O SILÊNCIO E AS ELITES
Kant pensava no Homem e nas
comunidades, claro, bastante ao arrepio das categorias da vida comunitária e
política de hoje.
Um primeiro preceito
kanteano era o de cada um pensar por si mesmo e assim obter o estatuto moral de
ser livre, uma vez que liberto das conivências e dos preguiçosos abandonos
mentais ao pensar mais comum das massas onde está inserido.
O pensar reflectindo a
opinião geral falsifica a verdade da convivência, é mais uma achega a uma falsa
universalidade de parecer, integra-se no movimento geral do pensamento,
privilegia a superstição em lugar da verificação.
A tendência do pensamento
humano talvez seja a de ser dirigido por outrem ou condicionado pelo geral.
A razão pode ser passiva,
mas o homem esclarecido pode e deve ultrapassar-lhe a passividade.
Bom, mas no mesmo âmbito
desse pensar kanteano por si próprio haveria que defender-se de um natural
egoísmo de mentalidade e ensaiar um
pensar pluralista. É possível pensar por si próprio e todavia em comum com os
semelhantes, com aqueles que nos transmitem os seus pensares próprios e aos
quais possamos transmitir os nossos.
(Parecendo que não, é de
democracia que estou a falar.)
O pensar por si próprio.
Logo: a opinião. No acaso mais ou menos previsto das minhas leituras caiu-me
sob os olhos o lucidíssimo ensaio do pensador politico francês Alain Minc sobre
a democracia. É, como digo, um pensamento lúcido e como tal nada agradável para
os olhos sensíveis dos contentinhos e/ou mais democraticamente deslumbrados.
Começa ele por dizer que com
o desaparecimento do optimismo histórico termina uma época que nos foi aberta
pelo Século das Luzes. Ou seja, está a terminar um ciclo para a democracia
política.
A democracia tem dois
séculos – é uma criança ao pé da longuíssima experiência humana das tiranías –
e passou esses dois séculos de metamorfose em metamorfose. Quando teve acirrados
adversários esteve à altura e entre as suas fragilidades desencantou forças.
Agora, que não tem inimigos, deu-lhe para a autofagia e vira essa força contra
si mesma.
Rende-se o comunismo,
desaparecem as ditaduras militares, é a universal vitória da democracia.
Mas o mal estar
desencadeia-se. Uma deserção civil, como alguém disse. Fica-se tão assombrado
perante o triunfo democrático que parece que nos recusamos a habitar a
democracia.
A democracia e seus
optimistas dizem que vivemos numa democracia de opinião porque governada quase
apenas em função dos media e das
sondagens eleitorais; a democracia e seus pessimistas dirão que dela, democracia,
apenas restam alguns símbolos tradicionais.
A democracia de opinião. É a
democracia que presta culto ao imediato. E qual será o primeiro agente de
imediatismo nas nossas vidas quotidianas? A televisão. Nem é preciso pensar
muito.
A televisão ou o totalitarismo do instantâneo. A televisão ou a
entidade detentora da emoção quotidiana da nossa vida. Captar o sentir da
opinião e satisfazê-la. E já está. E acontece a nova metamorfose da democracia.
Fala-se na importância da
televisão (mais do que da queda do Muro de Berlim) no movimento da
sensibilidade política das massas e no novo fôlego que o sistema democrático
representativo quis tomar.
A opinião e as sondagens. A
pesporrência e o descricionarismo de um chefe político só poderão ser
temperados pelas sondagens. As sondagens que enfraqueceram em tempos Margareth
Thatcher, John Major, Helmut Kohl, e as sondagens que evidenciaram os
descontentamentos.
Na América, já se sabe, a
peleja é entre o presidente e o congresso. E se a cota de popularidade do
presidente sobe, os congressistas conformam-se, se ela desce, eis os
congressistas desenfreados no ataque ao presidente.
A França elege todos os sete
anos um monarca que põe uma equipa de técnicos a governar e só tem que se
preocupar com a sua performance nas
sondagens.
E os cidadãos parecem gostar
do jogo de espelhos das sondagens e dos prestígios e capacidades políticas que
são melhores ou piores ao sabor da sondagem do dia. É mesmo. A sondagem evita
muitas chatices ao cidadão, dispensa-o da militância política, dispensa-o das
manifs. Dispensa-o de pensar. A sondagem faz regredir ao primário a evolução
política das sociedades. Os políticos profissionais tornam-se obedientes servos
do número. Dão voltas à cabeça quanto à maneira de ganhar pontos percentuais na
próxima sondagem. Os discursos procuram antes de mais, antes de tudo, o impacto
possível nas sondagens.
Há até quem fale cinicamente
das eleições legislativas como uma sondagem em tamanho natural. A democracia de
opinião gera tão magníficos simulacros que pode bem dispensar a realidade.
