quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

                     O QUE CONTA É A POESIA


27 de Junho de 1958. Paris. Hotel Ritz.
Fim de tarde.
Acabou de cair um aguaceiro e a Place Vendôme está molhada.
                  
                                                       

André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi, redactores da revista Cahiers du Cinema, entram para uma suite e esperam pela personalidade que se propõem entrevistar durante a próxima hora e meia.



Aparece Orson Welles. Em peúgas. Roupão de cores. Camisa aberta até ao umbigo. Olímpico como Júpiter – conforme anotaram os entrevistadores. Copo de whisky e charuto de 20 centímetros nas mãos. Tem 43 anos. Está em Paris a filmar como actor As Raízes do Céu – extraído de um romance de Romain Gary.
                                                         

Os entrevistadores notam as diferenças físicas entre o Orson Welles maduro que têm na frente e o Orson Welles dos começos, do tempo de Citizen Kane
O sedutor hollywodesco e embonecado é agora uma esplendorosa encarnação do poder. Os entrevistadores acreditam que a maturidade produza em certo tipo de artistas algo semelhante a uma metamorfose. Haveria uma biologia específica do génio. Welles cresceu, avolumou-se. Os génios crescem até ao fim, mesmo fisicamente.
Orson Welles era uma figura renascentista, estava ali Orson, o Magnífico. E a começar por dizer que um crítico sabe sempre mais sobre a obra do artista do que o próprio artista. Sabe mais ao mesmo tempo que sabe menos, porque seria essa a função do crítico saber sempre mais e menos do que o artista que critica.
Orson Welles sempre foi, e ainda será, para quem tenha alguma memória de um mundo dos tempos do cinema, uma personalidade mitificada. Génio para alguns, fraude artística, charlatão grotesco e mistificador para outros.
A lenda que sempre seguiu na esteira de Orson Welles conta dele a precocidade. Aos dois anos teria falado como um adulto. Aos três anos teria lido correntemente. Aos sete anos, no sótão da casa, teria declamado, sozinho, o Rei Lear. E aos doze anos ainda não era criança para fazer capazmente uma subtracção.
- O que pus de pessoal no filme Touch of Evil -em português A Sede do Mal - foi o meu ódio ao abuso que a polícia faz do poder que tem.
Welles fazia neste filme, A Sede do Mal, o papel de Quinlan, um inspector de polícia sinistro e corrupto e fisicamente corpulento – como o próprio Welles.
- Sabem… É mais interessante falar dos abusos de poder policial com um homem de certo volume, em físico e em personalidade, do que com um pequeno chui vulgar. Quinlan é melhor do que um chui vulgar, mas não deixa de ser odioso. Não, não há ambiguidade. É sempre possível sentir simpatia por um crápula. Simpatia é coisa humana. Posso sentir ternura por pessoas de quem não dissimulo de modo nenhum a minha repugnância.


- Mas… mr. Welles… agora fez-nos lembrar Macbeth
 Macbeth foi um dos grandes papeis de Orson Welles, no cinema como no teatro. Macbeth é um dos seus grandes filmes shakespeareanos.


- Pois bem, com Macbeth passa-se o mesmo - diz ele. - Representei vários papeis de tipos sujos. Harry Lime no Terceiro Homem, um pequeno patife do mercado negro. Mas agora não falaria dos pequenos. Sou actor para grandes personagens. Sabem que no teatro francês clássico havia os actores que representavam os reis e os actores que não representavam os reis. Eu sou dos que representam os reis.

                      

Shakespeare foi, de certo modo, o ponto central dos interesses artísticos de Orson Welles desde a adolescência. O Shakespeare trágico, turbulento, bárbaro, mais do que  das o comédias. E começou muito cedo a saber de cor as tragédias shakespeareanas. Mais tarde, interrogavam-no com frequência: é verdade que tem três filhas? Ele respondia muito naturalmente: sim, como o rei Lear.
Com dez anos representa o primeiro papel. Peter Rabbit. Em Chicago. É autor (dramático e radiofónico), encenador, cenógrafo, decorador. Um novo Mozart. Aos nove anos, na companhia do pai, viaja, dá mais de meia volta ao mundo. É já bastante alentado na adolescência e é assim que entra na intimidade de uma cantora de ópera, iludida pela sua aparência física. 


