CÂNDIDO DE
OLIVEIRA
NÃO BEBEU
PELA SUPERTAÇA
Em 1941 estaria
iminente a invasão da Península pelas tropas do Reich, invasão essa que eventualmente se combinava com a
invasão de Portugal pelas forças espanholas conluiadas com Hitler. Lisboa era
então, como se sabe, um formigueiro de exilados, refugiados judeus em trânsito
para a América e espiões ingleses e alemães.
E se os agentes
da Gestapo procurariam criar as condições subjectivas e objectivas para uma
invasão, os homens da intelligence inglesa,
sob a direcção do chefe das operações secretas para a Península do MI6 - um
homem que viria a tornar-se famoso alguns anos depois, Kim Philby, o traidor, o
desertor para URSS; por acaso assessorado por outro homem então ainda não tão
famoso como viria a ser, Graham Greene, o romancista; e tendo às suas ordens (e
este a residir no Hotel Palácio do Estoril) outro romancista que viria a ser
famosíssimo, Ian Fleming, o criador de James Bond – seria a organização de
pontos de resistência, linhas de comunicação telefónica e radiofónica,
desmascaramento de agentes da Gestapo e segurança de circulação dos seus
elementos, tudo, enfim, que pudesse ser útil aos ingleses para enfrentar o
invasor alemão.
A polícia
política portuguesa, ao tempo a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do
Estado), antecessora da PIDE, persegue encarniçadamente as organizações
subversivas a trabalhar no país, com especial predilecção pelas redes de
espionagem aliada – mais especificamente a rede inglesa do SOE (Secção de
Operações Especiais).
A PVDE, pejada
de oficiais corruptos e germanófilos (ao que se dizia nos meios secretos, a
começar pelo seu chefe o capitão Agostinho Lourenço), mantinha colaboração
estreitíssima com a sua congénere espanhola que era abertamente nem mais nem
menos do que uma dependência da Gestapo. Mas o mesmo se poderia dizer da PVDE.
Entre os mais notórios agentes duplos (PVDE/Gestapo) estavam o Henrique de Sá e
Seixas – que tantas vezes eu vi muitos anos depois a tomar café na Brasileira; mais tarde guarda-costas de
Salazar (ao que se dizia nos anos 60) e chefe do campo de concentração do
Tarrafal; um tal capitão Cumano, homem forte da polícia – Cumano que era a
adaptação para português do apelido da sua ascendência germânica, Kuhlman, ou
coisa assim, e que despachava directamente com Von Kasthorf, o número um dos
serviços secretos alemães em Lisboa; um Sidónio Vilasboas; um António Simões
especialista de acções de propaganda; um Correia de Almeida – que torturava à
base de longos duches gelados (estaria hoje na moda); um capitão Gaspar de
Oliveira – que chegou a capturar e a submeter a interrogatório uma telefonista
da embaixada inglesa, querendo saber: 1) onde era a sala dos telefones da
embaixada e se era de acesso fácil; 2) se era fácil escutar as conversas; 3) o
número de chamadas confidenciais recebidas do exterior; 4) quanto ganhava Miss
Maria Silva, a telefonista.
Lisboa
fervilhava de tensões.
Os boatos circulavam a grande velocidade e o mais temido
deles era os alemães estarem a preparar acções de sabotagem em pontos
estratégicos, inviabilizando as defesas da cidade.
As tarefas
essenciais da espionagem alemã (e italiana, não esquecer) em Lisboa incluíam a
penetração quanto possível intensa dos círculos afectos aos Aliados, com vista
a obter informações de tipo militar e a criar condições para o envio de agentes
para as colónias, sem falar, evidentemente, das acções de contra-espionagem que
comprometessem ou contrariassem as acções dos serviços aliados.
Especial
atenção davam os agentes da Gestapo às casas de prostituição do Cais do Sodré.
