A INCRÍVEL E TRISTE HISTÓRIA DE UM
VALENTE MURRO NAS
TROMBAS
Um amigo é um segundo eu.
CÍCERO
E mal sabia eu que Goethe (que
também se dedicava ao estudo das ciências naturais) chegou a apoderar-se do
crâneo de Schiller, sacou a cabeça do cadáver do amigo para a estudar – sabe-se
lá se para descobrir por que razão eram tão amigos…
Isto por falar em amizades
literárias.
E eram mesmo muito amigos, Goethe
e Schiller. E de uma amizade que não foi daquelas automáticas, espontâneas, afinidade
nascida (como em certos amores) à primeira vista, ao primeiro encontro de ambos
(1788 – Rudolfstadt). Foi afinidade desenvolvida numa colaboração literária,
quando Goethe convida Schiller a escrever na revista Die Horen e a partir daí se travam de carteio.
E todavia não eram concordes em
tudo. Ou mais ainda: Schiller criticava Goethe, interpretava-lhe a vida como
vergonhosa, devido à marital relação de casa e pucarinha que o poeta levava com
uma mulher com quem não casara. Em contrapartida, Goethe verberava a Schiller o
vício do jogo das cartas. E nada disto perturbou o que para aqueles espíritos
eleitos era o essencial. Essencial até à morte de Schiller, em 1805.
Se
tens um amigo em que não confias tanto como em ti mesmo, ou é porque estás
muito enganado, ou é porque não conheces a força de uma verdadeira amizade – disse Séneca. E mais recomendava
a este propósito, que o amigo estudasse bem o amigo. Antes de estabelecida uma
amizade tudo o que dizia respeito ao amigo deveria ser escrutinado e examinado;
e depois de estabelecida a amizade mais dúvida nenhuma deveria subsistir de
amigo para amigo. Bom seria meditar muito sobre a conveniência de receber a
amizade de alguém, e desde o momento em que a decisão favorável fosse tomada
essa amizade deveria ser recebida e cultivada de coração aberto, e os amigos
poderiam falar um com o outro como se o fizessem para si mesmos.
Para além do dito sobre Goethe e
Schiller, outras amizades chegadas são assinaláveis na História literária
mundial. Robert Louis Stevenson foi íntimo de Henry James; Shelley foi íntimo
de Byron; Tolkien foi muito amigo de C.S. Lewis. E de Kafka com Max Brod nem
valerá a pena falar – se não existisse Max Brod, e a amizade dele, Kafka nunca
teria existido para a literatura universal. Guy de Maupassant era amicíssimo de
Gustave Flaubert, e só por piada Flaubert mencionava Maupassant como discípulo.
E T.S.Eliot com EzraPound – de resto, Pound foi amigo de todos e abriu caminho
às carreiras literárias de muitos deles, com a de Hemingway a ser provavelmente
a mais espectacular. E James Joyce com Samuel Beckett (que também lhe
funcionava como secretário). E Cesare Pavese com Italo Calvino. E Lorca com
Rafael Alberti. E Borges com Bioy Casares.
E Gabriel Garcia Marquez (Gabo)
com Mário Vargas Llosa, que é a grande amizade que principalmente aqui me traz
sobre esta matéria.
E porque acontece na vida chamada
real, na vida corrente das pessoas comuns, o que pode acontecer na vida
literária, e que é aquela grande e longa amizade a certa altura poder, por isto
ou por aquilo (ou por pouca coisa), transmutar-se bruscamente em venenosa
inimizade.
Cervantes e Lope de Veja também
começaram por ser amigos. Começaram por ser amigos e acabaram como exemplos do
mais bilioso ódio pessoal.
Segundo a voz comum, foi Cervantes,
por volta de 1602, que se sentiu mal quando Lope de Veja surdiu como um furacão
na vida teatral da Espanha do século XVII, e com um êxito tão clamoroso que
praticamente negou a Cervantes a hipótese de poder estrear obra teatral sua.
Mas foram continuando amigos. Até às críticas acerbas e aos verrinosos ataques
que Cervantes começou a disparar sobre as obras do ex-amigo. Constou,
inclusive, que o burro montado por Sancho Pança era uma alusão ao rival.
Um amigo é como um segundo eu?
Pois então, se com muita naturalidade e instinto começamos por ser o melhor
amigo do nosso eu, certo é que, ao largo da vida, entramos não poucas vezes em
conflito com esse amigo chamado eu. E, oh, quantas vezes esse amigo que tanto
nos quer, e que por nos querer tanto não nos perdoa o mínimo deslize, nos
aconselha o passo a dar e nós damos justamente o passo contrário; quantas vezes
esse eu nosso amigo nos destina uma vida e nós acabamos por seguir a outra; ou,
em suma, quantos de nós não seguimos a maior parte da nossa vida desajustados
da nossa própria vontade e em conflito permanente (que muitas vezes acaba em
violência e auto-destruição) com esse amigo que é o nosso segundo eu, quando
ele tudo faz para ser o primeiro, oh, quantas vezes…
E não digo nada a respeito das
inimizades levadas à prática, da marretada que o romancista Manuel Bueno
aplicou um dia em Madrid ao dramaturgo Valle Inclán, porrada tão forte e tão
feia que Valle Inclán teve que ser amputado. De Norman Mailer ficou para a
pequena história literária o gancho de direita com que deixou Gore Vidal knock-out – compreende-se: Gore
comparou-o a Charles Manson. A vontade de Mailer, uma espécie de meio-médio das
letras americanas, era ir aos fagotes ao frágil Truman Capote, a quem andava
com uma certa sede por causa da disputa da paternidade do romance sem ficção.
Não lhe fez nada porque Truman, física e constitucionalmente estava mais para o
lado da menina indefesa do que do matulão de barba rija. Mas desafiou para a pera
um outro, William Styron, assunto de saias, parece-me. E nem digo nada do dia
em que o colecionador de borboletas Nabokov e o crítico Edmund Wilson tiveram
de ser separados por uns cavalheiros. E quem sabe mesmo se no verão parisiense
de 1952 Albert Camus não teve vontade de administrar uma ou duas lamparinas bem
assentes em Sartre? Ou o contrário. Ou as duas coisas. A polémica
político-literária entre eles foi tão apaixonante que estava mesmo a pedi-las.
A pedir, sim, isso, uma cena de batatada…
Mas agora estamos em Caracas e
corre o verão de 1967, porque para bem contar esta incrível e triste história
só ganho em recuar no tempo.
