CHE GUEVARA NA ÁFRICA “PORTUGUESA”
A ideia de intervir revolucionariamente em África partia da
convicção do Che após a vitória da revolução cubana. “Demonstrámos que um
pequeno grupo de homens cheios de determinação, apoiados pelo povo e sem medo
da morte pode vencer um exército regular.”
Che era o autor da teoria do foco. Um foco revolucionário
que deveria incidir sobre os países sujeitos à influência americana, a começar
pela América Latina.
Em 1963, Jorge Masetti, guerrilheiro íntimo do Che,
estabelece um foco revolucionário na Argentina, é rapidamente cercado e morto
com os seus trinta guerrilheiros. Em Havana, revolucionariamente inactivo, Che
Guevara sente profundamente a morte do amigo. Era mais um companheiro e amigo
que morria na luta anti-imperialista, enquanto ele, instalado em Havana,
esperava. Esperava sem saber bem o quê e de alma atravessada por dolorosos
sentimentos de culpa.
De facto, o ambiente em Havana estava a tornar-se
claustrofóbico para o célebre guerrilheiro. Em Havana tinha que se haver com
inimigos surdos, internos e externos. A política económica da ilha, de que ele
era responsável, começava a suscitar críticas aceradas, pelo seu centralismo, e
o próprio Fidel juntava a sua voz a essas críticas.
Não falando já das diferenças quanto a matérias de política
externa, com Che Guevara a exprimir sérias reservas à URSS, pela corrupção e
ineficiência da anquilosada sociedade soviética, ou pela oposição dos
soviéticos à ideia da luta armada na América Latina. Enquanto, pela parte
soviética, o Che era visto como o inimigo número um em Cuba e apontado como
perigoso elemento pró-chinês, em ruptura aberta com Raul Castro, o homem dos
russos em Havana.
Por isto e por mais algumas coisas que nunca foram apuradas
ao certo, o Che decide deixar Cuba. E decide dirigir-se à região onde, segundo
a sua análise, mais falta fazia a sua experiência numa acção revolucionária: a
África Central; o Zaire sublevado.
A véspera da partida para África é passada por Che Guevara
no isolamento de uma casa nos arredores de Havana a escrever uma carta. Uma
carta a Fidel. Uma carta de despedida que viria a ficar famosa nos anais do
mundo revolucionário.
A mente inundada de
recordações (…) de quando me sugeriste que me aliasse a ti, e de todas as
tensões decorrentes dos preparativos.
(…) Sinto que cumpri a
minha parte do dever que me prendia à revolução cubana (…) e despeço-me de ti,
dos companheiros, do teu povo que é agora também o meu.
(…) Apresento a minha
demissão formal dos cargos que ocupava na direcção do partido, do cargo de
ministro, do posto de comandante e da cidadania cubana.
Outras nações do mundo
solicitam agora os meus modestos esforços. Posso fazer o que te está negado
devido às tuas responsabilidades (…) e chegou o momento de nos separarmos.
Levo para novos campos
de batalha a fé que me ensinaste, o espírito revolucionário do meu povo, a
convicção de estar a cumprir o mais sagrado dos deveres: lutar contra o
imperialismo onde quer que ele se encontre.
Reitero que liberto
Cuba de quaisquer responsabilidades sobre a minha pessoa. (…) Agradeço-te por
tudo o que aprendi contigo e pelo teu exemplo, ao qual tentarei mostrar-me fiel
até ao meu último suspiro (…).
Imediatamente após a revolução vitoriosa, Cuba concentrava-se
na exportação do que eu chamaria de “produtos revolucionários”, traduzidos em
auxílio de diversa ordem aos movimentos rebeldes da América Latina. Mas em
1964/65 acontece uma viragem estratégica e a revolução cubana lança o foco para
África. África estaria, em 1965, pronta para a revolução, e mais ainda do que a
América Latina. E também porque, diziam os teóricos castristas, a tomada de
posições revolucionárias em África viria ajudar a acção na própria América
Latina.