Por estranho que pareça, fundaram e geriam (indirectamente) algumas. Mas não
seria tão estranho assim, posto que o movimento do porto de Lisboa era muito,
marinheiros de todas as nacionalidades chegavam e partiam, e, antes de
partirem, iam a essas casas, obviamente, pôr a sua escrita sexual em dia,
sempre deixando cair uma ou outra informação, sobretudo se estavam bêbedos, de
onde vinham, para onde se dirigia o navio, como se chamava o navio, e por aí
fora, informações que eram logo transmitidas aos submarinos alemães que
infestavam o Atlântico e afundavam sem rebuço qualquer navio mercante com
pavilhão aliado.
De sociedade
com os serviços espanhóis de fronteira, os alemães também contrabandeavam à vontade
para fora do país, e em escala considerável, produtos de todo o género,
alimentares, algodão, couro, minérios diversos (volfrâmio incluído, e sem
prejuízo do que era exportado legalmente), óleos, lãs.
Em Março de
1942, em duas ou três semanas, a PVDE faz uma razia entre portugueses e
estrangeiros. São presas 500 pessoas. Todas têm um ponto em comum: são
suspeitas de trabalhar para a espionagem britânica. Algumas delas terão em
comum ainda outra circunstância, que é a de pertenceram aos quadros
clandestinos do PCP e fazerem oposição activa ao governo, em simultâneo com as
operações da espionagem britânica. Entre esses elementos detidos está Cândido
de Oliveira, conhecido homem do futebol.
Na imprensa
portuguesa nem uma linha a noticiar a leva de prisões.
Em Fevereiro de
1941, Cândido de Oliveira e mais dois companheiros jornalistas do Diário de Notícias e do Diário de Lisboa tinham sido convidados
pelo British Council a deslocar-se a Londres para intercâmbios relacionados com
o jornalismo desportivo. Eram tempos de guerra e os serviços ingleses de informação
interna, o MI5, autoriza-os a entrar no país. Quem não os deixa sair é o
portuguesíssimo Secretariado da Propaganda Nacional, personalizado em António
Ferro.
Enfim, a
temática desportiva era uma capa para assuntos mais sérios e secretos, porque o
verdadeiro sentido da viagem eram os contactos políticos e uma provável
formação em técnicas de espionagem, contra-informação e sabotagem. Além disso,
a viagem de conceituados jornalistas desportivos portugueses à Grã -Bretanha
servia a propaganda aliada num Portugal onde os germanófilos eram em número
considerável (a Alemanha ainda estava a ganhar a guerra e o português, por
atavicamente desinteressado do que é importante e sempre sem condições para
pensar, gosta de alinhar ao lado do vencedor) e particularmente enquistados ao
nível do aparelho de Estado e entre a média/alta burguesia.
Dessa viagem
constariam ainda – segundo o informador da Legião Portuguesa que espiava
Cândido de Oliveira na redacção da revista Stadium
– encontros com Churchill e De Gaulle, e do relato dela seriam editadas 1.000
cópias destinadas a serem apreendidas pela PVDE, e sendo um único exemplar
enviado para o Brasil para então ser feita a partir dele uma edição em grande
escala.
É nesse
ínterim do ir e não ir a Inglaterra que Cândido de Oliveira é preso.
Foi no dia 1
de Março já de 1942, em casa, eram 5 horas da manhã. E diz ele que nada sabia
dos motivos da prisão. Ninguém se dera ao cuidado de o avisar de que a PVDE
tinha dado início a uma vaga de prisões visando elementos da rede secreta do
SOE – serviço de operações especiais controlado pelos serviços secretos
britânicos do MI6 – com quem ele estaria em contacto.
Objectivamente,
a acusação que pesa sobre Cândido de Oliveira é a de organizar comunicações
rádio e alugar apartamentos para encontros secretos de agentes e base de acções
de espionagem.
