ESPERO NUNCA VIR A TER NADA QUE FAZER EM SYDNEY
Uma das tais viagens que não me apetece fazer…
Por
vezes podemos ser acometidos por uma viagem, podemos fazê-la até, ou podemos
evitar fazê-la por indisponibilidade de tempo, por um acesso de preguiça, por falta
de dinheiro.
Acometidos
por uma viagem, dir-se-ia sugestionados por uma terra distante, seja uma cidade,
seja uma montanha, um vale ou uma praia. Acometidos por uma viagem,
sugestionados, e não por um anseio muito nosso, muito intenso e íntimo,
sugestionados porque o progresso da máquina, o atrevimento da publicidade e os
avanços da tecnologia nos induzem outras realidades, outras paisagens.
Por
esse avanço tecnológico poderíamos sem grande esforço concluir que, nos nossos
tempos, a viagem, por trabalhosa que seja, e fatigante, pode mais dia menos dia
tornar-se inútil. Basta irmos ao cinema,
provermo-nos de catálogos, albuns de fotografias de amigos, bilhetes postais,
televisão por cabo, gravadores de vídeo e DVD (ou vídeos e DVD’s já prontos),
registos de som, livros (sejam deles de viagens propriamente ditas sejam mesmo
certos romances), reportagens de jornal ou revista, um hamburger comprado no
Mac Donalds, e por aí fora, até chegarmos ao instrumento máximo da viagem
física ou espiritual (hélas!) que é a
Internet. Se a montanha não vai a
Mahomet, que seja Mahomet a ir à montanha – hoje em dia é perigoso usar certas
palavras e mencionar certos nomes, mas julgo que não há nada de religiosamente
incorrecto ou ofensivo no que eu disse…. ou terá passado a haver? Bom…
esperemos que não.
Como
estava a dizer… se a montanha não vem a… que seja… tal tal… a ir à montanha. O
mesmo, ou parecido, diríamos da mística da viagem nos nossos tempos
tecnológicos. Através da nossa tecnologia caseira cada vez mais é a viagem que
vem até nós. Não só pela inspiração. Não só como indução da vontade. Num ecran
de plasma de grandes dimensões montado na nossa saleta de estar podemos viver a
experiência visível da viagem e irmos acumulando informação sobre os lugares e
as gentes. Com a vantagem adicional de nos sair mais barato. Um manual
turístico, um guia Michelin, dois ou três testemunhos de amigos, uma descrição
de romancista e aí está. Viajámos. E mais e melhor viajaremos se formos pessoas
atentas, razoavelmente informadas e de boa qualidade interior. Podemos
munir-nos inclusivamente de horários de comboios e aviões, de informes sobre a
localização e preços de hotéis. Na Internet fornecem-nos fotografias magnificas
dos quartos e das suites dos melhores e dos piores hotéis do mundo, podemos
apoderar-nos dessas imagens, imprimi-las, ampliá-las, gozá-las como se fossem
experiência nossa. Está feita a viagem. A Paris como ao Sri Lanka. A Reiquiavik
ou a Badajoz como a Sydney.
Esta
viagem de que falo, para a pessoa de vagares, de paciência e de bons
equilíbrios emocionais, pode ser todo um projecto de vida. Viajar sem sair de
casa. Assombrar os conhecidos com contos de encantar sobre uma noite de salsa em Cartagena de Indias ou sobre um
demorado percurso pelo Museu D’Orsay. A modernidade pode trazer-nos a viagem a
casa. E com a vantagem da imaginação. Sim, a vantagem da imaginação, digo, para
responder a quem estará a argumentar mentalmente comigo, a querer dizer-me que
não, que não é a mesma coisa. Pois não, não é. Eu sei. Mas até pode ser uma
coisa melhor do que a coisa mesma. Porque assim poderemos evitar o que acontece
muito em viagens, a desilusão.
Ser
acometido por uma viagem é realizar mentalmente um lugar, um som ambiente. Um
ideal. Foi a viagem, isto é, foi o lugar que veio até nós e nós não descansámos
enquanto não fizermos essa viagem, enquanto não fomos ao lugar real. Mas se não
formos, se viajarmos por indução imagética, inventiva, coadjuvada pela
tecnologia, escusaremos para sempre de saber que a maravilhosa escadaria romana da
Trinitá dei Monti não é muito mais do que umas Escadinhas do Duque mundialmente
publicitadas por passagens de modelos; escusaremos de saber que a Fonte de
Trevi é um Chafariz de Dentro maiorzinho; escusaremos de encarar com a
enormidade do Arco do Triunfo, o qual, por grande e imponente que seja na
realidade, será sempre mais maneirinho do que nós o imaginámos a partir da
invenção e das fotografias; escusaremos de saber que os templos de Angkor são
montes de pedras periclitantes e silenciosas, várias vezes saqueadas e cobertas
de negro musgo.
Viagens
aos antípodas australianos? Nunca fui acometido por elas.
Sydney. O que é? Fotografias de arranha-céus aos
molhos. O edifício da Ópera – cuja programação, aliás, disponível pela
Internet, não convida grande coisa. Brancas praias e muitas. Enseadas azuis.
Canoagem. Parques nacionais. Corridas de cavalos. À noite no Taxi Club ou no Cricketers Arms… as coisas que eu sei… pela Internet.
Sydney.
Austrália. O desenvolvimento económico. Tecnologia e inovação como evangelhos. Chega
a enjoar. A forte influência na política regional. Estatísticas. Incêndios
dantescos – vamos sabendo alguma coisa acerca disso também por cá. As praias:
gosto. Os tubarões que se pelam pelo seu petisco de naco de perna humana: já
não gosto tanto. Ondas monumentais: gosto. Surf:
obviamente não pratico… mas gosto de ver…
Tudo
isto para dizer que a viagem das viagens é aquela que se faz à volta do nosso
quarto. Foi um escritor qualquer que o disse, já não me lembro quem. A viagem à
volta de um quarto de que o tal escritor falava nem tinha nesse tempo tanta
tecnologia a induzi-la, a apoiá-la. Ou seja, a tecnologia comunicacional veio
melhorar tanto a vida humana que quase tornou, senão reais pelo menos realistas,
as viagens à volta de um quarto. Só tem um inconveniente, ou uma
deficiência. Qual? O cheiro. Não o acre
cheio de um quarto de dormir menos asseado, claro, digo o cheiro das montanhas,
das praias, das selvas, dos vales e dos bairros típicos das cidades. Porque na
viagem, e isto está muito longe de ser de somenos, há os comeres e há os
beberes. Quer dizer, os sabores, os cheiros. Os cheiros e os sabores que por
mais perfeita que seja a tecnologia nunca atingirão os nossos paladares e
narizes se lá não formos. Claro que sim, o segredo de um lugar está no cheiro –
a maior parte das vezes na falta dele. E o motivo mais forte que nos possa
levar a empreender uma viagem pode ser esse: o cheiro – quanto mais não seja o
cheiro da universal e global gordura dos Mac Donalds.
Não faço
a mais pequena ideia do cheiro de Sydney, e o que sei de Sydney não me cheira a
nada.
Os australianos
nunca me fizeram mal nenhum, mas que hei-de fazer? Fazer? Só espero nunca vir a
ter nada que fazer em Sydney.
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