OS
QUE CHEGARAM ANTES DE
SÓCRATES, OU SUBSÍDIO PARA
UMA REABILITAÇÃO FILOSÓFICA
DE LILI CANEÇAS
Um momento que já chegamos à Lili
Caneças.
Primeiro temos que saber de uma primeira tentativa de
desmitologização do pensamento. Ficou a dever-se a Xenófanes.
Que os homens
caricaturavam os deuses e os concebiam antropomorficamente, atribuindo-lhes
tudo o que entre os homens é pouca-vergonha. E ainda muito judiciosamente nota
Xenófanes: os etíopes representam os seus
deuses negros e de nariz achatado; os trácios dizem que os seus deuses têm
olhos azuis e cabelos ruivos. Mas se os bois e os cavalos tivessem mãos e com
elas pintassem, pintariam as formas dos deuses semelhantes às dos cavalos e dos
bois, fariam os corpos dos deuses segundo a sua própria espécie.
Xenófanes foi o chefe da escola
eleática, ou seita eleática. Xenófanes é o pensador da unidade, o Todo, segundo
a opinião de Platão. Xenófanes sobrepõe o saber à aparência. Os deuses possuiriam,
eles sim, o verdadeiro saber; aos homens não restava mais do que a conjectura.
E Xenófanes riu-se de Pitágoras. E Heraclito considerava Xenófanes um erudito
pouco inteligente.
Mas é Parménides o fundador da
doutrina eleática e com ela a ideia da unicidade do Ser.
Platão afiançava para quem o quisesse
ouvir que Parménides, já rapaz para os seus 65 anos, tinha ido pelo braço de
Zenão passar uma temporada a Atenas, por volta do ano de 450, e que por acaso se
chegara a encontrar com um jovem chamado Sócrates que andaria a tirar um curso
qualquer. Não se sabe se é verdade. Não se sabe que curso. Não se sabe se
chegou mesmo a tirá-lo.
Não, não é a respeito desse curso de
Sócrates. O que não se sabe se é verdade é que Parménides tivesse estado em
Atenas e com o tal Sócrates se tivesse avistado. Ou então a prova de que se avistou
ainda hoje faz parte do processo e deve estar em segredo de justiça, porque só
Sócrates saberia onde estava em 450 antes de Cristo. E talvez já nem se lembre
da cara de Parménides.
Se Xenófanes se riu das bacoradas de
Pitágoras, a Parménides tocou gozar à parva com os ditos de Heraclito – isto de
intelectuais, estamos conversados, são todos o mesmo por toda a parte e em todo
o tempo… ainda um dia gostava de saber porque é que me tornei intelectual…
As
águas que me transportam levaram-me tão longe quanto o meu coração poderia
desejar.
Sim, pois claro, a obra máxima de Parménides é um poema. As águas que o tinham
transportado puseram-no na rota da deusa que dirige o homem que sabe através de
todas as coisas. O carro de Parménides era guiado por donzelas e franqueou as
portas do Dia e da Noite e ele apresentou-se à divindade que lhe deu as
boas-vindas…
Lindo.
Qual Lili Caneças da escola dos
eleatas, Parménides arranca para a celebridade com o axioma sobre o Ser. Disse
ele: o Ser é, e o Não-Ser não é. E por aqui poderia ter início uma campanha de
reabilitação filosófica do pensamento de Lili Caneças, que tão gozada foi aqui
há tempos quando disse, se não estou em erro, e com verdade irrefutável, que
morrer era o contrário de estar vivo – e portanto que o viver é o estar vivo, e
o morrer é o estar morto. E ninguém a levou a sério só porque mora aqui perto,
na linha, e não se assenta à miserável e mediterrânica mesa de um destes
filósofos de pé descalço que não tinham onde cair mortos, que não tinham
empresas de construção civil e só por isso não eram convidados para as mesmas
festas…
O Ser, sendo o que é – agora já não é
Lili Caneças a falar (mas podia até ser), agora é o Parménides – o Ser, sendo o
que é, não pode ser negado. Nem mesmo em parte. E sem recurso ao movimento, à
mudança.
O Ser é. É, não sendo engendrado. É
imperecível. Não tem um fim. Nunca era,
ou será, porque é, agora, e por
inteiro, uno e contínuo e contíguo a si mesmo. Indivisível. Imóvel. Fixo. Sem
falhas. Concluído por todos os lados, como a curvatura de uma esfera e com
raios iguais a partir do centro. O Ser nada sabe do que seja dispersão, ou
reunião. Ignora o tempo. Nada tem a ver com o espaço.