Todos continuamos a crer que
a opinião pública seja igual à soma das opiniões individuais. Vale a dizer que
a opinião individual transfere responsabilidades para a opinião pública. O que
dá com que vivamos e nos movimentemos alegremente entre memórias e amnésias e
às aranhas no torvelinho dos comportamentos sociais.
O homem político, ou o
partido, que conjunturalmente vá em primeiro lugar nas sondagens julga-se desde
aí detentor de uma legitimidade. Porém de uma legitimidade que não passa de ser
imaginária.
Ou então, à força de
repetidos, os resultados das sondagens legitimam-se a si mesmos. Como diz Alain
Minc: à força de pretender existir essa
opinião acaba por consegui-lo. E os homens políticos vergam-se a ela. E se
se vergam a ela, obviamente, justificam-na. Se actuarem como se a opinião fosse
realidade não correm riscos; mas se não actuarem, multiplicam os riscos.
Equação: opinião igual a
sondagem mais jornalistas.
François Mauriac chamou de escroquerie intelectual à autoridade dos
media. E, enfim, Mauriac declarava
altissonante aos media: Para vós, a opinião pública não se distingue
daqueles que ao mesmo tempo a exprimem e a encarnam - os jornalistas.
Ou como ainda disse
Tocqueville: quando um grande número de
órgãos de imprensa caminha na mesma direcção, a sua influência, a prazo, torna-se
irresistível e a opinião pública, flagelada sempre do mesmo lado, acaba por
ceder aos seus golpes.
Em sociedades complexas como
a democrática, o jornalista é o único que é ao mesmo tempo espectador e actor.
Nunca está sujeito à sua própria crítica. Penso, logo: sou a opinião pública.
Estaremos perante uma das
últimas – ou, quem sabe, a última – das metamorfoses da democracia
representativa?
Ou estamos na revolução que
fará nascer a nova forma: a democracia de opinião.
Quem o poderá saber?
E como valorizar o voto do
cidadão se ele representa um estado cada vez mais fluído e momentâneo de
opinião e a ele se segue um interregno de anos até às eleições seguintes, e
sendo que o sentido desse primeiro voto, a meio do interregno pode já não
exprimir a real opinião dos eleitores?
Que a política já nada tem
de convicção ideológica era sabido. A
política passou a ser uma competição do tipo desportivo, e o poder, bem vistas
as coisas, pode não passar de uma faculdade de domínio da técnica de combate às
tão mutáveis inclinações da opinião.
São extremamente custosas,
como se compreende, as reformas numa democracia pautada por uma opinião que
flui rapidamente. Era preciso que um país inteiro se consciencializasse quanto
ao momento. Era preciso que cada poder político gozasse de uma credibilidade
inconcebível para operar uma reforma violenta sem consultar parceiros sociais
nem querer agradar aos seus clientes tradicionais.
Porque, na verdade, não é
muito difícil burlar um cidadão. Nem com o conto do vigário. Nem com o truque
do bilhete premiado. Uma vez, ali para os lados de Belém, houve até quem
vendesse um carro eléctrico a um saloio. E estou a falar de coisas palpáveis,
materiais. Agora imagine-se como é doce vender a imagem de um governo a
funcionar maravilhosamente. Ou vender a ideia de um simples voto, que não custa
dinheiro a quem vota mas que pode render milhões a outros…
Como será agradável publicitar
o infinitamente imaterial!
Falando sério, o que quererá
dizer a expressão opinião pública – e concretamente em democracia?
Será que a dita opinião
pública exprime o sentir da maioria do povo? Não creio eu e julgo que ninguém
bem intencionado crê numa balela democrática dessas. A opinião pública pode
ser… pode ser… a opinião dos jornalistas. Pode até nem ser a opinião sincera
desses jornalistas, porque pode bem ser a opinião que os donos dos jornais
queiram que o povo tenha.
Os donos de uma opinião
pública nacional são dois ou três proprietários de jornais ou de televisões –
ou das duas coisas. E os proprietários de jornais não são propriamente gente
comum, nem pobres, nem assalariados, e geralmente não são fascistas nem
comunistas. Nem nada. São donos de jornais. Capitalistas que querem vender o
seu papel e com o papel vender ao público as ideias que lhes façam vender mais
e mais e cada vez mais do seu papel.Claro como água.
Donos de jornais, directores
e editores de jornais que insinuam uma opinião e por isso também têm a sua
parte na governação da democracia. São até governantes invisíveis. E
invencíveis. Nunca perdem porque nunca jogam, e não jogando não correm riscos.
E os muitos do eleitorado votam conforme lhes é indirectamente sugerido pelos
poucos que lhes fazem a opinião.
