto e do tempo – o que em música vai dar no mesmo -, e sendo os
maestros os donos do tempo musical: nalguns casos os criadores do próprio tempo
musical; noutros casos os mercadores (ou implacáveis marcadores) desse tempo
musical.
Tempo
musical que é o tempo absoluto, o tempo mais que perfeito desta vida, o tempo
que encerra todo o tempo, e que por isso intimida quem se mete com ele.
E se
algum dia ouvirem um chefe de orquestra dizer “os músicos do meu tempo”, podem
crer que não se refere ao bom tempo comum em que ele era jovem. Não, ele
refere-se ao tempo musical que marcava com a batuta, que era o verdadeiro tempo
dele, e que os tais músicos eram obrigados a seguir.
E
alguns – chefes de orquestra, digo - morreram mesmo no exercício da profissão.
Joseph Keilberth, tombado durante uma récita de Tristão e Isolda; ou Dmitri Mitropoulos abatido ao efectivo dos
vivos num ensaio de Wozzeck; ou
Jascha Horenstein, numa récita de Orfeu
- que me lembre assim de repente. E temos o caso do maestro Franco Ferrara,
génio da batuta ossanado por todos, mas que quando subia ao pódio para impor o
tempo de um concerto desfalecia, e que por via isso passou a carreira a ensinar
a outros o mistério do tempo que lhe escapava ao gesto e à cardiopatia. Questão
de nervos? Questão de medo? Medo de não ser digno do tempo musical, do tempo
todo?
Mas
o medo maior do artista, diga-se o que se disser, é o medo da sua própria e formidável
ambição de exprimir o inexprimível.
Karajan
vivia com esse medo e mais com uma dúvida excruciante. Que se passa no corpo de
um homem quando dirige uma orquestra? A que alturas andará, e a que níveis do
suportável, a pressão arterial do director de orquestra durante as cinco horas
de duração de uma normal ópera de Wagner? De que cargas de vontade indómita
será ele capaz para dominar o medo do tempo? E tanto assim que, para as sessões
de gravação de um Siegfried, se fez
observar clinicamente no acto de dirigir, todo ele sensores e fiozinhos ligados
a maquinetas. Foi em Março de 1969, e dizem as crónicas que parecia um
astronauta.
Nos
breves momentos que antecederam o início da função a pulsação dele subia de 67
a 148, descendo vertiginosamente ao normal no preciso instante em que levantava
os braços e fazia a música existir, tornando a subir em flecha ao aproximar de
um agudo particularmente difícil da soprano.
Terminada
a sessão, Karajan vai para a sala de controlo ouvir os takes. Continua ligado às máquinas. E não é que, ouvindo as
gravações, a pulsação dele volta a disparar nos mesmos valores e a regressar ao
normal nos exactos momentos em que disparara e regressara ao normal horas
antes, quando dirigia? Reacção que Karajan tomava como prova de que os
estímulos musicais poderiam ocorrer no corpo à revelia da vontade e da razão
humanas. Comandados pelo medo, diria eu.
E já para
o fim da vida Karajan criou uma fundação para o estudo de ciências que conexão
tivessem com a prática musical. Era um curioso dos efeitos da música sobre o
Homem, ainda que pensasse que a experiência da sua própria prática musical de
tantos anos e o contacto directo que tivera com o fenómeno musical e com a
maravilha do tempo fosse mais esclarecedor do que os resultados científicos.
É claro
que ele se referia a um certo poder espiritual, esse poder espiritual que ainda
mantém nos seus devidos limites o poder científico do Homem moderno. E porque o
objectivo da actividade funcional de um músico é alcançar o perfeito
intangível, o que equivale a dizer irromper para além dos limites de si próprio
– e quando digo si próprio digo do seu próprio corpo, e quando o corpo é a mais
poderosa limitação aos prometeicos desplantes do espírito. E assim sem prejuízo
do que disse um dia Wittgenstein, de o corpo ser a melhor representação da
alma.
Mas
também pode ser como o disse um místico qualquer: no interior do corpo de um
homem reside toda a História do mundo. É disso que os médicos realmente se
ocupam e tratam. Da História do Mundo…
E não se
diga que Karajan não era um homem moderno. Era. Moderníssimo! Um furioso das
tecnologias mais avançadas. Em 1984 declarava ele o seu ideal de morte. Ou
seja, de vida – ideais aliás que podem desembocar no mesmo dilema.
Karajan
gostaria que na hora da morte o congelassem. E que o fizessem reviver passados
20 anos para que pudesse voltar a gravar todo o repertório usando as
tecnologias em vigor daí a 20 anos. Isto foi em 1984, portanto, as tecnologias
de 2014. Está então na hora. E confesso que não sei se entretanto alguém já
tirou o corpo de Karajan do congelador e o meteu no micro-ondas…
Música é
arte do tempo, é arte do momento, esse momento que se faz anunciar, existe,
marca a ordem do mundo, passa, e nunca mais volta. O que em música – e quem
sabe se em cirurgia – não sair bem no momento preciso é uma perda irreparável.