Vargas
Llosa nunca tinha ido a Caracas. Chega para receber o Prémio Rómulo Gallegos, o
mais prestigiado galardão literário latino-americano, pelo romance A Casa Verde. Garcia Marquez está a
poucos dias de publicar na Argentina Cem
Anos de Solidão. Conhecemo-nos na
noite em que ele chegou ao aeroporto de Caracas; eu vinha de Londres e ele do
México, e os nossos aviões aterraram ao mesmo tempo. Não se conheciam
pessoalmente. Só por carta. E mesmo por carta havia já um projecto literário
falado entre eles, qualquer coisa como um romance a quatro mãos.
Em Caracas há
recepções, cocktails, dão-se
entrevistas. Tenho por Mário uma devoção
desmedida - declara Gabo, e declara mais, que a Casa Verde, o premiado romance de Mário, é um dos melhores romances
que alguma vez se escreveram na América Latina. Mário considera as palavras do
colombiano um prova de generosidade e sentido de humor, para lá da sincera
amizade que os unia.
Nos primeiros anos da década de
60, tem que se dizer, o regime revolucionário cubano não era considerado propriamente
uma ditadura, nem lembrara ainda a ninguém o quanto as ditaduras de esquerda
poderiam aparentar com as de direita semelhanças desgraçadas.
Nesse verão de 1967, portanto,
Mário Vargas Llosa ainda vivia em encantamentos com a revolução cubana. Ainda
assim, uma experiência de poucos meses antes, em Londres, deixara-o de
sobreaviso e constituíra uma antecâmara de descontentamentos e das distâncias
que mais tarde viria a tomar para com o castrismo e a revolução.
Vamos lá a ver se
sou capaz de contar convenientemente a história – e sem magoar muito os
eventuais leitores situados politicamente mais à esquerda.
Haydée Santamaria
era uma heroína da revolução, companheira da Sierra Maestra, e em 1967 com
responsabilidades na política cultural de Cuba. Alejo Carpentier era o
consagradíssimo romancista de El Siglo de
Las Luzes, indefectível de Castro e nessa altura embaixador de Havana em Paris.
E Vargas Llosa vivia em Londres, publicara A
Casa Verde e fazia as malas para ir a Caracas receber o Prémio Rómulo
Gallegos.
Isso mesmo, malas
já prontas, e Mário recebe um telefonema de Paris, de Alejo Carpentier.
Carpentier tem uma mensagem para ele da parte de Havana. É uma carta enviada de
Havana a Carpentier para ser lida (não entregue) por Carpentier a Vargas Llosa.
E Carpentier vai a
Londres de propósito, Vargas Llosa vai buscá-lo ao aeroporto e vão almoçar a um
restaurante nas cercanias de Hyde Park. E Carpentier lê a carta, ou parte dela,
a Mário. E Mário pensa: um estratagema para que daquela carta e da proposta que
nela se continha não restassem quaisquer provas para a posteridade.
Havana elogiava
altamente a obra do peruano e notava que a outorga do Prémio Rómulo Gallegos
era uma oportunidade magnífica para ele demonstrar a dedicação que apregoava à
revolução através de um gesto, gesto esse que consistia em entregar o dinheiro
do prémio, 25.000 dólares, a Che Guevara, por então em parte incerta. O gesto
teria a máxima ressonância em toda a América Latina e seria uma preciosa
iniciativa de propaganda revolucionária.
Até aí, enfim, era
como o outro, 25.000 dólares, está bem, faziam jeito a qualquer, e mais ainda a
um escritor que vivia do que escrevia. Mas essa parte também estava prevista na
carta de Haydée Santamaria. A revolução compreendia as necessidades materiais
por que passavam os escritores. E como compreendia, a revolução comprometia-se
a devolver discretamente o dinheiro a Vargas Llosa de modo a que ninguém
soubesse da operação. O que sobretudo, e evidentemente, interessava à revolução
era menos o dinheiro e mais, muito mais, a acção propagandística.
Vargas Llosa deve
ter-se agitado na cadeira.
- Mas, Alejo, já
viste o que me estás a propor? Vocês querem que eu entre numa farsa. Vou a
Caracas e recebo o dinheiro do prémio: primeiro acto. Depois de Caracas,
segundo acto, vou a Havana no papel do herói que faz a doação do dinheiro que
ganhou à revolução. E no terceiro acto da farsa volto aqui para Londres e
alguém da embaixada de Cuba vem secretamente a minha casa devolver-me o
dinheiro. Como podem vocês fazer-me uma proposta destas?
Não sei o que o
outro respondeu. Sei que Vargas Llosa não foi daí abaixo com o negócio que lhe
propunham e não entrou com um chavo para as obras caritativas do Che.
Claro que Vargas
Llosa ainda compreenderia o negócio se feito de modo linear: Havana sugeria-lhe
que fizesse um donativo para as obras pias do Che; Vargas Llosa resolvia
fazê-lo ou não; se o fizesse fazia, estava feito; se não quisesse fazê-lo não
fazia e não se falava mais nisso. O que não podia levar à paciência e tomava
como ofensivo era a manigância perpetrada à sorrelfa.
E por estas tramas
começa a desilusão do escritor peruano com o
modus operandi da revolução castrista. E ele que julgava apoiar uma
revolução que era toda ela pensamentos de liberdade, de generosidade, de lisura
de processos, a revolução que se apresentara ao mundo como exemplo de solução
de justiça social e de igualdade para uma América Latina que tanto delas
precisava. E ele que tinha preparado para Caracas, como discurso de aceitação
do prémio, uma inflamada apologia revolucionária…
O discurso de
Vargas Llosa em Caracas é,de facto, e apesar de tudo, um repositório contra a
injustiça social, contra a desigualdade na América Latina, contra o
imperialismo. É. Tal como é um manifesto com olor sartreano acerca do
compromisso social e político do escritor. Literatura é compromisso com o real
objectivo, literatura é denúncia dos males do mundo, literatura é
aperfeiçoamento o Homem. Mas também, e antes de tudo isso, literatura é
fidelidade cega do escritor à sua vocação pessoal.
Talvez lhe tenha
custado - ou custou de certeza - depois da mensagem transmitida em Londres por
Alejo Carpentier, desfazer-se em elogios à revolução cubana – dentro de dez, vinte ou cinquenta anos terá
chegado a todos os nossos países latino-americanos, como recentemente chegou a
Cuba, a hora da mudança, a hora da justiça social, e então toda a América
Latina se terá emancipado de um imperialismo que a tem saqueado e reprimido.
