BOMBAS DE EFEITO MORAL
Assisto
às reportagens das televisões brasileiras sobre as manifestações e tumultos (a
baderna) que têm assolado o Brasil, e ouço dizer que a polícia lançou sobre os
manifestantes, além das bombas de gás lacrimogéneo e das balas de borracha,
bombas de efeito moral. E recordo os meus tempos de
instrução militar no capítulo das granadas a usar na guerra para onde estavamos
condenados a ir.
Granadas havia-as então chamadas de
“pinha”, fragmentadas, de estilhaços, verdadeiramente assassinas, ditas
defensivas; e havia-as ditas ofensivas – isto se não estou em erro e se bem me
lembro. E com pedido de desculpas por alguma inexactidão respeitante a matérias
aprendidas vai para os seus bons cinquenta anos.
Às granadas ofensivas era dada a
característica de serem de efeito moral e de sopro. Quer dizer, faziam muito
estrondo ao explodir e podiam projectar um homem os seus dois ou três metros.
Mas, em princípio, não matavam. Em princípio. Caindo-me mesmo ao lado, se não
me matavam com certeza que também não me deixavam a vender saúde. Mas não
interessa, interessa é que não eram fatais. O estrondo era o efeito moral. E o
efeito moral era o cagaço que metiam a um homem ao ouvi-las rebentar, e até
porque, ao ouvi-las rebentar perto, na confusão da emboscada, tanto quanto sei
não se lhes identificava a característica, se ofensiva se defensiva, se
assassina, se só de efeito moral.
É nesse efeito moral sobre as populações
indignadas que aposta a polícia brasileira para dispersar os manifestantes. O
susto. O medo. E sendo o medo um dos mais poderosos efeitos morais seja do que
for, bomba, ou medida de governo.
Grande efeito moral pode dizer-se que
tem produzido na opinião pública a saída à rua e à briga dos indignados da
Turquia e do Brasil. Sem contar com os dias de violência urbana vividos
na Grécia há um ano ou coisa.
No Brasil, impressiona-nos sobremaneira
que no também chamado país do futebol já nem o mesmo futebol (um dos
ópios mais entorpecentes do povo) é capaz de desmobilizar, ou de amansar, os
protestos do pessoal. Ou, mais difícil ainda: acabou por ser o futebol, com os
seus gastos sumptuários, ou mesmo faraónicos, o detonador da granada de efeito
moral que andava escondida na consciência popular.
De onde procederá, de facto, o maior
efeito moral? Das bombas da polícia, ou da ira do pagode?
Acho que, atenta a relação causal, é a
ira do pagode e o seu efeito moral (susto,
medo sentido pelas autoridades) que suscitam as granadas de correlativo efeito
moral atiradas pela polícia.
O que é preciso ver é que a vida dos
povos nunca mais será a mesma. Só resta saber como é que ela poderá vir a ser.
De todo o modo, não sei se me apetecia estar cá para ver o que ainda haverá
para ver – e sentir, e sofrer. Mas se calhar, a idade que tenho, não me
permitindo ver esse filme até ao fim, vai ainda permitir-me ver algumas cenas,
e cenas tristes, o mais certo.
Mas como é que na Turquia e no Brasil
apareceram nas ruas em atitude hostil milhares e milhares de pessoas, e com o
efeito moral de ninguém de mais autoridade (ou muito poucos) esperar que
aparecessem?
(Desconto aqui, claro está, os
mascarados agitadores profissionais, e internacionais, que tanto estão de
serviço na Grécia como na Turquia ou no Brasil.)
No centro do problema dizem estar a
informação, a velocidade da informação. Pois. Não duvido. Mas também o cansaço
cultural, cívico e psíquico acumulado nas sociedades humanas quando chega um
dia em que pensam a sério e encaram de frente as vertentes da realidade
política que vivem.
Como se mobilizam em simultâneo, e em
locais muito distantes uns dos outros, milhares e milhares de manifestantes na
sua maior parte, sem dúvida, gente ordeira? É pelo telemóvel? É por mail? É pelo facebook? É pelo twitter?
(Tem
graça: só designações anglo-saxónicas.)
É a informação, é a velocidade da
comunicação interpessoal a verdadeira bomba de efeito moral caída no seio da
sociedade contemporânea?