A opinião pública é a
opinião dos cronistas e comentadores ditos independentes a que os jornais e
televisões dão tempo e espaço e que não se podem afastar muito da mediania
suportável em democracia, ou dos interesses de quem lhes dá a palavra.
Avaliando bem, quase sempre os cronistas e comentaristas
políticos, não tergiversando das baias do conveniente, acabam por representar,
mais até do que a sua opinião pessoal, a opinião de alguns grupos de interesse,
ou políticos, ou religiosos, ou partidários, ou económicos, ou cívicos, e que,
sem declararem os interesses e opiniões a que dão voz, tentam inculcar – muitas
das vezes impingir – uma verdade aos leitores e espectadores – na realidade,
todos eles eleitores.
Há até quem diga que as
notícias falsas ou deturpadas e os comentários ilusoriamente sinceros convencem
mais do que a realidade – realidade que com o correr do tempo já ninguém sabe
ao certo qual seja.
Já no primeiro quartel do século
XIX o grande Tocqueville tinha falado nestas coisas da opinião, no império soberano da opinião pública.
E a expressão dele, opinião pública, tornou-se um mito, um dogma. E Tocqueville
não podia sonhar com os apuros a que a política poderia chegar na consideração
do que fosse opinião pública e do modo de a manipular.
Mas Tocqueville disse mais. Frases
dele a respeito da opinião pública, algumas: a imensa pressão do espírito do todo sobre a inteligência de cada um – uma;
o
indivíduo está pronto a reconhecer que não tem razão quando o maior número o
afirma – outra; a maioria não tem necessidade de obrigar o
indivíduo, a maioria convence-o – outra. E outra ainda: a opinião comum é o único guia que resta à
razão individual nos povos democráticos, ela tem um grande peso no espírito de
cada indivíduo.
Volto a dizer: o conceito de opinião de Tocqueville dificilmente tem que ver com a opinião que a sociedade actual sabe fabricar.
Volto a dizer: o conceito de opinião de Tocqueville dificilmente tem que ver com a opinião que a sociedade actual sabe fabricar.
Quem pode hoje, cidadão
comum, ajuizar quanto à verdade, ou verdades, da vida pública, quando a verdade
mediática a cada momento procura sobrepor-se à verdade dita pura? Às vezes
coincidem. O que é bom para o sistema.
Mas se não coincidirem, que será feito do tal tão badalado Estado de
direito?
Na democracia de opinião
haverá como que uma novelização da vida. A emoção compensa. A razão está em
decadência. O directo. O espectáculo. O zapping
em busca de sensações. A guerra em directo. As imagens eventualmente chocantes.
O efeito CNN. As audiências. As audiências!
A informação já nada tem de
solene ou de sagrado. A informação não passa de um produto. A informação é
mercadoria, porque há vasto e compensador mercado para a informação. A
informação mais rápida é mercadoria mais rentável. Informação rápida e/ou
infinitamente repetida. A rapidez da sobreposição da informação gera a amnésia
do público – da opinião – superficializa a História, a moral, o bom senso.
A acção esbate-se. A reacção
é soberana… ainda não há reacção do
partido tal aos acontecimentos… o clube tal já reagiu ás declarações…
Quem governará as sociedades
serão os media. Já não são precisos
nem partidos nem governos totalitários.
O totalitarismo… cá está.
Travestido. Bela frase de Régis Debray, esta: É o espectáculo do Estado que faz o Estado, tal como o monumento faz a
memória.
A tríade decisiva para o
funcionamento da democracia de opinião que se prefigura no horizonte passa pelo
Juiz, pelos media e pela opinião
propriamente dita que aos dois primeiros compete produzir. Este trio parecia
anteriormente ser o contrapoder das sociedades democráticas. Mas se parecia, ou
era mesmo, deixou de ser, porque também gritantemente deixou de parecer. O
poder judicial passará a ser o verdadeiro poder. Os media passarão a ser o verdadeiro poder. O mais imediato e
verdadeiro poder estará na opinião. São os media
os grandes actores. Eles tanto constroem como reflectem a opinião. Todos os
dias vemos isso à hora do telejornal.
Todos serão postos perante o
juízo da opinião. Quer dizer: todos serão sujeitos à ditadura da transparência.
E será que a maior transparência significa mais ou maior democracia? Atenção
que a opinião é em si mesma instável, não o sendo menos certamente o grau de
democracia que possa engendrar.
E bem se afadigou o Estado a
querer controlar tanto juízes como comunicadores e fazedores de opinião, quando
o centralismo era palavra de ordem, quando o poder público se sentia com
condições de garantir o interesse da comunidade - e mesmo com leis democráticas.