Não iria ser nada assim, mas as palavras de Vargas Llosa foram gratas aos
ouvidos do seu novo amigo, ou daquele que se afirmaria daí em diante como o seu
melhor amigo.
E o discurso de Vargas
Llosa, Mário, é duplamente grato aos ouvidos de Garcia Marquez, Gabo, quando
ele ouve as alusões feitas a um livro que praticamente ainda ninguém conhecia, Cem Anos de Solidão, mas que vai ser a
maior bomba literária e editorial latino-americana de todos os tempos. Como ontem, como hoje, se o escritor ama a
sua vocação, teremos de continuar a lutar as trinta e duas guerras do coronel
Aureliano Buendia, nem que, como ele, sejamos derrotados em todas.
Foi na convivência estreitíssima
de Caracas e nas actividades literárias e sociais em redor do Prémio Rómulo
Gallegos que Gabo e Mário conversaram de mais largo sobre o projecto invulgar
entre grandes nomes literários de um romance a dois (a dois indivíduos e a mãos
quatro, como na execução de uma peça para piano). Tratava-se de um romance
sobre uma estranha e até então mal contada guerra em tempos havida entre
Colômbia e Perú, em que os exércitos de um lado partiam a atacar o outro e se
perdiam nas selvas.
Pouco tempo depois,
Mário é convidado para uma série de conferências em Bogotá versando o tema
recorrente, a novelística latino-americana, e é mais uma oportunidade para o
fortalecimento da amizade entre Garcia Marquez e Vargas Llosa. A Gabo não apetecia
especialmente deixar Barcelona para ir botar discurso a Bogotá se lá não fosse
acompanhado por Mário. Depois da saída
dos Cem Anos de Solidão fiquei
assoberbado por uma quantidade de trabalhinhos diários a ver se restabeleço as
finanças, mas mesmo assim estou disposto a abrir uma brecha nesses trabalhos
para estar uma semana em Bogotá, e isso só no caso de tu lá estares.
E estão ambos, de facto, em
Bogotá a 12 de Agosto desse mesmo ano de 1967, cada um a seu jeito a falar a
expectantes audiências universitárias sobre o fenómeno de que ambos já se
afirmaram como os dois maiores protagonistas, o retumbante sucesso
internacional da literatura latino-americana – ou o também chamado boom literário latino-americano, nada
menos do que o êxito literário fulgurante e repentino de uns quantos romances
de uns quantos autores geograficamente situados. A Casa Verde, Cem Anos de Solidão, Rayuela, A Morte de Artémio Cruz, Mário Vargas Llosa, Garcia
Marquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, aos quais se juntaram mais tarde José
Donoso, Jorge Edwards, Guillermo Cabrera Infante e mais uns quantos; e os quais
foram precedidos pelos da geração anterior, Miguel Angel Astúrias, Roa Bastos,
Alejo Carpentier, Ernesto Sábato, Juan Rulfo, e de algum modo também (discutível)
Jorge Luís Borges ou Pablo Neruda. Aos mais jovens ligava, é preciso dizê-lo, a
afinidade ideológica, ou seja, o apoio entusiástico à nóvel revolução que
rebentara no Caribe e auspiciava para as américas hispânicas beatos tempos de
independência do capitalismo e do imperialismo.
Mas Vargas Llosa, uns bons anos
passados sobre as euforias primeiras, era muito lúcido acerca daquele fenómeno
literário e ideológico da narrativa latino-americana a que chamaram boom. Ninguém sabe exactamente o que é – eu, em particular, não sei. Pode ser
um conjunto de escritores, sem se saber exactamente quais, pois cada um tem a
sua própria lista, que adquiriram de maneira mais ou menos simultânea no tempo
certa difusão, certo reconhecimento por parte do público e da crítica. Talvez se
possa chamar a isso um acidente histórico.
E numa entrevista já de 1969 Vargas
Llosa conclui: existe, sim, uma grande
amizade e isso é uma das coisas mais notáveis do que se chama de boom. É muito bonito que a maior parte de nós, os
membros do chamado boom, mantenhamos
uma relação pessoal de grande amizade, de verdadeira camaradagem. Foi de
facto proverbial a estreita amizade entre os escritores que, ainda que em
diferentes graus de importância no movimento, protagonizaram o boom da literatura sul-americana. Era
uma relação de família. Era como se fossem todos primos.
Tal como em Caracas, em Bogotá,
nem Mário nem Gabo tiveram mãos a medir para festas, recepções, jantares,
colóquios, encontros com A, B e C, comemorações, entrevistas.
E sessões de autógrafos. Numa das
livrarias onde essas sessões se realizaram havia centenas de exemplares do
romance de Vargas Llosa ultimamente premiado, A Casa Verde, ao passo que do mais recentemente publicado (e já com
a primeira edição esgotada) Cem Anos de
Solidão havia menos exemplares. Enquanto Mário nunca mais acabava de
autografar o seu livro, Gabo num instante esgotou os exemplares disponíveis do
seu, e o que se passou em seguida foi cada um acabar a autografar também os
livros do outro.
Patrícia, mulher de Mário,
telefona de Lima: o segundo filho do casal está prestes a nascer. Mário, que
estava a meio de um jantar, fica muito excitado e Gabo comenta que o seu amigo o
que tem é medo de que o filho lhe nasça com um rabo de porco, uma vez que ele e
Patrícia são primos co-irmãos.
Não
quero para a América Latina um socialismo decalcado do socialismo dos países de
Leste. Quero um socialismo que que me dê a faculdade de opinar. Não quero
perder o meu direito natural de escritor à crítica e ao juízo sobre a realidade
em todas as suas cambiantes –
declarou Mário numa das entrevistas de Bogotá, em Agosto de 1967. Adiantava
entretanto que não era um político, que não tinha partido, mas que enquanto
escritor não prescindia de ter ideias políticas. O intelectual era por
definição um analista da realidade, o que significava inconformismo militante,
posto que a razão de ser da literatura residia no protesto e na contradição.
O compromisso do escritor? O
primeiro compromisso do escritor era para com a sua vocação. Mário era
inflexível neste ponto. No momento da criação o escritor não deveria ser guiado
pelas convicções próprias mas principalmente pelas suas obsessões. E seria
óptimo se ambas coincidissem.