Na
realidade, Cândido de Oliveira é um categorizado agente do SOE (ramificação do
MI6), com responsabilidades numa rede secreta na área das comunicações, para a
qual tinha a vantagem prática de ser inspector superior dos CTT em Lisboa,
podendo por isso fornecer caixas-postais para o movimento clandestino de
informação.
Na PVDE, Cândido de Oliveira recusa-se a responder a quaisquer perguntas. E leva um
primeiro tratamento… violentamente
agredido por quatro agentes que me partiram os dentes do maxilar superior e me
racharam um lábio e a cabeça com um banco… é o que ele alega em carta aos
seus contactos.
(Atenção,
que me estou a basear numa leitura recente do livro de Rui Araújo O IMPÉRIO DOS
ESPIÕES – edição Oficina do Livro -, e porque achei piada à ligação bizarra e
de todo imprevisível de um nome histórico do futebol português a acções de
espionagem já de um certo coturno. E por essa leitura também fico a saber que o
acervo documental referente a Cândido de Oliveira, passados tantos anos, ainda continuava
classificado no arquivo dos serviços secretos de Sua Majestade, e só
desclassificado por diligência do autor do livro.)
Depois do
tratamento da PVDE, Cândido de Oliveira acaba por admitir uma ligação acerta
rede secreta, porque percebe que um elemento dessa rede, preso e provavelmente
torturado, o denunciara. Cândido de Oliveira fica portanto identificado como
importante chefe de um sector de operações clandestinas sob o pseudónimo de Dr.
Menezes – um Dr. Menezes que a polícia internacional até aí se esfalfara para
identificar e não conseguira.
A outra
identificação de Cândido de Oliveira no trabalho secreto era PAX. E os
relatórios do SOE continuavam a mencioná-lo… a organização PAX continua intacta à excepção da arreliadora prisão do
próprio PAX, denunciado por um contacto que foi preso.
E um PAX recalcitrante vai dar com os ossos no segredo.
Nove dias – segundo a espionagem britânica. Depois, é posto incomunicável.
Atiraram com ele (segundo conta) para uma cela húmida onde a escuridão era
total e onde diz que viveu dez dias como um bicho, comendo no chão, sem
assistência médica…a polícia pensava que
eu era um comunista, um traidor que queria derrubar o governo – e se
calhar, digo eu, até pensava bem…
O estado de
saúde dele agrava-se e mandam-no para o hospital prisional de Caxias. Estamos, contudo, em contacto com ele desde
o dia em que foi preso. E esse contacto é feito por carta ao chefe
operacional do SOE, o major John Grosvenor Beevor, adido militar à embaixada
inglesa, e intermediado por um dos guardas prisionais metido na conspiração.
Fui ontem interrogado desde as 15 até às 5
horas da manhã. Ficou tudo na mesma porque eu nada mais sei nem posso
acrescentar.
O que Cândido de Oliveira gostaria de saber era quem
estava também preso, para se poder precaver nos interrogatórios. Gostaria de
saber, mas o seu chefe não solta essa informação para ele.
Quem se mexe
é a embaixada inglesa. Um protesto em forma ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros contra a brutal agressão a Cândido de Oliveira.
As acusações
contra Cândido de Oliveira discriminadas pela PVDE incluem ainda a organização
de grupos de resistência activa e passiva na eventualidade da temida invasão
alemã; a oposição às actividades ilegais dos serviços secretos alemães em
Portugal – bombas a colocar em navios ingleses e montagem de emissores
clandestinos; o envio para a Alemanha e territórios ocupados de propaganda dos
Aliados. Uma questão crucial ocupava entretanto o espirito de Cândido de Oliveira
na prisão… compreendo que não vou ser
libertado já, porque as provas demonstram que participei na preparação de uma
acção em nome dos Aliados para o caso de a Alemanha invadir Portugal. Mas,
sublinho, é importante determinar se essa acção seria executada caso a entrada
dos alemães fosse solicitada pelo governo português. Esta hipótese tem,
obviamente, que ser encarada, mas não me ocorreu antes…
E o que os
da polícia política portuguesa mais queriam com os tratamentos dados a Cândido
de Oliveira era que ele confessasse, pelo meio das actividades a favor da
espionagem inglesa, outras actividades possíveis, a saber: a preparação de um
golpe de Estado contra o governo português que coincidisse com o também
possível desembarque em Portugal (talvez nos Açores) de tropas
anglo-americanas. O que seria bem pensado, diríamos nós hoje, mas que Cândido
de Oliveira negara com a veemência que lhe terá custado alguns dentes e o lenho
na cabeça.
