O QUE CONTA É A POESIA
27 de Junho de 1958. Paris. Hotel Ritz.
Fim de tarde.
Acabou de cair um aguaceiro e a Place Vendôme está
molhada.
André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi,
redactores da revista Cahiers du Cinema,
entram para uma suite e esperam pela personalidade que se propõem entrevistar
durante a próxima hora e meia.
Aparece Orson Welles. Em peúgas. Roupão de cores.
Camisa aberta até ao umbigo. Olímpico como Júpiter – conforme anotaram os
entrevistadores. Copo de whisky e charuto de 20 centímetros nas
mãos. Tem 43 anos. Está em Paris a filmar como actor As Raízes do Céu – extraído de um romance de Romain Gary.
Os entrevistadores notam as diferenças físicas
entre o Orson Welles maduro que têm na frente e o Orson Welles dos começos, do
tempo de Citizen Kane.
O sedutor
hollywodesco e embonecado é agora uma esplendorosa encarnação do poder. Os
entrevistadores acreditam que a maturidade produza em certo tipo de artistas
algo semelhante a uma metamorfose. Haveria uma biologia específica do génio.
Welles cresceu, avolumou-se. Os génios crescem até ao fim, mesmo fisicamente.
Orson Welles era uma figura renascentista, estava
ali Orson, o Magnífico. E a começar por dizer que um crítico sabe sempre mais
sobre a obra do artista do que o próprio artista. Sabe mais ao mesmo tempo que
sabe menos, porque seria essa a função do crítico saber sempre mais e menos do
que o artista que critica.
Orson Welles sempre foi, e ainda será, para quem
tenha alguma memória de um mundo dos tempos do cinema, uma personalidade
mitificada. Génio para alguns, fraude artística, charlatão grotesco e
mistificador para outros.
A lenda que sempre seguiu na esteira de Orson
Welles conta dele a precocidade. Aos dois anos teria falado como um adulto. Aos
três anos teria lido correntemente. Aos sete anos, no sótão da casa, teria
declamado, sozinho, o Rei Lear. E aos
doze anos ainda não era criança para fazer capazmente uma subtracção.
- O que pus de pessoal no filme Touch of Evil -em
português A Sede do Mal - foi o meu ódio ao abuso que a polícia faz do poder
que tem.
Welles fazia neste filme, A Sede do Mal, o papel de Quinlan, um inspector de polícia sinistro
e corrupto e fisicamente corpulento – como o próprio Welles.
- Sabem… É mais interessante falar dos abusos de
poder policial com um homem de certo volume, em físico e em personalidade, do
que com um pequeno chui vulgar. Quinlan é melhor do que um chui vulgar, mas não
deixa de ser odioso. Não, não há ambiguidade. É sempre possível sentir simpatia
por um crápula. Simpatia é coisa humana. Posso sentir ternura por pessoas de
quem não dissimulo de modo nenhum a minha repugnância.
- Mas… mr. Welles… agora fez-nos lembrar Macbeth…
Macbeth foi
um dos grandes papeis de Orson Welles, no cinema como no teatro. Macbeth é um dos seus grandes filmes
shakespeareanos.
- Pois bem, com Macbeth passa-se o mesmo - diz ele.
- Representei vários papeis de tipos sujos. Harry Lime no Terceiro Homem, um
pequeno patife do mercado negro. Mas agora não falaria dos pequenos. Sou actor
para grandes personagens. Sabem que no teatro francês clássico havia os actores
que representavam os reis e os actores que não representavam os reis. Eu sou
dos que representam os reis.
Shakespeare foi, de certo modo, o ponto central dos
interesses artísticos de Orson Welles desde a adolescência. O Shakespeare
trágico, turbulento, bárbaro, mais do que
das o comédias. E começou muito cedo a saber de cor as tragédias
shakespeareanas. Mais tarde, interrogavam-no com frequência: é verdade que tem três filhas? Ele
respondia muito naturalmente: sim, como o
rei Lear.