Tudo indirectas de Mário para
Cuba, já se percebe, depois do incidente da carta. O primeiro dever político do
escritor era escrever bem; e não havia que exigir ao escritor que mostrasse na
sua escrita que era um militante político, da mesma forma que a um sapateiro
não se lhe podia exigir que os sapatos que fabricava tivessem conteúdo
político.
A Gabo perguntam o trivial do que
se pergunta aos escritores, porque escreve, para que escreve. Escrevo para que os meus amigos gostem mais
de mim. Sim, era isso e mais por uma questão de subversão. Não conheço nenhuma literatura que sirva
para exaltar os valores estabelecidos. O escritor estará sempre em conflito
com a sociedade e usará a escrita como forma de resolver o conflito que tem com
o seu meio. E ademais põe uma tónica interessante no tema da profissionalização
do escritor latino-americano, questão nada despicienda, quanto a ele, no
sucesso que à nova literatura das américas era reconhecido. De acordo com o seu
amigo Mário, diria que o mais importante para o escritor era realmente seguir a
sua vocação e que os leitores tinham compreendido essa dedicação total à
escrita e à comunicação e tinham aderido, pelo que o boom literário das américas não era somente um boom de talentosos e dedicados escritores, era também, e de não
menor importância, um boom de
leitores.
A 15 de Agosto,
Mário regressa à sua cidade, Lima, e Gabo deixa-se estar em Bogotá por mais uns
tempos antes de voltar a Barcelona.
Garcia Marquez, um
nómada natural, estabelece-se em Barcelona em Junho de 1967, chegado do México
onde vivera e trabalhara em diversos biscates avulsos de jornalismo ou de
guionismo cinematográfico. Vargas Llosa chegará a Barcelona três anos depois. A
amizade entre ambos é já uma realidade consolidada, mas é em Barcelona que tal
amizade se estreitará e se tornará famosa no mundo literário latino-americano.
E para a amizade
ser completamente efectiva e militante, Mário vai morar em Barcelona para o
bairro de Sarriá, a um ou dois quarteirões da casa do seu amigo Gabo.
Estava-se bem em
Barcelona. Por aquelas alturas a ditadura franquista perdera muitas das suas
arrestas repressivas. Barcelona era uma cidade de muito dinamismo cultural,
onde se comia e bebia bem e onde se estava perto do mar. E em Barcelona Gabo e
Mário não passavam um sem o outro. É em Barcelona que aquela histórica e indestrutível
amizade (em que estavam naturalmente incluídas as respectivas mulheres e prole)
se fortalece ainda mais e se torna lendária no âmbito dos novos narradores das
américas hispânicas.
Podiam ir todos almoçar
ao La Puñalada, ir jantar à tortilleria Flash Flash, reunir-se na boite Boccaccio- onde também podiam
aparecer JulioCortázar, José Donoso, Carlos Fuentes, Jorge Edwards, Goytisolo,
o editor deles, o catalão Carlos Barral – ir dançar com as mulheres à noite, organizar
festas privadas até às tantas, ir ao café todos os dias discutir o que vinha no
Le Monde. E passearem mais ou menos incógnitos
e tranquilos pelas ramblas. Mais ou menos incógnitos e tranquilos a princípio,
note-se. Porque foi a partir de Barcelona, e pelos extraordinários ofícios de
uma agente literária catalã, Carmen Balcells, que um e outro, Mário e Gabo,
saltaram para a fama mundial.
E foi em Barcelona que Gabo se
começou a sentir mal com essa fama.
A
fama perturba o sentido da realidade quase tanto como o poder - viria a dizer Gabo pouco antes
de ser Prémio Nobel. Chegado ao ápice do êxito um homem recorda os seus tempos
de Zé Ninguém pobre, incompreendido, deprimido, rebelde. Mas também pode
lembrar-se de que nessa situação achou forças, inspiração e motivação para realizar
as obras que lhe viriam a proporcionar o êxito e a fama. Êxito e fama que mais
tarde lhe podem roubar aquilo que antes o anonimato e a pobreza lhe deram,
justamente a inspiração e a motivação para o trabalho.
Depois do êxito
estrondoso de Cem Anos de Solidão,
Gabo sentiu-se mesmo mal com a fama. Pela
minha parte, digo-te, estou farto até aos colhões de Gabriel Garcia Marquez,
farto de leitores romanescos, de admiradores idiotas, de jornalistas imbecis,
de amigos improvisados. Já me cansei de ser simpático e estou a aprender muito
bem e depressa a nobre arte de mandar as pessoas à merda.
Gabo podia ser a
personagem mais complexa da troupe literária
sul-americana. Mais complexa, mais difícil de trato. Era tímido e arrogante.
Era amável e mal educado. Era cordial e era distante. Não estava disponível
para fazer conferências ou dar cursos. Não frequentava os encontros literários
nem participava em colóquios. Raramente saía de Barcelona para compromissos
internacionais, em contraste com o amigo Mário, constantemente solicitado e
correspondendo muito amável e profissionalmente às solicitações.
Não há dia em que não tenha ao telefone dois
ou três editores e outros tantos jornalistas. Sempre que é a minha mulher a
atender o telefone tem que dizer que não estou. Se isto é a glória literária
vou ali e já venho. É verdade. Um homem deixa de saber quem são de verdade os
seus amigos. E vim eu para cá pensando que aqui ninguém me conhecia. De há dois
anos para cá tudo o que saiu como sendo declarações minhas é palha. Tudo o que
digo a um jornalista em duas horas ele reduz a meia página de insanidades. Um
escritor não existe para fazer declarações. O escritor serve para contar
coisas. Quem quiser saber as minhas opiniões que leia os Cem Anos de
Solidão. São 350 páginas de opiniões.
Quando Gabo foi convidado a ir a
uma universidade dos Estados Unidos pôs como condição que no jantar relacionado
com o evento não fossem convidadas mais do que quatro pessoas.
Foi em Barcelona que Garcia
Marquez começou a recusar prémios, distinções, condecorações. Até ao Nobel. E
continuando pela mesma depois do Nobel.
E era um hipocondríaco de marca.