Digo “lhe terá
custado”, porque a PVDE, sabedora do protesto de YP (embaixador inglês Sir
Ronald Campbell), imediatamente refuta as acusações que lhe são feitas. É falsa a afirmação de que o nacional Cândido
de Oliveira foi agredido, e mais falsa ainda a afirmação de que o brutal
tratamento era para conseguir a confissão de que as actividades referidas se
destinavam a preparar um golpe de Estado contra o governo português.
A PVDE atira
com a informação de que a revista desportiva Stadium (fundada pelo próprio Cândido de Oliveira) era financiada
pelos serviços secretos ingleses, era um cóio de espiões e era por conseguinte
uma capa para actividades de espionagem cuja caixa de correio que havia na
porta não serviria para outra coisa senão para a circulação de mensagens
secretas.
(Porque que é
que o desinteressante e pretensioso cinema nacional não aproveita estas
histórias reais.)
Num dia de
Maio desse fatídico ano de 1942, John Beevor, o contacto dos serviços secretos
ingleses, prevê para breve a libertação de Cândido de Oliveira. Previsão
errada. Tal não acontece.
De relevante
importância seria a pessoa de Cândido de Oliveira para os ingleses, pois a 21
de Maio, o directório do SOE propõe ao Foreign Office o suborno de alguns guardas
da prisão de Caxias, admissivelmente no sentido de preparar a fuga do seu
agente PAX. O Foreign Office não diz que não a uma ajuda ao prisioneiro, mas
não concorda com o suborno. Ou pelo menos não concorda sem o parecer de Sir
Ronald Campbell, YP, o embaixador, e assim os planos de evasão ficam em águas
de bacalhau.
Nada lhe fora
solicitado, ou sequer sugerido, que não tivesse por motivação a esperada
invasão de Portugal pelas tropas de Hitler, a acontecer em concatenação com um
ataque a Gibraltar. Uma invasão que só não passou dos planos por consequência
das derrotas na frente russa.
Mas será que
Salazar pediria ajuda aos Aliados se a Alemanha invadisse de facto Portugal?
Ou, inversamente, será que Salazar pediria socorro as forças do Eixo se se desse
o caso de serem os Aliados a invadir Portugal?
Questões que
lhe martirizavam o espírito em dias de solidão cativa.
No dia 18 de
Junho, pelas vias de comunicação clandestina habituais, é Cândido de Oliveira
quem informa o seu controleiro do SOE da sua próxima deportação para o
Tarrafal. Muito agradeço o auxílio à
minha família. Eu parto com 5.000$00. Deve chegar-me por algum tempo, pois no
campo de concentração não devo ter grandes despesas.
Cândido de Oliveira parte a 20 de Junho no paquete Mouzinho. A revista Stadium é encerrada e o SOE paga as
dívidas e os salários em falta.
A 28 de
Julho, do Tarrafal, Cândido de Oliveira escreve à irmã… minha boa Maria, do coração desejo que estejas bem; eu continuo em tão
óptima disposição e excelente saúde que nada admira que obtenha uns cem quilos.
Ao menos algo ganho e, quando voltar, estarei mesmo a pedir uma entrada para a troupe de lutadores do Coliseu! Diz-me também algo
da bola, o que fizeram, etc., quem ganhou a Taça de Portugal (o
Benfica: 5-1 ao Vitória de Setúbal na final – nota minha) e o que eles projectam para o futuro.
