A MÃE,
E A CHEGADA
DOS NOVOS DEUSES
A certa altura da tormentosa jornada, os argonautas
– os da nau Argos capitaneada por Jasão, que demandava a Cólquida em busca do
Velo de Ouro – foram dar à ilha de Lemnos.
E depois? Que tinha esta ilha de especial?
Tinha. Tinha que era uma ilha onde só
viviam mulheres; mulheres que se tinham revoltado contra os homens e os tinham
pura e simplesmente exterminado.
Mas essas mulheres violentas, fundamentalistas,
ainda assim trataram menos mal os navegantes. Deram-lhes de comer, de beber, de
vestir…
Mais confortados, os argonautas foram seguidamente dar ao país
das mulheres guerreiras. Que se chamavam amazonas. E que contraditoriamente eram
filhas da pacifica ninfa Harmonia, tendo contudo por pai o deus da guerra,
Ares.
Conhecedores da violência das amazonas, os
argonautas não quiseram nada com elas, passaram de largo e seguiram o seu
heróico caminho sem fundear.
Muito bem. Toda a gente sabe que existiram
na História da Humanidade as soluções patrilineares e matrilineares - sem falar
das bilineares - como organização de vida e de poderes dentro das famílias. Era
conforme a sucessão na chefia e nos direitos patrimoniais fosse feita, pela
linha paterna, materna, ou pelas duas. E cada uma dessas modalidades se foi
definindo História fora, em função dos hábitos de cada comunidade, em poligamia
ou monogamia. O que determinava os diferentes
sistemas de repúdio, ou de divórcio, postos em vigor.
E as amazonas entram aqui por isto: houve entendidos
nesta matéria que interpretaram as relações nas sociedades primitivas como
promiscuas, circunstância que pode ter unido as mulheres no processo de
vincular os homens ao casamento monogâmico. E quem se viria agigantar na defesa
das pretensões das mulheres? Pois quem havia de ser, as amazonas. Que impunham
pela força das armas os seus pontos de vista e os interesses sociais e comunitários do seu sexo.
E agora, a mãe. A figura. A instituição. A
mãe, talvez a mais poderosa instituição familiar.
Olhem o caso da primitiva família
israelita. A autoridade da mãe aumentava na razão do universo dos filhos que
concebia. Na Assíria, na Babilónia, sim, a mãe detinha os mais alargados
poderes. E até competia à mãe a chefia da família na ausência do pai, a dar-se
o caso de o filho mais velho ser ainda menor de idade.
Nos tempos idos do matriarcado só a
descendência materna tinha valor. Os filhos eram pertença da mãe e da tríbu da
mãe. A autoridade masculina reconhecida era a do tio materno mais velho. O
homem, quer dizer, o pai dos filhos, o marido, ficava em casa, e cumpria as
tarefas que aos nossos contemporâneos e ocidentalizados olhos normalmente são
atribuíveis às mulheres. A este sistema também se chamou de ginecocracia.
(Só um parêntesis. Posso dizer que eu
mesmo, nos acidentes da minha vida pessoal, tive ocasião de testemunhar
situação semelhante no interior da profunda África Austral, em que as mulheres
executavam os mais duros quefazeres, como, por exemplo, colher a mandioca nas
lavras mais distantes, mesmo em situação de guerra; fazer cargas e descargas;
fazer obras nas palhotas. E quando se lhes perguntava pelas actividades dos
homens – que talvez caçassem ou pescassem qualquer coisita – elas logo
respondiam de olho reluzente que o homem pouca serventia tinha, o homem, a bem
dizer, só servia para o amor.)
Na organização matriarcal proibia-se o
casamento entre os da mesma linhagem, a exogamia. Enquanto, pelo contrário, nas
organizações em que a endogamia era prevalecente permitia-se o casamento no
seio do mesmo clã
Mas foi esta uma questão sempre ponto de
controvérsia entre os antropólogos. E sendo que, segundo alguns, o matriarcado
passou por ser o primeiro tipo de organização social.