É a perda do tempo. Tempo que comporta em si a condição de ser isso mesmo,
irreparável.
A música
é o que nos impõe esse tempo irreparável. A música é o que estipula a verdade
de cada momento de vida, e nunca a mesma verdade do momento precedente, e nunca
a mesma verdade do momento seguinte. Uma ética do irremediável. O tempo de
atacar a nota, o tempo de tocar a frase, o tempo de a acabar. E sobre esse
tempo irremediável pode pairar um silêncio de cuidados intensivos…
Por isso
é costume dizer-se que qualquer descuido ou imprevisto pode ser a morte do
artista.
E é da
morte do artista que passarei a falar.
Assim
como os maestros que já citei – e provavelmente outros que não me ocorrem ou
que desconheço – mais músicos houve a morrerem no local de trabalho. E entre
esses que morreram em pleno palco durante uma representação, destaco o caso
mais impressionante do célebre barítono norte-americano Leonard Warren, uma das
maiores estrelas do MET de Nova York, que viveu 49 anos até à tarde do dia 4 de
Março de 1960, em que cantava a Força do
Destino, um dos cavalos de batalha dele enquanto maior barítono verdiano do
mundo.
Mas
cuidado que Warren não se apresentava nessa tarde como ele mesmo. Warren era
nessa tarde o nobre espanhol Don Carlos de Vargas que correra seca e meca à
procura do homem que lhe raptara e desonrara a irmã e lhe assassinara o pai, e
que logo nessa tarde o encontrava, e que, acabado de o encontrar, o ia
finalmente matar. Mas antes disso tinha que viver o tempo e cantar uma ária
bastante trabalhosa. Urna fatale del mio
destino.
Cantada a
ária, Don Carlos de Vargas, ou o barítono Leonard Warren, solta um grito – um
mi agudo – o gioia!, ó alegria. E cai
redondo, e morto, sobre as tábuas sagradas do palco. Estava pronto para matar o
infame. Mas o tempo escoou-se rápido e fatal na sua própria vida.
A
orquestra pára. Os colegas e o coro precipitam-se dos bastidores e rodeiam o
corpo. Há pânico na plateia. O pano desce. Leonard Warren, a grande voz, a
grande estrela americana da ópera, está morto. Ataque cardíaco, segundo uns;
hemorragia cerebral, segundo outros. Venha o diabo e escolha.
Pode ser
caso para perguntar qual é o contabilista, o cabeleireiro, o padeiro ou o
advogado que aspira a morrer no próprio local de trabalho, e enquanto trabalha.
Tenho a certeza de que poucos.
Leonard
Warren morreu de morte macaca, sim, de morte pública, longe da cama onde todos
nós gostaríamos de acabar. Mas morreu como todos os artistas de palco gostariam
de morrer, a trabalhar, a cumprir o seu destino. Morreu numa situação de
ficção. Morreu enquanto personagem melodramática que só pensava em matar. E
para cúmulo da ironia que reveste estas coisas da vida, da morte e da arte,
poderia perguntar-se se o cidadão judeu-novaiorquino chamado artisticamente de Leonard
Warren morreu mesmo, ou se quem morreu foi o tal nobre rancoroso Don Carlos de
Vargas que ele fingia ser naquela tarde.
Warren
morreu vestido de outro, vestido de Don Carlos de Vargas, a dizer as palavras
de Don Carlos de Vargas, a fazer os gestos de Don Carlos de Vargas, a
experimentar o ódio e o medo de Don Carlos de Vargas. Mas… ora ora… que Warren
morreu é uma maneira de dizer. Dizer que morreu na pele de um outro, de Don
Carlos de Vargas. Morreu na pele de um outro que, para complicar ainda mais as
coisas, nem sequer existia. É o que se pode chamar a morte do artista.
A Força do Destino. Uma ópera que dá azar,
e que, diga-se de passagem, Pavarotti sempre se recusou a cantar. E por isso
mesmo. Por medo. Por medo do azar que dá cantá-la. E porque Pavarotti era um
homem altamente supersticioso que num dia em que experimentou algum medo se
lamentou: E pensar que a minha vida depende de dois ou três centímetros de
cartilagem.
O tempo e
o medo. O tempo musical mete medo. O medo de o perder. Pode não se estar bem
quando ele chega, o tempo musical. O génio teme o tempo. Glenn Gould, o
pianista iluminado, o excêntrico hipocondríaco, vivia apavorado com várias
coisas, entre elas as correntes de ar e os micróbios. E entre essas coisas
também, provavelmente, o poder não estar em condições de defrontar em público
uma variação de tempo chamada de Goldberg. E por isso deixou pura e
simplesmente de tocar em público e optou pelo estúdio, onde o tempo pode ser
reversível.