No Tarrafal,
Cândido de Oliveira goza de um regime especial, em comparação, claro, com o dos
presos anti-fascistas (ou só anti-fascistas e sem protecção de embaixadas
estrangeiras). Vive fora do arame farpado e não está sujeito a trabalhos
forçados. Ele e os outros, já se vê, porque havia outros também integrantes da
rede do SOE. Passeiam. E só são confinados entre as 8 da noite e as 5 da manhã.
E é muito devido a esse regime de excepção, compreende-se, que ele pode montar
uma linha de comunicação com os serviços ingleses.
Mas os serviços ingleses não descansavam quanto ao
destino do seu agente feito prisioneiro. E decidem raptá-lo. Não são de modas.
E o plano é alinhavado. Contam com a colaboração de um navio francês fundeado
ao largo da ilha de Santiago.
Entretanto,
intervém o irmão de Cândido de Oliveira, Leonel, que capitaneia um navio
mercante português, o Alferrarede, e
que sente o dever moral de ter parte activa na libertação do irmão. Entrava o
ano de 43. A ideia era levá-lo para Bathurst, capital do que é hoje a Gâmbia,
e daí regressar a Lisboa.
Os homens do
serviço secreto inglês pressionam o seu embaixador quanto à situação do agente
PAX. Estará YP (o embaixador) na disposição de falar na libertação de PAX no
seu próximo encontro com H.001 (Salazar)? Era uma questão de humanidade, mas
questão de humanidade essa que YP considera irrelevante para o caso num
contexto mundial em que tantos milhares estavam a morrer de morte violenta.
E
também seguramente que H.001 levaria isso à conta de ingerência nos assuntos
internos de um país (apesar de tudo) soberano. O outro óbice era o seguinte: se
YP tencionava pedir a H.001 para suster a actuação dos serviços secretos
alemães e italianos em Lisboa, que moral teria se logo a seguir lhe solicitasse
a libertação de um elemento dos serviços secretos ingleses? H.001 replicaria
sem dúvida que, nesse caso, e dada situação portuguesa de neutralidade, teria de
libertar igualmente os agentes alemães e italianos detidos – que pelos vistos
também os havia...
O que H.001
faz é considerar o homem do SOE, e adido militar britânico, John Beevor, persona non grata e expulsá-lo do país –
teso aquele H.001…
Leonel, o
capitão de navio irmão de Cândido, borrega nas suas intenções de libertar o
preso, mas os serviços ingleses não desarmam e esboçam um plano de rapto
alternativo em que Cândido e mais uns quantos seus companheiros de cativeiro
fugiriam do Tarrafal com a ajuda de um guarda entretanto subornado chamado
Gonzaga, e tendo à espera deles na baía um vaso da Royal Navy, nem menos. Era a
Operação Disgorge.
O MI6
mandara um emissário, um tipo grego, ao Tarrafal, para ver como era e contar
como foi. E o emissário elabora um relatório. O comandante do campo é um
anglófilo que fora substituir um cruel germanófilo e autorizou o emissário dos
serviços secretos ingleses a visitar o campo, incluindo o avistar-se com
Cândido de Oliveira. As condições do campo haviam melhorado com a mudança de
comandante. A alimentação era suficiente, apesar de básica – não sei se eles
estavam habituados a lagosta e caviar – e os prisioneiros recorriam a produtos
clandestinamente introduzidos no campo pelos guardas. Agora quanto à fuga a
coisa fiava muito fino, fino de mais, era muito difícil fugir dali, o campo era
constantemente patrulhado…
Mas os
serviços ingleses continuam a não desarmar. A certa hora previamente combinada
da noite, um navio da marinha inglesa estaria fundeado na baía do Tarrafal.
Cândido e outro safar-se-iam num bote salva-vidas, iriam ter ao navio e seriam
embarcados. O bote seria abandonado de casco virado para cima, sugerindo que os
fugitivos teriam morrido no mar. Tudo deveria passar-se depois do meado de
Junho, por causa da ondulação forte no Atlântico por essa época.
