sexta-feira, 27 de setembro de 2013

                        CARPE DIEM 5

                Não sei se algum dos candidatos a presidente da minha junta de freguesia já telefonou ao Woody Allen e pedir-lhe para fazer um filme passado aqui na zona da Penha de França, Alto de S. João, Alto do Pina.
         O meu país cada vez dá mais vontade de rir ao mundo. Até está capaz de dar vontade de rir ao próprio Woody Allen. Ou até a sugerir ao Woody Allen a linha principal do argumento de um filme. A linha saloia. A começar pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, que em Nova York não teve estatuto para falar pessoalmente com o próprio Woody Allen e contentou-se com a telefonista da “equipa de produção”. 

       
       Mas o candidato Menezes ao Porto, que não é nenhum provinciano, e não fosse o Woody Allen pensar que o Porto ficava atrás de Lisboa, também já entrou em contacto, porque seria interessantíssimo (transpirava glamour e fazia falta à cultura ocidental) fazer um filme sobre o FCP, os títulos em série, as namoradas do presidente, os lances épicos do Apito Dourado…


         O quê, o Oliveira e Costa desapareceu? A polícia não sabe dele? Onde é que ele está?


Ora bolas, onde é que ele há-de estar? Em Nova York, a contactar com o Woody Allen para um filme sobre…

         Pois é. Tenho que telefonar – e não passa de hoje – aos candidatos a presidente da minha junta de freguesia a avisar que só votarei naquele que tiver telefonado nem que seja à cunhada do Woody Allen. Penha de França, Alto de S. João, Alto do Pina. Até pelos nomes se percebe que estão mesmo a pedir um filme.  


quarta-feira, 25 de setembro de 2013


                         O SILÊNCIO E AS ELITES


Kant pensava no Homem e nas comunidades, claro, bastante ao arrepio das categorias da vida comunitária e política de hoje.
Um primeiro preceito kanteano era o de cada um pensar por si mesmo e assim obter o estatuto moral de ser livre, uma vez que liberto das conivências e dos preguiçosos abandonos mentais ao pensar mais comum das massas onde está inserido.
O pensar reflectindo a opinião geral falsifica a verdade da convivência, é mais uma achega a uma falsa universalidade de parecer, integra-se no movimento geral do pensamento, privilegia a superstição em lugar da verificação.
A tendência do pensamento humano talvez seja a de ser dirigido por outrem ou condicionado pelo geral.
A razão pode ser passiva, mas o homem esclarecido pode e deve ultrapassar-lhe a passividade.
Bom, mas no mesmo âmbito desse pensar kanteano por si próprio haveria que defender-se de um natural egoísmo de mentalidade  e ensaiar um pensar pluralista. É possível pensar por si próprio e todavia em comum com os semelhantes, com aqueles que nos transmitem os seus pensares próprios e aos quais possamos transmitir os nossos.
(Parecendo que não, é de democracia que estou a falar.) 
O pensar por si próprio. Logo: a opinião. No acaso mais ou menos previsto das minhas leituras caiu-me sob os olhos o lucidíssimo ensaio do pensador politico francês Alain Minc sobre a democracia. É, como digo, um pensamento lúcido e como tal nada agradável para os olhos sensíveis dos contentinhos e/ou mais democraticamente deslumbrados.
Começa ele por dizer que com o desaparecimento do optimismo histórico termina uma época que nos foi aberta pelo Século das Luzes. Ou seja, está a terminar um ciclo para a democracia política.


A democracia tem dois séculos – é uma criança ao pé da longuíssima experiência humana das tiranías – e passou esses dois séculos de metamorfose em metamorfose. Quando teve acirrados adversários esteve à altura e entre as suas fragilidades desencantou forças. Agora, que não tem inimigos, deu-lhe para a autofagia e vira essa força contra si mesma.
Rende-se o comunismo, desaparecem as ditaduras militares, é a universal vitória da democracia.


Mas o mal estar desencadeia-se. Uma deserção civil, como alguém disse. Fica-se tão assombrado perante o triunfo democrático que parece que nos recusamos a habitar a democracia.
A democracia e seus optimistas dizem que vivemos numa democracia de opinião porque governada quase apenas em função dos media e das sondagens eleitorais; a democracia e seus pessimistas dirão que dela, democracia, apenas restam alguns símbolos tradicionais.  
A democracia de opinião. É a democracia que presta culto ao imediato. E qual será o primeiro agente de imediatismo nas nossas vidas quotidianas? A televisão. Nem é preciso pensar muito.
    A televisão ou o totalitarismo do instantâneo. A televisão ou a entidade detentora da emoção quotidiana da nossa vida. Captar o sentir da opinião e satisfazê-la. E já está. E acontece a nova metamorfose da democracia.


Fala-se na importância da televisão (mais do que da queda do Muro de Berlim) no movimento da sensibilidade política das massas e no novo fôlego que o sistema democrático representativo quis tomar.




A opinião e as sondagens. A pesporrência e o descricionarismo de um chefe político só poderão ser temperados pelas sondagens. As sondagens que enfraqueceram em tempos Margareth Thatcher, John Major, Helmut Kohl, e as sondagens que evidenciaram os descontentamentos.
Na América, já se sabe, a peleja é entre o presidente e o congresso. E se a cota de popularidade do presidente sobe, os congressistas conformam-se, se ela desce, eis os congressistas desenfreados no ataque ao presidente.

A França elege todos os sete anos um monarca que põe uma equipa de técnicos a governar e só tem que se preocupar com a sua performance nas sondagens.
E os cidadãos parecem gostar do jogo de espelhos das sondagens e dos prestígios e capacidades políticas que são melhores ou piores ao sabor da sondagem do dia. É mesmo. A sondagem evita muitas chatices ao cidadão, dispensa-o da militância política, dispensa-o das manifs. Dispensa-o de pensar. A sondagem faz regredir ao primário a evolução política das sociedades. Os políticos profissionais tornam-se obedientes servos do número. Dão voltas à cabeça quanto à maneira de ganhar pontos percentuais na próxima sondagem. Os discursos procuram antes de mais, antes de tudo, o impacto possível nas sondagens.
Há até quem fale cinicamente das eleições legislativas como uma sondagem em tamanho natural. A democracia de opinião gera tão magníficos simulacros que pode bem dispensar a realidade. 
Todos continuamos a crer que a opinião pública seja igual à soma das opiniões individuais. Vale a dizer que a opinião individual transfere responsabilidades para a opinião pública. O que dá com que vivamos e nos movimentemos alegremente entre memórias e amnésias e às aranhas no torvelinho dos comportamentos sociais.
O homem político, ou o partido, que conjunturalmente vá em primeiro lugar nas sondagens julga-se desde aí detentor de uma legitimidade. Porém de uma legitimidade que não passa de ser imaginária.
Ou então, à força de repetidos, os resultados das sondagens legitimam-se a si mesmos. Como diz Alain Minc: à força de pretender existir essa opinião acaba por consegui-lo. E os homens políticos vergam-se a ela. E se se vergam a ela, obviamente, justificam-na. Se actuarem como se a opinião fosse realidade não correm riscos; mas se não actuarem, multiplicam os riscos.
Equação: opinião igual a sondagem mais jornalistas.


François Mauriac chamou de escroquerie intelectual à autoridade dos media. E, enfim, Mauriac declarava altissonante aos media: Para vós, a opinião pública não se distingue daqueles que ao mesmo tempo a exprimem e a encarnam -  os jornalistas.
Ou como ainda disse Tocqueville: quando um grande número de órgãos de imprensa caminha na mesma direcção, a sua influência, a prazo, torna-se irresistível e a opinião pública, flagelada sempre do mesmo lado, acaba por ceder  aos seus golpes.


Em sociedades complexas como a democrática, o jornalista é o único que é ao mesmo tempo espectador e actor. Nunca está sujeito à sua própria crítica. Penso, logo: sou a opinião pública.
Estaremos perante uma das últimas – ou, quem sabe, a última – das metamorfoses da democracia representativa?
Ou estamos na revolução que fará nascer a nova forma: a democracia de opinião.
Quem o poderá saber?
E como valorizar o voto do cidadão se ele representa um estado cada vez mais fluído e momentâneo de opinião e a ele se segue um interregno de anos até às eleições seguintes, e sendo que o sentido desse primeiro voto, a meio do interregno pode já não exprimir a real opinião dos eleitores?
Que a política já nada tem de convicção ideológica  era sabido. A política passou a ser uma competição do tipo desportivo, e o poder, bem vistas as coisas, pode não passar de uma faculdade de domínio da técnica de combate às tão mutáveis inclinações da opinião. 