Medicina
e música. Estranha afinidade. Muita? Pouca? Sabe-se lá se nenhuma…
A
Arábia Saudita precisa de médicos portugueses. Veio nos jornais. E paga-lhes
bem. Não precisa de músicos. Não dá um chavo por um músico. Não são precisos.
Medicina
e música. Uma afinidade que eu diria explanada sobre o tempo e sobre o medo.
Mas se a mim me fascina o tempo, o que me apaixona é o medo.
Fazemo-nos
músicos para experimentarmos o medo exaltante de tocar, de cantar, de dançar. O
medo de experimentar o nosso corpo. O medo de experimentar o tempo e de o
falhar; a que corresponde a expectativa da graça divina, que é a de afrontar o
tempo e de o vencer.
Ou talvez
nos façamos médicos para penetrarmos o segredo da carne perecível que nos
contabiliza o enigma do tempo, e que é, por isso mesmo, a nascente de onde
brota o medo. O músico vive apaixonadamente o próprio medo criativo, intoxicado
pela droga da sua vaidade. Talvez o médico viva angustiadamente o medo dos
outros… ou se calhar não… só profissionalmente…
Mas
sim, o tempo musical mete medo, porque é naquele dia X, àquela hora Y e naquele
minuto Z que a voz do cantor tem de lá estar, que os dedos do pianista ou do
violinista têm de funcionar. Há para cumprir a cada noite de récita a fracção
mágica do tempo universal. Um segundo antes é cedo demais; um segundo depois é
irremediavelmente tarde. E ninguém garante ao cantor e ao instrumentista que
naquele preciso segundo em que a voz tem de sair e que os dedos têm de
funcionar os deuses sejam misericordiosos e se dignem visitá-los.
Tudo
pode depender da disposição física e mental do dia – do tempo. Ou da emoção que
seja preciso convocar para aquele momento e não para o outro, o antes ou o
depois: a emoção que se convoca e se transmite ao público naquele minuto, uma
emoção que é falsa, e que todavia é a mais verdadeira, porque vivida sobre o
medo.
Deve
haver um tempo médico, um tempo clínico. Que é o tempo do corpo, o tempo que o
corpo humano concede ao espírito. Que é o medo que o corpo nos infunde. Como o
tempo musical é uma representação maravilhosa desse mesmo tempo do corpo,
organizada em gesto, sentida em medo, expressa em som. Música é gesto – e gesto
é tempo de o fazer. Allegro, andante, largo, presto, forte, legato, stacato. Música é corpo. É o
gesto do regente, é a mão do pianista. Sim, o gesto que desencadeia o
transcendente das vidas. Ou o acto médico, ou o gesto cirúrgico que nos adia a
morte, adiamento que é outra modalidade da vital transcendência.
E
há uma justificação evidente para que nesta minha conversa venham com mais
acuidade à baila os cantores do que os instrumentistas. É nos cantores que o
medo é maior e que por isso a medicina se faz mais precisa. O instrumento dos
sopranos e dos tenores é o próprio corpo – como quem diz, é a própria medicina.
A dedicação do músico ao instrumento é a dedicação do cantor ao próprio corpo,
a si próprio – um alibi para os narcisismos, está certo.
O
cantor não pode mudar de instrumento quando o que tem não está em condições. A
laringe humana não se pode afinar como um violino ou um piano. O corpo de um
tenor sofre as contingências do corpo de qualquer outro ser humano, frio,
chuva, humidade, vento, ar inquinado, calor, angústia, stress. Fatiga-se. Dói. Pesa. Aborrece-se. É no anti-histamínico,
no anti-inflamatório, no anti-depressivo que o cantor procura, em última
análise, a melhor afinação do seu instrumento.
E já
agora acompanhemos Nietzsche na caracterização do órgão fisiológico do medo. O
ouvido. O órgão excelentíssimo do músico. E também o órgão do medo e da noite.
Ou, mais curiosamente, do medo, da noite e da música. Claro. O ouvido humano
distingue a música, classifica-a; como distingue os ruídos, particularmente os
ruídos ameaçadores de uma noite, e sendo a música por Nietzsche definida como
experiência nocturna. No âmago da floresta, o Homem apura o ouvido, identifica
o som, a nota de música ou o aproximar da fera, do perigo. Ao nascer do dia o
ouvido atenua as suas funcionalidades, o mundo e a vida tornam-se inteligíveis
pelo olhar. Os cegos sonham como todos os outros, todavia, sem imagens visuais,
só pela actividade auditiva.
Hematomas,
edemas nas cordas vocais. Traqueítes. Afonias prolongadas. Como terei voz
amanhã de manhã cedo para o ensaio. O tempo e o medo. O tempo e o medo no meu
primeiro contacto com um otorrinolaringologista, quando tive muito medo, aquele medo que faz lembrar da medicina.