Com dez anos representa o primeiro papel. Peter
Rabbit. Em Chicago. É autor (dramático e radiofónico), encenador, cenógrafo,
decorador. Um novo Mozart. Aos nove anos, na companhia do pai, viaja, dá mais
de meia volta ao mundo. É já bastante alentado na adolescência e é assim que
entra na intimidade de uma cantora de ópera, iludida pela sua aparência física.
Em Paris toma lições de Houdini, prestidigitação, magia branca.
- Eu sou dos que representam os reis, os chefes,
personagens de amplitude. Tem de ser assim por causa da minha personalidade.
Tenho sempre que ser bigger than life. Um defeito da minha natureza.
Welles concede aos Cahiers du Cinema talvez a mais célebre e histórica das entrevistas do mundo do cinema.
Diz que é grave para um artista ser também autor.
Arrisca-se a ser mal compreendido. Porque entre o que o artista e autor Orson
Welles diz e o que o mundo ouve, agiganta-se a personalidade de Orson Welles.
- Grande parte do mistério, da confusão e do
interesse de tudo o que está na personagem que represento vem da minha própria
personalidade e não do que eu digo. E se represento num filme faço-o porque sei
que, fazendo-o, me permitem realizar os meus próprios filmes.
Adolescente, fazia-se passar por adulto,
aprofundava o timbre da voz, desenhava a lápis algumas rugas na testa, podia
pôr uma cabeleira grisalha.
O escritor americano Richard Wright disse: Um Orson Welles chega. Com dois assistiriamos ao fim da civilização.
O escritor italiano Curzio Malaparte disse: é o americano mais desprovido de
inteligência que me foi dado encontrar.
Quinlan, o tal polícia seboso de Touch of Evil é, segundo Welles, uma
personagem moral.
- Mas eu detesto-lhe essa moral - diz Welles. -
Prefiro ver um assassino livre do que a polícia autorizada a abusar do seu
poder. Se tiver que escolher entre o abuso do poder policial e deixar um crime
impune, escolho o crime impune. Detesto as pessoas que querem julgar em seu
próprio nome. Não se tem o direito de julgar senão segundo uma religião, uma
lei, ou ambas.Se decidirdes por vós próprios será a lei da selva, a porta
aberta aos que lincham os seus semelhantes e aos pequenos gangsters que se
passeiam pelas ruas. Há pessoas que exprimem, cada uma à sua maneira, as coisas
que detesto. Mas eu amo, eu compreendo, tenho uma simpatia humana pelas
diferentes personagens que criei. Acho-os moralmente detestáveis. Moralmente
detestáveis. Não humanamente detestáveis. Goering, por exemplo. Era um homem
detestável. Mas tenho simpatia por ele. Havia nele algo de humano quando foi o
processo.
E os entrevistadores intervêm:
- E Himmler? Não seria Himmler um perfeito
gangster?
Welles concorda. Nada havia a dizer acerca de
Himmler.
- Mas Goering, meus senhores, podemos olhar para
ele e dizer: eis o meu inimigo, odeio-o; mas ele é humano, tem uma textura
humana, na falta de uma moral.
E depois de dizer o que disse antes, transcrevendo
palavras de Orson Welles, penso na extrema dificuldade de cada um de nós em
exercer uma humanidade, a sua humanidade, ao mesmo tempo que uma moral.
Ser humano e ser moral. Welles fala em 1958. O que
já não nos passou pela vida, pessoal e colectiva, desde então! Mas o enigma do
Homem – e aqui pedindo eu desculpa pelo lugar comum execrável - permanece. Ou
diria ainda mais: aprofunda-se. Os desafios morais e humanos de 58 não têm comparação com os dilemas
do presente.
- Será então Otelo também um homem detestável? -
perguntam André Bazin, Bitsch e Domarchi.
- Ah, amigos, é o ciúme que é detestável. Não Otelo
– responde Orson Welles.
Mas Otelo
está de tal modo assoberbado pelo ciúme que acaba por personificar esse ciúme,
essa coisa detestável, e nessa medida acabando por se tornar detestável. O
próprio rei Lear: Welles di-lo cruel e odioso. E afirma que todas as
personagens de Shakespeare têm uma moral do século XIX. E são todos traidores.
