BAYREUTH
– O IDEAL
Para realizar a minha obra, e para bem cumprir
a minha missão, preciso de tanto quanto
uns 10.000 talers. Com 10.000 talers mandaria levantar perto de Zurich um
teatro de madeira, equipado apenas com o que fosse necessário ao Siegfried. No
princípio do ano, mandaria publicar nos jornais alemães convites a todos
quantos apreciam o drama musical. Todos teriam entrada gratuita, a juventude,
as sociedades corais. Siegfried seria
representado três noites durante uma semana. Acabada a última representação, o teatro
seria desmantelado e eu queimaria a partitura de Siegfried. Aos que tivessem gostado diria: “é a vossa
vez, se desejardes coisas novas como o Siegfried dai-me o dinheiro necessário.”
Dá vontade de rir? Pois dá. Mas foi o que Richard Wagner,
nascido a 22 de Maio de 1813, está aqui está a fazer 200 anos, disse. E disse-o
no dia 20 de Setembro de 1850, quando no espírito dele ganhava mais e mais
consistência a ideia de um teatro só para ele, exclusivamente para ele.
Toda a gente sabe, e quem não sabe e leia isto ficará a
saber, que Wagner era um idealista dementado de egocentrismo e de oportunismo,
e que, mesmo por isso, dava nota de conhecer a realidade de ginjeira, e de nela
saber trabalhar se e quando tal fosse necessário, sem perder de vista a oportunidade
redentora, transfiguradora, que, naquele modo particular de ver as coisas e a
vida que era o dele, a música e o drama
tinham para oferecer aos homens e às comunidades.
Bayreuth nasce então do idealismo de um artista. Arranca
sobre uma realidade eriçada de naturais dificuldades. E torna-se, poucas
décadas passadas, uma entidade estética, um lugar de culto, a meca do que se
chegou a chamar de religião alemã.
Em 1855 escreve ele ao seu ilustríssimo sogro, Franz
Liszt. Acabava de abandonar Tannhäuser
e Lohengrin ao seu destino. Não
queria mais saber artisticamente dessas suas obras. Entregava-as aos teatros,
ao circuito comercial. Era uma concessão feita às realidades triviais da
exploração teatral e do mundo da ópera. Punha-as tão somente a mendigar-lhe o
dinheiro e só o dinheiro, e já nem as considerando como suas. Mesmo nas
vésperas do nascimento do projecto megalómano de Bayreuth não pensava ele
retirar as suas futuras obras do repertório corrente dos teatros para as fazer
representar em exclusivo num lugar único, fixo, e artilhado com as mais
específicas e ideais condições?
Bayreuth terá sido o único teatro lírico do mundo a ser
concebido e construído com propósitos eminentemente artísticos. Bayreuth não
seria um teatro destinado a comemorar mais um poder régio, ou uma classe
social, ou lugar de representação
mundana que fosse uma necessidade de Estado ou de regime. O objectivo
era muito, mas muito mais perturbador. Eu diria mesmo transgressor. O que havia
para comemorar em Bayreuth era um só homem e o seu génio. E um homem que, não
obstante esse génio, como cidadão era institucionalmente comum.
Quem era para ser comemorado em Bayreuth era Wagner.
E
era-o sob o pretexto da sua música transgressora do tempo e do modo. A música
era o pretexto idealista e com ela a arte alemã (die heil’ge deutsche Kunst), e
ainda que tal música fosse ao tempo geralmente considerada como pouco
representativa de tal arte alemã.
Bayreuth, segudo o esquiço inicial do seu mentor, estaria
para ser um empreendimento democrático e progressista. As concepções que tinha
do drama musical, a arte do futuro, eram para ser oferecidas a toda a gente sem
distinções sociais. Por uma vez na História da Música, ou da grande Arte, uma
vanguarda não era para ser feudo de um pequeno clube de iniciados. Bayreuth era
para marcar um corte com o corriqueiro entendimento comercial do que fosse uma
casa de espectáculos. O seu produto visava a superior emoção dos fiéis – o que
poderia ser mais um elemento de irracionalidade acrescentado à psique colectiva
do século XIX alemão, e mais tarde, já no século XX, a ser usado pelo III Reich
como ilustração dessa mesma e tão invocada irracionalidade da alma alemã.
Mas como tornar Bayreuth e o festival artístico-religioso
que para ele Wagner sonhava acessível ao grande público?
Claro que essa
questão de idealismo moral nunca seria resolvida.