Foi então que consultei um especialista muito reputado que me avaliou o
exsudado naso-faríngico e decretou que eu estava pejado de estafilococos aureus patogenicus.
Injecções.
Comprimidos. Inalações. Bombinhas. A esperança. O tempo. Depois, a cura, o
dissipar do medo. E, anos passados, a rinite a carregar com mais vigor sobre o
meu tracto naso-faríngico.
Nova experiência do medo. A consulta a um outro facultativo de renome. O meu
histórico revelado. Os tais estafilococus
etc.. Diz-me ele: ah, graças aos estafilococus
aureus patogenicus há colegas meus
que têm prédios no Areeiro.
Mas
chegou o tempo em que Sherrill Milnes, o sucessor de Leonard Warren no
estrelato do MET de Nova York, experimentou o medo.
Artista
de carreira fulgurante. Voz de extensões ilimitadas e de poderes expressivos
consideráveis. Grande bravura. Grande brilhantismo. Fama mundial. Mas a certa
altura a voz rendia-lhe em pleno pelos seus 20 minutos e depois cansava-se,
pesava, faltava. Milnes sofria horrores, suava em bica no decorrer das récitas.
Problemas técnicos de base? Milnes pensava o que todos pensamos quando sentimos
um órgão a falhar: já lá iam tantos anos a cantar com êxito estrondoso sobre a
mesma base técnica e nunca lhe tinha acontecido nada que se parecesse com
aquilo. E era como shakespeareanamente me disse esse tal primeiro otorrino que
consultei: aquilo que nunca aconteceu acontece seguramente um dia. Sim, uma
questão de dias. Vivemos suspensos numa questão de dias.
Em fins
de 81, Milnes está em Londres para cantar Simão
Boccanegra no Covent Garden e sente-se mal e enche-se de medo. Um médico
londrino. Uma hora de exame. Conclusão: ruptura de um vaso capilar numa das
cordas vocais, numa das tais membranas de dois ou três centímetros de que
depende a vida de um cantor – como disse Pavarotti.
Cirurgia
de laser. Uma lotaria. Podia dar para
continuar a carreira, ou podia deixá-lo afónico para sempre. Toda a vida e
subsistência de Milnes estão ameaçadas, dependem daquele estranho caso de
ruptura milimétrica nos seus poucos centímetros de membrana.
Boston. Milnes dá entrada no Massachusetts General Hospital sob
nome suposto. Janeiro de 82. Ninguém
no mundo da ópera e da edição discográfica pode saber que o maior barítono da
América e um dos maiores do mundo se vai sujeitar a uma cirurgia no seu
instrumento de trabalho. Milnes, claro, está em pânico. A fortuna bafejara-o
muito generosamente até aí, mas o reverso, a hora da pouca sorte, podia estar a
chegar. Uma questão de dias.
Uma
semana após a operação, tudo voltara à mesma. E em Agosto de 1984 Sherrill
Milnes volta ao hospital do Massachusetts. Segunda intervenção a laser. Nos meios da ópera consta que
Sherrill Milnes, o grande barítono, está a morrer. Operação. Recuperação. O
tempo. Repouso. O tempo. Aproxima-se o dia do grande concerto comemorativo do
Centenário do Metropolitan de Nova York. Milnes não quer deixar de comparecer.
Mas nem o cirurgião mais desembaraçado lhe garante que possa comparecer. O
medo.
Uma
noite, está para começar a conversar com a mulher, mas nem começa. Porque não
pode. Nem o mais leve sussurro lhe sai da garganta. Duas operações de alto
risco. Para nada. A carreira acabou. Sentia-se enlouquecer. A medicina não o
ajudou. Mas não morreu. Ainda é vivo.
Quem
morreu foi outro infeliz barítono, este italiano, outro dos maiores de todos os
tempos, Ettore Bastianini. Um grande. Reclamado no mundo inteiro. Mas em 1963, depois de sete papéis cantados na Ópera de Viena
desaparece subitamente da cena lírica mundial. Por dois meses ninguém sabe
dele. O tempo. Que se passa? Ninguém sabe o que se passa. Reaparece no Scala em
Rigoletto. O medo. A voz não lhe
responde nos momentos capitais. É pateado. Vai cantar a Chicago e lá recorre à
medicina. Faz-se observar. Diagnóstico: cancro na laringe. O medo.
Isola-se.
Químio e rádio na Suíça. Retoma a carreira. Quanto mais o cancro se desenvolvia
mais volume de voz ele tinha, dizia-se. E suspende de novo a carreira. Por
quatro meses. O tempo. Regressa aos palcos em 1965. No Met de Nova York. Força do Destino, ópera muito fatal e de
muito mau agoiro, como vimos. O público não gosta. Medo. O mundo artístico é
cruel e ninguém sabia do drama que Ettore Bastianini estava a viver.