Em Paris toma lições de Houdini, prestidigitação, magia branca.
- Eu sou dos que representam os reis, os chefes, personagens de amplitude. Tem de ser assim por causa da minha personalidade. Tenho sempre que ser bigger than life. Um defeito da minha natureza.


Welles concede aos Cahiers du Cinema talvez a mais célebre e histórica das entrevistas do mundo do cinema.
Diz que é grave para um artista ser também autor. Arrisca-se a ser mal compreendido. Porque entre o que o artista e autor Orson Welles diz e o que o mundo ouve, agiganta-se a personalidade de Orson Welles.
- Grande parte do mistério, da confusão e do interesse de tudo o que está na personagem que represento vem da minha própria personalidade e não do que eu digo. E se represento num filme faço-o porque sei que, fazendo-o, me permitem realizar os meus próprios filmes.


Adolescente, fazia-se passar por adulto, aprofundava o timbre da voz, desenhava a lápis algumas rugas na testa, podia pôr uma cabeleira grisalha.
O escritor americano Richard Wright disse: Um Orson Welles chega. Com dois assistiriamos ao fim da civilização.
O escritor italiano Curzio Malaparte disse: é o americano mais desprovido de inteligência que me foi dado encontrar.
Quinlan, o tal polícia seboso de Touch of Evil é, segundo Welles, uma personagem moral.
- Mas eu detesto-lhe essa moral - diz Welles. - Prefiro ver um assassino livre do que a polícia autorizada a abusar do seu poder. Se tiver que escolher entre o abuso do poder policial e deixar um crime impune, escolho o crime impune. Detesto as pessoas que querem julgar em seu próprio nome. Não se tem o direito de julgar senão segundo uma religião, uma lei, ou ambas.Se decidirdes por vós próprios será a lei da selva, a porta aberta aos que lincham os seus semelhantes e aos pequenos gangsters que se passeiam pelas ruas. Há pessoas que exprimem, cada uma à sua maneira, as coisas que detesto. Mas eu amo, eu compreendo, tenho uma simpatia humana pelas diferentes personagens que criei. Acho-os moralmente detestáveis. Moralmente detestáveis. Não humanamente detestáveis. Goering, por exemplo. Era um homem detestável. Mas tenho simpatia por ele. Havia nele algo de humano quando foi o processo. 

                                                  


E os entrevistadores intervêm:
- E Himmler? Não seria Himmler um perfeito gangster? 
Welles concorda. Nada havia a dizer acerca de Himmler.
- Mas Goering, meus senhores, podemos olhar para ele e dizer: eis o meu inimigo, odeio-o; mas ele é humano, tem uma textura humana, na falta de uma moral.


E depois de dizer o que disse antes, transcrevendo palavras de Orson Welles, penso na extrema dificuldade de cada um de nós em exercer uma humanidade, a sua humanidade, ao mesmo tempo que uma moral.
Ser humano e ser moral. Welles fala em 1958. O que já não nos passou pela vida, pessoal e colectiva, desde então! Mas o enigma do Homem – e aqui pedindo eu desculpa pelo lugar comum execrável - permanece. Ou diria ainda mais: aprofunda-se. Os desafios morais e humanos de 58 não têm comparação com os dilemas do presente.