Logo nos seus primórdios, e graças ao esquema de
financiamentos e patrocínios, a independência de Bayreuth ficaria refém das
elites político-financeiras – na mais risonha das hipóteses, e quando muito, das
elites intelectuais.
Basta ver logo na edição de 1876 do festival o pano de
boca a abrir para um auditório de
cabeças coroadas, de aristocratas, e altos burgueses capitães da finança
internacional. E desde então até aos dias de hoje tal situação pouco mudou, se
é que mudou mesmo alguma coisa.
Os caminhos do idealismo populista e da grande arte são
pedregosos, quando aos pés do caminhante se levantam a cada passo os espinhos
da realidade.
O jovem e estranho rei Ludwig da Baviera está a falar com
a sua prima Sofia:
- Cheguei a sentir acanhamento.
- Como?
- Sim, quando ele me agradeceu.
- E então?
- Assegurei-lhe… bem… assegurei-lhe que viria a ser
cuidado meu conseguir os meios necessários para concluir… e para levar à cena…
e tal como ele ambicionava… os seus Nibelungos…
- E ele?
- Inclinou-se, comovido. Inclinou-se sobre a minha mão. E
assim ficou por longo tempo…
- E estareis em condições de cumprir a promessa, meu
querido primo?
- Agora disponho de poder. Quero usá-lo para lhe suavizar
a vida. Sim, porque serei eu o único príncipe capaz de dar realidade…
- Dar realidade aos sonhos mais estranhos, estou a ver…
- Aos sonhos artísticos mais desmedidos. Serei eu o
antídoto posto ao dispor de Wagner contra a mesquinhez da vida e dos homens,
eu… para quem ele já compôs uma marcha militar… por quem ele se naturalizou
bávaro…
Já se sabe que as intrigalhadas da
corte, a desagradável e excessiva intromissão de Wagner nos negócios de Estado
em anos seguintes, viriam a minar as relações entre o artista e o seu príncipe
- Estais a ver? – diz Ludwig à prima
Sofia. – Gente miserável e cega! Falam de caír em desgraça e ignoram que aquele
meu amigo é tudo para mim, sempre o foi…
- Continuará a sê-lo, meu primo?
- Sim, sempre o foi, e sempre o será até à morte.
Numa primeira fase do projecto de Bayreuth, o rei negaria
auxílio ao seu antigo protegido. Ainda assim, no momento mais crítico, mau
grado as dificuldades financeiras por que passava a coroa da Baviera, seria
essa Baviera e o seu rei a resolver algumas dificuldades de peso.
Mas uma faceta importante do ideal wagneriano
era a independência dos poderes políticos, económicos e comerciais em prol do
cumprimento do mistério da arte do futuro e dos novos e revolucionários modos
de fruição do drama musical.
Perante o assédio incansável da realidade, Ludwig volta a
intervir. Envia, a título de empréstimo, os fundos precisos para aquela fase da
obra. Em compensação, as verbas que houvesse para cobrar dos mecenas, as
subscrições e mais metade do lucro de bilheteira dos espectáculos realizados
reverteriam para os cofres reais até à liquidação total da dívida. Também os cenários, adereços de cena e
guarda-roupa passariam a propriedade da coroa.
E que ficasse bem expresso: aquela seria a última
intervenção de Sua Majestade nos inconcebíveis negócios de Bayreuth.
E nem nesta época de munificências dos estados, mesmo os
mais cultos e mais dados à Estética, as coisas culturais eram coisas em que se
mexesse impunemente a fundo perdido. E era sempre o mesmo problema de
amortização de défices orçamentais e de endividamentos públicos a traçar as
regras de convivência entre a cultura e o mecenato de Estado. E, claro, tudo
isso contribuiu para amenizar os exacerbados idealismos do artista de fazer
erigir com independência um teatro para o povo, isento dos torniquetes sociais
que as classes dominantes apertam em redor das instituições que ajudam – na
realidade nunca de forma absolutamente desinteressada.
Uma coisa era certa – ou duas: Wagner estava bem longe de
querer ser um músico de Estado; Bayreuth nunca por nunca ser deveria ficar como
teatro de Estado, inserido numa lógica de Estado para o teatro musical.
Mas o auxílio do rei marcaria sem dúvida o futuro da
empresa.
Wagner criava compromissos inescapáveis. O défice do
festival de 1876 escrevia o destino de Bayreuth, penhor nas mãos de Munique até
1906, ano em que os débitos foram resolvidos.