                                
São extremamente custosas, como se compreende, as reformas numa democracia pautada por uma opinião que flui rapidamente. Era preciso que um país inteiro se consciencializasse quanto ao momento. Era preciso que cada poder político gozasse de uma credibilidade inconcebível para operar uma reforma violenta sem consultar parceiros sociais nem querer agradar aos seus clientes tradicionais.
Porque, na verdade, não é muito difícil burlar um cidadão. Nem com o conto do vigário. Nem com o truque do bilhete premiado. Uma vez, ali para os lados de Belém, houve até quem vendesse um carro eléctrico a um saloio. E estou a falar de coisas palpáveis, materiais. Agora imagine-se como é doce vender a imagem de um governo a funcionar maravilhosamente. Ou vender a ideia de um simples voto, que não custa dinheiro a quem vota mas que pode render milhões  a outros…

                                                      

Como será agradável publicitar o infinitamente imaterial!
Falando sério, o que quererá dizer a expressão opinião pública – e concretamente em democracia?
Será que a dita opinião pública exprime o sentir da maioria do povo? Não creio eu e julgo que ninguém bem intencionado crê numa balela democrática dessas. A opinião pública pode ser… pode ser… a opinião dos jornalistas. Pode até nem ser a opinião sincera desses jornalistas, porque pode bem ser a opinião que os donos dos jornais queiram que o povo tenha.
Os donos de uma opinião pública nacional são dois ou três proprietários de jornais ou de televisões – ou das duas coisas. E os proprietários de jornais não são propriamente gente comum, nem pobres, nem assalariados, e geralmente não são fascistas nem comunistas. Nem nada. São donos de jornais. Capitalistas que querem vender o seu papel e com o papel vender ao público as ideias que lhes façam vender mais e mais e cada vez mais do seu papel.Claro como água.


Donos de jornais, directores e editores de jornais que insinuam uma opinião e por isso também têm a sua parte na governação da democracia. São até governantes invisíveis. E invencíveis. Nunca perdem porque nunca jogam, e não jogando não correm riscos. E os muitos do eleitorado votam conforme lhes é indirectamente sugerido pelos poucos que lhes fazem a opinião.


A opinião pública é a opinião dos cronistas e comentadores ditos independentes a que os jornais e televisões dão tempo e espaço e que não se podem afastar muito da mediania suportável em democracia, ou dos interesses de quem lhes dá a palavra.

                                                                                           
    
   Avaliando bem, quase sempre os cronistas e comentaristas políticos, não tergiversando das baias do conveniente, acabam por representar, mais até do que a sua opinião pessoal, a opinião de alguns grupos de interesse, ou políticos, ou religiosos, ou partidários, ou económicos, ou cívicos, e que, sem declararem os interesses e opiniões a que dão voz, tentam inculcar – muitas das vezes impingir – uma verdade aos leitores e espectadores – na realidade, todos eles eleitores.    


                                                                                                                                                       
Há até quem diga que as notícias falsas ou deturpadas e os comentários ilusoriamente sinceros convencem mais do que a realidade – realidade que com o correr do tempo já ninguém sabe ao certo qual seja.

                                                                              

Já no primeiro quartel do século XIX o grande Tocqueville tinha falado nestas coisas da opinião, no império soberano da opinião pública. E a expressão dele, opinião pública, tornou-se um mito, um dogma. E Tocqueville não podia sonhar com os apuros a que a política poderia chegar na consideração do que fosse opinião pública e do modo de a manipular.


Mas Tocqueville disse mais. Frases dele a respeito da opinião pública, algumas: a imensa pressão do espírito do todo sobre a inteligência de cada um – uma;  o indivíduo está pronto a reconhecer que não tem razão quando o maior número o afirma – outra;  a maioria não tem necessidade de obrigar o indivíduo, a maioria convence-o – outra. E outra ainda: a opinião comum é o único guia que resta à razão individual nos povos democráticos, ela tem um grande peso no espírito de cada indivíduo.                                                                          
Volto a dizer: o conceito de opinião de Tocqueville dificilmente tem que ver com a opinião que a sociedade actual sabe fabricar.
Quem pode hoje, cidadão comum, ajuizar quanto à verdade, ou verdades, da vida pública, quando a verdade mediática a cada momento procura sobrepor-se à verdade dita pura? Às vezes coincidem. O que é bom para o sistema.  Mas se não coincidirem, que será feito do tal tão badalado Estado de direito?
Na democracia de opinião haverá como que uma novelização da vida. A emoção compensa. A razão está em decadência. O directo. O espectáculo. O zapping em busca de sensações. A guerra em directo. As imagens eventualmente chocantes. O efeito CNN. As audiências. As audiências!
A informação já nada tem de solene ou de sagrado. A informação não passa de um produto. A informação é mercadoria, porque há vasto e compensador mercado para a informação. A informação mais rápida é mercadoria mais rentável. Informação rápida e/ou infinitamente repetida. A rapidez da sobreposição da informação gera a amnésia do público – da opinião – superficializa a História, a moral, o bom senso.
A acção esbate-se. A reacção é soberana… ainda não há reacção do partido tal aos acontecimentos… o clube tal já reagiu ás declarações…
Quem governará as sociedades serão os media. Já não são precisos nem partidos nem governos totalitários.
O totalitarismo… cá está. Travestido. Bela frase de Régis Debray, esta: É o espectáculo do Estado que faz o Estado, tal como o monumento faz a memória.


A tríade decisiva para o funcionamento da democracia de opinião que se prefigura no horizonte passa pelo Juiz, pelos media e pela opinião propriamente dita que aos dois primeiros compete produzir. Este trio parecia anteriormente ser o contrapoder das sociedades democráticas. Mas se parecia, ou era mesmo, deixou de ser, porque também gritantemente deixou de parecer. O poder judicial passará a ser o verdadeiro poder. Os media passarão a ser o verdadeiro poder. O mais imediato e verdadeiro poder estará na opinião. São os media os grandes actores. Eles tanto constroem como reflectem a opinião. Todos os dias vemos isso à hora do telejornal.
Todos serão postos perante o juízo da opinião. Quer dizer: todos serão sujeitos à ditadura da transparência. E será que a maior transparência significa mais ou maior democracia? Atenção que a opinião é em si mesma instável, não o sendo menos certamente o grau de democracia que possa engendrar.  
E bem se afadigou o Estado a querer controlar tanto juízes como comunicadores e fazedores de opinião, quando o centralismo era palavra de ordem, quando o poder público se sentia com condições de garantir o interesse da comunidade - e mesmo com leis democráticas.
Na opinião de Alain Minc, os novos magistrados e os novos jornalistas assemelham-se. E como tanto se assemelham, entendem-se numa cumplicidade eventualmente natural. Aqui em Portugal fomos percebendo isso muitíssimo bem ao correr destes últimos anos. Os media e a justiça alimentam-se mutuamente. O juiz de instrução detém um poder inusitado ao usar a imprensa como caixa de ressonância. Um cidadão publicamente declarado como arguido por um juiz de instrução já é na prática um culpado. A presunção de inocência é, para o juízo da opinião pública, uma figura de estilo.


O julgamento de primeira instância de um indivíduo que chame as atenções da imprensa é quase um veridicto. Para a opinião pública, claro está. Um processo de opinião é já mais que meia condenação. Um juiz de instrução torna pública uma acusação e cria um facto irreversível. O juiz pode ir instrumentalizando a opinião através dos media durante todo o processo de instrução e assim desencadeia uma dinâmica impossível de conter. Todos temos percebido isso nos últimos tempos.
Um testemunho acusatório tornado público pode acabar com qualquer presunção de inocência e o exame desse testemunho já, para a opinião, faz parte do processo condenatório.


Um juiz é um gestor de suspeições colectivas na democracia de opinião.


Até que, descontentes com a sua subalternidade de caixas de ressonância, os media começam a querer comprometer os próprios poderes policiais e judiciais e a desenvolver a sua própria e autónoma investigação. E tudo isto se passa em nome da igualdade – é preciso sublinhar – para que não haja privilégio de classe ou de fortuna no tratamento dos negócios da justiça.