Hamlet.
- Hamlet?
- Oh, sim, sem dúvida, Hamlet é um traidor. Quer
matar o tio sem permitir que a sua alma seja salva. E é ver o prazer com que
descreve a morte de Rosencrantz. É um traidor. Aliás, Shakespeare… Shakespeare
é um tipo sujo…
- Como?
- Todos os escritores dramáticos que se pretendam
trágicos num esquema de melodrama são sujos. Havendo melodrama, o herói trágico
tende para o patife.
Só os gregos, segundo Welles, ou os franceses
clássicos, podiam conceber um herói que não fosse malvado. Só porque seria
abstractamente trágico. Um herói, num melodrama, não é nada.
- Um herói é insuportável. Salvo se o for numa
grande tragédia. E, meus amigos, Shakespeare nunca escreveu uma verdadeira
tragédia. Não podia. Escreveu melodramas com estatura de tragédia. E porque são
melodramas os seus heróis são patifes. E os puros heróis… o caso de Brutus… são
sempre maus papeis.
- E César? Também será um patife?
- César é o patife total. É uma peça interessante. Nela,
os sentimentos de Shakespeare são a favor e contra toda a gente. E a grande
qualidade de Shakespeare é nunca ter sido um prosélito, um partidário. Nem
moral. Nem político.
Qualquer cinéfilo dos tempos do cinema artístico
conhece mais ou menos a trajectória de Orson Welles. O primeiro filme, começado
a rodar a 30 de Junho de 1940. Citizen
Kane. Welles tem 27 anos. E com 27 anos, dirigindo um filme pela primeira
vez na vida, consegue que esse filme continue a ser considerado muitas décadas
depois (tenho a certeza de que ainda hoje) um dos dez melhores filmes de sempre
– para alguns até o melhor filme de toda a História do Cinema.
Hollywood é uma
avenida dourada, perfeita para os jogadores de golf, os jardineiros, os homens
medíocres e as vedetas satisfeitas. Não pertenço a qualquer dessas categorias –
escreveu ele por alturas do Citizen Kane.
Mas era até aí, além de homem da rádio, um homem de
teatro. Para muitos mesmo o sucessor de Max Reinhardt.
Voltando à suite do Ritz, onde Welles já deve ter
bebido mais de metade da garrafa de whisky e já deve ter caído a noite e lá
fora, a Place Vendôme deve estar a brilhar no reflexo das luzes públicas…
- Quando entro na pele de uma personagem, como
actor e como autor… quando me torno essa personagem, apelo para o que de melhor
há em mim dentro do quadro do papel e de tal forma que a personagem se enriquece
com o melhor de mim mesmo. Sim, tornando-me essas personagens transfiguro-as ao
dar-lhes o que tenho de melhor, mas o que elas são mesmo, detesto-o. E creio
que todos os grandes escritores, ou mesmo os escritores correctos, são actores,
porque têm a faculdade do actor de entrar na pele da sua personagem e de a
transfigurar, seja ele assassino ou qualquer outra coisa. O escritor é actor e
dá à personagem o que pode dar de si mesmo. E embora possa parecer que as
personagens falam pelo autor, elas não fazem mais do que exprimir os dons do
autor e não as suas opiniões.
Para Orson Welles, todas as personagens que
representara e de que falava eram na verdade formas variadas de uma só: Fausto.
E Welles era contra todos os “fausto”. Achava que um homem não podia ser
grande, a não ser que admitisse a existência de algo maior do que ele, Lei,
Deus, Arte. Fausto era o egotismo renascimental.
E representar é apaixonar-se pelo papel que se
representa. Como o homem que beija uma mulher: dá-lhe sempre alguma coisa de
si.
- Para mim, Fausto é como um ser de outro sexo. E
há dois tipos de humanidade. E um deles é Fausto. Vivemos num mundo que foi
feito por Fausto. O nosso mundo é faustiano.
Para Citizen
Kane, Welles estava contratado pela RKO. Feito o filme, todos imediatamente
viram na personagem de Charles Foster Kane, o cidadão Kane, a figuração do
magnate da imprensa William Rudolph Hearst, um dos homens mais poderosos da
América. Hearst era um tirano de poderes ilimitados e de ódios irremediáveis.