Mas, insisto, nenhuma convocatória para
manifestação surtiria efeito, ou seria de grande efeito moral, se a
consistência também moral das populações não andasse abalada, se a velha e
subentendida confiança dos governados nos governantes e nas instituições não
estivesse há muito minada, se o velho e imperativo (e por vezes esotérico)
exercício do poder e da autoridade não fossem hoje em dia quase impossíveis de
exercer por tão desprestigiados se acharem.
Tem sido vertiginoso o esgotamento das
fórmulas de conquista do poder e da conseguinte metodologia de governação em
privilégio das entidades que materialmente possibilitaram a assunção desse
poder a um homem ou a um grupo (partido) – e assim também pelo efeito moral da
rapidez e facilidade da comunicação. A crise das credibilidades é profunda. A
erosão dos prestígios e das reputações é imparável. E até as incontornáveis
verdades que nos ensinaram como sendo históricas oscilam perigosamente. Serão
estas as verdadeiras bombas de efeito moral?
As consciências individuais, colectivas,
nacionais embatem contra um muro de impossibilidades para uns e vastas
possibilidades para outros. As impossibilidades de uns que é urgente tornar
possíveis, ainda que cruamente se incompatibilizem com as possibilidades de
outros. Uma bomba de grande efeito moral. Austeridade?
Austeridade. Sem ela não poderemos
levantar a cabeça diante dos nossos credores e financiadores nos próximos
muitos anos. Mas a austeridade impossibilita, como muito bem se sabe, o pleno e
desejável crescimento daquilo que nos permitiria ultrapassar a austeridade e
enfrentar os credores: a economia privada, e por acréscimo e consequência
natural a economia nacional.
Será a austeridade, que em maior ou
menor grau afecta as economias do mundo, a verdadeira bomba de efeito moral
(garantido) jogada pelo capital financeiro (por quem mais poderia ser?) contra
as populações?
O ódio à classe política, outro factor
transnacional. Ou será essa classe política em si mesma a bomba de efeito
moral? Será. Mas o que faz e ao serviço de quem está essa classe política? Ao
serviço dos povos e dos eleitores enquanto tampão de gananciosas ambições
particulares? Acham que sim? Acreditam a sério?
Mas, oh, não, cada vez menos, só quando
não pode deixar mesmo de ser. Quando muito é o contrário: é estar ao serviço do
poder financeiro global como tampão amortecedor das aspirações populares.
Estará
a classe política, nesse caso, ao serviço de quem senão daqueles que lhe pagam
a qualidade de ser classe política? Será esse compromisso de amplitude
planetária entre Estado e capital a bomba de efeito moral que é atirada para
cima da canalha cega e surda dos eleitores?
Ou então, o que vem a dar no mesmo,
serão as alterações legislativas e processuais impostas pelos Estados,
nomeadamente ao mundo do trabalho humano (mas não só), as verdadeiras bombas de
efeito moral (o susto do desemprego, o medo da fome) lançadas contra a classe
média – trabalhadora na sua maioria?
A vida não voltará a ser a mesma. Ou
pelo menos aquela com as regras que a minha geração conheceu.
Passaria pela cabeça de alguém em seu
juízo perfeito (nem pela dele, sabe-se lá) que um agente secreto ajuramentado
da CIA e da NSA, arrependido, chorando lágrimas de sangue, roubasse documentos
ultra-secretos do seu governo e viesse para o mundo revelá-los – certamente
vendê-los, aos jornais, ou a quem mais estiver interessado, eu, por exemplo)?
Passar para as bocas do mundo aquilo que de mais secretamente sagrado um Estado
soberano pode conservar nos seus cofres fortes: as sacanagens, ou eventuais
crimes, que anda a fazer aos outros Estados soberanos? Bomba de largo efeito
moral. Andamos todos a ser escutados, espiados, devassados como potenciais
terroristas…
Sim, e até terá cabimento a pergunta se
não é o terrorismo, não esse, o outro, o inventado para garantia e usufruto das
indústrias militares e dos serviços secretos, a grande bomba de efeito moral a
pairar sobre este mundo. Porque já se sabe que o terrorismo real equivale à
bomba real, de estilhaços, assassina, que se está nas tintas para o efeito
moral imediato e procura um efeito real, efectivo – que não deixa de ser,
também, a prazo, um potente efeito moral que pode permitir muitas imoralidades.
