O CORREIO DA NOITE
Lisboa.
Estação de Santa Apolónia. Finais dos anos 60. Domingo. Onze e vinte da noite.
Vai partir o comboio correio para o Porto.
O cais de embarque, cheio de movimento, é
cuidadosamente observado por patrulhas da Polícia Militar. Despedidas.
Namoradas. Amigos. Pais e mães. Dos que partem, a maioria são militares
de baixa patente. E nem lhes vale a pena tirar bilhete de primeira. A composição
já está cheia e continuará a estar tão cheia que as classes fatalmente acabarão
por se dissolver no espaço reduzido e os da segunda acabarão por invadir os
confortos da primeira ao longo do trajecto deste comboio que sai de Lisboa às
onze e vinte da noite, pára em todas as estações, e chega ao Porto por volta
das sete da manhã – tanto quanto me lembro.
Em
cada estação ou apeadeiro entram e saem homens tristes, mulheres infiéis, mães
alentadas, embaciados caixeiros de praça, empregados, operários, cançonetistas
de baixo quilate em camisas de cores e viola à tiracolo, caminhantes novos e sem muito destino, jovens hippies de
província com flores murchas no cabelo, indiferenciados do trabalho, aparentemente
trolhas, aparentemente serralheiros, pedintes de acordeão, bêbedos,
aleijadinhos, e outros náufragos da noite.
E
soldados. De pé, sentados, deitados no chão, ao colo, de cócoras, acordados e
pensativos uns, esquecidos e ferrados no sono outros, muitos. Acabou mais um
fim de semana – para os militares parou de novo o tempo de uma precária
felicidade. A liberdade foi-lhes mais uma vez adiada. A viagem é mesmo até ao
fundo da noite. O dia virá a nascer lá para as proximidades de Aveiro. A vida
prepara-se para recomeçar.
Há
militares já mobilizados para os teatros da guerra de África que falam e
fumam até ao fim da viagem. Há militares que ainda não estão mobilizados e que
esperam sem esperança nunca vir a estar. Os que falam têm como assunto de
conversa a vida que agora pertence mais aos outros do que a eles,
eles assistem aos actos dos outros enquanto esperam uma salvação pessoal, ou
uma fatalidade.
Haverá
um cheiro forte nas carruagens daquele comboio, lá mais para o fim da noite, um
cheiro não se sabe a quê, misto, os jovens militares ainda não sabem
identificar os cheiros mais proibidos porque ainda pouco sabem da vida e
da morte.
E sobre o dedilhar transtornado de uma viola alguém
pode elevar na madrugada vagarosa um cântico cheio de rapazes e de cachopas, de
manéis e de marias. A cada paragem do comboio entram novos viandantes e sai,
muito às pressas, um tresnoitado, ou dois.
Embarquei
umas boas dezenas de vezes nesse comboio fantástico de máscaras assombradas por
um destino. Chegava ao Porto e tinha que me meter noutro comboio para chegar a
outra cidade mais a norte, a tempo de ministrar instrução de guerra a soldados
que, como eu, já estavam mobilizados para o ultramar, já estavam, como eu, e
como se dizia na gíria, a formar batalhão. Às vezes havia camaradas com quem
conversar pela noite interminável. Conversar de quê? As mais das vezes, de
tropa. De guerra. Da perspectiva de entrar numa guerra, que era coisa de
filmes, coisa que, poucos anos antes, não nos tinha sequer passado pela cabeça.
Entrar numa guerra…
“E
se um dia, quando isto virar, te perguntarem onde estiveste e o que estiveste a
fazer entre 1967 e 1970, que é que tu respondes?”
Um
bom e inquietante tema de conversa. E uma conversa que, entre o sério e o
jocoso, de facto aconteceu, e mais do que uma vez, comigo e com outros, com
toda a certeza, porque ainda, então, havia no fundo de nós um certo sentimento
de responsabilidade pessoal no quadro de uma sorte colectiva – sabe-se lá se
uma reminiscência inconsciente das conclusões do processo de Nuremberg…
"Vais
dizer que estiveste metido numa guerra e foste a África matar os pretos que já
lá estavam milénios antes de tu lá chegares? Vais admitir que estiveste
comprometido com o regime ao ponto de matares por ele, de perderes a tua vida
por ele, comprometido até aos cabelos, e de armas na mão, para safar o regime,
o Salazar, vais dizer isso?”