E a opinião que juízes e media produzem inibem o político na sua acção. A grande vítima da democracia da opinião será o homem político. A opinião vitimizará o político. Por isso talvez os políticos sejam cada vez mais medíocres e burocratas. Andam tolhidos de medo e contratam a peso de ouro o homem que passou a ser o mais importante membro de um gabinete ministerial: o assessor de imprensa.
Os homens carismáticos deixarão de ter peso e espaço na política. A democracia de opinião acabará por criar um novo homem político. Um homem angustiado pela sua imagem, pelo que podem dizer dele os jornais de amanhã. Um homem feito gato-sapato pela opinião. Na democracia da opinião.
Uma das traves mestras da opinião pública, engraçado, é o silêncio. É esse o genial parecer de uma socióloga alemã chamada Noelle Neumann.
A espiral do silêncio. Isto é: o silêncio é o segredo da opinião, porque só a apatia de muitos garante a influência de outros, as elites. Se se conseguir dar a sensação de que a opinião geral mudou, ela muda mesmo.
Já se deixa ver, mesmo à vista desarmada, que democracia de opinião e sociedade de mercado são comadres muito chegadas. Tão chegadas quanto indissociáveis. Tão chegadas que, como na história do ovo e da galinha, às vezes duvida-se sobre qual delas existiu primeiro. Quer dizer, assim, a olho nu, deve ter sido a sociedade de mercado. Há mercado – e que mercado! – para a opinião. A economia esmaga-nos. Tanto como a opinião.


A democracia representativa, aliás, não será muito mais do que um mercado político. E o mercado precisa de estudos de opinião quando quer saber  como e o quê e quando e onde pode comprar e vender.


Mas, pelo menos, em democracia de opinião o homem político já escusa de se impor por métodos brutais. Isso era antigamente. Na actualidade estamos no domínio do político sedutor. É a sedução a grande arma política numa democracia de opinião. E a democracia de opinião é tão sedutora, tão real, tão efectiva, tão livre, tão indiferente e tão tolerante que me permite, a mim, que não sou ninguém, vir para aqui botá-la. À opinião.
Mas enfim, tem-se dito e escrito, e praticado, tantas coisas, ou uma coisa e o seu contrário, sob o pavilhão da democracia, que eu não posso deixar de pensar que hoje por hoje, essa gloriosa, invencível, antiga, seríissima e venerável democracia deixou de ser o que quer que tenha sido, porque já poucos a levam a sério enquanto princípio, e reduziu o seu ser a uma singela palavra, embora de bela ressonância histórica e moral.
A democracia não será, hoje, muito mais do que uma palavra, uma das várias palavras para designar a existência num mesmo corpo político-legislativo de várias pequenas e parcelares - mas muito efectivas – ditaduras. Pequenas e parcelares ditaduras que, somadas, e paradoxalmente, não dão uma grande ditadura, só dão uma pequena democracia.

sábado, 14 de setembro de 2013

 A INCRÍVEL E TRISTE HISTÓRIA DE UM   
      VALENTE MURRO NAS TROMBAS

                                               Um amigo é um segundo eu.
                                                                       CÍCERO

E mal sabia eu que Goethe (que também se dedicava ao estudo das ciências naturais) chegou a apoderar-se do crâneo de Schiller, sacou a cabeça do cadáver do amigo para a estudar – sabe-se lá se para descobrir por que razão eram tão amigos…
Isto por falar em amizades literárias.
E eram mesmo muito amigos, Goethe e Schiller. E de uma amizade que não foi daquelas automáticas, espontâneas, afinidade nascida (como em certos amores) à primeira vista, ao primeiro encontro de ambos (1788 – Rudolfstadt). Foi afinidade desenvolvida numa colaboração literária, quando Goethe convida Schiller a escrever na revista Die Horen e a partir daí se travam de carteio.
E todavia não eram concordes em tudo. Ou mais ainda: Schiller criticava Goethe, interpretava-lhe a vida como vergonhosa, devido à marital relação de casa e pucarinha que o poeta levava com uma mulher com quem não casara. Em contrapartida, Goethe verberava a Schiller o vício do jogo das cartas. E nada disto perturbou o que para aqueles espíritos eleitos era o essencial. Essencial até à morte de Schiller, em 1805.
Se tens um amigo em que não confias tanto como em ti mesmo, ou é porque estás muito enganado, ou é porque não conheces a força de uma verdadeira amizade – disse Séneca. E mais recomendava a este propósito, que o amigo estudasse bem o amigo. Antes de estabelecida uma amizade tudo o que dizia respeito ao amigo deveria ser escrutinado e examinado; e depois de estabelecida a amizade mais dúvida nenhuma deveria subsistir de amigo para amigo. Bom seria meditar muito sobre a conveniência de receber a amizade de alguém, e desde o momento em que a decisão favorável fosse tomada essa amizade deveria ser recebida e cultivada de coração aberto, e os amigos poderiam falar um com o outro como se o fizessem para si mesmos.
Para além do dito sobre Goethe e Schiller, outras amizades chegadas são assinaláveis na História literária mundial. Robert Louis Stevenson foi íntimo de Henry James; Shelley foi íntimo de Byron; Tolkien foi muito amigo de C.S. Lewis. E de Kafka com Max Brod nem valerá a pena falar – se não existisse Max Brod, e a amizade dele, Kafka nunca teria existido para a literatura universal. Guy de Maupassant era amicíssimo de Gustave Flaubert, e só por piada Flaubert mencionava Maupassant como discípulo. E T.S.Eliot com EzraPound – de resto, Pound foi amigo de todos e abriu caminho às carreiras literárias de muitos deles, com a de Hemingway a ser provavelmente a mais espectacular. E James Joyce com Samuel Beckett (que também lhe funcionava como secretário). E Cesare Pavese com Italo Calvino. E Lorca com Rafael Alberti. E Borges com Bioy Casares.


E Gabriel Garcia Marquez (Gabo) com Mário Vargas Llosa, que é a grande amizade que principalmente aqui me traz sobre esta matéria.
E porque acontece na vida chamada real, na vida corrente das pessoas comuns, o que pode acontecer na vida literária, e que é aquela grande e longa amizade a certa altura poder, por isto ou por aquilo (ou por pouca coisa), transmutar-se bruscamente em venenosa inimizade.
Cervantes e Lope de Veja também começaram por ser amigos. Começaram por ser amigos e acabaram como exemplos do mais bilioso ódio pessoal.
Segundo a voz comum, foi Cervantes, por volta de 1602, que se sentiu mal quando Lope de Veja surdiu como um furacão na vida teatral da Espanha do século XVII, e com um êxito tão clamoroso que praticamente negou a Cervantes a hipótese de poder estrear obra teatral sua. Mas foram continuando amigos. Até às críticas acerbas e aos verrinosos ataques que Cervantes começou a disparar sobre as obras do ex-amigo. Constou, inclusive, que o burro montado por Sancho Pança era uma alusão ao rival.
Um amigo é como um segundo eu? Pois então, se com muita naturalidade e instinto começamos por ser o melhor amigo do nosso eu, certo é que, ao largo da vida, entramos não poucas vezes em conflito com esse amigo chamado eu. E, oh, quantas vezes esse amigo que tanto nos quer, e que por nos querer tanto não nos perdoa o mínimo deslize, nos aconselha o passo a dar e nós damos justamente o passo contrário; quantas vezes esse eu nosso amigo nos destina uma vida e nós acabamos por seguir a outra; ou, em suma, quantos de nós não seguimos a maior parte da nossa vida desajustados da nossa própria vontade e em conflito permanente (que muitas vezes acaba em violência e auto-destruição) com esse amigo que é o nosso segundo eu, quando ele tudo faz para ser o primeiro, oh, quantas vezes…
E não digo nada a respeito das inimizades levadas à prática, da marretada que o romancista Manuel Bueno aplicou um dia em Madrid ao dramaturgo Valle Inclán, porrada tão forte e tão feia que Valle Inclán teve que ser amputado. De Norman Mailer ficou para a pequena história literária o gancho de direita com que deixou Gore Vidal knock-out – compreende-se: Gore comparou-o a Charles Manson. A vontade de Mailer, uma espécie de meio-médio das letras americanas, era ir aos fagotes ao frágil Truman Capote, a quem andava com uma certa sede por causa da disputa da paternidade do romance sem ficção. Não lhe fez nada porque Truman, física e constitucionalmente estava mais para o lado da menina indefesa do que do matulão de barba rija. Mas desafiou para a pera um outro, William Styron, assunto de saias, parece-me. E nem digo nada do dia em que o colecionador de borboletas Nabokov e o crítico Edmund Wilson tiveram de ser separados por uns cavalheiros. E quem sabe mesmo se no verão parisiense de 1952 Albert Camus não teve vontade de administrar uma ou duas lamparinas bem assentes em Sartre? Ou o contrário. Ou as duas coisas. A polémica político-literária entre eles foi tão apaixonante que estava mesmo a pedi-las. A pedir, sim, isso, uma cena de batatada…