Na sua essência, uma estratégia que funcionava como sub-estratégia
da estratégia principal que era o combate político-diplomático contra os EUA,
com a busca de apoios afro-asiáticos na ONU que lograssem abrandar os rigores
da politica americana contra Cuba.
Os esforços cubanos em África certamente conduziriam ao
aumento do prestígio de Cuba no mundo dos não-alinhados, ao mesmo tempo que
poderiam actuar também no mundo socialista, levando os estados socialistas a
admitir para Cuba alguma independência crítica quanto às políticas do bloco de
Leste.
E porquê o Zaire?
Por idealismo, primeiro que nada, acho eu, por romantismo, e
por espírito de vindicta, talvez, Havana selecionava o Zaire como campo de
privilégio para as suas operações africanas. As sanguinárias patifarias dos
mercenários falavam alto ao mundo – seria bom vingar as vítimas deles; ou o
ataque belga (com cumplicidade americana) a Stanleyville, mais as sequentes e
sistemáticas chacinas; ou a memória ainda fresca de Lumumba, o mártir africano
que era preciso vingar.
A tese guerrilheira de Che Guevara para África era
centralista. Quer dizer, pensava concentrar o núcleo principal da guerra
emancipalista num só território em vez de os espalhar pelo espaço infindável da
África Central. E esse território de onde irradiaria a subversão seria o Zaire.
A libertação do Zaire era de capital importância, para a vitória como para a
derrota. Uma ou outra, no Zaire, seria repercutida por todo o continente.
Os africanos ouviram isto e esfriaram. Alguns guardaram os
seus pontos de vista para mais tarde, mas houve os que censuraram amargamente o
lendário chefe guerrilheiro.
Os renitentes declararam os seus povos vítimas de toda a
sorte de desenfreada exploração e abusos dos imperialistas e por isso
recusavam-se a sofrer para libertar outro país que não fosse o seu. Para esses,
o Che só tinha a sua razão teórico-estratégica. A questão principal não era a
libertação de um só território. A questão era desencadear uma guerra contra um
inimigo que no fim de contas era comum a todos, que era o mesmo em Angola,
Moçambique, Malawi, Guiné, Rodésia, Africa do Sul ou Zaire.
Mas ninguém concordou com a tese guevarista e despediram-se
cortesmente.
Os líderes emancipalistas começaram então uma campanha
anti-Che. Que vivia luxuosamente em hotéis. Que fizera da revolução uma
profissão lucrativa, e por aí adiante. Não sei se era assim se não.
Enfim, o Zaire funcionaria como centro de irradiação da
revolta anti-colonialista e anti-imperialista, com um alastramento natural e
inevitável às possessões portuguesas da região, Angola e Moçambique em
concreto. Tudo isto no papel, já se vê.
A revista cubana Verde
Olivo escrevia em Dezembro de 64 que “a chama da libertação nacional estava
a arder em Angola”, que “os patriotas zairenses erguiam a bandeira da
independência na ponta das armas”, que os rebeldes combatiam heroicamente em
Moçambique, e que os povos do sul da Rodésia rejeitavam “a falsa independência”
que perpetuaria “o domínio da minoria racista”.
Já se deixa ver que nada disto correspondia por inteiro à
realidade. Mas o optimismo e o idealismo castristas podiam sobrepor-se a essa
realidade e confiar nas suas forças e nas forças da sua razão para criar uma
nova realidade mais consonante com a propaganda. O potencial revolucionário da
África negra era frágil e Havana conhecia mal a rebelião dos simbas, parecendo
acreditar nas batalhas que nunca tinham sido travadas e nos heróis que nunca
tinham existido.
A incursão de Che Guevara pela África sub-saariana
pretensamente revolucionária é bem a ilustração do idealismo cubano – um
idealismo marxista-leninista: passe o paradoxo ideológico-filosófico.
Che
Guevara nunca antes tinha posto os pés na África negra e ia acompanhado por um
suposto especialista em assuntos africanos, Serguera, que só lá tinha estado
por vinte e quatro horas.
Dezembro de 1964. Che Guevara está em África.