Na opinião de Alain Minc, os
novos magistrados e os novos jornalistas assemelham-se. E como tanto se
assemelham, entendem-se numa cumplicidade eventualmente natural. Aqui em
Portugal fomos percebendo isso muitíssimo bem ao correr destes últimos anos. Os
media e a justiça alimentam-se
mutuamente. O juiz de instrução detém um poder inusitado ao usar a imprensa
como caixa de ressonância. Um cidadão publicamente declarado como arguido por
um juiz de instrução já é na prática um culpado. A presunção de inocência é,
para o juízo da opinião pública, uma figura de estilo.
O julgamento de primeira
instância de um indivíduo que chame as atenções da imprensa é quase um
veridicto. Para a opinião pública, claro está. Um processo de opinião é já mais
que meia condenação. Um juiz de instrução torna pública uma acusação e cria um
facto irreversível. O juiz pode ir instrumentalizando a opinião através dos media durante todo o processo de
instrução e assim desencadeia uma dinâmica impossível de conter. Todos temos
percebido isso nos últimos tempos.
Um testemunho acusatório
tornado público pode acabar com qualquer presunção de inocência e o exame desse
testemunho já, para a opinião, faz parte do processo condenatório.
Um juiz é um gestor de
suspeições colectivas na democracia de opinião.
Até que, descontentes com a
sua subalternidade de caixas de ressonância, os media começam a querer comprometer os próprios poderes policiais e
judiciais e a desenvolver a sua própria e autónoma investigação. E tudo isto se
passa em nome da igualdade – é preciso sublinhar – para que não haja privilégio
de classe ou de fortuna no tratamento dos negócios da justiça.
E a opinião que juízes e media produzem inibem o político na sua
acção. A grande vítima da democracia da opinião será o homem político. A
opinião vitimizará o político. Por isso talvez os políticos sejam cada vez mais
medíocres e burocratas. Andam tolhidos de medo e contratam a peso de ouro o
homem que passou a ser o mais importante membro de um gabinete ministerial: o
assessor de imprensa.
Os homens carismáticos
deixarão de ter peso e espaço na política. A democracia de opinião acabará por
criar um novo homem político. Um homem angustiado pela sua imagem, pelo que
podem dizer dele os jornais de amanhã. Um homem feito gato-sapato pela opinião.
Na democracia da opinião.
Uma das traves mestras da
opinião pública, engraçado, é o silêncio. É esse o genial parecer de uma
socióloga alemã chamada Noelle Neumann.
A espiral do silêncio. Isto
é: o silêncio é o segredo da opinião, porque só a apatia de muitos garante a
influência de outros, as elites. Se se conseguir dar a sensação de que a
opinião geral mudou, ela muda mesmo.
Já se deixa ver, mesmo à
vista desarmada, que democracia de opinião e sociedade de mercado são comadres muito
chegadas. Tão chegadas quanto indissociáveis. Tão chegadas que, como na
história do ovo e da galinha, às vezes duvida-se sobre qual delas existiu
primeiro. Quer dizer, assim, a olho nu, deve ter sido a sociedade de mercado.
Há mercado – e que mercado! – para a opinião. A economia esmaga-nos. Tanto como
a opinião.
A democracia representativa,
aliás, não será muito mais do que um mercado político. E o mercado precisa de
estudos de opinião quando quer saber
como e o quê e quando e onde pode comprar e vender.
Mas, pelo menos, em
democracia de opinião o homem político já escusa de se impor por métodos
brutais. Isso era antigamente. Na actualidade estamos no domínio do político
sedutor. É a sedução a grande arma política numa democracia de opinião. E a democracia
de opinião é tão sedutora, tão real, tão efectiva, tão livre, tão indiferente e
tão tolerante que me permite, a mim, que não sou ninguém, vir para aqui botá-la.
À opinião.
Mas enfim, tem-se dito e
escrito, e praticado, tantas coisas, ou uma coisa e o seu contrário, sob o
pavilhão da democracia, que eu não posso deixar de pensar que hoje por hoje,
essa gloriosa, invencível, antiga, seríissima e venerável democracia deixou de
ser o que quer que tenha sido, porque já poucos a levam a sério enquanto
princípio, e reduziu o seu ser a uma singela palavra, embora de bela
ressonância histórica e moral.
A democracia não será, hoje,
muito mais do que uma palavra, uma das várias palavras para designar a
existência num mesmo corpo político-legislativo de várias pequenas e parcelares
- mas muito efectivas – ditaduras. Pequenas e parcelares ditaduras que,
somadas, e paradoxalmente, não dão uma grande ditadura, só dão uma pequena
democracia.
Enredados na rede. Abç
ResponderEliminarO seu último parágrafo resume tudo, nada mais há a dizer...
ResponderEliminarExcelente!
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