                                                                  
Mas agora estamos em Caracas e corre o verão de 1967, porque para bem contar esta incrível e triste história só ganho em recuar no tempo.
      Vargas Llosa nunca tinha ido a Caracas. Chega para receber o Prémio Rómulo Gallegos, o mais prestigiado galardão literário latino-americano, pelo romance A Casa Verde. Garcia Marquez está a poucos dias de publicar na Argentina Cem Anos de Solidão. Conhecemo-nos na noite em que ele chegou ao aeroporto de Caracas; eu vinha de Londres e ele do México, e os nossos aviões aterraram ao mesmo tempo. Não se conheciam pessoalmente. Só por carta. E mesmo por carta havia já um projecto literário falado entre eles, qualquer coisa como um romance a quatro mãos.
        Em Caracas há recepções, cocktails, dão-se entrevistas. Tenho por Mário uma devoção desmedida - declara Gabo, e declara mais, que a Casa Verde, o premiado romance de Mário, é um dos melhores romances que alguma vez se escreveram na América Latina. Mário considera as palavras do colombiano um prova de generosidade e sentido de humor, para lá da sincera amizade que os unia.
Nos primeiros anos da década de 60, tem que se dizer, o regime revolucionário cubano não era considerado propriamente uma ditadura, nem lembrara ainda a ninguém o quanto as ditaduras de esquerda poderiam aparentar com as de direita semelhanças desgraçadas.
Nesse verão de 1967, portanto, Mário Vargas Llosa ainda vivia em encantamentos com a revolução cubana. Ainda assim, uma experiência de poucos meses antes, em Londres, deixara-o de sobreaviso e constituíra uma antecâmara de descontentamentos e das distâncias que mais tarde viria a tomar para com o castrismo e a revolução.
        Vamos lá a ver se sou capaz de contar convenientemente a história – e sem magoar muito os eventuais leitores situados politicamente mais à esquerda.
    Haydée Santamaria era uma heroína da revolução, companheira da Sierra Maestra, e em 1967 com responsabilidades na política cultural de Cuba. Alejo Carpentier era o consagradíssimo romancista de El Siglo de Las Luzes, indefectível de Castro e nessa altura embaixador de Havana em Paris. E Vargas Llosa vivia em Londres, publicara A Casa Verde e fazia as malas para ir a Caracas receber o Prémio Rómulo Gallegos.
        Isso mesmo, malas já prontas, e Mário recebe um telefonema de Paris, de Alejo Carpentier. Carpentier tem uma mensagem para ele da parte de Havana. É uma carta enviada de Havana a Carpentier para ser lida (não entregue) por Carpentier a Vargas Llosa.


        E Carpentier vai a Londres de propósito, Vargas Llosa vai buscá-lo ao aeroporto e vão almoçar a um restaurante nas cercanias de Hyde Park. E Carpentier lê a carta, ou parte dela, a Mário. E Mário pensa: um estratagema para que daquela carta e da proposta que nela se continha não restassem quaisquer provas para a posteridade.
        Havana elogiava altamente a obra do peruano e notava que a outorga do Prémio Rómulo Gallegos era uma oportunidade magnífica para ele demonstrar a dedicação que apregoava à revolução através de um gesto, gesto esse que consistia em entregar o dinheiro do prémio, 25.000 dólares, a Che Guevara, por então em parte incerta. O gesto teria a máxima ressonância em toda a América Latina e seria uma preciosa iniciativa de propaganda revolucionária.
        Até aí, enfim, era como o outro, 25.000 dólares, está bem, faziam jeito a qualquer, e mais ainda a um escritor que vivia do que escrevia. Mas essa parte também estava prevista na carta de Haydée Santamaria. A revolução compreendia as necessidades materiais por que passavam os escritores. E como compreendia, a revolução comprometia-se a devolver discretamente o dinheiro a Vargas Llosa de modo a que ninguém soubesse da operação. O que sobretudo, e evidentemente, interessava à revolução era menos o dinheiro e mais, muito mais, a acção propagandística.
        Vargas Llosa deve ter-se agitado na cadeira.
        - Mas, Alejo, já viste o que me estás a propor? Vocês querem que eu entre numa farsa. Vou a Caracas e recebo o dinheiro do prémio: primeiro acto. Depois de Caracas, segundo acto, vou a Havana no papel do herói que faz a doação do dinheiro que ganhou à revolução. E no terceiro acto da farsa volto aqui para Londres e alguém da embaixada de Cuba vem secretamente a minha casa devolver-me o dinheiro. Como podem vocês fazer-me uma proposta destas?
        Não sei o que o outro respondeu. Sei que Vargas Llosa não foi daí abaixo com o negócio que lhe propunham e não entrou com um chavo para as obras caritativas do Che.

                                     
        
        Claro que Vargas Llosa ainda compreenderia o negócio se feito de modo linear: Havana sugeria-lhe que fizesse um donativo para as obras pias do Che; Vargas Llosa resolvia fazê-lo ou não; se o fizesse fazia, estava feito; se não quisesse fazê-lo não fazia e não se falava mais nisso. O que não podia levar à paciência e tomava como ofensivo era a manigância perpetrada à sorrelfa.
        E por estas tramas começa a desilusão do escritor peruano com o modus operandi da revolução castrista. E ele que julgava apoiar uma revolução que era toda ela pensamentos de liberdade, de generosidade, de lisura de processos, a revolução que se apresentara ao mundo como exemplo de solução de justiça social e de igualdade para uma América Latina que tanto delas precisava. E ele que tinha preparado para Caracas, como discurso de aceitação do prémio, uma inflamada apologia revolucionária…
        O discurso de Vargas Llosa em Caracas é,de facto, e apesar de tudo, um repositório contra a injustiça social, contra a desigualdade na América Latina, contra o imperialismo. É. Tal como é um manifesto com olor sartreano acerca do compromisso social e político do escritor. Literatura é compromisso com o real objectivo, literatura é denúncia dos males do mundo, literatura é aperfeiçoamento o Homem. Mas também, e antes de tudo isso, literatura é fidelidade cega do escritor à sua vocação pessoal.


        Talvez lhe tenha custado - ou custou de certeza - depois da mensagem transmitida em Londres por Alejo Carpentier, desfazer-se em elogios à revolução cubana – dentro de dez, vinte ou cinquenta anos terá chegado a todos os nossos países latino-americanos, como recentemente chegou a Cuba, a hora da mudança, a hora da justiça social, e então toda a América Latina se terá emancipado de um imperialismo que a tem saqueado e reprimido. Não iria ser nada assim, mas as palavras de Vargas Llosa foram gratas aos ouvidos do seu novo amigo, ou daquele que se afirmaria daí em diante como o seu melhor amigo.

        E o discurso de Vargas Llosa, Mário, é duplamente grato aos ouvidos de Garcia Marquez, Gabo, quando ele ouve as alusões feitas a um livro que praticamente ainda ninguém conhecia, Cem Anos de Solidão, mas que vai ser a maior bomba literária e editorial latino-americana de todos os tempos. Como ontem, como hoje, se o escritor ama a sua vocação, teremos de continuar a lutar as trinta e duas guerras do coronel Aureliano Buendia, nem que, como ele, sejamos derrotados em todas.
  Foi na convivência estreitíssima de Caracas e nas actividades literárias e sociais em redor do Prémio Rómulo Gallegos que Gabo e Mário conversaram de mais largo sobre o projecto invulgar entre grandes nomes literários de um romance a dois (a dois indivíduos e a mãos quatro, como na execução de uma peça para piano). Tratava-se de um romance sobre uma estranha e até então mal contada guerra em tempos havida entre Colômbia e Perú, em que os exércitos de um lado partiam a atacar o outro e se perdiam nas selvas.
      Pouco tempo depois, Mário é convidado para uma série de conferências em Bogotá versando o tema recorrente, a novelística latino-americana, e é mais uma oportunidade para o fortalecimento da amizade entre Garcia Marquez e Vargas Llosa. A Gabo não apetecia especialmente deixar Barcelona para ir botar discurso a Bogotá se lá não fosse acompanhado por Mário. Depois da saída dos Cem Anos de Solidão fiquei assoberbado por uma quantidade de trabalhinhos diários a ver se restabeleço as finanças, mas mesmo assim estou disposto a abrir uma brecha nesses trabalhos para estar uma semana em Bogotá, e isso só no caso de tu lá estares.