Diz o
relatório da abortada Operação Disgorge: quando
constatámos que muitos outsiders, incluindo
o guarda, tinham conhecimento do plano, vimo-nos obrigados a propor a sua
anulação. Logo que os ânimos apaziguarem poderá ser possível fazer escapar
Oliveira sozinho. Mas nada se poderia fazer antes do outono.
Era muita
gente a querer pôr-se ao fresco dali, compreende-se. PAX informava que poderiam
ser uns seis. E as repercussões políticas não seriam de desprezar. Tudo
dependeria da importância das relações que a Grã-Bretanha pretendesse manter
com Portugal. E quando H.001 concorda com as facilidades que os Aliados pediam
nos Açores, o plano de fuga de Cândido de Oliveira é imediatamente cancelado
pelo SOE.
Em princípios
de Dezembro de 43, a embaixada britânica em Lisboa transmite para o Foreign
Office a probabilidade da próxima libertação do agente PAX. Afinal, tinha
funcionado a pressão diplomática. Cândido de Oliveira poderia chegar a Lisboa
no dia 20 de Dezembro, e se assim fosse os ingleses estariam prontos a
compensar monetariamente o seu agente PAX pelos dois anos de cativeiro, pela
sua acção enquanto agente do SOE, pelos maus tratos e pela perda do emprego.
E assim
acontece. No dia 13 de Dezembro de 43, Cândido de Oliveira e mais quatro
embarcam para Lisboa com escala em Bissau.
Cândido de
Oliveira chega a Lisboa a 31 e vai recambiado para o Hospital Júlio de Matos de
quarentena, por precaução contra a febre amarela.
Mas
libertado ainda ele não foi.
Nem a prisão, nem o desterro, nem o
paludismo, nem a maldita black-water fever (vi morrer 14, um dos quais tinha ido comigo), nem as ameaças e
torturas me modificaram senão no sentido de ter ainda mais ânimo para a luta.
Você contará comigo como antes – e como sempre.
Do Júlio de Matos, Cândido de Oliveira vai para a cadeia
do Aljube, e da cadeia do Aljube segue direitinho novamente para o forte de
Caxias. Andava de Herodes para Pilatos por causa da mesma temática da
correlação de forças e liberdades entre agentes ingleses e alemães e italianos a
operar em Lisboa.
Da PVDE, um
capitão Catela manda dizer que faziam tenções de libertar Oliveira quando ele
regressasse do Tarrafal, mas o embaixador inglês tinha voltado a protestar
junto de H.001 contra a ordem de libertação que fora dada para os homens da
Gestapo, ao que H.001, teimoso como um corno, havia replicado a YP “pois então,
os homens da Gestapo vão continuar presos e o Oliveira e os outros também”.
Cândido de
Oliveira está cheio de dívidas e foi demitido das funções de inspector superior
dos CTT. Quando sair finalmente da prisão vai ficar na vida com uma mão atrás e
outra à frente.
Vibrando
ligeiramente, na minha opinião, uma corda fadista, continua em comunicação com
o seu contacto secreto… nem você nem os
nossos amigos têm pois qualquer compromisso formal comigo. Sou o primeiro a
reconhecer que os meus sacrifícios, nestes dois anos de prisão, nada são ao pé
do sacrifício daqueles que já morreram na luta, dos que combatem nas frentes e
dos que estão prisioneiros dos alemães… pois sim, mas também refere que saiu
do Tarrafal com a vida completamente arruinada…a polícia, como deve saber, apreendeu todas as minhas economias (cerca
de 35 contos) com a alegação de que devia ser dinheiro da Organização…
Cândido de
Oliveira, alentejano de Fronteira e casapiano, foi de facto um homem
excepcional e uma personalidade das mais importantes do desporto português.