De tal ordem que nem as ligas puritanas da América puderam nada contra ele
quando ele vivia uma ligação amorosa pública e fora do casamento com a actriz
Marion Davies.
Disse-se que Welles tivera acesso aos arquivos
pessoais de Hearst e que neles se inspirara para a personagem do cidadão Kane,
uma biografia focada pelo lado mau de Hearst.
E claro que Hearst dá ordens à RKO para que o filme
não seja exibido. A RKO recusa e monta uma formidável campanha de publicidade.
Mas os jornais da cadeia de Hearst têm rigorosas ordens de silêncio acerca do
filme.
A seguir a Citizen
Kane, na América democrática, Orson Welles acumula fracassos geniais, os
filmes que faz são flops de
bilheteira, são manipulados e remontados por outros.
Citizen Kane
não foi concebido para pintar quem quer que fosse, e menos ainda o sr. Hearst.
É a história de uma personagem puramente imaginária. E lamento muito que o meu
filme possa ser interpretado como um ataque a uma pessoa viva – escreve Orson Welles em 1941, ainda o escândalo
estava vivo.
E Welles escolhe a Europa. Na Europa, em particular
em França, é acolhido pelos críticos e historiadores como um génio do cinema.
Porém, o grande público comprador de bilhetes não é da mesma opinião e os seus
filmes são desastres financeiros.
- Nenhum actor pode interpretar outra coisa a não
ser ele próprio. E se assim é, deixo de lado as minhas crenças políticas e
morais, pinto a cara, ponho um nariz falso, uma cabeleira… mas ficará sempre
Orson Welles. Não há nada a fazer. E outra coisa que vos queria dizer… sou
contra todos os fanatismos. Odeio slogans políticos e religiosos. Detesto todo
aquele que queira suprimir uma nota na escala humana: devem-se fazer vibrar
todos os seus acordes.
A personalidade de Orson Welles, reconhecida pelo
próprio, era a de um narcisista, de um egocentrista aventureiro e byroniano.
Mas ele detestava essa espécie de pessoas. Detestava o que a si próprio se
considerava. Se pudesse escolher, Welles escolheria o respeito em lugar do
egocentrismo e a responsabilidade de preferência à aventura. Escolheria isso
mesmo: o contrário do que era. E era esse o seu ponto de tensão. Cada artista
teria um ponto de tensão entre dois polos.
- Há pouco, o senhor disse de Macbeth que ele era
detestável. Mas ele também é um poeta. Isso não o justificaria em certo
sentido?
- Vamos lá a ver… Macbeth é detestável até se
tornar rei. Uma vez coroado fica insuportável, mas também fica um grande homem.
Até aí é vítima da mulher, da ambição. E sabe-se que todos os que são vítimas
da ambição, de uma maneira ou de outra, são fracos.
- O senhor pensa que Otelo e Macbeth eram perfeitos
pessimistas?
- Bem, Shakespeare era pessimista. Mas, como todos
os pessimistas, também era um idealista. Só os optimistas são incapazes de
compreender o que seja o amor por um ideal impossível. Shakespeare estava muito
próximo das origens da sua própria cultura. A língua em que escrevia acabava de
ser formada. A velha Inglaterra da Idade Média vivia na memória das pessoas de
Stratford. No pessimismo e na amargura, Shakespeare atingia o sublime. Ah, e
notem outra coisa: a aversão dele pelos burgueses; Shakespeare fez sempre dos
burgueses palhaços. Não se interessava nada pelo mundo burguês. Até passou os
últimos vinte anos da sua vida a querer ser nobre e ter brasões. Tinha paixão
pelos reis. Não pelos aristocratas, pelos reis. A ideia do trono e do rei
atravessa todo o Shakespeare. E eu sempre disse que não podíamos ter um teatro
shakespeareano na América. Não se pode fazer um actor americano entender o que
Shakespeare entendia por “rei”, porque eles julgam que se trata de um homem de
bem que um dia põe uma coroa e se senta num trono. Não compreendem que para
Shakespeare mais do que para qualquer outro escritor, o rei ocupava uma posição
particularmente trágica.