Parecia
uma conversa de brincadeira, mas creiam os possíveis leitores que tiveram a
sorte ou o azar de não andar nestes assados que esta conversa não era
brincadeira nenhuma.
Naquelas
viagens de uma noite inteira de comboio aquela geração marcada (ou pelo menos
os seus mais conscientes, maniqueístas e politizados representantes) ainda
reflectia. Reflectíamos, sim, no limite das nossas pequenas posses
intelectuais, acerca da primeira e mais forte responsabilidade pessoal, cívica
e nacional, bem vistas as coisas, que nos era dada a viver.
O
tópico que por um pouco não nos aliviava a consciência política – podem-lhe
chamar ideológica, não me importo nada – presente no limiar de uma culpa era o de que “aquilo” não
virava, o regime não virava, não viraria nunca, a nossa fatalidade era eterna,
a nossa responsabilidade era toda – ou nenhuma - porque a nossa deprimida
intuição era a da eternidade do Salazar.
A
reviravolta súbita do regime seria outro drama. Significaria automaticamente o
absurdo da nossa presença naquele comboio de malditos da noite, mostraria o
contrasenso daquela viagem e o disparate da nossa juventude ocupada nas lides
da tropa, em função de uma guerra inútil que acabaria apenas “aquilo” virasse,
apenas o regime mudasse.
Uma
viradeira política implicaria principalmente o absurdo mais inquietante da
nossa curta vida, que era a eventualidade da nossa morte em armas, a milhares
de quilómetros de casa, e por uma concepção de país, de Estado, de nação, de
território que o mundo já condenara. O absurdo da nossa viagem naquele comboio só
tinha medida na probabilidade de uma morte próxima, violenta e sem préstimo.
Que
responsabilidade a de um indivíduo anónimo e visceralmente civil quando
compelido a participar numa guerra?
É
claro que do ponto de vista cívico, ou político, essa responsabilidade não é
nenhuma. Sabe-se hoje. É uma questão que não tira o sono a ninguém. Mas tempo
houve em que a coisa dava que pensar. Pelo menos a um certo tipo de pessoas.
Nunca se sabe o que se vai encontrar numa situação de guerra. Nunca se sabe o
que se pode vir a ser obrigado a fazer, ou a não fazer, no meio do inferno de
uma emboscada. A questão da responsabilidade cívica no contexto de um regime de ditadura era algo
que – por razões fortes e fundamentadas de anti fascismo – tínhamos metido na
cabeça dizer respeito à comunidade inteira. O que, hoje, se calhar, até dá
vontade de rir…
A
questão do fim do nazismo e o julgamento de Nuremberg abriu alguns alçapões
esquecidos da minha memória pessoal, resfolegar de pânicos adormentados, ecos
de sensações, reminiscência de coragens, inocências e culpas, mergulho no
passado. A responsabilidade. A responsabilidade moral e política. A
responsabilidade cívica de poder dizer sim ou não à guerra. E será que sou
capaz de matar? Porquê? Em que circunstâncias? Que direito o meu de praticar ou
não praticar um acto continuado e violento, provavelmente injusto?
Óbvio que a responsabilidade política
pela devastação do nazismo foi de Hitler e dos seus vértices
político-esotéricos de decisão. Mas a responsabilidade cívica ficou agarrada à
consciência colectiva e à reminiscência moral individual de quantos o elegeram
e de quantos a ele se submeteram; de quantos o aplaudiram, de quantos
passivamente o acompanharam no horror. Quero dizer: todo o povo alemão, o Volk,
uma entidade que Hitler invocava como legitimação e que nunca poderia ser
condenada pela justiça dos homens. E então comecei a cismar no problema à
escala sempre pequenina chamada Portugal.
Quando
li o livro do jornalista sueco Stig Dagermann, intitulado Outono Alemão, reencontrei-me com o princípio da responsabilidade
pessoal que me turbava a consciência (a mim e, felizmente, a muitos outros) na
soleira da minha entrada nesse caos inimaginável que é uma qualquer guerra,
mesmo pequena, mesmo política, mesmo inútil e historicamente
perdida (já se sabia disso ao tempo), feita em nome de uma visão do mundo que
já não era a minha, que talvez nunca tivesse sido a minha, irremediavelmente
infectado dos valores de esquerda um pouco maniqueísta bebidos nos cafés, nas
conversas, nos cinemas, na livralhada e nos lugares de trabalho desse Portugal
dos anos 60, e querendo, como muitos outros, ser cidadão, ser consciente,
progressista, evoluído, racional, culto, moderno. (Revolucionário, não?) E por
consequência responsável total dos meus actos, e responsável parcial pelos
actos da minha comunidade.