O paralelismo de vida de um e
outro pode ter sido relevante na descoberta de afinidades e na construção de
uma grande amizade. Um e outro foram criados pelos avós maternos; um e outro
foram mimados na infância – que perderam aos dez anos, porque quer um quer
outro foi tarde que vieram a conhecer os verdadeiros pais, e porque os pais de
um e de outro não foi com bons olhos que tomaram conhecimento da vocação
artística dos filhos; um e outro andaram em colégios religiosos e prosseguiram
estudos em ambientes austeros e fradescos (Gabo) ou militares (Mário); um e
outro se entregaram à escrita como quem busca um refúgio, ou como quem tem absoluta
precisão de afirmar uma identidade em face de um mundo adverso, ou mesmo
hostil; um e outro começaram por escrever poesia e um e outro publicaram um
primeiro conto mais ou menos pela mesma idade; um e outro absorveram
influências literárias parecidas, Dumas, Tolstoi, Ruben Dario, Faulkner,
Borges, Neruda; um e outro começaram a ganhar a vida nos jornais de província;
um e outro procuraram Paris muito novos, e um e outro, por extravagante
coincidência, e ainda sem terem ouvido falar um do outro, vieram a morar, em
tempos diferentes, num pequeno hotel do Quartier Latin,
cujos donos, o casal Lacroix, lhes fiaram (a um e a outro, em tempos diferentes)
as rendas dos quartos em época de grande aperto; um e outro viram as primeiras
obras recusadas por editoras de Buenos Aires; um e outro acabaram por ser
representados pela mesma agente literária, Carmen Balcells – a verdadeira e
incontornável artífice de ambas as carreiras e de ambos os êxitos.
Meu
irmão. És um bárbaro! Acabo de ler a tua nota sobre os Cem Anos de Solidão publicada por El Espectador de Bogotá e estou sinceramente aturdido.
Creio que no mundo da amizade cabe um pouco de generosidade, mas não tanto, meu
velho!
A dedicação de
Vargas Llosa não só à pessoa de Garcia Marquez mas igualmente à obra é caso
pouco visto entre confrades e levá-lo-ia a ocupar dois anos da sua vida, entre
1969 e 1971, no estudo aturado da obra do amigo, produzindo um ensaio, ou tese
de doutoramento, que viria a marcar significativamente toda a exegese em volta
da obra do colombiano. História de um
Deicídio. Nem entre as mais notórias amizades literárias se tinha visto tal
coisa.
Meu Querido Mário, gosto de saber que
existes numa certa morada. Sou um mau correspondente, mas tranquiliza-me saber
onde estão os meus amigos em cada momento. Deve-se isto à vocação transumante
dos escritores latino-americanos, da qual eu também não estou a salvo, e que
produz em mim uma desagradável sensação de desamparo.
Cem Anos de Solidão tornara-se em meia
dúzia de meses o romance da literatura hispânica mais vendido no século XX. Um
romance que fascinou Mário ao ponto que já atrás disse. Aquele era o romance
que Mário teria dado um braço para escrever. Tudo o que escreveste sobre mim me comove, sobretudo num mundo como o
nosso, de oficiais do mesmo ofício onde só se não se puder é que não se dão
umas caneladas.
Desde as raízes do poder criativo e da vocação de Gabo até às
influências ideológicas que recebera de alguns professores marxistas que teve, a
aproximação a Marx, Engels, Lenine e ao estalinismo, passando pela paleta
técnica deslumbrante, a análise feita por Mário da obra do amigo acabará por
ser incontornável.
A literatura poderá melhorar a
vida humana? Não há provas disso. Poderá embelezá-la, vamos lá. O que já não é
pouco. Cem Anos de Solidão, segundo
Vargas Llosa contribuiu para embelezar a nossa vida, raiou a utopia, é um
romance total em que a magia, a lenda e o milagre se entrelaçam.
A amizade e a
proximidade entre Gabo e Mário foi de tal monta que não poucas vezes foram
confundidos em ocasiões públicas, confundidos os nomes e confundidas as obras,
e nem isso concorreu nem de perto nem de longe para os indispor um com o outro.
Interessante será notar que assim
como o eclodir da revolução cubana foi, nos anos 60, o terreno humano, ideológico
e psicológico ideal para o reavivamento literário na América Latina,
despertando solidariedades, convidando a militâncias, também seria a revolução
cubana a causa das desavenças que começaram por ser políticas e em muitos casos
derivaram para a ordem pessoal, desiludindo os espíritos mais libertários,
levando ao desfazer de algumas amizades. Porém não foi, ou não terá sido, o
caso da profunda amizade entre Garcia Marquez e Vargas Llosa, e nem quando Gabo
permaneceu fiel à revolução e respectivas vicissitudes e Mário se afastou dela
em definitivo. A despeito das diferenças de ponto de vista, a amizade deles
ficaria intocada.
O fulcral dilema
que a revolução castrista pôs aos escritores do boom tem início em 1968 e atinge o climax em 1971.
O caso Padilla.
Heberto Padilla é
um poeta cubano, e além de poeta é um fiel da revolução, um dos da primeira
geração revolucionária que desempenha cargos políticos nas instituições
culturais do regime.
Já nos anos ainda de juventude da
mesma revolução, 1967, 1968, as posições oficiais e os discursos relativos à
cultura e à intelectualidade cheiravam à légua a dirigismo. O que era como
facadas para os intelectuais até então apoiantes de Castro. Pela revolução tudo, contra a revolução nada,
era a consigna favorita de Fidel também em matéria de cultura. O que muitos
interpretam rapidamente como um princípio de submissão das letras à política. O
próprio Heberto Padilla, do alto do seu estatuto oficial, não fazia segredo: os escritores serão intimamente espiados e constantemente
vigiados.
Pois sim, o pior foi quando a palavra de ordem se voltou contra
ele.
Por uma tarde
parisiense de Novembro de 1968, Juan Goytisolo, amigo dos do boom que por lá vivia, sai para tomar o
seu aperitivo da tarde no Boulevard Bonne Nouvelle e folheia o Le Monde, e folheando o Le Monde lê: o órgão cubano das Forças Armadas denuncia as manobras
contra-revolucionárias do poeta Heberto Padilla. E fica banzado.
Padilla era acusado
de delapidar (alegremente) fundos da empresa cultural estatal Cubartimpex; era um dos intelectuais
cubanos que se deixara arrastar pelo sensacionalismo das modas culturais
estrangeiras criando obras em que se misturavam a pornografia e a
contra-revolução.