Para Parménides a eternidade não
relevava de uma duração temporal. A eternidade era, muito simplesmente, a
negação da existência do próprio tempo.
Por mais chata que esta conversa
seja, às vezes é bom lembrar algumas coisas que o tempo globalizado e economicizado
faz por esquecer nas circulares ruínas da contemporânea memória humana (e
portuguesa, ainda para mais). E umas filosofadas de vez em quando mal também não fazem. E até porque
nos recordam uma faculdade do ser humano para além do comer, do beber, do
cheirar pó, do navegar na Internet, do rir alarvemente, do abanar o capacete,
do conduzir com os copos a 200 à hora, do gritar pelo fêcêpê (FCP) ou pelo
éssélebê (SLB)… antigamente havia outro por quem se costumava gritar… ai como
era…
Em suma, umas filosofadas
recordam-nos a faculdade que o ser humano também tem e que nas últimas e
gloriosas décadas da economia global tão posta tem sido pelas ruas da amargura,
e que é a tal faculdade de pensar uns centímetros para além do próprio umbigo o
da própria ambição de ser rico…
O Não Ser não É e acabou-se a
conversa. Lili Caneças poderia ter dito esta com originalidade se o estúpido do
tal Parménides não se tivesse antecipado. O Não Ser não É.
E será possível conhecer o que não É?
Será possível dar um nome ao que não É? Só se pode nomear o que É, o Ser, e
esse é um princípio identitário de onde não se pode sair. Então e o erro?,
perguntará mais tarde, sofisticamente, Platão.
Levando a ideia de Parménides à
risca, o erro nunca poderia ser afirmado. O erro seria um Não-Ser – quer dizer
então que o Ser nunca pode estar errado?, pergunta o meu deficiente espírito
filosófico. Mas adiante. Se o erro é um Não Ser e o Não Ser não pode ser
nomeado, ergo, o erro nunca poderá
ser declarado. E por aqui se detectam as divergências de Parménides e dos
eleatas com o heraclitismo. O Ser por um lado, o Devir por outro. Duas
concepções do mundo e do Homem que se tentou harmonizar falando de um Devir no
âmago do próprio Ser. Ou o contrário.
A divindade diante à qual Parménides
foi presente olha muito séria para ele e diz-lhe: presta atenção no que te digo, rapaz, e guarda-o em ti mesmo. Há só duas
vias de procura. Lembras-te da Lili Caneças? Ora ainda bem. A primeira, lá vai:
o Ser é, e é impossível para ele não ser; o Ser é a via em que se pode confiar porque
segue apenas a Verdade. A segunda é que o Ser não é, e que o Não Ser é necessário,
e esta, digo-te francamente, filho, é a via onde nunca encontrarás seja o que
for em que possas confiar.
Parménides escusava-se então de
pensar o Não Ser. Não se devia nem ao menos pensar no que Não Era. Mas uma data
de séculos mais tarde aparece um homem chamado Martin Heidegger para afirmar
que Parménides pensava o Não Ser, ainda que declarando não o fazer – o que era
um problema levado de seiscentos diabos. Parménides, para Heidegger, pensava o
Não Ser, e mais, até o elevava ao nível de um conhecimento… e eu por acaso até
acho bem…
Para Heidegger, tanto a via do Ser
como a via do Nada devem ser pensadas – também acho -, porque ao dizer-se do
Nada que não é nada arriscamo-nos a ignorar eternamente tudo acerca do Ser. É
assim mesmo.
Aprende
a partir daqui o que os mortais têm em vista – a divindade a falar ao Parménides. E toma atenção, miúdo, anda cá… toma atenção
à ordem enganadora das minhas palavras. Anda cá, rapaz, não te vás embora, anda
cá… os mortais têm confiado na nomeação de duas formas, uma das quais nem
deveriam nomear, e é aqui, percebes, é aqui que eles se afastam da verdade.
Julgaram essas formas opostas e deram-lhes sinais diferentes, e é por isso que
pensam, raios os partissem, que todas as coisas estão cheias ao mesmo tempo de
luz e de treva.
E aqui aparece a terceira via entre um
Ser e um Não Ser: a opinião. Que não é via nem para o Ser nem para o Não Ser.
Para alguns seria a via do erro, mais próxima do Não Ser do que do Ser.
Haveria portanto uma doutrina da
verdade e uma doutrina da opinião. A alétheia
e a doxa. E aqui está como os
sapientes que vieram antes de Sócrates já previam o que aconteceria no tempo de
Sócrates – é inocente?, é culpado?
