OS QUE CHEGARAM ANTES DE SÓCRATES,
OU O MAGO DAS SANDÁLIAS DE
BRONZE
Nessa época fui menino e menina, arbusto, pássaro e silencioso
peixe do mar.
Nunca se sabe se foi
deste poema de Empédocles de Agrigento que derivou aqui em Lisboa, aí pelos
anos 50, a
designação de peixinho do mar para
todo o macho que exibisse tiques efeminados.
De que honras, de que alturas de felicidade eu caí para errar
sobre a terra entre os mortais?
Foi por dizer destas
que Empédocles criou nos seus conterrâneos a fama de ser meio homem meio deus.
E dos que chegaram e pensaram antes de Sócrates é Empédocles aquele de quem se
conservaram melhor e mais abundantemente os textos.
Mas sabe-se, ou julga
saber-se, que Empédocles nasceu como homem na bela cidade de Agrigento em 490 A .C., e de um pai chamado
Metão que fazia parte do governo da cidade.
Eu caminho entre vós como um deus imortal e não mais como um
mortal, cumulado por todos de honrarias, como convém, e coroado de fitas e de
coroas floridas.
Oh, como devia ser
precioso e inefável este Empédocles. E pela descrição de si mesmo uma espécie
de hippie avant la lettre. E também lhe chamaram Mago, Mago possuído pelo deus…
E vós, ó deuses, desviai da minha língua a loucura destes homens
e fazei brotar dos meus lábios santificados uma nascente pura…
E tu, deusa de numerosos pretendentes, virgem de braços brancos,
invoco-te. Dá-me o saber que as divinas leis permitem entender às efémeras
criaturas, conduzindo um carro dócil vindo do reino da Piedade.
É tão estranho isto.
Dá-me o saber que as divinas leis permitem.
É estranho tomar conhecimento
de quanto noutras eras o saber, a sabedoria, o conhecimento, eram anseios
poderosos de tanta gente, eram meios de obtenção de prazer próprio e condição
de ascensão na vida da cidade, e como no tempo desgraçado que vivemos, o tempo
de Sócrates (ou do pós-Sócrates), o saber não é mais do que uma chumbada, quando os doutores que
proliferam desprezam o saber e anseiam pela aparência dele em forma de diploma ou
certificado de habilitações, e em que o saber e o respectivo sabedor chegam a
ser desprezados como chatos insuportáveis e evitada a sua companhia, e só
porque ela pode pôr em relevo a ignorância circundante dos que com ele poderiam
conviver, e não convivem porque estamos no tempo que se pretende como novo, e
em que tudo o que é velho, incluindo o saber, é para ser esquecido depressa e
para evitar, como se nunca tivesse existido nem nunca pudesse tornar a existir…
É verdade, conheço
directores disto e daquilo para quem um subalterno com o equivalente à antiga
4ª classe já é uma ameaça.
Todos os remédios que existem para te defenderes da doença e da
velhice tu os aprenderás, porque só para ti quero realizar tudo isso. Tu
amainarás o furor dos ventos infatigáveis que se precipitam sobre a terra e em
trombas de água devastam os campos, e de novo, a teu gosto trarás de volta a
brisa benfazeja.
Pelo que nos diz o
Prof. George Steiner, estes sábios dos tempos de antanho, com toda a razão
anteriores a Sócrates (oh, muito, mesmo muito anteriores), eram, ou podiam ser,
pregadores itinerantes e personagens enigmáticas. Empédocles, como outros,
expunha a sua filosofia em versos, e porque não havia tão grande distinção
entre o filósofo e o rapsodo, entre a pedagogia e a arte, e os tratados dos
mestres pensadores podiam ser apresentados ao povo – e aos discípulos – em
forma de declamação e de canto.
A mística do mestre e
do aluno chegou-nos muito pelo que se conhece das hagiografias de Pitágoras e de
Empédocles.
No tempo do Mago
Empédocles as teorias do pitagorismo e do heraclitismo pululavam pela Sicília e
incendiavam as mentes. Empédocles, crê-se, terá chegado à fala com Parménides e
com Ésquilo.
E havia as grandes correntes do
misticismo de Dionisos. E por toda a terra da Sicília deambulavam os místicos errantes
que exorcizavam os doentes, pregavam como oráculos e recitavam purificações. E
era este o ambiente cultural em que Empédocles se movimentava e em função do
qual se deu à composição da sua personagem, a meio caminho entre o mago
taumaturgo, o rapsodo-cantor e o profeta.
Eis mais um excerto
de uma das suas purificações: Após as
sombrias chuvas criarás uma seca propícia. Para os homens, e de novo, após a
estiagem do verão, trarás as chuvas que alimentam as árvores e caem do céu. E
reconduzirás do Hades a alma de um homem já morto.