A 11 de
Dezembro de 1965 decide pôr um fim definitivo a uma gloriosa carreira que se
transformara em tormento insuportável. Iria para a sua casa em Sirmione, nas
margens do Lago de Garda, aguardar a morte. E foi. Sozinho. O tempo e o medo.
Era uma questão de dias. E cumpridos os dias, a morte chega. Em Janeiro de
1967. Com 44 anos.
No caso
dos músicos fadados para o mais alto rendimento profissional, e para a grande
carreira internacional, haverá sempre que escolher entre, das duas uma: ser um
escravo de si mesmo, do seu talento e da sua ambição, ou ser um cidadão livre.
Escolher entre ter ou não ter medo, entre convocar ou não convocar os rigores
do tempo.
E se
Bastianini e Milnes e Warren traziam a doença para o palco, o lendário tenor
Lauri Volpi só trazia saúde. Não apreciava especialmente a medicina no seu
trabalho, e daí que exigisse em contrato a prerrogativa de ser ele mesmo, e não
o médico do teatro (como era de uso) a decidir se estava ou não em condições de
cantar, se estava ou não doente, se podia ou não cancelar uma actuação por
motivo de doença. Era o único no mundo artístico com essa cláusula. E pode
dizer-se que Lauri Volpi usou e abusou dela. Bastava que pouco antes de começar
o espectáculo estivesse à porta do seu camarim e visse alguém aproximar-se com
uma cesta de flores. Ah, obrigado (dizia ele), lindas flores, muito obrigado.
Desculpe, as flores não são para si. Não são para mim? Então para quem são
estas flores? São para a soprano ali do camarim ao lado. Para a soprano? Esta noite
não canto. Estou doente, muito doente. E voltava para o camarim, vestia-se e ia
à vida dele.
A
férrea vontade de vencer o medo e a arriscada ousadia de confrontar o tempo
podem prejudicar o juízo inteligente quando canalizadas para uma única obsessão
de grande carreira.
E é assim que Franco Corelli, o escultural, o enorme,
o heroico tenor dos anos 50 e 60, levou a vida na expectativa torturante e
quotidiana de perder a voz. Era uma questão de dias. 30 anos de grande carreira
iguais a 30 anos de pânico diário. Dizem que se injectava antes das récitas.
Não sei. Sei que aparecia pálido como um morto – eu vi. Mas se se injectava
seria com quê? Diziam uns que com um preparado à base de cortisona; diziam
outros que com água destilada, só para ter a sugestão de ter tomado qualquer
coisa capaz de lhe restituir a voz que na imaginação alucinada sentia
faltar-lhe; diziam ainda outros que se injectava com cocaína, ou com qualquer
outra coisa parecida que soubesse fazer o que ele não sabia: defrontar o tempo
e vencer o medo…
No
fim extemporâneo da carreira (carreira que era na verdade a sua doença), com
cinquenta e poucos anos, ainda cheio de voz, idolatrado em todo o mundo lírico,
deu uma surpreendente entrevista à
Newsweek. O medo.
Não
nasci para ser cantor. Sempre tive medo de cantar. No começo não tinha o dó
sobreagudo e tinha medo. Depois, com o estudo, adquiri o dó sobreagudo com
facilidade, mas morria de medo só á ideia de o perder. Podia passar umas três
horas seguidas a ouvir a minha voz gravada à procura dos defeitos. Ficava
exausto. Muitas vezes, logo de manhã, a minha voz não respondia. Se era dia de
descanso e não tinha récita, passava horas a experimentar a voz, a ver se ainda
a tinha. Precisava urgentemente de descansar, mas não conseguia dormir de contentamento,
se a récita me tinha corrido bem. Não conseguia dormir de angústia se ela me
tinha corrido mal. E Corelli remata com uma pergunta
ao entrevistador: você acha que isto era vida?
Não
era. Para ele não era.
Oiça,
amigo, isto não era vida. Isto seria a vida de um prisioneiro, um prisioneiro
metido num quarto de hotel, a ouvir-se a si próprio à procura dos seus
defeitos, a olhar estupidamente para a televisão e a fazer paciências. E oiça,
amigo, eu nasci livre. Eu nasci em Ancona a 50 metros do mar.
Mas
também temos o caso dos destemidos. Por exemplo, os irredutíveis fumadores da
cena lírica. Ah, a recusa olímpica do medo, o desafiar do tempo. Fumam
alegremente toda a vida sem medo de perder a voz. Enrico Caruso é o primeiro
deles, e o mais ilustre, a voz histórica. Foi submetido a duas operações aos
pulmões, incluindo corte de costelas, e realizadas no próprio quarto de hotel
novaiorquino onde residia – tinha 17 quartos permanentemente por conta dele.