Viaja incógnito três meses pelo continente negro,
significando que Havana começava a interessar-se pela região que, segundo se
pensava, cheirava à légua a revolução iminente, aliás anunciada pelo
desenvolvimento das frentes das guerras independentistas de Guiné, Angola e
Moçambique.
Mas era a revolta armada no Zaire (antigo Congo belga), que
já vinha da primavera desse ano, o que despertava as atenções, e por razões
diversas, e opostas, obviamente, de cubanos e americanos.
Se o presidente Johnson prometera ao governo pró-americano
do Zaire reforços contra os rebeldes, Che Guevara, em nome e Fidel Castro,
prometia instrutores militares cubanos.
Em Abril de 65, sob o comando do Che, uma coluna cubana
infiltrava-se no leste do Zaire a partir da Tanzânia.
Em Agosto, chegava outra coluna cubana e no fim desse mês
Cuba tinha na Àfrica Central 400 guerrilheiros.
Se aquela parte do continente africano estava pronta para a
revolução, enfim, seria um caso a ver. Quando mais tarde chegou o tempo das
avaliações, viu-se, de facto. Viu-se que não estava.
Já instalado numa base guerrilheira no noroeste do Zaire,
em território dos simbas, Che esperou dias infindos pela chegada daquele que
era o comandante absoluto da rebelião, Laurent Kabila, mas que não era muito
encontrável nas frentes de combate. Che chegou a recear que os simbas o
expulsassem, visto que não o esperavam, visto que a maior parte deles nem
sabiam quem ele era e visto que o secretismo da chegada dele intrigou os
nativos e lhes instilou a mais profunda das desconfianças quanto àquele punhado
de estrangeiros, negros é certo, mas falando uma língua estranha e comandados
por um branco autoritário.
Além do mais, Laurent Kabila tinha acordado em Dar Es
Salaam receber apenas 30 instrutores cubanos sendo-lhe posteriormente impostos
130. Temia-se então que o comando dos simbas recusasse a entrada de tantos
instrutores, o que daria uma confusão infernal nas hostes cubanas. E além do
outro ponto delicado, que era o facto de ninguém ter comunicado aos simbas que
o homem que viria à testa desses instrutores era o lendário Che Guevara.
Está visto que os simbas não aceitaram o Che de muito boa
catadura. Toleraram-no. O que deu para o Che se ver novamente assolado por
tristes pensamentos. Não pertencia ali. Não era africano. Era branco. Não
falava a língua. Não conhecia os costumes. O seu renome nada dizia àquela
gente. A presença dele dependia do beneplácito dos chefes simbas, com um
frívolo Kabila à cabeça. Ai dele se quisesse apoderar-se do comando
operacional. Pode ser que tudo isso tivesse criado nos rebeldes alguma
resistência, e mesmo indisciplina, pois até os havia a correr o risco de
atravessar regularmente o Lago Tanganica para irem às casas de meninas na outra
margem, na Tanzânia, portanto.
Depois, a presença do Che também era um alto risco político
para a revolta dos simbas. Uma vez que começasse a correr mundo a notícia da
presença de Guevara na guerra do Zaire os americanos, que sustentavam o governo
zairense e o ajudavam, nomeadamente a combater a revolta dos simbas, poderiam
intensificar o esforço militar na região.
Os simbas não recebiam ordens dos cubanos negros. Os
brancos é que teriam de comandar. Che safava-se melhor por ser isso mesmo,
branco. Embora haja quem diga que não era assim, e embora o próprio Che se
queixasse de lhe menosprezarem os conselhos e de muitas vezes o ignorarem.
Era inflexível, áspero no trato. Emitiu um bizarro decreto:
todo o cubano que mantivesse relações sexuais com uma negra teria de casar com
ela, e mesmo que já fosse casado. A um deles aconteceu precisamente isso. Já
tinha mulher e dois filhos em Cuba e quando já estavam de partida o Che
ordena-lhe que traga com ele para Cuba a sua nova mulher. E não foi nada, o
homem suicidou-se, um tiro na cabeça. Só uma severidade extrema evitaria
colapsos na disciplina revolucionária – princípios do Che.