E que haverá para dizer de Wagner que ainda não tenha
sido dito? Pouco. Nada. Mas apetece. Porque às vezes até apetece o que se chama
de ver (e ouvir) chover no molhado… ou assar carapaus fritos…
Wagner era uma consciência criativa que se afirmava por
si só, que era um mundo em si mesmo, era uma totalidade, um universo inteiro de
compreensão tanto dos mundos estrictamente
musicais e composicionais quanto de questões de tipo filosófico,
existencial, estético – moral.
(Ouça-se, se houver à mão, a caminhada dos deuses para o
Walhalla, do Ouro do Reno.)
Não foi fácil a Wagner escolher os seus intérpretes para
a temporada inaugural de Bayreuth. Pretendia vozes, está bem, mas não
dispensava mentalidades ou talentos cénicos aptos a representar com
espontaneidade. Queria aquelas inteligências músico-dramáticas ideais, pouco
viciadas na interpretação rotineira das obras do repertório.
Na véspera da estreia, após meses e meses de estudo e
preparação do espectáculo, Wagner transmite aos seus intérpretes uma parte
decisiva do seu ideal:
- Último pedido aos meus artistas. Clareza! As grande
notas, as grandes frases virão naturalmente. O que mais importa são as
pequenas. E nunca cantem para o público. Cantem para o vosso interlocutor. Nos
monólogos poderá levantar ou baixar os olhos, mas sem nunca deixar de olhar e frente.
E um último desejo… não vos esqueçais de mim…
Manda afixar em todos os lugares frequentados pelos
artistas um panfleto com as suas últimas instruções. Nas paredes do recinto da
orquestra afixa uma recomendação.
NÃO PROCUREIS
FAZER MILAGRES. TOCAI PIANO E PIANÍSSIMO E TUDO CORRERÁ BEM.
O milagre estava compreendido na própria música, está bem
de ver.
Outro ponto do ideal: as luzes permaneceriam apagadas ao
longo de toda a representação – o que hoje em dia nos parecerá de somenos, mas
que rompia com o modo instituído de apreciar o espectáculo de ópera,
acontecimento mundano e social por excelência, muito antes de ser evento
cultural.
Mas o idealismo do mestre levaria alguns maus tratos.
Wagner enfurece-se ao ouvir estalar os aplausos com cena aberta – como de
costume em qualquer teatro desse mundo, e como se o que ali acabava de se
representar fosse uma operazeca banal e comercial de um Mayerbeer, de um Donizetti,
ou de um Verdi.
Por ocasião do último dos seus dramas, o Crepúsculo dos Deuses, Wagner foi muito
aclamado, e aclamado com um sentimento novo.
E subiu ao proscénio. E falou:
- Tivestes o ensejo de ver aquilo de que sou capaz. A vós
compete agora querer. E se quiserdes, a arte alemã será uma realidade.
Em 1883, ano da morte do mestre, o ideal de Bayreuth,
privado do sopro de vitalidade do seu criador, arriscava-se ao desaparecimento.
A menos que um herdeiro espiritual de idêntica envergadura tomasse conta da
empresa.
Alguém imaginaria Cosima, a viúva, como esse herdeiro
espiritual? Provavelmente sim. E o certo é que Cosima deitou mãos a ideal
wagneriano, adoptado como linha e rumo nada mais do que a fidelidade ao que
poderia ser entendido como a mais íntima vontade do mestre. Criticadíssima, Cosima
foi censor implacável de toda a improvisação, de toda a hipótese de
reformulação inovadora desviante da palavra sagrada. Mal sonhava, a pobre, para
o que estava guardado o ideal do mestre…
BAYREUTH –
A REVOLUÇÃO
(Ouça-se, se possível, a cena final de Siegfried; e logo de seguida a cena da
imolação do Crepúsculo dos Deuses.)
Bayreuth seria um espaço de realização da vida, na
plenitude e na totalidade em que Wagner a concebia. Criar Bayreuth era um acto
genesíaco próprio de um deus teutónico, um gesto demiúrgico de Wotan. Era criar
o universo próprio, para activar os milagres; para fazer viver e morrer,
miserável ou gloriosamente, as criaturas ideais engendradas por uma força
superior; para redimir e castigar; para o ódio e para o amor seu vizinho; para
a salvação e para a queda.
Na visão enorme
de Wagner criar Bayreuth era realizar o historicamente necessário ao
renascimento de uma visão alemã da vida, essa então em crise profunda. Era
estancar a chaga aberta no peito de Amfortas.
Para cumprir o ideal wagneriano força era criar tudo de
princípio. A começar pelo edifício do teatro, a continuar nos artistas, a
terminar no público.