E estão ambos, de facto, em Bogotá a 12 de Agosto desse mesmo ano de 1967, cada um a seu jeito a falar a expectantes audiências universitárias sobre o fenómeno de que ambos já se afirmaram como os dois maiores protagonistas, o retumbante sucesso internacional da literatura latino-americana – ou o também chamado boom literário latino-americano, nada menos do que o êxito literário fulgurante e repentino de uns quantos romances de uns quantos autores geograficamente situados. A Casa Verde, Cem Anos de Solidão, Rayuela, A Morte de Artémio Cruz, Mário Vargas Llosa, Garcia Marquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, aos quais se juntaram mais tarde José Donoso, Jorge Edwards, Guillermo Cabrera Infante e mais uns quantos; e os quais foram precedidos pelos da geração anterior, Miguel Angel Astúrias, Roa Bastos, Alejo Carpentier, Ernesto Sábato, Juan Rulfo, e de algum modo também (discutível) Jorge Luís Borges ou Pablo Neruda. Aos mais jovens ligava, é preciso dizê-lo, a afinidade ideológica, ou seja, o apoio entusiástico à nóvel revolução que rebentara no Caribe e auspiciava para as américas hispânicas beatos tempos de independência do capitalismo e do imperialismo.

                          


   
                                         
Mas Vargas Llosa, uns bons anos passados sobre as euforias primeiras, era muito lúcido acerca daquele fenómeno literário e ideológico da narrativa latino-americana a que chamaram boom. Ninguém sabe exactamente o que é – eu, em particular, não sei. Pode ser um conjunto de escritores, sem se saber exactamente quais, pois cada um tem a sua própria lista, que adquiriram de maneira mais ou menos simultânea no tempo certa difusão, certo reconhecimento por parte do público e da crítica. Talvez se possa chamar a isso um acidente histórico.


E numa entrevista já de 1969 Vargas Llosa conclui: existe, sim, uma grande amizade e isso é uma das coisas mais notáveis do que se chama de boom. É muito bonito que a maior parte de nós, os membros do chamado boom, mantenhamos uma relação pessoal de grande amizade, de verdadeira camaradagem. Foi de facto proverbial a estreita amizade entre os escritores que, ainda que em diferentes graus de importância no movimento, protagonizaram o boom da literatura sul-americana. Era uma relação de família. Era como se fossem todos primos.
Tal como em Caracas, em Bogotá, nem Mário nem Gabo tiveram mãos a medir para festas, recepções, jantares, colóquios, encontros com A, B e C, comemorações, entrevistas.
E sessões de autógrafos. Numa das livrarias onde essas sessões se realizaram havia centenas de exemplares do romance de Vargas Llosa ultimamente premiado, A Casa Verde, ao passo que do mais recentemente publicado (e já com a primeira edição esgotada) Cem Anos de Solidão havia menos exemplares. Enquanto Mário nunca mais acabava de autografar o seu livro, Gabo num instante esgotou os exemplares disponíveis do seu, e o que se passou em seguida foi cada um acabar a autografar também os livros do outro.
Patrícia, mulher de Mário, telefona de Lima: o segundo filho do casal está prestes a nascer. Mário, que estava a meio de um jantar, fica muito excitado e Gabo comenta que o seu amigo o que tem é medo de que o filho lhe nasça com um rabo de porco, uma vez que ele e Patrícia são primos co-irmãos.
Não quero para a América Latina um socialismo decalcado do socialismo dos países de Leste. Quero um socialismo que que me dê a faculdade de opinar. Não quero perder o meu direito natural de escritor à crítica e ao juízo sobre a realidade em todas as suas cambiantes – declarou Mário numa das entrevistas de Bogotá, em Agosto de 1967. Adiantava entretanto que não era um político, que não tinha partido, mas que enquanto escritor não prescindia de ter ideias políticas. O intelectual era por definição um analista da realidade, o que significava inconformismo militante, posto que a razão de ser da literatura residia no protesto e na contradição.
O compromisso do escritor? O primeiro compromisso do escritor era para com a sua vocação. Mário era inflexível neste ponto. No momento da criação o escritor não deveria ser guiado pelas convicções próprias mas principalmente pelas suas obsessões. E seria óptimo se ambas coincidissem.
Tudo indirectas de Mário para Cuba, já se percebe, depois do incidente da carta. O primeiro dever político do escritor era escrever bem; e não havia que exigir ao escritor que mostrasse na sua escrita que era um militante político, da mesma forma que a um sapateiro não se lhe podia exigir que os sapatos que fabricava tivessem conteúdo político.
A Gabo perguntam o trivial do que se pergunta aos escritores, porque escreve, para que escreve. Escrevo para que os meus amigos gostem mais de mim. Sim, era isso e mais por uma questão de subversão. Não conheço nenhuma literatura que sirva para exaltar os valores estabelecidos. O escritor estará sempre em conflito com a sociedade e usará a escrita como forma de resolver o conflito que tem com o seu meio. E ademais põe uma tónica interessante no tema da profissionalização do escritor latino-americano, questão nada despicienda, quanto a ele, no sucesso que à nova literatura das américas era reconhecido. De acordo com o seu amigo Mário, diria que o mais importante para o escritor era realmente seguir a sua vocação e que os leitores tinham compreendido essa dedicação total à escrita e à comunicação e tinham aderido, pelo que o boom literário das américas não era somente um boom de talentosos e dedicados escritores, era também, e de não menor importância, um boom de leitores.
        A 15 de Agosto, Mário regressa à sua cidade, Lima, e Gabo deixa-se estar em Bogotá por mais uns tempos antes de voltar a Barcelona.
        Garcia Marquez, um nómada natural, estabelece-se em Barcelona em Junho de 1967, chegado do México onde vivera e trabalhara em diversos biscates avulsos de jornalismo ou de guionismo cinematográfico. Vargas Llosa chegará a Barcelona três anos depois. A amizade entre ambos é já uma realidade consolidada, mas é em Barcelona que tal amizade se estreitará e se tornará famosa no mundo literário latino-americano.


        E para a amizade ser completamente efectiva e militante, Mário vai morar em Barcelona para o bairro de Sarriá, a um ou dois quarteirões da casa do seu amigo Gabo.


     Estava-se bem em Barcelona. Por aquelas alturas a ditadura franquista perdera muitas das suas arrestas repressivas. Barcelona era uma cidade de muito dinamismo cultural, onde se comia e bebia bem e onde se estava perto do mar. E em Barcelona Gabo e Mário não passavam um sem o outro. É em Barcelona que aquela histórica e indestrutível amizade (em que estavam naturalmente incluídas as respectivas mulheres e prole) se fortalece ainda mais e se torna lendária no âmbito dos novos narradores das américas hispânicas.
        Podiam ir todos almoçar ao La Puñalada, ir jantar à tortilleria Flash Flash, reunir-se na boite Boccaccio- onde também podiam aparecer JulioCortázar, José Donoso, Carlos Fuentes, Jorge Edwards, Goytisolo, o editor deles, o catalão Carlos Barral – ir dançar com as mulheres à noite, organizar festas privadas até às tantas, ir ao café todos os dias discutir o que vinha no Le Monde. E passearem mais ou menos incógnitos e tranquilos pelas ramblas. Mais ou menos incógnitos e tranquilos a princípio, note-se. Porque foi a partir de Barcelona, e pelos extraordinários ofícios de uma agente literária catalã, Carmen Balcells, que um e outro, Mário e Gabo, saltaram para a fama mundial.
E foi em Barcelona que Gabo se começou a sentir mal com essa fama.
A fama perturba o sentido da realidade quase tanto como o poder - viria a dizer Gabo pouco antes de ser Prémio Nobel. Chegado ao ápice do êxito um homem recorda os seus tempos de Zé Ninguém pobre, incompreendido, deprimido, rebelde. Mas também pode lembrar-se de que nessa situação achou forças, inspiração e motivação para realizar as obras que lhe viriam a proporcionar o êxito e a fama. Êxito e fama que mais tarde lhe podem roubar aquilo que antes o anonimato e a pobreza lhe deram, justamente a inspiração e a motivação para o trabalho.
        Depois do êxito estrondoso de Cem Anos de Solidão, Gabo sentiu-se mesmo mal com a fama. Pela minha parte, digo-te, estou farto até aos colhões de Gabriel Garcia Marquez, farto de leitores romanescos, de admiradores idiotas, de jornalistas imbecis, de amigos improvisados. Já me cansei de ser simpático e estou a aprender muito bem e depressa a nobre arte de mandar as pessoas à merda.


        Gabo podia ser a personagem mais complexa da troupe literária sul-americana. Mais complexa, mais difícil de trato. Era tímido e arrogante. Era amável e mal educado. Era cordial e era distante. Não estava disponível para fazer conferências ou dar cursos. Não frequentava os encontros literários nem participava em colóquios. Raramente saía de Barcelona para compromissos internacionais, em contraste com o amigo Mário, constantemente solicitado e correspondendo muito amável e profissionalmente às solicitações.
        Não há dia em que não tenha ao telefone dois ou três editores e outros tantos jornalistas. Sempre que é a minha mulher a atender o telefone tem que dizer que não estou. Se isto é a glória literária vou ali e já venho. É verdade. Um homem deixa de saber quem são de verdade os seus amigos. E vim eu para cá pensando que aqui ninguém me conhecia. De há dois anos para cá tudo o que saiu como sendo declarações minhas é palha. Tudo o que digo a um jornalista em duas horas ele reduz a meia página de insanidades. Um escritor não existe para fazer declarações. O escritor serve para contar coisas. Quem quiser saber as minhas opiniões que leia os Cem Anos de Solidão. São 350 páginas de opiniões.