Empédocles
reclamava-se do poder de curar e de ensinar aos homens o caminho da fortuna. A
verdade só provém da divindade, que faz dele somente o seu intermediário,
vagabundo exilado dos deuses, porque, diz, não
se pode trazer o deus ao alcance dos nossos olhos nem com as mãos o agarrar;
esses são os meios pelos quais a persuasão penetra no espírito dos homens.
O saber de Empédocles
não é senão conclusão das reencarnações sucessivas de que foi objecto. Também
ele está no número dos condenados à errância por anos e anos. E foi no decurso
das transmigrações que adquiriu o conhecimento completo do ciclo dos seres. E
por isso também ele (como Pitágoras) recorda as vidas anteriores.
Nessa época fui menino e menina, arbusto, pássaro e silencioso
peixe do mar.
Empédocles reclama-se
de ter vivido no âmago da mistura de onde nascem as coisas e o próprio Homem. E
nessas andanças foi capaz de incorporar o segredo da multidão de forças que ora
criam os elementos ora os destroem. Era senhor de poderes sobrenaturais, dizia-se.
Arrogava-se a faculdade de poder dar ordens à própria morte.
Indo no plano prático
e objectivo, parece certo ter havido na região algumas manifestações do poder
de Empédocles. Diagnosticou a proveniência de uma epidemia de peste que
infectou a cidade de Selinone: as insalubres emanações de uma água de nascente
próxima. Como era homem que tinha de seu, chegou a pagar do próprio bolso os
trabalhos de desvio do curso de rios com vista à purificação das correntes. E
por ser assim os habitantes da cidade contribuíram para a fama dele: meio homem
meio deus.
O clima mesmo da sua
cidade, Agrigento, diz-se que ele o conseguiu modificar – na volta ainda é o
nosso Empédocles, numa das suas transmigrações, que anda a tramar o clima
destes nossos dias de Sócrates, pós-Sócrates. Pois bem, Empédocles mudou o clima de Agrigento
mandando dispor peles de burro na passagem estreita por onde entravam os ventos
etésios que ameaçavam as colheitas.
E foi também na medicina
que o mago de Agrigento exerceu as suas faculdades. Uma mulher que havia um mês
não respirava foi ressuscitada por ele. Como? Descobrindo um ponto de calor à
flor da pele e percebendo que estava a lidar com uma histérica.
Pela música
apaziguava ele as paixões.
Um dia apareceu-lhe
pela proa um jovem a acusá-lo de ter condenado o pai à morte, e ele não fez
mais nada, começou a cantar-lhe uns versos da Odisseia, uma espécie de canção
do bandido que fala de uma droga, o nepentés, que acalma e dulcifica a cólera e
cura a maior parte das maleitas.
Porque, enfim, o Ser
é a permanência – na visão de Empédocles. O caminho da verdade é o que conduz
ao Ser e do Ser não há devir. Uma esfera. Sfaïros – a esfera imóvel contínua e
contígua a si mesma, que para Parménides era o Ser.
Sfaïros que Heraclito
pusera em aparente movimento, um movimento que não lhe permite sair de si,
porque no coração do Ser habita o Logos que dá o Sentido das coisas e dos
seres. E Empédocles toma essa noção da esfera do Ser, Sfaïros, e diz que dela
nada ainda divergiu porque é espírito sagrado, luz pura e ignara das sombras do
Ódio que provoca as divisões.
Fixo no espesso invólucro da harmonia, o Sfaïros é alegre em sua
revolução solitária. Não há discórdia nem luta entre os seus membros. É igual
em todos os sentidos e semelhante a si própria e sem limites.
Sfaïros circular e alegre porque não se veem dois ramos
soltarem-se do seu dorso. Não tem pés nem joelhos ágeis nem órgãos genitais. É
esférico em todos os sentidos. Igual a si próprio.
Ao Ser divino e
inacessível aos homens nada seria exterior. Não conhece a paixão, ignora o
combate e o Múltiplo. Apenas… É.
Havia, segundo
Empédocles, um paraíso, doravante perdido. Havia uma idade do ouro primitiva
onde a inocência reinava. Mas de lá os homens foram arremessados sobre a terra
e aí sim, ficaram entregues à luta dos contrários.
Só os piedosos
voltarão para junto dos deuses para continuar a paz e a harmonia e conhecer de
novo a era em que todas as criaturas eram familiares e doces, homens, aves,
animais selvagens. Mas na terra o Homem é o ser exilado a expiar uma existência
anterior.
Eu sou o vagabundo exilado dos deuses porque pus a minha
confiança no ódio furioso. E chorei e solucei à vista desta terra insólita.