A
convalescer na terra natal, Nápoles, é entrevistado pelos jornalistas
americanos que querem saber da recuperação e se o MET contaria com ele na
temporada seguinte. O tempo. Estava tudo bem. Sim, sim, reapareceria na
temporada de 1921/1922.
Mas
enquanto respondia aos jornalistas não parava de fumar. Espanto. E não deixa de
fumar? Deixar de fumar, eu? Quem deixa de fumar são os doentes, amigo, e eu
sinto-me em grande forma.
Foi uma
questão de dias. O imortal Caruso morreu uma semana depois desta entrevista.
Com 48 anos. Sem medo. E depois de esgotada a qualidade do tempo que o destino
preparara para ele.
E Di
Stefano, o grande companheiro da Callas, fumador incansável. Aliás, ao
contrário do que se pudesse pensar, Di Stefano tinha-se na conta não de um
grande cantor que pecaminosamente fumava, mas de um homem livre, um fumador que
por acaso até cantava. Mas só veio a morrer com oitenta e tantos anos, no
Quénia, depois de se envolver numa zaragata com uns homens que lhe assaltavam a
casa.
Fumadores…
ah… e Dietrich Fischer-Dieskau, e Ferrucio Tagliavini, e Cesare Siepi, e Tito
Gobbi, e Piero Cappuccilli, e, e… houve até quem dissesse que a Callas e a Caballé
também apreciavam o seu cigarrito…
Pois todos esses e mais o puríssimo Beniamino
Gigli, que só deixou de fumar aos 44 anos e por promessa feita à mãe. E outros,
e outros, e outros. Muitos outros. Os que não tiveram medo. Os que se gozaram
do tempo.
O
azar está sempre à espreita do artista de palco, isso é verdade, e por isso
muitos deles, acusando a droga do medo artístico, consultam regularmente
bruxos, cartomantes, videntes, astrólogos e deitam terra de cemitério à porta
do camarim do rival.
O
músico está capaz de recorrer a todas a mesinhas desde que elas lhe dissipem o
medo, o medo de ser, de ser artista, lhe revelem as ideais propriedades do
tempo e lhe garantam a melhoria da
performance.
Mas
quem é senhor do seu medo até pode cantar com o diafragma remendado.
Numa
noite de 1943, no Porto, enquanto ceava com amigos, depois de ter cantado La Bohème, o grande tenor português
Tomás Alcaide, sentiu uma agudíssima dor no estômago. Hérnia diafragmática
estrangulada. A carreira dele já não estava grande coisa, depois de ter deixado
de cantar em Itália e em França devido à guerra (o tempo, a História do mundo),
mas, como é evidente, depois daquele incidente, as coisas não melhoraram para
Tomás Alcaide.
Uma
questão de dias.
Cinco
meses e meio de hospital com operações e sucessivas complicações
pós-operatórias. O tempo. Resultado: diafragma remendado com a metade esquerda
já de si paralisada; conta do banco nas lonas; voz sem ninguém poder dizer ao
certo se estava perdida ou não. O regresso do medo.
O
conselho dos clínicos era um ano de repouso e nunca mais pensar em cantar. O
tempo. Conselho que ele não seguiu, diga-se. E estreou em S. Carlos – onde
misteriosamente até então nunca tinha cantado – com um Pescadores de Pérolas. Mal pensado. Ópera mal escolhida em vista
das circunstâncias; ópera que lhe pedia fôlego de gato e domínio absoluto do
diafragma para os efeitos de mezzo forte,
crescendo e diminuendo que lhe tinham acrescentado fama. Ópera mal escolhida,
digo. A voz badalou-lhe aflitivamente, apoiada por um diafragma esburacado. Foi
aplaudido por cortesia. Nunca mais foi o mesmo.
O grande
Beniamino Gigli, ídolo incomparável dos meus avós, cantou em S. Carlos já bem
entrado na idade. Quando era novo e estudava canto em Roma, na Academia de
Santa Cecília, era um rapazinho anafado, de muito alimento, mas muito pobre, e
sempre esganado com fome. Fosse por isso, as suas amizades mais chegadas eram
cozinheiros, e alguns deles trabalhavam nas boas casas da alta burguesia
romana.