Espanto e confusão. E mais por se
tratar de um escritor que a revolução muito havia mimado, nomeando-o para
cargos de alta responsabilidade. O mal estaria num verso de Padilla em
colectânea de poemas intitulada Fora de
Jogo, que submetera a concurso num dos mais importantes prémios literários
de Cuba, o Prémio Julian del Casal: por vezes era necessário que um homem
morresse por um povo, o que nunca poderia suceder era que um povo inteiro
estivesse condenado a morrer por um único homem.
Alusão a Fidel que as autoridades
revolucionárias não poderiam jamais deixar passar impune.
Mas o livro sai vencedor do
prémio.
A União dos Escritores e Artistas
de Cuba sim senhor, aceita a decisão do júri, confirma a vitória de Padilla,
mas congela o dinheiro do prémio e nega-lhe o visto para uma viagem a Moscovo.
E faz mais: junta à edição do livro uma nota oficial - a nossa convicção literária permite-nos sublinhar que esta poesia serve
aos nossos inimigos e o seu autor é um dos artistas de que eles precisam para
alimentar o cavalo de Tróia no momento em que o imperialismo põe em prática a
sua política de agressão bélica frontal contra Cuba.
Padilla era acusado de
criticismo, a-historicismo, defesa do individualismo contra as necessidades
sociais, falta de consciência das obrigações morais implícitas na construção
revolucionária.
O livro é publicado, é verdade –
respeitando um dos requisitos inscritos no prémio – mas não é distribuído nem
vendido em nenhuma livraria. Apenas conhece uma circulação clandestina.
De imediato os escritores
integrantes da nova vaga novelística latino-americana, com a autoridade que
lhes confere a sua adesão de sempre à revolução, se mobilizam para um protesto
em forma, consternados pelas caluniosas acusações contra o poeta, manifestando,
não obstante, apoio às acções empreendidas pela revista Casa de las Américas na
defesa da liberdade intelectual. Assinaturas de todos os grandes nomes da nova
literatura latino-americana, à excepção de um, Garcia Marquez.
Resposta de Haydée Santamaria:
como é que lá de tão longe, Paris, Londres, Barcelona, poderiam eles avaliar as
acusações contra Heberto Padilla?
Para grande desgosto dos
intelectuais, oito anos passados sobre a entrada triunfal em Havana, a
revolução começava a redundar em estalinismo. Fanava-se a claríssima luz
que para muitos deles chegara com a revolução.
E a revolução também não os
poupava. Vargas Llosa era acusado de receber dólares dos americanos, a arma
máxima do capitalismo contra os povos explorados. E era verdade. Vargas Llosa
dera uns cursos de Literatura numa universidade dos Estados Unidos e,
naturalmente, fora pago em dólares. E Mário era até aí um dos intelectuais mais
considerados pela revolução, ele e Julio Cortázar. O contrário, por exemplo, de
Garcia Marquez e Carlos Fuentes, de quem a revolução desconfiava. E, a breve
trecho, dar-se-á também o caso de os amigos escritores apoiantes da revolução
cubana começarem a desconfiar uns dos outros, até porque, também, para ajudar à
festa e para cavar mais fundo as dissensões, acontece a invasão da
Checoslováquia, o fim da chamada primavera de Praga.
A partir de 1969, Vargas Llosa já
não quer mais conversas com Havana, com a revolução. O caso do dinheiro do
Prémio Rómulo Gallegos, as censuras por receber dinheiro dos americanos, o
apoio de Cuba à invasão da Checoslováquia, o caso Padilla, bom, era matéria
bastante para lhe fazer saltar a tampa. E tocavam-lhe no ponto mais sensível, a
liberdade de expressão, na maneira de ver dele ainda uns furos acima, enquanto
direito humano, da implantação do socialismo.
Quanto a Gabo, no seu retórico
ziguezaguear proverbial, se estivera calado no caso Padilla insurgira-se contra
a posição de Cuba no tocante à invasão da Checoslováquia. Esteve lá em Dezembro
de 1968 e inteirou-se in loco da
necessidade democrática numa Checoslováquia que estava a pontos de ser pioneira
na realização prática do grande sonho marxista. Que em nome do comunismo a
burocracia russa e o exército soviético tivessem assassinado o sonho marxista
era de considerar um crime. Ou mais, uma tragédia.
Entretanto, Heberto Padilla é
reabilitado. Passa um ano no desemprego. Escreve uma carta pessoal a Fidel
Castro. Recebe resposta na forma e um lugar da Universidade de Havana. Em 1969
Heberto Padilla está de novo em alta, publica poesia, faz parte dos júris dos
prémios literários.
E no dia 20 de Março de 1971,
Padilla e a mulher são presos por actividades subversivas.
Padilla passa trinta e oito dias
atrás das grades. Os protestos da intelectualidade internacional chovem sobre
Cuba. Os escritores do boom retiram
publicamente o seu apoio à revolução. Os
signatários, solidários com os princípios e finalidades da revolução cubana,
dirigem-se a si, comandante Fidel Castro, expressando as suas preocupações pela
detenção do conhecido poeta e escritor Heberto Padilla, pedindo-lhe que se digne
examinar a situação a que tal detenção dará lugar. Todos assinam esta carta
a Fidel.
Todos menos um, Garcia Marquez.
Chamado à pedra por amigos
signatários da carta, Gabo justificava-se com o extemporâneo da atitude.
Goytisolo identificava no amigo Gabo o Garcia Marquez novo que estava a nascer,
isto é, o grande estratega gestor do próprio talento e da própria carreira,
mimado pela fama, solicitado pelos grandes deste mundo, promotor de causas
“avançadas”.
Em Abril desse mesmo ano de 1971
aparece, difundida pela agência Prensa Latina, uma carta supostamente escrita
por Heberto Padilla confessando os seus erros.
(Muitos anos passados, em 1992,
Padilla admitiria que a sua carta de auto-crítica fora em parte escrita pela
polícia cubana, em parte por certas pessoas que ele gostaria de poder
identificar e não conseguira, e finalmente havia parágrafos que pelo grau de
precisão e detalhe procediam da pena do próprio Fidel Castro.)
Mário é que escreveu
directamente, e em nome pessoal, a Haydée Santamaria a cancelar o compromisso
que assumira para dar um curso na Universidade de Havana e renunciando ao seu
lugar no comité da revista Casa de las
Américas. Acabavam-se os revolucionários tratamentos por “tu”.