Também alguns exegetas do eleatismo
de Parménides pretenderam que a opinião fosse resultante de uma queda original.
E daqui os erros das representações humanas. Erros evitáveis se pudéssemos
contemplar unicamente a verdade. Pois era…
Mas haverá, minhas senhoras e meus
senhores, uma necessidade de relação entre verdade e opinião. Haverá? Consta
que sim. E lá vem outra vez o antipático Heidegger. Para Heidegger a terceira
via seria a do aparecer – Ser, Não Ser e Aparecer – e essa seria a via dos
pontos de vista, e considerando-a como pertencente à via do Ser. E o homem que
na verdade sabe percorrerá as três vias, o Ser, o Não Ser e o Aparecer.
A Aparência. E cá temos de novo a
querida LIli Caneças, a que ainda não se cansou de aparecer. Nas festas. Nas
viagens. Na CARAS. Aparecer, ou seja, aparentar. Aparentar o quê? Juventude.
Charme. Sedução. Fortuna.
Aparência. Como se os homens tivessem
duas cabeças, uma para ver o Ser e outra para aperceber o Não Ser, errando, diz
o filósofo, por aqui e por ali como estultos insensatos, sem poderem ver claro
coisíssima nenhuma – como, repito, antes de Sócrates, eles já compreendiam o
que se passaria no tempo de Sócrates…
Parménides aspirava a afastar o Homem
do conhecimento sensível, tirar-lhe o vício de se deixar dominar pelo olhar,
pelos ouvidos, pelas palavras. O Homem deveria ajuizar com a razão e com a razão
percepcionar as coisas distantes como se estas estivessem mesmo diante dos seus
olhos. Isso é que era bom. Que teria sido do Sócrates, e dos que vieram antes e
depois dele, se os homens tivessem seguido o ensino do Parménides?
Pode parecer esquisito nos dias que
vivemos, mas o certo é que não se pode pensar sem pensar alguma coisa. O pensar
coisa nenhuma é um não-pensar, como o dizer coisa nenhuma é um não-dizer.
O Cristianismo. Não sei se digo uma
baboseira, mas ao ler, mesmo por alto, as concepções destes pensadores que
reflectiram sobre tanta coisa antes de Sócrates o ter feito, sente-se (eu pelo
menos sinto) no pensar deles uma força que foi primórdio e inspiração de
esquemas de raciocínio muito posteriores e que, devidamente adaptados ao fim em
vista, nos vieram a ser transmitidos como doutrina cristã. Ou sentimos hoje a
doutrina cristã como uma ressonância, aqui e ali mais ou menos presente, dos
pensamentos pré-socráticos.
E claro que os pensadores cristãos e
os doutores da Igreja, os clementes de Alexandria e tantos outros, estudaram em
profundidade os sábios mais antigos e neles beberam alguns elementos
estruturantes da sua doutrina. Heidegger, por falar nisso, acusa os pensadores
cristãos de terem deformado o pensar de Parménides. Heidegger não concorda em que o Ser não seja mais
do que acto de pensar.
O reino abrir-se-ia e se
desenvolveria na luz, e assim o Ser seria o Aparecer, a manifestação – lá está
a Lili Caneças a aparecer, a
manifestar-se constantemente na CARAS. O conhecer deveria traduzir-se por um
entender. Ou até por um atender, um ouvir, permitir a palavra, o testemunho.
Entendimento daquele que concorda; atendimento daquele que ouve. Trazer ao Ser
o que aparece. E detê-lo. Acho isto muito bonito, que é que querem? A Lili
Caneças a aparecer em cada festa e a ser trazida ao Ser…
O
entendimento e a razão de ser do entendimento são a mesma coisa - disse Parménides. E disse mais: deve Ser o que pode ser pensado e de que se
possa falar. Ou: é necessário que um
pensamento e uma expressão sejam.
E tocamos o território do
existencialismo. Com Heidegger. A essência do Homem seria afinal a sua
existência. Enquanto o francês Ettiène Gilson diria que a doutrina de
Parménides concluía pela oposição Ser/Existir, O que É não existe. Ou então, o
que existe não É, se dermos existência a um devir do mundo sensível. Lili
Caneças nunca iria tão longe, tenho a certeza…
Antes de chegarmos a outra estrela
maior do firmamento das ideias, daquelas que vieram antes de Sócrates,
Empédocles, consideremos outro grande actor da escola eleática: Zenão. E disse
Bergson: a metafísica data do dia em que
Zenão de Elea notou as contradições relativas ao movimento e à mudança tais
como a nossa inteligência as representa – um bom assunto de meditação para
Sócrates, depois do mestrado em Paris, e agora que ele não tem muito que fazer.