Ou será que passaram a ser os povos os
verdadeiros inimigos das instituições, das empresas multinacionais, da alta
finança internacional, das economias planetárias?
Sim, sim, serão os povos, eventualmente
condenados pelo mais alto capital ao desemprego, à doença, à fome, a verdadeira
bomba de efeito moral prestes a rebentar na arena da convivência social e
institucional. Serão?
Pode ser que sim. Mas rebentar como?
Vamos
lá a a ver, no Brasil as formidáveis manifestações de protesto chegam a
surpreender (e a assustar pelo efeito moral que fazem) a presidenta e o governo
federal, que pelos vistos não esperavam agitação social de tamanha magnitude.
Uma primeira reivindicação: os preços dos transportes públicos. A presidenta e
o governo metem o rabinho entre as pernas e baixam rapidamente os preços. E
depois? E depois… não chega. E depois a indignação prossegue. Os manifestantes
passam à violência, partem uma data de coisas. O povo não ficou satisfeito com
as tão prontas boas vontades da presidenta e do governo. É preciso mais. Mais
quê? E lá vem a saúde, a educação, a segurança, a habitação. E mais uma
quantidade de benefícios públicos negligenciados até agora pela presidenta e
pelo governo. E a corrupção à cabeça dos protestos. E os privilégios. Que são
de muitos, sim, mas sempre com a classe política à cabeça. E como? E quando?
Quando é que o povo que marcha pelas ruas e apanha com as bombas de efeito
moral se apercebe que esses privilégios e mordomias e corrupções estão a ser
travados, ou pelo menos a diminuir, e que se está mesmo a trabalhar para os
abolir, sim, quando? Como?
Não sei. E o povo que vai pelas ruas, no
Rio, em S. Paulo, em Brasília, em Belo Horizonte, também não sabe. Então quando
é que terminam as manifestações? Quando o povo souber que está a trabalhar para
resolver isso tudo? E como é que sabe? E enquanto não souber vai continuar em
pé de guerra, em manifestações e protestos, a levar com as bombas (por enquanto)
de efeito moral?
A corrupção? Para serve a corrupção,
além de beneficiar os corruptores e os corrompidos? Ao pessoal da rua não deve
servir para nada, desde logo porque não tem posses nem estatuto nem para ser
corruptor nem para ser corrompido. O que tem é esse poder de arruaça, de
xingar, de insultar notabilidades, de bater com panelas na rua, de desafiar a
autoridade, de atirar pedras e cocktails Molotov
à bófia, e receber como troco a sua pitada de gás lacrimogéneo, os seus
balázios de borracha (que devem doer) e as suas bombas de efeito moral. Bombas
de efeito moral que afinal respondem ao efeito moral que esse próprio povo que
se manifesta e protesta pode fazer sobre as consciências governantes.
Será a corrupção a nível governamental e
institucional, de uma forma ou de outra generalizada, mundializada, a
verdadeira bomba de efeito moral que fará despoletar outras bombas cujo efeito
poderá não ser tão moral e ser muito mais letal?
Não, amigos, esqueçam o passado, a
polícia nunca mais poderá disparar sobre os povos em protesto nas ruas balas
que não sejam de borracha, gazes que não sejam só para puxar à lágrima, nem
bombas cujo efeito não seja só moral.
Como já o fez noutros tempos...
E por isso, em verdade vos digo que a
vida dos povos nunca mais será a mesma. Só nos resta saber de que efeitos
morais ou fragmentados, ofensivas ou defensivas, serão as futuras bombas que
alguém (a polícia, as políticas, a banca) nos irá atirar para cima no futuro. E
o futuro é hoje. Essa é que é essa.
BOMBAS DE EFEITO MORAL 2
E eis senão quando, estava eu a acabar
de escrever estas tretas, aparecem-me na frente uns laivos de futuro e no écran de televisão começam a rebentar bombas de efeito moral.
À uma, a demissão do mago Gaspar - as putas das contas não estavam certas e confessa que falhou em tudo e que no governo não há coesão.