Pois pelo
final dos anos 40, já sessentão, já uma lenda viva da ópera, já laureado
vencedor do tempo e do medo, vem Gigli cantar a S. Carlos. Em tom de queixume,
mostra a um funcionário do teatro com quem se tinha travado de amizades um
contrato em nome dele para um país sul-americano. Um contrato em que o espaço
das condições financeiras estava em branco, e onde ele, Gigli, poderia escrever
a soma que muito bem lhe apetecesse. E dizia ele: está a ver como são as coisas
e como é a vida? Quando eu era muito novo andava permanentemente cheio de fome
e não tinha dinheiro para comer nas quantidades que o meu estômago me pedia;
hoje, com 60 anos, apresentam-me um contrato financeiramente ilimitado, em que
eu posso ganhar o que quiser… hoje, que não posso comer isto por causa da
úlcera, que não posso comer aquilo por causa da diabetes, que não posso comer
aqueloutro porque me faz subir a tensão, porque me dá cabo do estômago, do
fígado, da vesícula, dos intestinos…
No palco, a tocar, a dançar, a cantar, a declamar, em verdade vos
digo que ninguém, nem o artista mais pintado, pode prever o que lhe possa
acontecer – ou o que o medo lhe possa induzir de desconchavo, ou as perfídias
que o tempo lhe reserva.
Contei-lhes
alguns casos tristes, e até dramáticos, que acabaram mal. Os que acabam bem não
ferem a atenção dos cronistas, como as boas notícias não fazem vender jornais.
E,
vendo as coisas pelo outro lado, talvez o cardíaco Leonard Warren nem tivesse
chegado àquele dia e àquela malvada récita da Força do Destino se não tivesse tomado diligentemente as pílulas
que o médico lhe receitara – quais, não sei. Porque há um tempo artístico feito
para ser vivido sem medo. Há. É uma questão de dias, mas há.
A
lesão na corda vocal de Sherrill Milnes já lá andaria se calhar desde os
primeiros tempos da carreira e não se manifestara mais cedo porque talvez ele
tomasse religiosamente as injecções – quais, não sei.
O
desenlace fatal de Bastianini foi sendo retardado pela quimioterapia. Pela
medicina, que tem a propriedade de iludir o tempo e retardar o medo.
A
hérnia do nosso Tomás Alcaide talvez tivesse sido disfarçada e o estrangulamento
adiado, uma questão de dias, por efeito de alguns cuidados médicos.
Até
ao dia infeliz em que o nosso corpo cobardemente se revela o maior inimigo do
nosso espírito e da nossa vontade e o que de mal nunca fisicamente nos
aconteceu, acontece.
Warren,
apesar de judeu, era cardíaco, e era católico, e levava uma vida espartana.
Mas, como numa novela do Garcia Marquez ou numa tragédia de Sófocles, a sua
morte estava anunciada. Questão de dias. Como há as rouquidões anunciadas por
uma má técnica vocal, as hérnias anunciadas por exagero nos esforços do
músculo, as decadências anunciadas por deficiências congénitas. Questão de
dias. O tempo. A categoria de vida que nos toca a todos, mesmo que pelos nossos
feitos ou qualidades nos chamem imortais. E nós sabemos disso – o medo – ainda
que façamos por esquecer. Não devia ser assim, mas até os médicos adoecem e
morrem – pelo menos é o que eles dizem…
Medos
antecipados, e desgraças anunciadas. Como anunciada estava a prematura
decadência de um dos nomes maiores da cena musical de todos os tempos.
Trata-se
do estranho caso da grande lombriga.
A grande lombriga aplicada ao ventre de
uma excelsa artista que, parecendo que não, trazia para o palco e para as
personagens a que dava corpo a sua considerável miopia, a sua helénica tragédia
e o seu medo indomável na hora de cantar.
Quando,
em 1954, Maria Meneghini Callas aparece no mundo da música e do society como paradigma da elegância
feminina, porque acabara de perder 36 quilos, as histórias e os boatos nunca
mais pararam.
Em
todo o caso, parece que foi ela mesma a lançar para o mundo a história
sensacional daquela repentina magreza. O estranho caso da grande lombriga. Uma
bicha solitária por ela deliberadamente ingerida com uma taça de Dom Pérignon a
acompanhar.
Mas
enfim… parece que era tudo falso. Sim, falso esse caso da grande lombriga
declarado por ela. Dizem os entendidos que semelhante animal engolfado nas
entranhas e a absorver-lhe as calorias que ingeria nunca por nunca ser lhe
poderia proporcionar uma perda de peso tão radical. Talvez lhe proporcionasse,
mais do que elegância e estilo, umas cólicas, uns gazes fétidos e umas solturas
de morrer. Uma ténia nunca poderia apropriar-se de 40 quilos de cantora lírica
– ainda por cima grega.
E
então, Maria Callas, para efeitos publicitários, ou mentia descaradamente e
estava a caçoar com os jornalistas sequiosos de notícias retumbantes; ou
estaria mesmo convencida de ter ingerido a bicha que alguém à sorrelfa lhe
deixara cair na taça de champanhe; ou ainda, ingerido a lombriga acidentalmente
na carne que comia, e porque era muito chegada ao seu bifito, de preferência
apresentado cru, à moda tártara, mesmo a pedi-las, mesmo a pedir que lhe
metessem uma desapercebida lombriga pelo meio...