E ainda, nessa época, acreditando piamente na
possibilidade do fim histórico de umas poucas de coisas, a exploração do homem
pelo homem, o colonialismo, o fascismo, as ditaduras, as guerras; acreditando
que as colónias, tornadas novas nações, seriam prósperas, ricas e livres logo
que sacudissem o jugo colonial português; acreditando que Portugal seria mais
forte e considerado no concerto das nações se se resumisse à sua estatura
territorial originária e europeia…
Por
acaso, tal não aconteceu, nada do que acabei de dizer aconteceu, ou não
aconteceu tanto assim, ou tanto como esperavamos.
Como
eramos ingénuos!
O
salazarismo ditador e colonialista não fora pensado nem feito para ser
compreendido por jovens inteligentes, irredutivelmente marcados por leituras
marxistas.
O
peso da responsabilidade política individual que se seguiu à queda da Alemanha
de Hitler foi esmagador. Quem tinha permitido? Quem se tinha calado? Quem tinha
alinhado? Em que limites se demarca a
consciência política e moral dos povos e dos indivíduos? Onde está a capacidade
de solidariedade das gerações?
Na
Alemanha, entre 1925 e 1945, ninguém foi nazi e ninguém deixou de ser – salvo
aqueles que se declararam individual, responsável e publicamente para um lado
ou para o outro. E, mutatis mutandis, em Portugal, entre 1926 e 1974 ninguém foi
salazarista nem ninguém deixou de ser – salvo os que se apresentaram de cara
pública e aberta para um lado ou para o outro, completamente inocentes, ou
irremediavelmente culpados no fim das contas.
Falo,
como bem se percebe, do povo anónimo, do indivíduo indiferenciado. A
passividade conformada dos povos é um dos maiores mistérios da natureza das
colectividades humanas, não obstante todas as convenientes mitologias
inventadas pelos teólogos de massas. Quem esteve contra o 25 de Abril na manhã
de 26 de Abril e nas outras manhãs todas que se seguiram por muitos e bons
anos? Ninguém. E no entanto, na tarde do dia 24 de Abril tudo parecia, enfim,
normal, o povo não aparentava queixas de maior que lhe provocassem os calores
da sublevação, e as razões que teria para tal, vastas que fossem, e eram,
vinham muitíssimo de trás, e não se pode esquecer que Marcelo Caetano fora
muito aplaudido dias antes no Estádio do Sporting.
Ninguém
esteve contra o 25 de Abril, salvo os que estiveram – é do amigo Banana – e que
eram tão poucos e tão específicos que nem lhes podemos chamar povo.
Dá
a ideia de que os povos se comprazem numa ânsia de vitimização, ou seja, de
irresponsabilidade histórica perante o próprio destino.
Pela
parte que me toca na guerra colonial portuguesa, posso dizer que desde o
primeiro dia em que entrei num quartel até ao dia em que saí nunca deixei de pensar em desertar, dizer não…
Mas
fui um fraco e nunca desertei. Fui-lhes dizendo que sim… Porque pouco resolveria para o caso da
responsabilidade geral. Porque Salazar
parecia mesmo eterno, o diacho do homem. Porque seria pior para mim e para a
minha família, num certo sentido. Porque não tinha amigos em Paris, Moscovo,
Praga, Pequim ou Argel. Porque era um borra-botas de um civil anónimo, com
convicções mas sem cartão de partido ou sem clandestina vocação de compagnon de route.
E
talvez nessa época nos tivessem querido ensinar que a História não era uma fatalidade
na vida dos povos e por isso tenham feito de nós, modestos cavaleiros analfabetos, os figurantes
do exército que desencadeava uma guerra contra o
andamento da História, e quando a História era para nós uma responsabilidade
também individual e uma oportunidade de resistência. Isso, claro, antes de
suspeitarmos de que a História poderia mesmo ser uma fatalidade repetitiva que
se determinava nos esconderijos do tempo.