Quando Fidel Castro começou a perder alguns fumos
românticos e a mudar de parecer, e quando do optimismo revolucionário passou a
um razoável pessimismo quanto às condições revolucionárias na África Central, abriu
uma única excepção: Guiné Bissau, PAIGC. Eram esses os mais fortes e mais
preparados para a guerrilha nas colónias portuguesas - opinião aliás partilhada
por Washington. E daí a Guiné-Bissau passar a ser prioridade estratégica para
Cuba.
Se directamente a acção do Che nada teve com o
desenvolvimento da guerrilha na Guiné-Bissau, foi a partir da viagem dele por
África, em Dezembro de 64 que os primeiros contactos do PAIGC com Havana se
realizaram. Guevara estava em Conacry e solicitou um encontro com os chefes do
PAIGC. Amilcar Cabral vem a Conacry e o encontro acontece a 12 de Janeiro de
65, e nesse encontro o auxílio cubano à guerrilha guineense fica decidido. Em
Maio desse ano já um navio cubano atraca em Conacry com armas, mantimentos e
medicamentos para o PAIGC.
Tudo isso se passa muito devido ao carisma, ao prestígio e
à categoria intelectual de Amílcar Cabral. Instrutores cubanos começavam a
chegar à Guiné Bissau em 1966 e por lá ficariam até à independência, em 1974.
Mas só em 1967, Fevereiro, os relatórios operacionais do
exército português dão por ela e começam a falar da presença de conselheiros
militares cubanos a colaborar com os guerrilheiros. Pouco depois, a CIA
confirmava: “pelo menos 60 cubanos estão envolvidos no treino do PAIGC”. O que
não queria necessariamente dizer que tal facto incomodasse os americanos. Nunca
pela cabeça lhes passara que meia dúzia de cubanos pudessem ser tão efectivos
num continente tão longínquo e tão problemático.
Realmente, nem em sonhos Washington punha a hipótese do envolvimento
cubano nas rebeliões africanas, e menos ainda que Che Guevara em pessoa
estivesse no Zaire. Havia um nome misterioso nas listas de revoltosos estrangeiros
do Zaire obtidas pela CIA: Tatu.
Quem seria aquele Tatu? Mais tarde, correu o boato de que
se tratava mesmo de Che Guevara. Conferiram-se fotografias. Não batiam certo.
Passaram aos retratos robot, com barba, sem barba, cabelo curto, cabelo
comprido, com bigode, sem bigode.
O embaixador americano no Zaire palpita que Tatu era mesmo
o Che sob pseudónimo. (E era.) E comunica a convicção a Washington. No
Departamento de Estado riem-se, e mandam perguntar que novo tipo de erva o
embaixador Godley andava a fumar. Não havia qualquer base plausível que levasse
o Departamento de Estado a conjecturar sequer que o Che estava em África de
armas na mão.
Quanto ao MPLA, é em Argel, e depois em Dar Es Salaam, que se
estabelecem os primeiros contactos com os homens de Fidel Castro. Até aí, os
pedidos do MPLA para o envio de instrutores militares, armamento e um oficial
cubano como observador da situação no interior angolano, ainda que recebidos
com simpatia em Havana, nunca tinham tido resposta concreta.
Foi a ida de Guevara a Brazzaville, em Janeiro de 1965, que
permitiu uma aproximação dos independentistas angolanos a Cuba.
No encontro do MPLA com Che Guevara estavam Agostinho Neto,
Lúcio Lara, e o encarregado das relações exteriores do movimento, Luís de
Azevedo.
Os homens do MPLA pretendiam dos cubanos essencialmente uma
coisa: instrutores militares. A guerra independentista estava a desenvolver-se
e eles tinham boa noção da própria inexperiência. E insistiam nos instrutores por
considerarem que as condições da guerrilha angolana apresentavam certas
semelhanças com a guerrilha cubana (gostava bem de saber em quê).
Precisavam
de teoria. Precisavam de táctica. Até aí tinham aparecido as teorias chinesas,
mas Pequim era muito longe e o MPLA gostaria que os futuros instrutores de
guerrilha se adaptassem bem ao modo de vida angolano. Tinham também pedido
instrutores a Argel. Sem resultado.