Quando Dioniso (ou Baco) organizava as suas
tão faladas bacanais, diz-se que o que
ele teria pretendido com essas festas
não seria mais do a regressão aos estados de promiscuidade original,
funcionando essas bacanais como afronta ao poder dominante das mulheres.
E levou a dele ávante, o malandrão. Porque entretanto
chegavam ao firmamento helénico os novos deuses. E isso foi quando Apolo
instituíu o primado da paternidade na vida social. O que, aliás, salvou
Orestes, condenado pela ordem matriarcal à tortura das erínias por ter matado a
mãe, e a seguir absolvido pelo tal advento dos novos deuses e da nova ordem que
instituía o patriarcado.
Em geral, nos regimes de matriarcado,
tocava às mulheres o condão de serem possuidoras de poderes iniciáticos,
mágicos, e porque grandes descobridoras de plantas elas eram. Eram iniciadas
nas sapiências relativas à natureza. A agricultura, um exemplo, era coisa de
mulheres, já que eram elas quem detinha a posse da terra e quem dominava social
e economicamente as comunidades. E eram, evidentemente, sacerdotizas. E
praticavam tanto a feitiçaria como a medicina, actividades que nesta idade da vida
humana (não sei se ainda hoje) pouco se diferençavam. Nos seus ritos cultuavam
elas os crâneos masculinos. É verdade. Mas não me perguntem porquê. E davam-se
à dança das máscaras. E até nem eram muito biqueiras, visto que não desprezavam
o seu petiscozito nas cenas de canibalismo ritual.
Os filhos. Uma das mais polémicas teorias do século XIX,
a do Jus Maternum, estabelecia que os
humanos viviam originalmente na tal promiscuidade, daqui decorrendo o
desconhecimento da paternidade das crianças dadas à luz, e assim também a única
certeza biológica inequívoca de descendência: a mãe. E daqui o prestígio inigualável
das mulheres nestas sociedades.
Porque na velha Grécia as mulheres estavam
mais ou menos como os escravos: tinham
perdido os direitos políticos. As mulheres casadas não saíam de casa e
as solteira ficavam-se pelo gineceu, fora da vista dos homens, mesmo os da
família, embora Esparta fosse mais tolerante nesse particular das mulheres.
Também se contavam maravilhas (ainda hoje
parece-me que se contam) da escola da ilha de Lesbos, administrada por Safo. E
em Esparta, acreditando no relato de Eurípedes, as raparigas trajavam de curto,
faziam (quem sabe) muita aeróbica e dança jazz. Mostravam as coxas…
De qualquer das maneiras, a família grega
era uma organização de tipo etico e religioso, e ênfase bastante era posto nos
ritos. Héstia (Vesta) era a divindade evocada para o fogo do lar. Mas também se
honravam, é claro, outros deuses em caso de nascimento, maioridade ou morte.
Nessa velha Grécia, a educação dos filhos
competia, nos primeiros anos, à mãe. Depois, as crianças era passadas aos
escravos instrutores, e daqui aos mestres, e por último ao pai.
Vamos lá a ver. Assim, a modos mais
sistematizados, o estudo da família terá começado por volta dos anos 60 do
século XIX. E terá – notem: digo “e terá” pois é natural que os antropólogos
divirjam alguma coisa nestas precisões. Dizia eu… que terá começado este estudo
mais cientificamente com a publicação do livro do sociólogo suíço Bachoffen, Das Mutterecht (O Direito Materno). Esta obra (a que se
seguiram as do americano Lewis Morgan) será uma das primeiras onde se estudaram
as várias formas e fases por que passou a organização familiar, a
promiscuidade, a ginecocracia, a monogamia, e por aí fora – onde se estudaram,
é como quem diz, onde se estudaram, ou onde, com mais propriedade e menor
margem de erro ou plausibilidade, se especulou sobre estas matérias já de si
tão dificultosas de sistematizar.
Segundo o tal Bachoffen, é entre os gregos
que se processa a revolucionária passagem do Direito Materno ao Direito
Paterno.
E o que terá levado a isso? Que
circunstâncias, que condições concretas se acumularam até proporcionarem essa
viragem?