Wagner obrigava-se a criar até o seu público, porque esse
público, novo, virgem de preconceitos, limpo dos lugares-comuns e das vulgaridades
impostas pelo comércio da ópera, devia fazer parte da sua obra. Se Wagner não
conseguisse criar um público novo, nada feito, o sonho ficaria para sempre
irrealizado.
Ao criar uma nova música, havia que prosseguir criando um
novo teatro, e para um novo teatro havia que inventar um novo
artista-intérprete. Criando de novo música, espaço e intérprete, para que a criação
funcionasse em pleno sobre a realidade, obrigatório seria criar um novo
público. E criar um novo público não seria menor utopia do que criar um homem
novo, o cidadão germânico perfeito. E titânico, à imagem do seu criador.
O meu drama dos
Nibelungos será representado de seguida, um grande festival que seja organizado
propositadamente. Um festival que durará três noites, precedido pelo prólogo,
representado na véspera.
Acrescentaria ele
também que só depois da revolução poderia pensar num empreendimento daquele
porte. Sim, porque só uma revolução lhe poderia proporcionar os artistas e,
sobretudo, o público, dignos da sua obra.
E diria ele mais: com as suas óperas revelaria aos
revolucionários qual o sentido último da revolução que faziam. Só assim os
revolucionários estariam perfeitamente equipados em termos de profundidade
ideológica para concluir uma revolução, e até para a compreender nas suas
últimas consequências.
Uma ideia de revolução que era lâmina de dois cortes – e
pensando no aproveitamento que mais modernamente a ideologia nazi (que se
reclamou de revolucionária) viria a fazer da herança wagneriana. O que levaria
os incautos a ver projectado no retrospectivo écran da História um Wagner
perfilado, camisa castanha e braço em saudação romana. E só porque a ideologia
nazi, supostamente armada do mesmo ideal, se propunha finalidades semelhantes à
revolução wagneriana, a menor das quais não seria por certo a ressurreição
idealista de uma pureza cultural ameaçada por inimigos internos, nibelungos a
quem era aconselhável estampar uma estrela amarela no peito.
Sim, Wagner, fosse ele vivo, não iria muito fora disso.
(Aqui, sendo preciso música, não ficaria mal a Marcha
Fúnebre do Crepúsculo dos Deuses.)
E assim, Hitler se propunha dar continuidade ao ideal
nacional que se consubstanciava na construção e na consagração de um simples
teatro.
Wagner terá sido antes de mais, e acima de tudo, um
empolgante fenómeno cultural, apesar de todas as preconceituosas obsessões.
Preconceitos e obsessões, aliás, caldeados na polémica do tempo histórico que
vivia.
Wagner consultava-se com os poderes da terra, e dessas
tão imponentes potestades hauria a substância das profecias que anunciava ao
mundo, tal como o deus Wotan, disfarçado de caminhante, procurando Erda, a deusa da terra, e
ouvindo-lhe as sabedorias trágicas quando ao devir dos da sua estirpe.
Wagner estava como aquele Wotan-Zeus que acabara de criar
e que em tudo o que existia apercebia uma projecção de si próprio. Aquele
Wotan-Zeus que angustiado monologava e se lamentava da sua condição divina, da
força impossível do seu ideal de deus criador a quem só verdadeiramente
importava o que nunca tinha acontecido.
Iluminado pelo colossal carisma estético-cultural, Wagner
terá sido um arauto do seu tempo e correlativas contradições, e uma voz de tal
modo forte e penetrante de ideal e de catástrofe que as suas reverberações se
propagaram violentamente pelas gerações do tempo que se lhe seguiu. Só nessa
condição, e em alguma medida, lhe poderá ser assacada a paternidade
psico-cultural do hitlerismo, num sentido em que Hitler, a seu modo peculiar,
interpretou as vozes da terra e do sangue, a tradição, a mundividência alemã, e
assim segundo os horrores da herança musical wagneriana.
A profecia wagneriana, segundo a qual só a sua obra
acrescentaria sentido a uma revolução, pode ter sido cumprida, ainda que
diferida no tempo, na causalidade, na circunstância.
Wagner desafiara musicalmente todas as forças primitivas,
terra, fogo, sangue, tempo, o cataclismo, a intolerância, a maldição e a
bênção. E as forças desencadearam-se no século seguinte em apocalipse de
chamas, enquanto muitos lhe invocavam o nome.
Gostei muito... Wagner é talvez o representante máximo de tudo o que é excessivo (bom ou mau) na cultura alemã.
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ResponderEliminarBravo!