É aborrecido, eu sei,
falar disto nos tempos de hoje, quando ninguém está para se chatear por causa da
cultura e do conhecimento, mas o mundo de
Empédocles é uma tragédia cósmica onde lutam as duas forças que orientam os
fenómenos do universo: o Amor e o Ódio.
É o ciclo dos nascimentos e
renascimentos que superintende à justiça do mundo. Há as potências que podem
conduzir as almas ao mundo dos homens, dizendo: chegamos a esta caverna aberta e mundo é o lugar da infelicidade onde a
morte e o ódio e os outros génios do mal e as doenças que destroem e as
putrefacções e a dissolução vagueiam nas trevas pelas campinas da desgraça.
Mas depois
haverá seres privilegiados. Pitágoras. Empédocles. Esses, os que têm o poder de
recordar as suas vidas anteriores e desse poder de reminiscência beber das
fontes prodigiosas da sabedoria.
Porque o conhecimento
não é proveniente dos sentidos nem do espírito. O conhecimento provém de uma
reminiscência das vicissitudes dos elementos em sua jornada de misturas e
divisões. O conhecimento é gnose. É iniciação, êxtase. Purificação.
O conhecimento
mergulha nas profundezas do tempo, imune às divisões que separam e à
multiplicidade que dispersa.
O Amor e o Ódio, como eram antes, assim serão, e jamais o tempo
infinito será despojado deste par.
A união de todas as coisas provoca o nascimento e a destruição.
Mas como aparece o
ódio se no pensamento de Empédocles não entra a ideia de criação?
Talvez o ódio, como o
amor, sempre tenham existido, incriados, e como sempre haverão de existir, dado
que o tempo jamais prescindirá deste par.
E poetiza Empédocles:
enquanto tudo se reunia, o ódio era
atirado para os extremos limites. E isto enquanto o amor se acharia no
núcleo do turbilhão da unidade, atraindo tudo a si de forma a poder constituir
o Uno. O pior foi quando o tempo se completou e deu voz ao ódio que estava
segregado nos limites.
Quando o ódio começou a prevalecer houve movimento no Sfaïros e
todos os membros do deus foram abalados.
Às vezes, sob o efeito do amor, todos os membros que o corpo
possui se reúnem no Uno, no auge da vida florescente. Outras vezes, dispersos
pela nociva desavença, erram por sua vez, até às mais longínquas margens da
vida.
E dir-te-ei ainda outra coisa: das coisas mortais não há criação
nem desaparecimento na morte funesta, mas apenas mistura e dissociação do que
foi misturado.
Sim senhor, porque o
conceito de criação foi atribuído pelos homens ao fenómeno das metamorfoses no
interior de um ciclo.
Quando os elementos combinados surgem à luz sob a forma de um
homem, ou sob a forma de qualquer outro animal ou planta, então os homens dizem
que houve um nascimento. E quando os elementos se separam os homens chamam a
isso morte funesta e não utilizam os termos que a justiça exige.
A teoria empedocliana
das raízes das coisas. A água para Tales. O ar para Anaximandro. O fogo para
Heraclito. E para Empédocles? A terra. A terra de onde saem os seres vivos e à
qual regressam.
Crescem impelidos pelo calor que existe na terra como se fossem
partes dela.
A respiração é, no
domínio da fisiologia de Empédocles, o fenómeno capital, o acto elementar que,
pelo ritmo, conserva a vida e permite a união do que somos a tudo o que nos
rodeia. E onde também prevalece o tema da mistura e da luta, sangue e ar, que
se perseguem mutuamente.
As diferenças
individuais. E no centro delas está o desejo que empurra os seres uns para os
outros, não obstante essas mesmas diferenças que os deveriam manter para sempre
afastados.
A sensação. A
sensação é como a respiração pela qual o que percebe se apercebe do percebido.
E permite ao Homem a comunhão com o que o circunda, como nos versos seguintes
de Empédocles: assim o doce se apercebe
do doce e o amargo se precipita para o amargo, o ácido para o ácido e o quente
para o quente. É no Homem que residem as raízes do universo, e por ser assim
recebe o Homem do universo a mensagem.
Para Empédocles, o
maior dos crimes era o crime de sangue. E não era por mais nada, era só por
poder interromper o ciclo das reencarnações. E assim que para ele, como para
Pitágoras, também fosse de proibir comer carne e oferecer sacrifícios.
Julgo que segundo uma
tradição oral pouco segura, e dentro do âmbito de uma decisão política que lhe
coube, Empédocles terá ordenado algumas execuções capitais dos seus inimigos,
em resultado do que o povo se teria levantado contra ele, desterrando-o para o
Peloponeso. No entanto, por outro lado, antes de morrer, o pai de Empédocles
trabalhava numa constituição democrática para a cidade. E quando o senhor
morreu os aristocráticos sublevaram-se, o que terá levado Empédocles a tomar o
partido da democracia. Não ponho as mãos no fogo por nenhuma das hipóteses.