E
eramos inocentes, oh, como eramos inocentes! Não se pode ganhar uma guerra
mandando-a fazer a mancebos inocentes.
Eu
acho que todos, ou quase todos, tivemos a sensação pouco amável de termos
nascido num tempo errado, sob a circunstância histórica errada.
Lá
diz mestre Umberto Eco que se nasce sempre sob o signo
errado e que a maneira mais digna de estar no mundo é ir corrigindo todos os
dias o próprio horóscopo.
Fomos,
matámos e viemos, pode dizer-se, mesmo levando em conta a brutalidade da
expressão. Fomos, matámos e viemos – os que vieram – de inocências perdidas
quanto a muita coisa, o Homem, a política. Sim, a História. De inocências
perdidas e mais crescidos mentalmente; ou irremediavelmente fascinados pela
experiência orgásmica da morte: dar a morte, arriscar a morte, presenciar a
morte violenta ao vivo e muito de perto,
tão de perto, quantas vezes, que era como se ela fosse nossa.
Eramos
a geração da guerra fria e atiraram-nos para o centro de uma outra guerra bem
quente, apesar das dimensões exíguas dela em termos mundiais.
Eramos
a geração da guerra fria e coexistimos com outra guerra, muito maior e ainda
mais injusta do que a nossa e de infinitamente mais trágicas proporções: o
Vietnam.
E
enquanto lá estivemos, moços em armas em defesa da nossa pele e das nossas
províncias ultramarinas, a vida continuava a fluír, natural e resignada nas
nossas aldeias, nas nossas
cidades, sem sobressaltos, sem revoltas, de modo que tudo parecesse normal. A
mim, olhem, perturbavam-me os grandes eventos culturais e artísticos a que eu
não podia assistir e que continuavam a acontecer mesmo sem mim. Nunca, mas
nunca, poderei perdoar ao meu destino a malfeitoria que me fez de não me ter
deixado ver ao vivo o Nureyev e a Margot Fonteyn dançar, de não me ter deixado
ver e ouvir a declaração do Maurice Béjart, de não me ter deixado ver o Karajan
a reger no Coliseu. Por exemplo.
Ou
de não me ter deixado acompanhar na minha cidade as novas do Maio parisiense,
saber da invasão da Checoslováquia pelas tropas soviéticas… de não me ter dado
a oportunidade de saber no lugar próprio, isto é, enquanto tomava um café no
Chiado, que o Salazar tinha caído da cadeira…
Fomos,
matámos e viemos. Outros foram e vieram e nem sequer mataram. Outros foram,
mataram ou não mataram, mas também não vieram. Será que todos estivemos no lugar certo e no tempo
certo?
Matar
ou não matar. Aí está a máxima estação de responsabilidade de quem faz uma
guerra. Mas que significado tem o acto de matar num quadro geral de guerra?
Morrer
ou não morrer. Eis outra máxima responsabilidade de quem
entra numa guerra. Estarei eu ou não disponível para morrer por certos valores?
Estarei eu ou não disposto a matar pelos mesmos valores pelos quais estou
disposto a morrer? É uma questão simétrica, circular, sim, sim, pois é. E de
resposta assustadoramente fácil. E também de resposta impensavelmente difícil
quando depende da matriz cultural (evidentemente) em que cada um se inscreve e
que cada um não pode mudar nem que se esgatanhe todo.
Eramos,
como digo, a geração da guerra fria, que já derivava dos problemas da II
Guerra. Eramos a geração que coexistia com um tempo forte de revoluções
nacionais e de emancipação dos povos colonizados ou já então neo-colonizados
por todo o mundo. Eramos a geração que separava o velho do novo. Eramos,
talvez, por causa da revolução tecnológica, a geração que já separava o novo do
aflitivamente novo, do novíssimo, a geração que já separava uma civilização de
outra civilização, porque já nos andava no sangue a música da estranha
civilização que agora começa.
Sabiamos
lá nós disso!
Gloriosa e irrepetível inocência, a dos ocidentais anos 60!
ResponderEliminarQuando pensávamos que todas as mudanças seriam possíveis, talvez por se suporem imutáveis os fundamentos do Mundo de então.
Precisamente o oposto do estranho e inquietante sentimento dos dias de hoje...