Quando Gabo foi convidado a ir a uma universidade dos Estados Unidos pôs como condição que no jantar relacionado com o evento não fossem convidadas mais do que quatro pessoas.
Foi em Barcelona que Garcia Marquez começou a recusar prémios, distinções, condecorações. Até ao Nobel. E continuando pela mesma depois do Nobel.
E era um hipocondríaco de marca.


O paralelismo de vida de um e outro pode ter sido relevante na descoberta de afinidades e na construção de uma grande amizade. Um e outro foram criados pelos avós maternos; um e outro foram mimados na infância – que perderam aos dez anos, porque quer um quer outro foi tarde que vieram a conhecer os verdadeiros pais, e porque os pais de um e de outro não foi com bons olhos que tomaram conhecimento da vocação artística dos filhos; um e outro andaram em colégios religiosos e prosseguiram estudos em ambientes austeros e fradescos (Gabo) ou militares (Mário); um e outro se entregaram à escrita como quem busca um refúgio, ou como quem tem absoluta precisão de afirmar uma identidade em face de um mundo adverso, ou mesmo hostil; um e outro começaram por escrever poesia e um e outro publicaram um primeiro conto mais ou menos pela mesma idade; um e outro absorveram influências literárias parecidas, Dumas, Tolstoi, Ruben Dario, Faulkner, Borges, Neruda; um e outro começaram a ganhar a vida nos jornais de província; um e outro procuraram Paris muito novos, e um e outro, por extravagante coincidência, e ainda sem terem ouvido falar um do outro, vieram a morar, em tempos diferentes, num pequeno hotel do Quartier Latin, cujos donos, o casal Lacroix, lhes fiaram (a um e a outro, em tempos diferentes) as rendas dos quartos em época de grande aperto; um e outro viram as primeiras obras recusadas por editoras de Buenos Aires; um e outro acabaram por ser representados pela mesma agente literária, Carmen Balcells – a verdadeira e incontornável artífice de ambas as carreiras e de ambos os êxitos.
Meu irmão. És um bárbaro! Acabo de ler a tua nota sobre os Cem Anos de Solidão publicada por El Espectador de Bogotá e estou sinceramente aturdido. Creio que no mundo da amizade cabe um pouco de generosidade, mas não tanto, meu velho!


        A dedicação de Vargas Llosa não só à pessoa de Garcia Marquez mas igualmente à obra é caso pouco visto entre confrades e levá-lo-ia a ocupar dois anos da sua vida, entre 1969 e 1971, no estudo aturado da obra do amigo, produzindo um ensaio, ou tese de doutoramento, que viria a marcar significativamente toda a exegese em volta da obra do colombiano. História de um Deicídio. Nem entre as mais notórias amizades literárias se tinha visto tal coisa.
        Meu Querido Mário, gosto de saber que existes numa certa morada. Sou um mau correspondente, mas tranquiliza-me saber onde estão os meus amigos em cada momento. Deve-se isto à vocação transumante dos escritores latino-americanos, da qual eu também não estou a salvo, e que produz em mim uma desagradável sensação de desamparo.
        Cem Anos de Solidão tornara-se em meia dúzia de meses o romance da literatura hispânica mais vendido no século XX. Um romance que fascinou Mário ao ponto que já atrás disse. Aquele era o romance que Mário teria dado um braço para escrever. Tudo o que escreveste sobre mim me comove, sobretudo num mundo como o nosso, de oficiais do mesmo ofício onde só se não se puder é que não se dão umas caneladas.
        Desde as raízes do poder criativo e da vocação de Gabo até às influências ideológicas que recebera de alguns professores marxistas que teve, a aproximação a Marx, Engels, Lenine e ao estalinismo, passando pela paleta técnica deslumbrante, a análise feita por Mário da obra do amigo acabará por ser incontornável.
A literatura poderá melhorar a vida humana? Não há provas disso. Poderá embelezá-la, vamos lá. O que já não é pouco. Cem Anos de Solidão, segundo Vargas Llosa contribuiu para embelezar a nossa vida, raiou a utopia, é um romance total em que a magia, a lenda e o milagre se entrelaçam.


        A amizade e a proximidade entre Gabo e Mário foi de tal monta que não poucas vezes foram confundidos em ocasiões públicas, confundidos os nomes e confundidas as obras, e nem isso concorreu nem de perto nem de longe para os indispor um com o outro.
Interessante será notar que assim como o eclodir da revolução cubana foi, nos anos 60, o terreno humano, ideológico e psicológico ideal para o reavivamento literário na América Latina, despertando solidariedades, convidando a militâncias, também seria a revolução cubana a causa das desavenças que começaram por ser políticas e em muitos casos derivaram para a ordem pessoal, desiludindo os espíritos mais libertários, levando ao desfazer de algumas amizades. Porém não foi, ou não terá sido, o caso da profunda amizade entre Garcia Marquez e Vargas Llosa, e nem quando Gabo permaneceu fiel à revolução e respectivas vicissitudes e Mário se afastou dela em definitivo. A despeito das diferenças de ponto de vista, a amizade deles ficaria intocada.
     O fulcral dilema que a revolução castrista pôs aos escritores do boom tem início em 1968 e atinge o climax em 1971.
O caso Padilla.
     Heberto Padilla é um poeta cubano, e além de poeta é um fiel da revolução, um dos da primeira geração revolucionária que desempenha cargos políticos nas instituições culturais do regime.
Já nos anos ainda de juventude da mesma revolução, 1967, 1968, as posições oficiais e os discursos relativos à cultura e à intelectualidade cheiravam à légua a dirigismo. O que era como facadas para os intelectuais até então apoiantes de Castro. Pela revolução tudo, contra a revolução nada, era a consigna favorita de Fidel também em matéria de cultura. O que muitos interpretam rapidamente como um princípio de submissão das letras à política. O próprio Heberto Padilla, do alto do seu estatuto oficial, não fazia segredo: os escritores serão intimamente espiados e constantemente vigiados.