- Será então Otelo também um homem detestável? - perguntam André Bazin, Bitsch e Domarchi.
- Ah, amigos, é o ciúme que é detestável. Não Otelo – responde Orson Welles.
 Mas Otelo está de tal modo assoberbado pelo ciúme que acaba por personificar esse ciúme, essa coisa detestável, e nessa medida acabando por se tornar detestável. O próprio rei Lear: Welles di-lo cruel e odioso. E afirma que todas as personagens de Shakespeare têm uma moral do século XIX. E são todos traidores. Hamlet.
- Hamlet?
- Oh, sim, sem dúvida, Hamlet é um traidor. Quer matar o tio sem permitir que a sua alma seja salva. E é ver o prazer com que descreve a morte de Rosencrantz. É um traidor. Aliás, Shakespeare… Shakespeare é um tipo sujo…
- Como?
- Todos os escritores dramáticos que se pretendam trágicos num esquema de melodrama são sujos. Havendo melodrama, o herói trágico tende para o patife.
Só os gregos, segundo Welles, ou os franceses clássicos, podiam conceber um herói que não fosse malvado. Só porque seria abstractamente trágico. Um herói, num melodrama, não é nada.
- Um herói é insuportável. Salvo se o for numa grande tragédia. E, meus amigos, Shakespeare nunca escreveu uma verdadeira tragédia. Não podia. Escreveu melodramas com estatura de tragédia. E porque são melodramas os seus heróis são patifes. E os puros heróis… o caso de Brutus… são sempre maus papeis.

        

- E César? Também será um patife?
- César é o patife total. É uma peça interessante. Nela, os sentimentos de Shakespeare são a favor e contra toda a gente. E a grande qualidade de Shakespeare é nunca ter sido um prosélito, um partidário. Nem moral. Nem político.
Qualquer cinéfilo dos tempos do cinema artístico conhece mais ou menos a trajectória de Orson Welles. O primeiro filme, começado a rodar a 30 de Junho de 1940. Citizen Kane. Welles tem 27 anos. E com 27 anos, dirigindo um filme pela primeira vez na vida, consegue que esse filme continue a ser considerado muitas décadas depois (tenho a certeza de que ainda hoje) um dos dez melhores filmes de sempre – para alguns até o melhor filme de toda a História do Cinema.
Hollywood é uma avenida dourada, perfeita para os jogadores de golf, os jardineiros, os homens medíocres e as vedetas satisfeitas. Não pertenço a qualquer dessas categorias – escreveu ele por alturas do Citizen Kane.
Mas era até aí, além de homem da rádio, um homem de teatro. Para muitos mesmo o sucessor de Max Reinhardt.
Voltando à suite do Ritz, onde Welles já deve ter bebido mais de metade da garrafa de whisky e já deve ter caído a noite e lá fora, a Place Vendôme deve estar a brilhar no reflexo das luzes públicas…

- Quando entro na pele de uma personagem, como actor e como autor… quando me torno essa personagem, apelo para o que de melhor há em mim dentro do quadro do papel e de tal forma que a personagem se enriquece com o melhor de mim mesmo. Sim, tornando-me essas personagens transfiguro-as ao dar-lhes o que tenho de melhor, mas o que elas são mesmo, detesto-o. E creio que todos os grandes escritores, ou mesmo os escritores correctos, são actores, porque têm a faculdade do actor de entrar na pele da sua personagem e de a transfigurar, seja ele assassino ou qualquer outra coisa. O escritor é actor e dá à personagem o que pode dar de si mesmo. E embora possa parecer que as personagens falam pelo autor, elas não fazem mais do que exprimir os dons do autor e não as suas opiniões.