Foi jogador de
futebol, médio-esquerdo, no Casa Pia (cujo clube de futebol fundou) e no
Benfica. Foi o primeiro teórico português de futebol – devem-se-lhe algumas
máximas ainda hoje citadas: “o treinador quando ganha é bestial e quando perde
é uma besta”; ou, por exemplo, que o avançado-centro (no tempo não se falava
ainda em pontas de lança) pode passar o jogo todo sem tocar na bola, mas se
toca uma única vez e com esse tocar marcar o golo que dá a vitória à sua
equipa, pode ser considerado o melhor em campo. Estas e outras, que não conheço
ou de que já me esqueci.
Foi o
impulsionador da selecção nacional, de que vem a ser o primeiro capitão num
Espanha-Portugal disputado em Madrid em 1921.
É o
seleccionador nacional no primeiro brilharete do futebol português, nos Jogos
Olímpicos de Amsterdão, 1928. Foi treinador, Académica (onde institui as
tabelinhas, ou, acho eu, um tiki-taka avant
la lettre), Belenenses, F.C.Porto, Atlético e até do Flamengo do Rio de
Janeiro. É ele o treinador (talvez o primeiro) do mais histórico Sporting, o
dos cinco violinos.
Na outra
vertente importante da sua vida desportiva há o jornalismo, Diário de Notícias, Século, Diário de Lisboa,
talvez mais um ou outro¸ e fundador de jornais, a revista Stadium, e o mais importante de todos, com o seu grande amigo
Ribeiro dos Reis, A Bola, em 1945 –
acabadinho de sair do Tarrafal, como se viu.
Enfim, Cândido de Oliveira é libertado. 27 de Maio de
1944. Cinco meses depois de ter regressado do degredo no Tarrafal. E vai para
casa de um irmão na Figueira da Foz.
O SOE vai pagar-lhe daí a pouco uma
indemnização de 150 contos. O que na época era dinheiro.
Mas Cândido
de Oliveira quer continuar no trabalho secreto e pede uma transferência para
onde fosse possível. O Brasil, por hipótese. Permanecer em Portugal é que não,
tudo lhe traz más recordações, maus momentos, má vida. A menos que o SOE ainda
precisasse dele – fora de questão, acho eu, visto que era um elemento queimado
e provavelmente vigiado pela polícia, e que nenhuma utilidade poderia ter para
uma organização secreta. E ele sabe disso, com certeza que sabe. Pensa
prosseguir uma actividade subversiva e clandestina mas sabe que tal actividade…
de novo me levará às mãos da Gestapo
luso-alemã…
Porém, quando lhe propõem a ida para o Brasil que ele
tanto almejava e havia sugerido, recusa.
É
condecorado pelos ingleses. Condecoração que ficará no esquecimento por motivos
de ordem política.
Para não
aceitar a proposta para o Brasil – onde já tinha colocação à espera dele, aliás
providenciada pelos serviços secretos ingleses a operar no Rio de Janeiro -
alega razões de saúde.
Não sei mais nada da vida secreta de Cândido
de Oliveira. Só sei qualquer coisita da actividade desportiva de que falei
atrás, a actividade que o tornou realmente prestigiado e famoso no país e impôs
o seu nome para uma competição maior do futebol nacional, a Supertaça Cândido
de Oliveira. Uma super-taça onde Cândido de Oliveira nunca seguramente bebeu,
pelo menos entre 1941 e 1945.
E sei que morreu a 23 de Junho de 1958,
com 61 anos, em Estocolmo, onde, como enviado especial do jornal A Bola, cobria o campeonato do mundo de
futebol – pneumonia e complicações cardíacas…
Realmente,como o Joel tão bem afirma, que figuras e épocas fabulosas para serem exploradas em filmes. Se os realizadores estrangeiros as conhecessem, certamente as aproveitariam. Os nossos ficam-se sempre pelos "Amores de Perdição", "Os Maias", etc., etc. Que pena...
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