A mulher de Lúcio Lara, Ruth, ao comentar a atmosfera das
conversações com o Che, disse que elas haviam decorrido de forma contrafeita.
Os angolanos não tinham ficado com uma impressão óptima do celebrado
guerrilheiro. O Che pouco ou nada sabia sobre Angola e sobre o MPLA, era o
Zaire que ocupava o centro das preocupações dele.
Olhos fitos na situação e nos problemas zairenses, Che
informa que instrutores cubanos iriam chegar ao Zaire dentro em breve – às
zonas a que eles chamavam de “libertadas” – e que o MPLA não tinha mais a fazer
do que enviar os seus homens ao Zaire e aproveitar da instrução que os cubanos
ministrariam aos revolucionários congoleses.
Mas os homens do MPLA não foram nisso. Queriam os
instrutores em território angolano. Tinham tomado posição nesse sentido e daí
não arredariam pé. E tão resolutos se mostraram em não arredar pé das decisões
previamente tomadas que Che Guevara não teve outro remédio senão ceder. Não sei
se cedeu mesmo, e até que ponto cedeu…
O episódio cómico foi este: enquanto o Che se entretinha em
conversações com o núcleo duro do MPLA, um outro homem da comitiva cubana,
Serguera, foi visitar o centro de treinos dos rebeldes angolanos; organizou-se
um desfile de guerrilheiros bem armados que marcharam à vista do visitante
Serguera, e sem que Serguera se desse conta de que aquela numerosa força era
composta por meia dúzia de gatos que marchavam em círculo, davam a volta por
detrás de umas cubatas e apareciam uma, duas, três vezes diante dos olhos dele,
sempre os mesmos.
Era um
procedimento afinal aprendido com Fidel Castro, que na Sierra Maestra fizera
desfilar um modesto número de homens em tantos círculos até parecerem um
batalhão aos olhos de um atónito e crédulo jornalista do New York Times. E esse Serguera ficou fã do MPLA e do respectivo
poderio militar.
Che Guevara na África então portuguesa… é como quem diz. Na
realidade ele nunca lá pôs os pés. Teve forte influência, mas quedou-se pelas
fronteiras.
Por exemplo, Dar Es Salaam. Em 1964, Dar Es Salaam poderia
considerar-se a Meca dos movimentos africanos de libertação. É lá que Che
Guevara ouve falar da FRELIMO pela primeira vez. FRELIMO que tinha acabado de
lançar o seu primeiro ataque em território moçambicano a partir do sul da
Tanzânia.
O encontro de Che Guevara com Eduardo Mondlane, o chefe da
FRELIMO, também não foi feliz. Também Mondlane só pedia instrutores para actuarem nas
bases do movimento na Tanzânia, e também o Che insistia em que os guerrilheiros
moçambicanos se deveriam deslocar ao Zaire para receber os ensinamentos dos
instrutores cubanos.
Mondlane e Che irritam-se. Como outros movimentos de
libertação, a FRELIMO exagerava descaradamente os resultados das acções de
guerrilha que fizera. O Che, que estava bem longe de ser um diplomata, referiu
isso mesmo a Mondlane. E Mondlane saiu da reunião muito ofendido.
Marcelino dos Santos, presente ao encontro, comentou:
“falámos-lhe da nossa luta armada e levantaram-se questões a respeito dos
factos. Alguns factos pareceram extraordinários ao Che. Descrevemos-lhe as
batalhas travadas contra os portugueses e como nos tínhamos preparado para a
luta, o que lhe causou surpresa. Para os cubanos, o importante era
concentrarmo-nos todos no Zaire. E nós dissemos-lhe que a FRELIMO tinha um
ponto de vista diferente.”
Historiadores destas matérias viriam a afirmar que Cuba
estaria a tentar impor ideias ao comando da guerra emancipalista na África dita
portuguesa. Colman Ferrer, um representante cubano para África, defendia-se,
“não estávamos a impor pontos de vista, só tínhamos todo o direito de dizer o
que pensávamos, até porque estávamos a oferecer-nos para arriscar as nossas
vidas por eles”.