Para Orson Welles, todas as personagens que representara e de que falava eram na verdade formas variadas de uma só: Fausto. E Welles era contra todos os “fausto”. Achava que um homem não podia ser grande, a não ser que admitisse a existência de algo maior do que ele, Lei, Deus, Arte. Fausto era o egotismo renascimental.
E representar é apaixonar-se pelo papel que se representa. Como o homem que beija uma mulher: dá-lhe sempre alguma coisa de si.
- Para mim, Fausto é como um ser de outro sexo. E há dois tipos de humanidade. E um deles é Fausto. Vivemos num mundo que foi feito por Fausto. O nosso mundo é faustiano.
Para Citizen Kane, Welles estava contratado pela RKO. Feito o filme, todos imediatamente viram na personagem de Charles Foster Kane, o cidadão Kane, a figuração do magnate da imprensa William Rudolph Hearst, um dos homens mais poderosos da América. Hearst era um tirano de poderes ilimitados e de ódios irremediáveis. De tal ordem que nem as ligas puritanas da América puderam nada contra ele quando ele vivia uma ligação amorosa pública e fora do casamento com a actriz Marion Davies.
Disse-se que Welles tivera acesso aos arquivos pessoais de Hearst e que neles se inspirara para a personagem do cidadão Kane, uma biografia focada pelo lado mau de Hearst.
E claro que Hearst dá ordens à RKO para que o filme não seja exibido. A RKO recusa e monta uma formidável campanha de publicidade. Mas os jornais da cadeia de Hearst têm rigorosas ordens de silêncio acerca do filme.
A seguir a Citizen Kane, na América democrática, Orson Welles acumula fracassos geniais, os filmes que faz são flops de bilheteira, são manipulados e remontados por outros.
Citizen Kane não foi concebido para pintar quem quer que fosse, e menos ainda o sr. Hearst. É a história de uma personagem puramente imaginária. E lamento muito que o meu filme possa ser interpretado como um ataque a uma pessoa viva – escreve Orson Welles em 1941, ainda o escândalo estava vivo.
E Welles escolhe a Europa. Na Europa, em particular em França, é acolhido pelos críticos e historiadores como um génio do cinema. Porém, o grande público comprador de bilhetes não é da mesma opinião e os seus filmes são desastres financeiros.
- Nenhum actor pode interpretar outra coisa a não ser ele próprio. E se assim é, deixo de lado as minhas crenças políticas e morais, pinto a cara, ponho um nariz falso, uma cabeleira… mas ficará sempre Orson Welles. Não há nada a fazer. E outra coisa que vos queria dizer… sou contra todos os fanatismos. Odeio slogans políticos e religiosos. Detesto todo aquele que queira suprimir uma nota na escala humana: devem-se fazer vibrar todos os seus acordes.

                                                

A personalidade de Orson Welles, reconhecida pelo próprio, era a de um narcisista, de um egocentrista aventureiro e byroniano. Mas ele detestava essa espécie de pessoas. Detestava o que a si próprio se considerava. Se pudesse escolher, Welles escolheria o respeito em lugar do egocentrismo e a responsabilidade de preferência à aventura. Escolheria isso mesmo: o contrário do que era. E era esse o seu ponto de tensão. Cada artista teria um ponto de tensão entre dois polos.
- Há pouco, o senhor disse de Macbeth que ele era detestável. Mas ele também é um poeta. Isso não o justificaria em certo sentido?
- Vamos lá a ver… Macbeth é detestável até se tornar rei. Uma vez coroado fica insuportável, mas também fica um grande homem. Até aí é vítima da mulher, da ambição. E sabe-se que todos os que são vítimas da ambição, de uma maneira ou de outra, são fracos.
- O senhor pensa que Otelo e Macbeth eram perfeitos pessimistas?



- Bem, Shakespeare era pessimista. Mas, como todos os pessimistas, também era um idealista. Só os optimistas são incapazes de compreender o que seja o amor por um ideal impossível. Shakespeare estava muito próximo das origens da sua própria cultura. A língua em que escrevia acabava de ser formada. A velha Inglaterra da Idade Média vivia na memória das pessoas de Stratford. No pessimismo e na amargura, Shakespeare atingia o sublime. Ah, e notem outra coisa: a aversão dele pelos burgueses; Shakespeare fez sempre dos burgueses palhaços. Não se interessava nada pelo mundo burguês. Até passou os últimos vinte anos da sua vida a querer ser nobre e ter brasões. Tinha paixão pelos reis. Não pelos aristocratas, pelos reis. A ideia do trono e do rei atravessa todo o Shakespeare. E eu sempre disse que não podíamos ter um teatro shakespeareano na América. Não se pode fazer um actor americano entender o que Shakespeare entendia por “rei”, porque eles julgam que se trata de um homem de bem que um dia põe uma coroa e se senta num trono. Não compreendem que para Shakespeare mais do que para qualquer outro escritor, o rei ocupava uma posição particularmente trágica.
Um dia, na América, propõem a Orson Welles montar em teatro um Hamlet com nem mais nem menos do que Marlon Brando. Welles declara não se ter excitado com a perspectiva, admitindo embora que Marlon Brando pudesse dar um Hamlet interessante. Mas para ele Hamlet teria de ser montado como uma peça de teatro e nunca como uma oportunidade dada a um actor romântico para fazer um número.