De
uma maneira ou de outra, com ou sem ténia, o certo é que Maria Callas, em 1951,
em Florença, fizera uma audição para Rudolf Bing, o patrão do maior teatro de
ópera das américas, o tal MET de Nova York. Estava gordíssima. Era uma
mastronça e tanto. E Bing não ficou entusiasmado. Mas, lá por causa disso… sim,
poderia cantar no MET, Bing é que não dava mais do que 400 dólares por ela em
cada récita.
Negociação
vai, negociação vem, ela quer mais do que os choradinhos $400. Mas também era
uma questão de dias. Passa um ano, passam dois (o tempo), e no verão de 1954 a
Callas faz um ultimato ao MET de Nova York: ou lhe dão 750 dólares por noite,
ou o MET nunca ouvirá a voz de Madame Callas.
E
vai a Nova York. E bate ao postigo de Mr. Bing. E Mr. Bing abre o postigo, olha
para ela e tem uma tontura de cabeça por ver a mastronça que audicionara dois
anos antes em Florença transformada num chiquíssimo corpo flexível vestido
pelos grandes costureiros da Europa.
E a parada de madame Callas sobe um pouco
mais, e Mr. Bing tem que perder o amor a 800 dele em cada noite que madame
Callas abrir a boca no MET. Não porque cante melhor do que quando era uma
tronchuda e cantara na audição de Florença, segundo disse o próprio Bing, mas
porque estava fisicamente muito mais apresentável a uma audiência novaiorquina.
O
caso é que, passados anos (o tempo), a refinada e magríssima madame Callas
começa a perder a voz – e a ganhar ainda mais medo. E vai perdendo, perdendo,
perdendo a voz, até se retirar prematuramente de cena.
Diagnóstico
– dermatomiositis.
Uma
doença que era segredo muito bem guardado e que a minava desde 1960, ainda nova
– aliás, a Callas nunca chegou a ser velha, morreu com 53 anos.
Médicos
da Universidade de Bolonha dedicaram-se ao caso. Ouviram exaustivamente, e
comparativamente, gravações da diva e chegaram a essa conclusão.
A dermatomiositis vai enfraquecendo os
músculos do corpo, sem excluir, evidentemente, os músculos comprometidos no
acto de cantar. A maleita punha-lhe na pele uma cor vagamente azulada,
deixava-lhe manchas vermelhas no lado direito do pescoço e marcas nas mãos.
Tratamento: esteróides e anti-inflamatórios. Uma questão de dias, em todo o
caso…
Disseram
– como é costume dizer-se à falta de explicação para certas coisas – que os
abaixamentos vocais da Callas e os sucessivos cancelamentos de actuações tinham
causa psico-somática. Mas o testemunho (só em 2002) de um dos médicos que a
tinha assistido, Mario Giacovazzi, colocou as coisas nos devidos pontos, depois
de ter guardado reserva profissional por muitos anos. Aquilo era uma doença
rara, que logo por um bambúrrio da pouca sorte fora bater a porta de um dos
maiores fenómenos do mundo do espectáculo e da grande música dos tempos
modernos.
(E tudo
isto para nada dizer da magna e extravagante questão físio-musical que foi a
época dos castrados dos séculos XVII e XVIII.)
Música e
medicina.
Richard
Wagner, no dia 19 de Janeiro de 1883, no Palácio Vendramin, em Veneza, declarou
que meterem-lhe uma sonda no estômago era um atentado aos seus direitos
pessoais. Uma questão de moral pessoal, sem dúvida. E uma questão de dias.
Porque depois dessa declaração Wagner não chegou a durar um mês.
Tudo
isto foram músicas, artistas, personalidades, e talvez medicinas, que
pertenceram a um outro tempo, a um tempo de humanidades, a um tempo que ainda
nos convidava, citando Goethe, a dizer ao momento que passava “pára, és belo”.
Um tempo que nunca mais achará paralelo com um momento que nos é presente e nos
será futuro, e obsessivo, de bancos, de banqueiros, de mercados, de taxas de
juro, de contenção de custos, de maximização de lucros, de desemprego
sistémico, de divertimento vazio, em completo desprestígio da cultura e das
humanidades. Um momento que não apetece mandar parar porque ele é apenas muito
prático e funcional, e não absolutamente belo.
Ainda
assim, e falando de música, da grande música, e de medicina, apraz-me notar a
magnífica afinidade entre ambas, dizendo: ai daquele que mais tarde ou mas cedo
na sua vida, e seja o momento que for que passe, numa alegria enorme, numa
aflição, numa depressão, numa exaltação, não tenha que recorrer aos efeitos de
uma e de outra, da música, da medicina… porque todos, tarde ou cedo, uma
questão de dias, teremos de vencer o medo, ou conviver com ele revertendo o
tempo, redimindo o corpo e o espírito. Pela medicina. Mas também pela música.