Disse-se que o
quiseram fazer rei e que ele recusou. E objurgou duramente todo aquele que
pretendesse obter algum privilégio social ou político. Também se diz que
politicamente Empédocles era um liberal que atraía a si grande popularidade e consequentes
invejas e inimizades – coisas que aconteciam até antes de Sócrates. E até ao
dia em que lhe deu na veneta pôr-se a viajar.
Foi à Grécia. Em
Olímpia mandou cantar, não sei se um cego, mas pelo menos um rapsodo, um tal
Cleomenes. Mandou-o cantar alguns dos seus versos e purificações. Talvez tenha
feito algumas compras nos elegantes centros comerciais de Atenas. Não está
provado. Até ao dia em que lhe apeteceu regressar a casa, a Agrigento. Mal
sabia o que o esperava.
Pois foi. Ao chegar
às portas da cidade, o serviço de fronteiras proíbe-lhe a entrada. Que eram
ordens, que eram ordens. Na ausência, os inimigos tinham ganho preponderância
política. E Empédocles foi posto à margem e viu-se na contingência de ter que
peregrinar por esse mundo, exilado dos deuses, como ele dizia, acompanhado pelo
discípulo dilecto, Pausânias, que mais tarde seria médico com consultório ali
na avenida…
Empédocles foi uma
personagem fabulosa, rodeada de lenda. A pontos de impressionar a imaginação
dos românticos alemães. Hölderlin. Nietzsche. Escreveram tragédias nunca
acabadas sobre ele, o filósofo das visões trágicas. Foi eleito por eles um
herói romântico assoberbado por um desejo de infinito. Ou o homem agonal de
Nietzsche, cirandando entre o mito, a orgia e a razão. E Schopenhauer também
lhe fica devedor. E também o dramaturgo contemporâneo Gerhardt Hauptmann. E até
Freud.
Mas ainda falando da
obra de Nietzsche, leio que para ele Empédocles era alguém que perversamente
ansiava pela ruína do seu povo – que achava medíocre e preguiçoso – e que usara
o conhecimento contra a sua própria pessoa, e referindo alguns estudiosos que
Nietzsche, à sombra de Empédocles, não falara na sua tragédia de mais ninguém a
não ser ele próprio.
Freud, já se sabe,
via na filosofia grega a fonte das suas teorias, o mundo terrível onde se
debatem Eros e Thanatos, as pulsões da vida e da morte.
No século IV grego
instala-se em Siracusa uma escola empedocliana de medicina.
E por fim, a fabulosa
morte de Empédocles.
Não se sabe de
certeza como morreu. A lenda que envolve a morte de Empédocles foi da ordem
poderosa que substituiu a História, ou acabou por ser adoptada pela História,
como eu acho que deveria acontecer sempre, quanto mais não fosse porque a
lenda, a efabulação, pode ser mais bela do que a realidade, e prescrevendo eu
por minha conta que a realidade só deveria alimentar a História no caso de ser
mais bela e mais trágica do que a ficção.
Há quem diga que
Empédocles se afogou. Há quem diga que foi por causa de uma ferida feita num
desastre com o seu carro – talvez conduzisse sob o efeito do álcool, ou da
droga, não me admiraria nada.
Empédocles dá uma
festa com muitos convidados. Acabada a festa, os convidados vão para debaixo
das oliveiras passar pelas brasas, enquanto Empédocles fica a meditar no lugar
onde estava.
A madrugada vai alta
quando os convidados acordam. Vão por ele e não o encontram. Entra um criado da
casa. Ai, meus ricos senhores, ouvi uma voz muito forte a chamar Empédocles… Empédocles… e ao mesmo
tempo, meus ricos senhores, vi uma luz a brilhar nos céus.
Entra o discípulo
amado, Pausânias. Vão em paz e não procurem mais o mestre. O mestre tornou-se
um deus. O mais certo é ter sido arrebatado da terra enquanto nós dormíamos e a
esta hora já foi acolhido nos céus.
E sobre esta primeira
versão da morte de Empédocles se forja a outra, complementar, de fazer delirar
as mentes românticas. Empédocles teria saído de casa acompanhado por Pausânias,
teria subido ao monte Etna, ter-se-ia despedido do discípulo amado e ter-lhe-ia
pedido que o deixasse só no alto do monte para se precipitar em seguida para a
cratera do vulcão, porque achara por bem purificar-se pelo fogo, mergulhar no
centro da terra, tornar ao ciclo dos seres. E a prova de tais casos terá sido
uma sandália de bronze de Empédocles que o Etna teria expelido dias depois para
o exterior.
E não sei que mais
possa dizer acerca dos que chegaram antes de Sócrates.
Porque no meio disto tudo chegou Sócrates.