Compreenderá
que é a única coisa que posso fazer depois de conhecer o discurso de Fidel
arrasando os escritores latino-americanos que vivem na Europa, a quem chama de
canalhas, e aos quais proibiu a entrada em Cuba por “tempo indefinido e
infinito”, tanto o irritou a nossa carta pedindo-lhe esclarecimentos pela
situação de Heberto Padilla.
E Haydée Santamaria responde, a
14 de Maio de 1971. Traça um panegírico da revolução, nega torturas e pressões,
acusa Mário de se ter passado para o inimigo, e noticia que Padilla foi outra
vez reintegrado na vida normal e estava a trabalhar. E traz à baila o caso
antigo do Prémio Rómulo Gallegos. Quando,
em 1967, você quis saber a nossa opinião sobre a sua aceitação do Prémio Rómulo
Gallegos, outorgado pelo governo venezuelano de Leoni, o que significava
assassinatos, repressão, traição aos nossos povos, nós propusemos-lhe uma acção
audaciosa, difícil e sem precedentes na História cultural das américas: propusemos
que aceitasse esse prémio e entregasse o dinheiro ao Che Guevara e à luta dos
povos. Você não aceitou a nossa proposta. Você guardou o dinheiro para si. Você
recusou a honra extraordinária de poder contribuir, ainda que simbolicamente,
para ajudar o Che Guevara.
E os intelectuais tão amigos do boom literário latino-americano
dividiam-se agora em castristas e anti-castristas. A revolução os ligara, a
revolução os separava.
Mas o mais sensacional escândalo
político-cultural da latinamérica ocorreria no dia 27 de Abril desse ano de 71,
na sala nobre da União dos Escritores e Artistas de Cuba, quando o próprio
HebertoPadilla leu publicamente a sua auto-crítica, admitindo infâmias próprias
e infâmias de outros confrades. Durou duas horas a sessão. Padilla forneceu
nomes de artistas e intelectuais culpados (ou supostamente culpados) de
actividades contra-revolucionárias. Alguns consideraram o acto como um dos
piores momentos das suas vidas.
- Cometi muitos erros – disse
Padilla -, erros imperdoáveis, censuráveis, inqualificáveis. Mas agora sinto-me
leve, sinto-me feliz, depois da experiência que tive, por poder reiniciar a
minha vida com o espírito com que a quero reiniciar. Fui eu que pedi esta
reunião. Porque difamei e injuriei constantemente a revolução em conversas com
cubanos e com estrangeiros. Fui muito longe nos meus erros e nas minhas
actividades contra-revolucionárias. Fui injusto e mal agradecido para com Fidel
e disso jamais cansarei de me arrepender.
Dizem que alguns dos intelectuais
antes apoiantes da revolução, nomeadamente os que viviam em Barcelona, passaram
a ser seguidos de perto e provocados e insultados por agentes dos serviços
secretos cubanos. Não sei. Eles é que sabem.
O que sei é que o texto de uma
nova carta de protesto a Fidel foi longamente discutido. Comunicava-se ao
comandante toda a cólera e toda a vergonha pela humilhante confissão a que
Padilla fora obrigado, confissão seguramente obtida por métodos que negavam a
legalidade e a justiça revolucionárias. Eram auto-acusações absurdas e
delirantes. Era uma mascarada de auto-crítica que recordava os dias mais
sórdidos da época estalinista. Com veemência igual àquela com que até então
haviam defendido desde o primeiro dia a revolução cubana, que lhes parecera
exemplar no respeito pelo ser humano e na luta pela sua libertação, os
signatários incitavam Castro a evitar que Cuba caísse no obscurantismo
dogmático, na xenofobia cultural, e no sistema repressivo que o estalinismo
impusera aos países da área socialista. Só o desprezo pela dignidade humana
poderia forçar um homem a acusar-se ridiculamente das piores traições.
Assinaturas muitas, sessenta e
tal. Entre elas, Simone de Beauvoir, Italo Calvino, Marguerite Duras, Carlos
Fuentes, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Jean Paul Sartre, Jorge Semprún, Alberto
Moravia, Pier Paolo Pasolini, Susan Sontag…
Faltava uma. Garcia Marquez.
Mas reacções favoráveis à
revolução naquele lance complicado também as houve.
A
imprensa capitalista desenvolveu uma campanha caluniosa contra Cuba, na qual colaboraram
algumas dezenas de intelectuais colonizadores e alguns colonizados de
destrambelhada ideologia.
Não
queremos publicar textos hostis. Os imperialistas já se encarregaram de os
difundir copiosamente.
Bate
no fundo o pecado original dos intelectuais e o carácter suspeito das cartas
enviadas a Fidel.
Não
se pode ser um escritor verdadeiramente livre para julgar uma revolução de
longe, a partir das comodidades de Paris, Londres, ou Barcelona.
O chileno José Donoso dizia: creio que se nalguma coisa o boom
latino-americano gozou de uma unidade quase total foi na fé que teve na causa
revolucionária de Cuba, e também creio que a desilusão produzida pelo caso
Padilla desbaratou essa unidade.
Garcia Marquez acaba por
pronunciar-se. A favor de Fidel. A favor da revolução e, obviamente, no sentido
oposto a todos os mais notórios dos seus companheiros das letras. Numa
entrevista, Vargas Llosa é interpelado a pronunciar-se sobre as posições do
amigo do peito e responde: não conheço de
modo completo as declarações de Garcia Marquez e por isso não me vou pôr a
interpretá-lo de forma assim expedita. Mas conheço-o suficientemente bem para
estar seguro de que a adesão dele ao socialismo é como a minha, é a de um
escritor responsável para com a sua vocação e para com os seus leitores, uma
adesão que não é fanática nem incondicional.
Mas Mário, digamos, é admissível
(pelo menos a acreditar nos comentadores) que se começasse a sentir incomodado,
não tanto, possivelmente, com o eventual erro de percepção do amigo, e mais por
ser a primeira vez que entre ele e o seu melhor amigo ocorria um desencontro
político-ideológico de maior latitude. Gabo perfilava-se como o melhor advogado
de Fidel e da revolução pela qual Mário se sentia traído.
Gabo insistia no que a revolução
fizera de bom, de excepcional. No plano da saúde pública e da educação a obra
da revolução não tinha paralelo com qualquer outro país latino-americano.
Erros? Sim, claro, havia-os. Mas era gritante injustiça opor-se ao conjunto dos
sucessos revolucionários apenas por ter havido um ou outro erro.
Todavia, Gabo não podia pretender
absolver Fidel e a revolução sem correr riscos de romper com os seus grandes
amigos escritores.