Zenão era mesmo de Elea. Nascido
talvez em 489. Foi político e lutou contra a tirania. Entre outras coisas,
produziu uma interpretação de Empédocles. Zenão, para Aristóteles, teria sido o
pai da dialéctica. Porque apanhava uma das essenciais hipóteses da tese do seu
adversário e alargava-se por ela, tirando dela conclusões contraditórias.
A celebridade de Zenão foi consagrada
pelo que se chama de aporias. As aporias de Zenão. Aporia que, grosseiramente
falando, se pode dizer uma figura de retórica pela qual o orador parecia
hesitar sem conseguir uma conclusão, uma espécie de pensamento circular.
Zenão criticava os pitagóricos nas
suas convicções acerca do Múltiplo. A teoria pluralista não servia para
demonstrar o movimento
Eram quatro as aporias de Zenão. Já
agora que estamos a falar nele…
Dicotomia. Aristóteles expõe o
problema. A impossibilidade do movimento. Um móvel transportado deverá primeiro
atingir a metade do espaço antes de atingir o seu fim. Nem é bom pensar ou
especular sobre o movimento, porque o movimentado terá de atingir o meio de um
dado percurso, a seguir o meio do percurso que falta, e ainda o meio do
percurso que ainda falta, e assim até ao infinito. Aproximar-se-á do fim, mas nunca
o poderá atingir.
É muito para mim…
Aquiles. Aquiles (o veloz) e a
tartaruga (a vagarosa). O mais lento a correr nunca será alcançado pelo mais
rápido – ora aqui está um argumento que bem podia ser usado pelo Comité
Olímpico Português para transformar os nossos corredores em vencedores
pré-socráticos…
Bem, o perseguidor deve começar por
atingir o ponto de onde o fugitivo partiu, e daqui o avanço do mais lento.
Organizando uma corrida entre o fulminante Aquiles e a pachorrenta tartaruga e
concedendo a Aquiles uma breve desvantagem, quando ele chegou ao ponto onde
estava a tartaruga ao partir, o ponto T, já a tartaruga lá não está, já estará
em T 1; e quando Aquiles chegar a T1 já a tartaruga irá em T2. E Aquiles não só nunca
poderá ultrapassar a tartaruga como nem sequer a alcançará. Só se aproximará
dela. Até ao infinito.
(A chatice é que isto é tudo a pensar
no infinito…)
E veio séculos muitos depois Henri
Bergson criticar o bom do Zenão e descobrir-lhe a careca do erro. O erro foi
acreditar que uma corrida de A a B seja composta por uma soma de corridas
sucessivas. Zenão estaria certo se, quando Aquiles está no ponto em que estava
a tartaruga na partida anterior, fizessem parar os corredores, dando
seguidamente a partida para uma outra corrida. E não me perguntem mais nada a
respeito desta aporia…
E vem agora a seta. Quando atirada, a
seta está em estado de paragem, em repouso. Uma coisa só pode estar em repouso
quando ocupa um espaço igual ao seu volume. E se depois de atirada a sete continua
a ocupar um espaço igual ao seu volume é porque está em repouso, nunca chegará
a nenhum alvo.
(Não, esta não.)
Ah,
cruel Zenão de Elea, tu me varaste com essa seta alada que vibra, que voa e que
não voa, é o silvo que me cria e é a seta que me mata – escreveu Paul Valéry num poema de Le Cimetière Marin.
O estádio. Duas multidões iguais, em
velocidades iguais, devem percorrer espaços iguais em tempos iguais, movendo-se
ao encontro uma da outra a partir das extremidades do estádio. E se duas
multidões se movem assim, cada uma gasta para correr o comprimento da outra
metade do tempo que gastara se uma delas estivesse parada, porque, para Zenão,
a metade do tempo é igual ao seu dobro.
E não, não me perguntem mais nada,
porque isto, devo confessar, é mesmo muito para a minha inteligência, ou como
diz a sabedoria do povo: é muita areia para a minha camioneta.
O espaço e o tempo são norma de
pluralidade das coisas e de mudança, e se eles se apresentam contraditórios
revelam apenas que a mudança e a multiplicidade são contraditórias. Quer dizer:
irreais.
Sempre me tinha palpitado qualquer
coisa do género…
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