Daí a alguns anos Orson Welles assombraria o mundo do cinema com a sua, creio que última, criação shakespeareana, Falstaff, num filme intitulado Chimes at Midnight. Em português As Badaladas da Meia Noite.
- Sr. Welles, estaria de acordo em dizer que Shakespeare é o maior italiano?
- Sim. E o maior inglês. Nunca o maior francês. Italiano… sim. A Itália nessa época tinha grande influência sobre a Inglaterra. A Inglaterra sonhava com a Itália como Roma sonhava com a Grécia.
Welles afirmaria sentir-se comprometido moralmente com os argumentos que filmava ou encenava em teatro. Em teatro odiava a retórica e o discurso moral, mas a orientação moral da peça era para ele essencial. E interessava-lhe mais o carácter do que a virtude.
- Podem chamar a isso uma moral nitzscheana, como eu lhe posso chamar uma moral aristocrática por oposição à moral burguesa.
Pois bem, a moral burguesa e sentimental dava-lhe nojo. Preferia a coragem a todas as outras virtudes.
Uma hierarquia de prazeres artísticos em Orson Welles: a literatura, primeiro; a música, a pintura, o teatro. Em último lugar vinha o cinema. Nem lhe interessavam os filmes que não fossem seus. Como grandes criadores cinematográficos reconhecia Eisenstein e Vittorio de Sica…
- Os senhores deviam ter vergonha de não gostar de De Sica! - admitia poucas influências. O teatro alemão, sim. John Ford. - Quero eu dizer… o John Ford de há vinte anos.
E reclamava ter visto o filme de Ford Cavalgada Heróica 40 vezes.
O cinema não lhe dava a mesma satisfação que o teatro. E como actor achava-se melhor no teatro do que no cinema, porque no cinema teria de recorrer a um complexo processo mental para conseguir um efeito que Gary Cooper obtinha só pelo acto de respirar diante da câmara.


O ensaísta de cinema Maurice Bessy via Orson Welles como um homem da Renascença, membro da mesma família espiritual de Maquiavel, de Cervantes, de Montaigne, de Shakespeare (claro), de César Bórgia, de Tintoretto, de Bernini.


Havia uma ética específica a essa gente. Mas uma ética que não pertencia em exclusivo ao século XVI, que era identificável em individualidades de todas as épocas e se propagava mais nas civilizações próximas do declínio.
Em 58, data desta entrevista, a civilização do Homem estava no declínio. É a minha opinião – não de Orson Welles; ou não sei se também de Orson Welles. E a queda dessa civilização, no meu entender, já se deu, e a civilização humanista que deu a grande literatura, a grande música, a grande pintura, o grande teatro e o grande cinema transformou-se na da grande televisão, na da grande Internet; transformou-se noutra, esta, estes dias que estamos a viver…
- Pelo que lhe temos ouvido, sr. Welles, o senhor sente-se pertencer mais à Europa do que à América…
- Não, não. Eu pertenço àqueles de quem aprecio a companhia, de quem li os livros, de quem gosto da conversa. Pois é. Pertenço a essa comunidade que regressa às fontes gregas e de que alguns dos meus contemporâneos são membros. Há nela americanos e europeus; há antigos e há modernos. O que eu amo não é o que eu sou...