Um dia, na América, propõem a Orson Welles montar em teatro um Hamlet com nem mais nem menos do que Marlon Brando. Welles declara
não se ter excitado com a perspectiva, admitindo embora que Marlon Brando
pudesse dar um Hamlet interessante.
Mas para ele Hamlet teria de ser
montado como uma peça de teatro e nunca como uma oportunidade dada a um actor
romântico para fazer um número.
Daí a alguns anos Orson Welles assombraria o mundo
do cinema com a sua, creio que última, criação shakespeareana, Falstaff, num
filme intitulado Chimes at Midnight.
Em português As Badaladas da Meia Noite.
- Sr. Welles, estaria de acordo em dizer que
Shakespeare é o maior italiano?
- Sim. E o maior inglês. Nunca o maior francês.
Italiano… sim. A Itália nessa época tinha grande influência sobre a Inglaterra. A Inglaterra sonhava com a Itália
como Roma sonhava com a Grécia.
Welles afirmaria sentir-se comprometido moralmente
com os argumentos que filmava ou encenava em teatro. Em teatro odiava a
retórica e o discurso moral, mas a orientação moral da peça era para ele essencial.
E interessava-lhe mais o carácter do que a virtude.
- Podem chamar a isso uma moral nitzscheana, como
eu lhe posso chamar uma moral aristocrática por oposição à moral burguesa.
Pois bem, a moral burguesa e sentimental dava-lhe
nojo. Preferia a coragem a todas as outras virtudes.
Uma hierarquia de prazeres artísticos em Orson
Welles: a literatura, primeiro; a música, a pintura, o teatro. Em último lugar
vinha o cinema. Nem lhe interessavam os filmes que não fossem seus. Como
grandes criadores cinematográficos reconhecia Eisenstein e Vittorio de Sica…
- Os senhores deviam ter vergonha de não gostar de
De Sica! - admitia poucas influências. O teatro alemão, sim. John Ford. - Quero
eu dizer… o John Ford de há vinte anos.
E reclamava ter visto o filme de Ford Cavalgada Heróica 40 vezes.
O cinema não lhe dava a mesma satisfação que o
teatro. E como actor achava-se melhor no teatro do que no cinema, porque no
cinema teria de recorrer a um complexo processo mental para conseguir um efeito
que Gary Cooper obtinha só pelo acto de respirar diante da câmara.
O ensaísta de cinema Maurice Bessy via Orson Welles
como um homem da Renascença, membro da mesma família espiritual de Maquiavel,
de Cervantes, de Montaigne, de Shakespeare (claro), de César Bórgia, de Tintoretto,
de Bernini.
Havia uma ética específica a essa gente. Mas uma
ética que não pertencia em exclusivo ao século XVI, que era identificável em
individualidades de todas as épocas e se propagava mais nas civilizações
próximas do declínio.
Em 58, data desta entrevista, a civilização do
Homem estava no declínio. É a minha opinião – não de Orson Welles; ou não sei
se também de Orson Welles. E a queda dessa civilização, no meu entender, já se
deu, e a civilização humanista que deu a grande literatura, a grande música, a
grande pintura, o grande teatro e o grande cinema transformou-se na da grande televisão,
na da grande Internet; transformou-se noutra, esta, estes dias que estamos a
viver…
- Pelo que lhe temos ouvido, sr. Welles, o senhor sente-se
pertencer mais à Europa do que à América…
- Não, não. Eu pertenço àqueles de quem aprecio a
companhia, de quem li os livros, de quem gosto da conversa. Pois é. Pertenço a
essa comunidade que regressa às fontes gregas e de que alguns dos meus
contemporâneos são membros. Há nela americanos e europeus; há antigos e há
modernos. O que eu amo não é o que eu sou...
- Mas então, sr. Welles, está numa situação pouco
confortável.
- Ah, todos os artistas estão. O maior perigo para
um artista é estar numa situação confortável. É dever do artista procurar o seu
ponto de desconforto.