Por fim, como última concessão, Cuba oferece-se para
treinar guerrilheiros moçambicanos mesmo em Cuba, enquanto em Abril de 1965
saía de Havana um navio carregado de armas, alimentos e uniformes destinados à
FRELIMO.
Em 1968, Mondlane informa o congresso do partido de que
Cuba estava a auxiliar a FRELIMO com material de guerra e treino de quadros
militares.
Era entretanto chegado o tempo de Castro revelar
publicamente num comício a carta de despedida do Che.
Rebentavam por todo o mundo os boatos sobre o destino do
grande guerrilheiro. Internado em Cuba num hospital psiquiátrico. Assassinado
às ordens de Fidel. Morto em combate na República Dominicana.
Anunciada a nova composição dos quadros do PC cubano, o
nome de Che Guevara não constava.
Na selva zairense, Che ouviu via rádio o discurso de Fidel
e a leitura da sua carta de despedida. Ficou em silêncio e acendeu um charuto,
pensando talvez que depois daquele iminente fracasso no Zaire seria embaraçoso
para ele regressar a Cuba.
Mas a verdade é que tinha avaliado mal a situação
revolucionária no Zaire.
A revolta dos simbas era esmagada e o Che punha-se em fuga
em Novembro de 1965.
Falou aos seus homens: “Devo deixar-vos. Pode ser que nos voltemos
a encontrar, em Cuba ou em qualquer outra parte do mundo.”
Escreveu outra carta a Fidel: “Acredito mas do que nunca na
guerra de guerrilha, mas fracassámos. A minha responsabilidade é grande. Não
esquecerei a nossa derrota nem as suas lições preciosas.”
Em Dezembro do ano seguinte, toca a vez de bater em
retirada aos conselheiros cubanos no Congo (Brazzaville), comandados por Jorge
Risquet.
De Angola e do MPLA nem valia a pena falar. Tinham sido uma
desilusão para as excelentes intenções revolucionárias cubanas.
A partir de então, a assistência militar cubana em África
resumia-se ao PAIGC, com os magníficos resultados revolucionários que se
conhecem.
O mundo ocidental, e os americanos em particular, ficariam
de boca aberta quando, dez anos mais tarde, tropas cubanas em grande número chegassem a Luanda para
combater na guerra civil (e vencer) ao lado do MPLA. Já Che Guevara não fazia
parte do número dos vivos, evidentemente.
“A intervenção de
forças de combate cubanas foi para nós uma surpresa total”, escreveria Henry
Kissinger. Porque naqueles dias de Novembro de 1975 estavam os americanos
principalmente atentos à atitude da URSS na guerra civil angolana, e tanto assim
que mandaram avançar tropas sul-africanas para esmagar o MPLA.
O Che regressou a Cuba e esperou.
Disse Fidel:” ele queria ir imediatamente para a Bolívia,
mas conseguimos detê-lo por cá até que algum trabalho revolucionário preliminar
estivesse concluído, de modo a que ele partisse com alguma segurança”.
E ele partiu. Para a morte. Em Outubro de 1967. Estava eu,
por acaso, a chegar ao cenário da minha guerra, Leste de Angola.
Na minha experiência militar, miliciana mas não tão curta como isso, e
por mais que burguesmente me surpreendesse, conheci alguns elementos que
gostavam compulsivamente da guerra, do ambiente de guerra, do cheiro (a guerra
tem um cheiro, tem), do risco, evidentemente, da morte, talvez, uns eram
profissionais mas outros eram tão milicianos como eu. Não sei se não era esse o
caso do Che, apanhado pela euforia da guerra, independentemente das motivações
ideológicas e revolucionárias que o moviam. Um Che que não se conformou em
estar parado, burocratizado, confortável, inactivo.
E também li, ou ouvi, nalgum lado, que a guerra podia ser
uma espécie de droga que criava dependências. Acredito.
(Andei a ler umas coisas e quando assim é, quer queiramos
quer não, acabamos por aprender – Missões
Em Conflito, de Peter Gleijeses – Editorial Caminho.)