        Pois sim, o pior foi quando a palavra de ordem se voltou contra ele.
        Por uma tarde parisiense de Novembro de 1968, Juan Goytisolo, amigo dos do boom que por lá vivia, sai para tomar o seu aperitivo da tarde no Boulevard Bonne Nouvelle e folheia o Le Monde, e folheando o Le Monde lê: o órgão cubano das Forças Armadas denuncia as manobras contra-revolucionárias do poeta Heberto Padilla. E fica banzado.
       Padilla era acusado de delapidar (alegremente) fundos da empresa cultural estatal Cubartimpex; era um dos intelectuais cubanos que se deixara arrastar pelo sensacionalismo das modas culturais estrangeiras criando obras em que se misturavam a pornografia e a contra-revolução.
Espanto e confusão. E mais por se tratar de um escritor que a revolução muito havia mimado, nomeando-o para cargos de alta responsabilidade. O mal estaria num verso de Padilla em colectânea de poemas intitulada Fora de Jogo, que submetera a concurso num dos mais importantes prémios literários de Cuba, o Prémio Julian del Casal: por vezes era necessário que um homem morresse por um povo, o que nunca poderia suceder era que um povo inteiro estivesse condenado a morrer por um único homem.
Alusão a Fidel que as autoridades revolucionárias não poderiam jamais deixar passar impune.
Mas o livro sai vencedor do prémio.
A União dos Escritores e Artistas de Cuba sim senhor, aceita a decisão do júri, confirma a vitória de Padilla, mas congela o dinheiro do prémio e nega-lhe o visto para uma viagem a Moscovo. E faz mais: junta à edição do livro uma nota oficial - a nossa convicção literária permite-nos sublinhar que esta poesia serve aos nossos inimigos e o seu autor é um dos artistas de que eles precisam para alimentar o cavalo de Tróia no momento em que o imperialismo põe em prática a sua política de agressão bélica frontal contra Cuba.
Padilla era acusado de criticismo, a-historicismo, defesa do individualismo contra as necessidades sociais, falta de consciência das obrigações morais implícitas na construção revolucionária.
O livro é publicado, é verdade – respeitando um dos requisitos inscritos no prémio – mas não é distribuído nem vendido em nenhuma livraria. Apenas conhece uma circulação clandestina.
De imediato os escritores integrantes da nova vaga novelística latino-americana, com a autoridade que lhes confere a sua adesão de sempre à revolução, se mobilizam para um protesto em forma, consternados pelas caluniosas acusações contra o poeta, manifestando, não obstante, apoio às acções empreendidas pela revista Casa de las Américas na defesa da liberdade intelectual. Assinaturas de todos os grandes nomes da nova literatura latino-americana, à excepção de um, Garcia Marquez.
Resposta de Haydée Santamaria: como é que lá de tão longe, Paris, Londres, Barcelona, poderiam eles avaliar as acusações contra Heberto Padilla?
Para grande desgosto dos intelectuais, oito anos passados sobre a entrada triunfal em Havana, a revolução começava a redundar em estalinismo. Fanava-se a claríssima luz que para muitos deles chegara com a revolução.
E a revolução também não os poupava. Vargas Llosa era acusado de receber dólares dos americanos, a arma máxima do capitalismo contra os povos explorados. E era verdade. Vargas Llosa dera uns cursos de Literatura numa universidade dos Estados Unidos e, naturalmente, fora pago em dólares. E Mário era até aí um dos intelectuais mais considerados pela revolução, ele e Julio Cortázar. O contrário, por exemplo, de Garcia Marquez e Carlos Fuentes, de quem a revolução desconfiava. E, a breve trecho, dar-se-á também o caso de os amigos escritores apoiantes da revolução cubana começarem a desconfiar uns dos outros, até porque, também, para ajudar à festa e para cavar mais fundo as dissensões, acontece a invasão da Checoslováquia, o fim da chamada primavera de Praga. 
A partir de 1969, Vargas Llosa já não quer mais conversas com Havana, com a revolução. O caso do dinheiro do Prémio Rómulo Gallegos, as censuras por receber dinheiro dos americanos, o apoio de Cuba à invasão da Checoslováquia, o caso Padilla, bom, era matéria bastante para lhe fazer saltar a tampa. E tocavam-lhe no ponto mais sensível, a liberdade de expressão, na maneira de ver dele ainda uns furos acima, enquanto direito humano, da implantação do socialismo.
Quanto a Gabo, no seu retórico ziguezaguear proverbial, se estivera calado no caso Padilla insurgira-se contra a posição de Cuba no tocante à invasão da Checoslováquia. Esteve lá em Dezembro de 1968 e inteirou-se in loco da necessidade democrática numa Checoslováquia que estava a pontos de ser pioneira na realização prática do grande sonho marxista. Que em nome do comunismo a burocracia russa e o exército soviético tivessem assassinado o sonho marxista era de considerar um crime. Ou mais, uma tragédia.
Entretanto, Heberto Padilla é reabilitado. Passa um ano no desemprego. Escreve uma carta pessoal a Fidel Castro. Recebe resposta na forma e um lugar da Universidade de Havana. Em 1969 Heberto Padilla está de novo em alta, publica poesia, faz parte dos júris dos prémios literários. 
E no dia 20 de Março de 1971, Padilla e a mulher são presos por actividades subversivas.
Padilla passa trinta e oito dias atrás das grades. Os protestos da intelectualidade internacional chovem sobre Cuba. Os escritores do boom retiram publicamente o seu apoio à revolução. Os signatários, solidários com os princípios e finalidades da revolução cubana, dirigem-se a si, comandante Fidel Castro, expressando as suas preocupações pela detenção do conhecido poeta e escritor Heberto Padilla, pedindo-lhe que se digne examinar a situação a que tal detenção dará lugar. Todos assinam esta carta a Fidel. 
Todos menos um, Garcia Marquez.


Chamado à pedra por amigos signatários da carta, Gabo justificava-se com o extemporâneo da atitude. Goytisolo identificava no amigo Gabo o Garcia Marquez novo que estava a nascer, isto é, o grande estratega gestor do próprio talento e da própria carreira, mimado pela fama, solicitado pelos grandes deste mundo, promotor de causas “avançadas”.
Em Abril desse mesmo ano de 1971 aparece, difundida pela agência Prensa Latina, uma carta supostamente escrita por Heberto Padilla confessando os seus erros.
(Muitos anos passados, em 1992, Padilla admitiria que a sua carta de auto-crítica fora em parte escrita pela polícia cubana, em parte por certas pessoas que ele gostaria de poder identificar e não conseguira, e finalmente havia parágrafos que pelo grau de precisão e detalhe procediam da pena do próprio Fidel Castro.)
Mário é que escreveu directamente, e em nome pessoal, a Haydée Santamaria a cancelar o compromisso que assumira para dar um curso na Universidade de Havana e renunciando ao seu lugar no comité da revista Casa de las Américas. Acabavam-se os revolucionários tratamentos por “tu”.
Compreenderá que é a única coisa que posso fazer depois de conhecer o discurso de Fidel arrasando os escritores latino-americanos que vivem na Europa, a quem chama de canalhas, e aos quais proibiu a entrada em Cuba por “tempo indefinido e infinito”, tanto o irritou a nossa carta pedindo-lhe esclarecimentos pela situação de Heberto Padilla.
E Haydée Santamaria responde, a 14 de Maio de 1971. Traça um panegírico da revolução, nega torturas e pressões, acusa Mário de se ter passado para o inimigo, e noticia que Padilla foi outra vez reintegrado na vida normal e estava a trabalhar. E traz à baila o caso antigo do Prémio Rómulo Gallegos. Quando, em 1967, você quis saber a nossa opinião sobre a sua aceitação do Prémio Rómulo Gallegos, outorgado pelo governo venezuelano de Leoni, o que significava assassinatos, repressão, traição aos nossos povos, nós propusemos-lhe uma acção audaciosa, difícil e sem precedentes na História cultural das américas: propusemos que aceitasse esse prémio e entregasse o dinheiro ao Che Guevara e à luta dos povos. Você não aceitou a nossa proposta. Você guardou o dinheiro para si. Você recusou a honra extraordinária de poder contribuir, ainda que simbolicamente, para ajudar o Che Guevara.


E os intelectuais tão amigos do boom literário latino-americano dividiam-se agora em castristas e anti-castristas. A revolução os ligara, a revolução os separava.
Mas o mais sensacional escândalo político-cultural da latinamérica ocorreria no dia 27 de Abril desse ano de 71, na sala nobre da União dos Escritores e Artistas de Cuba, quando o próprio HebertoPadilla leu publicamente a sua auto-crítica, admitindo infâmias próprias e infâmias de outros confrades. Durou duas horas a sessão. Padilla forneceu nomes de artistas e intelectuais culpados (ou supostamente culpados) de actividades contra-revolucionárias. Alguns consideraram o acto como um dos piores momentos das suas vidas.
- Cometi muitos erros – disse Padilla -, erros imperdoáveis, censuráveis, inqualificáveis. Mas agora sinto-me leve, sinto-me feliz, depois da experiência que tive, por poder reiniciar a minha vida com o espírito com que a quero reiniciar. Fui eu que pedi esta reunião. Porque difamei e injuriei constantemente a revolução em conversas com cubanos e com estrangeiros. Fui muito longe nos meus erros e nas minhas actividades contra-revolucionárias. Fui injusto e mal agradecido para com Fidel e disso jamais cansarei de me arrepender.
Dizem que alguns dos intelectuais antes apoiantes da revolução, nomeadamente os que viviam em Barcelona, passaram a ser seguidos de perto e provocados e insultados por agentes dos serviços secretos cubanos. Não sei. Eles é que sabem. 


O que sei é que o texto de uma nova carta de protesto a Fidel foi longamente discutido. Comunicava-se ao comandante toda a cólera e toda a vergonha pela humilhante confissão a que Padilla fora obrigado, confissão seguramente obtida por métodos que negavam a legalidade e a justiça revolucionárias. Eram auto-acusações absurdas e delirantes. Era uma mascarada de auto-crítica que recordava os dias mais sórdidos da época estalinista. Com veemência igual àquela com que até então haviam defendido desde o primeiro dia a revolução cubana, que lhes parecera exemplar no respeito pelo ser humano e na luta pela sua libertação, os signatários incitavam Castro a evitar que Cuba caísse no obscurantismo dogmático, na xenofobia cultural, e no sistema repressivo que o estalinismo impusera aos países da área socialista. Só o desprezo pela dignidade humana poderia forçar um homem a acusar-se ridiculamente das piores traições.
Assinaturas muitas, sessenta e tal. Entre elas, Simone de Beauvoir, Italo Calvino, Marguerite Duras, Carlos Fuentes, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Jean Paul Sartre, Jorge Semprún, Alberto Moravia, Pier Paolo Pasolini, Susan Sontag…
Faltava uma. Garcia Marquez. 