Sentir-se-ia Orson Welles dividido entre duas
concepções do mundo, a concepção renascimentista e a concepção puritana?
- Não. Nem uma coisa nem outra. Sou um homem da
Idade Média. Mas com implicações devidas à selvejaria da América, um povo novo
e arrivista. Um puritano recusa a permissão para fazer algo e arroga-se o
direito de proibir a alguém fazer qualquer coisa. É a definição perfeita de
tudo aquilo de que sou contra. Um moralista de maneira nenhuma é um puritano. E
digo-vos mais… os únicos bons artistas, meus senhores, são femininos. Não
admito um artista cuja personalidade dominante seja masculina. E isto nada tem
a ver com a homossexualidade. Intelectualmente, um artista deve ser um homem
com aptidões femininas. Character, sim. Mas character tem dois sentidos em
inglês. Se falo do meu carácter, significa que sou feito assim, como dizem os
italianos sono fatto cosi. Mas o outro sentido inglês da palavra character não
é apenas de como somos feitos, mas também de como decidimos ser. É a maneira
como nos comportamos face à morte. Só podemos julgar as pessoas pelo seu
comportamento face à morte.
- Interessante…
- Colette, quando os alemães às seis da manhã lhe
entraram pela casa dentro para irem buscar o marido para o prender e para o
deporta… o marido que ela adorava à loucura… em vez do grande adeus dramático,
deu-lhe uma palmadinha nas costas e murmurou-lhe: vá, vai-te lá embora com
eles. Isto é character.
Já era noite cerrada.
Onde já devia ir a garrafa de whisky de Orson
Welles!
Já fachada resplandecente do Ritz derramava a luz
sobre o pavimento molhado da Place Vendôme quando os três entrevistadores dos Cahiers du Cinema deixaram Orson Welles,
subjugados pelo seu verbo, pela sua personalidade, pela sua voz potente e
musical, pela sua moral aristocrática.
Em vez de hora e meia, a entrevista estendera-se
por quatro horas.
Ainda traziam na cabeça a última tirada de Welles:
- Gostava mais de cinema antes de o fazer. Agora
não posso deixar de ouvir a claquette no princípio de cada plano e toda a magia
fica destruída. Já vos disse… não gosto de cinema, a não ser quando filmo.
Então, é preciso não ser tímido com a
câmara, é preciso violentá-la porque ela é um vil objecto mecânico… e o
que conta é a poesia.
Excelente. Muito obrigado e um bom 2014...
ResponderEliminarCurioso, como a maior parte da "informação" que hoje recebemos - de tanta e tão vasta que é - acaba por, na prática, nos "entrar por um ouvido e saír pelo outro". Quero dizer, ficamos pouco mais do que na mesma, imaginando porém que estamos muito "bem informados"...
ResponderEliminarCom os textos de Joel Costa, contudo - e como que por Magia (ou será pura Pedagogia e da melhor?) -, nunca aprendemos nada de verdadeiramente novo - pudera, se ele raramente nos traz a actualidade... - mas, pelo contrário, parece que nunca mais esquecemos aquilo que lemos! Que permanece na nossa mente como uma espécie de síntese daquilo que já sabíamos e, assim, como que marca uma nova etapa do nosso conhecimento!
Joel Costa teria, sem dúvida, dado um Professor excelentísimo. Até pela sua magnífica voz...
Oops, "excelentíssimo", claro...
ResponderEliminarAquilo que verdadeiramente nos molda é tudo o que permanece em nós para além do tempo. Eis porque as suas crónicas são eternas. Retorna-se sempre a elas com um imenso prazer, porque mesmo, por vezes, sob uma aparente superficialidade, elas tocam a essência das coisas...Por isso "o que conta é a poesia..."
ResponderEliminarWelles terá sido tudo excepto "o menos inteligente dos actores americanos". Este magnífico texto vem corroborar a ideia que eu tenho dele: algo narcisista, majestoso e genial. Poderia ter "feito" apenas o "Citizen Kane" e já seria um dos maiores cineastas da História.
ResponderEliminarAdorei este texto.