Condições de ordem económica, arrisca Lewis
Morgan. Evolução de meios de produção e de propriedade privada. O que aproximou
das teses do americano os mais famosos materialistas dialécticos europeus, com
Friedrich Engels à cabeça.
Há quem se incline também para a tese
religiosa. Como já anteriormente sugeri, imperativos religiosos terão levado a
tão magna mudança nas relações humanas, um dos mais largos saltos qualitativos
operados na moral e nas regras de convivência dos habitantes deste mundo. A
entronização dos novos deuses (tal como se passa hoje, em que já pouca coisa é
como há 30 anos) viria a subalternizar o
culto que se prestava aos velhos e tradicionais deuses, e tendo os novos deuses
implantado (como o que se passa hoje) as formas novas de preponderância –
masculina designadamente.
Todas as épocas, e o espírito delas, conhecem
os seus novos tempos.
Novos tempos, de resto, que a sucessão dos
séculos virá muitas das vezes a irrelevar, engendrando então os novíssimos
tempos, e sempre que a gloriosa insatisfação inerente ao pensar do Homem acha
que o centro de todas as questões é o renovar incessante das coordenadas
mentais desse mesmo Homem.
Alguns outros entendidos nestas coisas
diriam que as condições concretas que teriam levado à instituição do Direito
Materno seriam ainda muito anteriores a qualquer conceito de consanguinidade, e
por conseguinte a qualquer conceito de incesto que o Homem pudesse ter criado
no afã sisífico de inventar novas coisas.
Uma tirada de Medeia que, parecendo que
vem, não vem nada a despropósito:
A noite
leva o pássaro para o ramo da árvore, a ovelha para o curral e a criança para a
mãe. Não devemos saber as causas. Pensar demasiado enlouquece.
Também poderá ter acontecido algo parecido
com isto: entre os primitivos selvagens dava-se o caso de se matarem as crianças
do sexo feminino logo à nascença, daqui resultando um muito considerável
excedente de homens por tríbu e o uso da mulher por vários homens. E já se
sabe, com as coisas nesse pé, apenas a mãe de uma criança era identificável,
nunca o pai. Daqui se seguindo a contagem da ascendência pela linha materna.
E uma coisa mais que ficamos a saber de
caminho: em algumas sociedades tradicionais era hábito as crianças
recém-nascidas serem objecto de protecção especial. Eram seres débeis e indefesos,
muito sujeitos aos ataques dos feiticeiros e dos espíritos malignos. Os bébés
podiam passar dias e noites guardados à
vista por um homem armado. A criança das sociedades antigas, na sua primeira
infância, ainda era considerada um ser do outro mundo, com o condão de trazer muitos favores do céu…
O dito Bachoffen até negava ao homem a
qualidade de chefe de família por determinação natural – o que era escandaloso
para a época em que ele escreve o livro, e para mais quando desviava do homem atributos
de superioridade natural sobre a mulher e a condição de máximo pilar da ordem
humana.
O lugar central; o lugar onde céu e terra
se acham primordialmente em causa; o ponto de cruzamento de sinergias; a
emanação da realidade. Segundo o Prof. Mircea Eliade, ”nada pode começar ou
fazer-se sem uma prévia orientação, e toda a orientação implica a aquisição de
um ponto fixo. E para o homem religioso o que mais importa situar é o ‘centro
do mundo’, porque para viver no mundo é necessário fundá-lo. Nenhum mundo nasce
do caos que é a homogeneidade, e a projecção de cada ‘ponto fixo’ significa a
criação do mundo.”
Isto para dizer que a estatura e a dignificação
da mãe como educadora, como formadora, e como guardiã por excelência da
identidade familiar, só começa a desenvolver-se no século XVII. Só nessa altura
é que a mãe emerge das espessas sombras institucionais onde estava e assume na
economia e na filosofia da família um papel central. O ponto fixo.
O centro. O centro do mundo. Ou a unidade
dos contrários. Ou o ponto de ruptura. Ou a convergência de céu e terra. A mãe.
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