Aliás, é preciso que se torne
amigo pessoal de Fidel para que Gabo inicie uma relação amistosa efectiva com a
revolução cubana. E isso só nos anos 70 – concretamente 1975. Até então tinham
sido indecisões, ambiguidades, saltitâncias, reservas (do lado dele e do lado
mesmo da revolução), inconstâncias. Ora pelos anos 70 já Mário se vinha embora definitivamente
de Cuba, de Castro e da revolução socialista.
Convirá dizer que
Gabo vivia fascinado pelos poderosos. Eu digo literariamente, psicologicamente.
E fascinado no sentido de lhes penetrar a mecânica da ambição, do arbítrio, do
irreprimível desejo de se perpetuarem num poder à custa fosse do que fosse. E
talvez por isso não descansou enquanto não se fez amigo de Castro.
E em 1974 Mário Vargas Llosa
resolve deixar Barcelona e regressar à cidade natal, Lima. Grandes mágoas e
grandes festas de despedida, etc., etc..
Garcia Marquez
deixa Barcelona por volta de 1982. Vai instalar-se outra vez no
México.
Porém, vivendo
então, ainda, em Barcelona, no dia 12 de Fevereiro de 1976 Garcia Marquez
estava no México. E Vargas Llosa também. Já não se viam há tempos. Desde que
Mário deixara Barcelona.
No dia 12 de
Fevereiro de 1976 está marcada para o Palácio de Bellas Artes da cidade do
México uma sessão de cinema para convidados. Vai ser apresentado o filme A Odisseia dos Andes, de um certo René
Cardona (de quem nunca ouvi falar) a contar a história do acontecido uns anos
antes: o avião que transportava a equipa uruguaia de rugby despenhou-se nos
Andes, doze morreram e os que sobreviveram caminharam setenta e dois dias na
neve e alimentaram-se dos cadáveres dos companheiros mortos.
Gabo está ansioso
por chegar ao Palácio de Bellas Artes e voltar a abraçar o seu grande amigo
Mário. Quando lá chega, nota que Mário já esta sentado na plateia, acompanhado
pela mulher, Patrícia.
Gabo levanta-se do seu lugar,
desce uns metros de coxia, abre os braços e o largo sorriso para Mário. Grita:
Mário! Mário, que por seu turno se levanta para acolher o abraço do amigo de
tantos anos, não acolhe abraço nenhum e ao amigo de tantos anos prega um murro
na cara, um valente murro nas trombas. E murro é ele que Gabo se estatela ao
comprido, inconsciente.
Gritam as mulheres. Confusão. Depois
do soco, Mário dá meia volta estende o braço a Patrícia, diz Patrícia, vamonos, e desembesta plateia
fora. Esta é uma versão. Outra: Mário aplica o gancho e diz isto é pelo que fizeste a Patrícia em
Barcelona. Outra versão ainda: Mário levanta-se vê Gabo de braços e sorriso
abertos para ele, diz como te atreves a
vir cumprimentar-me depois do que fizeste a Patrícia em Barcelona?, e
vibra-lhe o soco. E há ainda quem troque a palavra de Mário fizeste por disseste, o que daria como te
atreves a vir cumprimentar-me depois do que disseste a Patrícia em Barcelona?;
ou,isto é pelo que disseste a Patrícia em
Barcelona. E até houve quem jurasse a pés juntos que Mário não levou
Patrícia nenhuma embora dali porque Patrícia não estava lá.
O primeiro cuidado das mulheres
presentes foi ir a uma tenda ali perto comprar um hamburger e po-lo na cara
inchada e sangrante de Gabo – o olho esquerdo estava em estado lastimoso. E
ninguém sabe dizer se a sessão de cinema se realizou ou não depois de tão
insólito incidente.
Bolas, que diabo, eram
amicíssimos desde 1967! As vias ideológicas que um e outro seguiam
separaram-se, é bem certo, mas isso nunca lhes tinha entrevado a amizade
pessoal.
E depois foi o silêncio. Em mais
de quarenta anos, até hoje, segundo sei, nunca mais os dois amigos trocaram uma
palavra, um bilhete, uma referência explícita. Nem um nem outro deram
satisfações sobre o que se passou e porque se passou.
Mercedes, mulher de Gabo, leva-o
a casa de um conhecido que é fotógrafo. O fotógrafo fica para morrer com o
espectáculo de sangue e inchaço da cara do grande escritor. Mercedes quer que
ele tire umas fotografias ao marido para que se faça prova da agressão cobarde
do falso amigo. E enquanto o outro bate umas chapas, Gabo, à guisa de vaga
explicação, vai dizendo que aquilo é a consequência das diferenças políticas
entre eles, e dado o caso de o ex-socialista e ex-castrista Mário Vargas Llosa
estar a deslizar com inacreditável rapidez para os braços da direita radical;
enquanto ele, Gabo, mantém a sua fé nas causas da esquerda, da revolução e do
socialismo. Mercedes, irada, é mais loquaz:
- Gabito foi ter com ele de
braços abertos e gritou: Mário! Foi a única coisa que teve tempo de dizer como
saudação, coitadito. Mário recebeu-o com um golpe em cheio na cara que o atirou
ao chão e deu no que vocês estão a ver. Não fomos ao
hospital para evitar o escândalo nos jornais. Aplicámos pedaços de carne crua
na cara para absorver a hemorragia. Aquele Mário é um ciumento estúpido…
Um ciumento estúpido? Querem ver
que… querem ver que foi caso de saias? Querem ver que lá em Barcelona Gabo terá
apalpado Patrícia? Querem ver que lá em Barcelona Gabo fez uma ou outra
proposta menos asseada a Patrícia?
Nunca se saberá.
No geral, as opiniões dos amigos
incidem sobre as diferenças ideológicas. O que me parece pouco. E as
testemunhas presenciais foram unânimes: o nome de Patrícia foi pronunciado.
Gabo teria dito em Barcelona alguma coisa a Patrícia que esta só mais tarde
terá revelado ao marido. Dito ou feito. Nada a ver com política. Aparentemente.
Anos passados, instada a
pronunciar-se sobre uma possível reconciliação entre os que ainda são os dois
maiores autores latino-americanos da actualidade, Mercedes dirá que tal coisa
nunca seria possível.
- Vivemos tão felizes sem ele
nestes tantos anos que é evidente que não precisamos do Mário para nada.