Mas reacções favoráveis à revolução naquele lance complicado também as houve.
A imprensa capitalista desenvolveu uma campanha caluniosa contra Cuba, na qual colaboraram algumas dezenas de intelectuais colonizadores e alguns colonizados de destrambelhada ideologia.
Não queremos publicar textos hostis. Os imperialistas já se encarregaram de os difundir copiosamente.
Bate no fundo o pecado original dos intelectuais e o carácter suspeito das cartas enviadas a Fidel.
Não se pode ser um escritor verdadeiramente livre para julgar uma revolução de longe, a partir das comodidades de Paris, Londres, ou Barcelona.
O chileno José Donoso dizia: creio que se nalguma coisa o boom latino-americano gozou de uma unidade quase total foi na fé que teve na causa revolucionária de Cuba, e também creio que a desilusão produzida pelo caso Padilla desbaratou essa unidade.
Garcia Marquez acaba por pronunciar-se. A favor de Fidel. A favor da revolução e, obviamente, no sentido oposto a todos os mais notórios dos seus companheiros das letras. Numa entrevista, Vargas Llosa é interpelado a pronunciar-se sobre as posições do amigo do peito e responde: não conheço de modo completo as declarações de Garcia Marquez e por isso não me vou pôr a interpretá-lo de forma assim expedita. Mas conheço-o suficientemente bem para estar seguro de que a adesão dele ao socialismo é como a minha, é a de um escritor responsável para com a sua vocação e para com os seus leitores, uma adesão que não é fanática nem incondicional.
Mas Mário, digamos, é admissível (pelo menos a acreditar nos comentadores) que se começasse a sentir incomodado, não tanto, possivelmente, com o eventual erro de percepção do amigo, e mais por ser a primeira vez que entre ele e o seu melhor amigo ocorria um desencontro político-ideológico de maior latitude. Gabo perfilava-se como o melhor advogado de Fidel e da revolução pela qual Mário se sentia traído.
Gabo insistia no que a revolução fizera de bom, de excepcional. No plano da saúde pública e da educação a obra da revolução não tinha paralelo com qualquer outro país latino-americano. Erros? Sim, claro, havia-os. Mas era gritante injustiça opor-se ao conjunto dos sucessos revolucionários apenas por ter havido um ou outro erro.
Todavia, Gabo não podia pretender absolver Fidel e a revolução sem correr riscos de romper com os seus grandes amigos escritores.


Aliás, é preciso que se torne amigo pessoal de Fidel para que Gabo inicie uma relação amistosa efectiva com a revolução cubana. E isso só nos anos 70 – concretamente 1975. Até então tinham sido indecisões, ambiguidades, saltitâncias, reservas (do lado dele e do lado mesmo da revolução), inconstâncias. Ora pelos anos 70 já Mário se vinha embora definitivamente de Cuba, de Castro e da revolução socialista.
        Convirá dizer que Gabo vivia fascinado pelos poderosos. Eu digo literariamente, psicologicamente. E fascinado no sentido de lhes penetrar a mecânica da ambição, do arbítrio, do irreprimível desejo de se perpetuarem num poder à custa fosse do que fosse. E talvez por isso não descansou enquanto não se fez amigo de Castro.


  E em 1974 Mário Vargas Llosa resolve deixar Barcelona e regressar à cidade natal, Lima. Grandes mágoas e grandes festas de despedida, etc., etc..
        Garcia Marquez deixa Barcelona por volta de 1982. Vai instalar-se outra vez no México.


       Porém, vivendo então, ainda, em Barcelona, no dia 12 de Fevereiro de 1976 Garcia Marquez estava no México. E Vargas Llosa também. Já não se viam há tempos. Desde que Mário deixara Barcelona.
        No dia 12 de Fevereiro de 1976 está marcada para o Palácio de Bellas Artes da cidade do México uma sessão de cinema para convidados. Vai ser apresentado o filme A Odisseia dos Andes, de um certo René Cardona (de quem nunca ouvi falar) a contar a história do acontecido uns anos antes: o avião que transportava a equipa uruguaia de rugby despenhou-se nos Andes, doze morreram e os que sobreviveram caminharam setenta e dois dias na neve e alimentaram-se dos cadáveres dos companheiros mortos.
        Gabo está ansioso por chegar ao Palácio de Bellas Artes e voltar a abraçar o seu grande amigo Mário. Quando lá chega, nota que Mário já esta sentado na plateia, acompanhado pela mulher, Patrícia.
Gabo levanta-se do seu lugar, desce uns metros de coxia, abre os braços e o largo sorriso para Mário. Grita: Mário! Mário, que por seu turno se levanta para acolher o abraço do amigo de tantos anos, não acolhe abraço nenhum e ao amigo de tantos anos prega um murro na cara, um valente murro nas trombas. E murro é ele que Gabo se estatela ao comprido, inconsciente.


Gritam as mulheres. Confusão. Depois do soco, Mário dá meia volta estende o braço a Patrícia, diz Patrícia, vamonos, e desembesta plateia fora. Esta é uma versão. Outra: Mário aplica o gancho e diz isto é pelo que fizeste a Patrícia em Barcelona. Outra versão ainda: Mário levanta-se vê Gabo de braços e sorriso abertos para ele, diz como te atreves a vir cumprimentar-me depois do que fizeste a Patrícia em Barcelona?, e vibra-lhe o soco. E há ainda quem troque a palavra de Mário fizeste por disseste, o que daria como te atreves a vir cumprimentar-me depois do que disseste a Patrícia em Barcelona?; ou,isto é pelo que disseste a Patrícia em Barcelona. E até houve quem jurasse a pés juntos que Mário não levou Patrícia nenhuma embora dali porque Patrícia não estava lá.


O primeiro cuidado das mulheres presentes foi ir a uma tenda ali perto comprar um hamburger e po-lo na cara inchada e sangrante de Gabo – o olho esquerdo estava em estado lastimoso. E ninguém sabe dizer se a sessão de cinema se realizou ou não depois de tão insólito incidente.
Bolas, que diabo, eram amicíssimos desde 1967! As vias ideológicas que um e outro seguiam separaram-se, é bem certo, mas isso nunca lhes tinha entrevado a amizade pessoal.
E depois foi o silêncio. Em mais de quarenta anos, até hoje, segundo sei, nunca mais os dois amigos trocaram uma palavra, um bilhete, uma referência explícita. Nem um nem outro deram satisfações sobre o que se passou e porque se passou.
Mercedes, mulher de Gabo, leva-o a casa de um conhecido que é fotógrafo. O fotógrafo fica para morrer com o espectáculo de sangue e inchaço da cara do grande escritor. Mercedes quer que ele tire umas fotografias ao marido para que se faça prova da agressão cobarde do falso amigo. E enquanto o outro bate umas chapas, Gabo, à guisa de vaga explicação, vai dizendo que aquilo é a consequência das diferenças políticas entre eles, e dado o caso de o ex-socialista e ex-castrista Mário Vargas Llosa estar a deslizar com inacreditável rapidez para os braços da direita radical; enquanto ele, Gabo, mantém a sua fé nas causas da esquerda, da revolução e do socialismo. Mercedes, irada, é mais loquaz:
- Gabito foi ter com ele de braços abertos e gritou: Mário! Foi a única coisa que teve tempo de dizer como saudação, coitadito. Mário recebeu-o com um golpe em cheio na cara que o atirou ao chão e deu no que vocês estão a ver. Não fomos ao hospital para evitar o escândalo nos jornais. Aplicámos pedaços de carne crua na cara para absorver a hemorragia. Aquele Mário é um ciumento estúpido…


Um ciumento estúpido? Querem ver que… querem ver que foi caso de saias? Querem ver que lá em Barcelona Gabo terá apalpado Patrícia? Querem ver que lá em Barcelona Gabo fez uma ou outra proposta menos asseada a Patrícia?
Nunca se saberá.
No geral, as opiniões dos amigos incidem sobre as diferenças ideológicas. O que me parece pouco. E as testemunhas presenciais foram unânimes: o nome de Patrícia foi pronunciado. Gabo teria dito em Barcelona alguma coisa a Patrícia que esta só mais tarde terá revelado ao marido. Dito ou feito. Nada a ver com política. Aparentemente.
Anos passados, instada a pronunciar-se sobre uma possível reconciliação entre os que ainda são os dois maiores autores latino-americanos da actualidade, Mercedes dirá que tal coisa nunca seria possível.
- Vivemos tão felizes sem ele nestes tantos anos que é evidente que não precisamos do Mário para nada.