- Mas então, sr. Welles, está numa situação pouco confortável.
- Ah, todos os artistas estão. O maior perigo para um artista é estar numa situação confortável. É dever do artista procurar o seu ponto de desconforto.
Sentir-se-ia Orson Welles dividido entre duas concepções do mundo, a concepção renascimentista e a concepção puritana?
- Não. Nem uma coisa nem outra. Sou um homem da Idade Média. Mas com implicações devidas à selvejaria da América, um povo novo e arrivista. Um puritano recusa a permissão para fazer algo e arroga-se o direito de proibir a alguém fazer qualquer coisa. É a definição perfeita de tudo aquilo de que sou contra. Um moralista de maneira nenhuma é um puritano. E digo-vos mais… os únicos bons artistas, meus senhores, são femininos. Não admito um artista cuja personalidade dominante seja masculina. E isto nada tem a ver com a homossexualidade. Intelectualmente, um artista deve ser um homem com aptidões femininas. Character, sim. Mas character tem dois sentidos em inglês. Se falo do meu carácter, significa que sou feito assim, como dizem os italianos sono fatto cosi. Mas o outro sentido inglês da palavra character não é apenas de como somos feitos, mas também de como decidimos ser. É a maneira como nos comportamos face à morte. Só podemos julgar as pessoas pelo seu comportamento face à morte.
- Interessante…
- Colette, quando os alemães às seis da manhã lhe entraram pela casa dentro para irem buscar o marido para o prender e para o deporta… o marido que ela adorava à loucura… em vez do grande adeus dramático, deu-lhe uma palmadinha nas costas e murmurou-lhe: vá, vai-te lá embora com eles. Isto é character.
Já era noite cerrada.


Onde já devia ir a garrafa de whisky de Orson Welles!
Já fachada resplandecente do Ritz derramava a luz sobre o pavimento molhado da Place Vendôme quando os três entrevistadores dos Cahiers du Cinema deixaram Orson Welles, subjugados pelo seu verbo, pela sua personalidade, pela sua voz potente e musical, pela sua moral aristocrática.
Em vez de hora e meia, a entrevista estendera-se por quatro horas. 


Ainda traziam na cabeça a última tirada de Welles:
- Gostava mais de cinema antes de o fazer. Agora não posso deixar de ouvir a claquette no princípio de cada plano e toda a magia fica destruída. Já vos disse… não gosto de cinema, a não ser quando filmo. Então, é preciso não ser tímido com a  câmara, é preciso violentá-la porque ela é um vil objecto mecânico… e o que conta é a poesia.
                          

5 comentários:

  1. Curioso, como a maior parte da "informação" que hoje recebemos - de tanta e tão vasta que é - acaba por, na prática, nos "entrar por um ouvido e saír pelo outro". Quero dizer, ficamos pouco mais do que na mesma, imaginando porém que estamos muito "bem informados"...

    Com os textos de Joel Costa, contudo - e como que por Magia (ou será pura Pedagogia e da melhor?) -, nunca aprendemos nada de verdadeiramente novo - pudera, se ele raramente nos traz a actualidade... - mas, pelo contrário, parece que nunca mais esquecemos aquilo que lemos! Que permanece na nossa mente como uma espécie de síntese daquilo que já sabíamos e, assim, como que marca uma nova etapa do nosso conhecimento!

    Joel Costa teria, sem dúvida, dado um Professor excelentísimo. Até pela sua magnífica voz...

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  2. Aquilo que verdadeiramente nos molda é tudo o que permanece em nós para além do tempo. Eis porque as suas crónicas são eternas. Retorna-se sempre a elas com um imenso prazer, porque mesmo, por vezes, sob uma aparente superficialidade, elas tocam a essência das coisas...Por isso "o que conta é a poesia..."

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  3. Welles terá sido tudo excepto "o menos inteligente dos actores americanos". Este magnífico texto vem corroborar a ideia que eu tenho dele: algo narcisista, majestoso e genial. Poderia ter "feito" apenas o "Citizen Kane" e já seria um dos maiores cineastas da História.
    Adorei este texto.

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