Às duas, são as portas das residências oficiais que começam a bater tanto que entalam o ternurento, ensimesmado, atarantado e patético chefe do governo com mais uma demissão, a do Paulinho, governador das mesmas portas - e sem dar cavaco, sai assim, à papo-seco, manguitos irrevogáveis para o ar, um capricho de estrela, que é lá isso, nasceu uma menina nas Finanças quando eu tinha encomendado um rapaz, e sabendo que só com ele pode haver governo.
E assim, sem ponta de música e com fardamentos velhos, começam as cerimónias de inauguração oficial da crise política que
subrepticiamente já há muito estava em vigor em tonalidade larvar.
As granadas de efeito moral não matam,
como disse, mas podem moer muito. Moer até doer. E estava lançada a grande bomba de efeitos morais que é a sombra de uma crise política. Os investidores internacionais começam a sentir afrontamentos. Os mercados experimentam os sintomas da sua crónica crise de fígado, há dispepsias e náuseas. Os credores desatam aos porras. A bolsa cai desamparada de um quinto andar...
Granada defensiva, de
estilhaços muito afiados, estava para ser a tão ansiada como tenebrosa reforma do Estado. Era para ontem. Mas como não foi ontem estava na hora de a fazer. E não foi ontem só porque não tinha havido
coragem de a fazer, tal o estrago que ela traria.
Porque
essa granada da (chamada) reforma do Estado não seria só de efeito moral. Essa era de estilhaços cortantes, afiadíssimos, rebentaria no meio de nós quase todos (o que para os seus ideólogos-granadeiros seria igual ao litro), mas o pior é que rebentaria também nas mãos dos próprios granadeiros, iria comprometer-lhes o
futuro eleitoral. Era melhor estar morto, fingir que não era nada.
Mas o imperioso e estranho caso dos 4
mil e oitocentos milhões que é preciso arranjar até ao mês que vem dê lá por onde der tornou
inadiável essa reforma do Estado. Era preciso lançar essa granada e abrigar-se depressa, de qualquer maneira, como mandavam as velhas NEP's militares, ouvir o zunido dos estilhaços sem ser atingido por eles.
Dos comprometidos na geringonça de
dispensar não sei quantos milhares de funcionários públicos e acabar com uma
quantidade louca de institutos e mordomias, o primeiro a saltar foi o lunático cientista
financeiro a quem atribuíram um nome de rei mago e que tinha jurado pelas felicidades
dele à troika que
era muito homem para arranjar os tais 4 mil milhões.
E
o segundo a pôr-se ao fresco, anteontem, foi o afamado argumentista da nossa Hollywood
política, encarregado de escrever o guião do desgraçado filme que seria a
reforma da entidade que, como se dizia do vinho no tempo do Salazar, não dá de
beber, mas dá de comer a não sei quantos milhões de portugueses: o Estado.
Com
a granada de estilhaços de efeitos letais já despoletada, com a patilha de
segurança a tremer-lhes na mãos e a dar de si, falecia-lhes o arrojo, eh pessoal!, eu por aqui me sirvo. E as
ratazanas acenaram alegremente e gritaram bye-bye ao
barco.
Mas ontem fizeram-se pazes. Afinal não foi nada. Vamos lá sentar-nos com umas bejecas e uns tremoços e conversar a sério. Sim, porque até aí tinha sido tudo a reinar.
E no meio disto tudo, lá para os lados de Belém, quando chega a meia-noite as correntes começam a arrastar pelo soalho do velho palácio. É a hora do fantasma inofensivo que segundo a voz do povo lá mora. Às vezes aparece na televisão, sem lençóis brancos pela cabeça, sem correntes - a não ser as dos compromissos necessários a uma carreira de sucesso como fantasma. Aparece na televisão de facies hirto, imutável como uma caraça de anarquista apanhado pelas câmaras a incendiar pneus, o iluminado cavaleiro-teórico do inexistente.
Hoje, dia 4 de Julho, nem o mais ladino dos comentadores se arrisca a vaticinar que bomba poderá rebentar, se ofensiva, de efeito moral, se defensiva, a desferir a esmo os seus estilhaços cortantes.
Um texto acutilante, uma crítica certeira e bem desenvolvida.
ResponderEliminarGostei muito desta "bomba de efeito moral".