segunda-feira, 11 de maio de 2015


KANE

 
                                        
                                   


Por falta de inspiração e querendo prestar homenagem aos cem anos de Orson Welles, apanhei em qualquer lado (uma amarelada edição da Vida Mundial) um texto de Gregg Tolland (de 1941), o celebrado director de fotografia de Citizen Kane. Trata-se da questão inovadora e genial dos tectos. É capaz de ser muito técnico e de não interessar a ninguém. Ou talvez sim. Sabe-se lá. O título é DO REAL AO ARTIFICIAL, e reza como segue:


       
           Citizen Kane em nada é um filme convencional e vulgar. É, antes de tudo, um filme realista. Desde a sua preparação, Orson Welles e eu quisemo-lo assim. Queríamos que, ao vê-lo, o público tivesse, tanto quanto possível, a impressão de estar a ver não um filme, mas sim cenas tiradas da realidade.
        Porém, a esta concepção juntavam-se dois problemas técnicos complicados.

       
        Em primeiro lugar, os cenários do filme tinham um papel importante a desempenhar na história: um papel tão importante como o dos actores. Não eram simples cenários, eles ajudavam a descrever a ascensão e o declínio do herói.

       
        Em segundo lugar, e igualmente importante, existia a ideia que Welles tinha acerca da progressão visual da história. Ele havia instintivamente compreendido aquilo que realizadores muito mais experientes nunca tinham chegado a admitir: que as cenas e as sequências devem ter uma progressão tão suave que o público se não aperceba da técnica de construção. Ainda que anteriormente tivesse sido um homem de rádio e de teatro, ele tinha perfeita consciência das imensas possibilidades da câmara na tradução de ideias dramáticas sem recurso às palavras. É por isso que, a partir do momento em que a planificação foi estabelecida, tudo estava previsto tendo em conta a edição da imagem.


   
     Quisemos, tanto quanto possível, evitar a montagem cut (raccord de dois planos sem a intervenção de fondus ou de outras trucagens). Quisemos, pelo contrário, prever uma acção que permitisse à câmara panorâmicas ou travellings de um ângulo a outro do cenário, sempre que o desejássemos. Noutras cenas, tínhamos previsto os ângulos de tomada de vista e a composição da imagem de modo que a acção, normalmente mostrada em vários planos, era mostrada numa só cena, mais longa. Frequentemente, numa cena, desenrolavam-se simultaneamente várias acções importantes em pontos muito distantes, inteiramente em primeiro e em último plano.

        
        Estes métodos não convencionais, ou sem quebras, impõem dificuldades insuperáveis no campo de trabalho com a câmara. Digamos para ser mais brutal, que eles não podem ser realizados utilizando métodos convencionais. Mas eles faziam parte intrínseca de Citizen Kane e era necessário aí chegar.

                                                     
       
        A primeira etapa foi a elaboração dos cenários. Era necessário que eles dessem a impressão de realidade. Numa sala verdadeira, estamos sempre mais ou menos conscientes do tecto. Na maior parte dos filmes, no entanto, vemos os tectos apenas em planos muito afastados ou, mais frequentemente, eles aparecem em transparência. Nos planos mais aproximados, a câmara raramente mostra um tecto, ou algo que sugira um tecto.
        A iluminação convencional para cenas de interior provém, pelo contrário, de fontes luminosas vindas de praticáveis que se encontram debaixo do plateau e, portanto, em ângulos que seriam impossíveis de realizar em verdadeiras salas com tecto.

       
        É por isso que a quase totalidade dos cenários de Citizen Kane foram construídos com tecto. Eram tectos muito baixos, por vezes mais baixos do que o que seriam na realidade. Além disso, a maior parte dos nossos ângulos de tomada de vista previam que as câmaras fossem colocadas muito em baixo, para que a tomada de vista pudesse ser efectuada de baixo para cima, o que daria maior realidade a esses tectos. Certos cenários foram mesmo construídos de tal modo que se podia retirar o chão e colocar a objectiva ao nível dele. Isto, bem entendido, levantou imediatamente um interessante problema da iluminação. Uma vez que os cenários tinham tecto, nenhum dos 110 cenários tinha iluminação vertical. À excepção de alguns raros planos onde podíamos levantar uma pequena parte dos tectos para usar um pequeno projectos onde fosse realmente necessário; tudo neste filme era iluminado do chão.


       
       Tendo os cenários uma certa profundidade, isso obrigava-nos a utilizar luzes muito penetrantes. Encontrámo-las em projectores-difusores de arco duplo, os quais são usados no technicolor. Essas lâmpadas eram o essencial da nossa iluminação, com alguns juniors, seniors e 170.

       
       A propósito, mencionemos que esta utilização de cenários com tecto nos trazia outra vantagem: eliminava essa praga dos cineastas: a sombra do microfone. Os tectos eram de musselina e os engenheiros de som não tinham problema algum em colocar os seus microfones sobre esses tectos permeáveis ao som. Eles estavam sempre fora de campo, forçosamente, e, como não havia iluminação vertical, não projectavam sombra. E como os tectos eram muito baixos, os microfones estavam numa óptima posição para captar o som. Devo admitir que, depois de ter trabalhado assim durante 18 ou 19 semanas, é árduo voltar às condições habituais de iluminação, em que é preciso velar sem descanso para que o microfone e a sua sombra permaneçam fora de campo.

                                                         
       
           Um outro problema consistia em obter a definição e a profundidade de campo que correspondessem à concepão que Welles tinha do filme. Se bem que o olho humano não seja realmente um instrumento óptico de foco universal, a sua profundidade de campo é tão grande e as suas capacidades de ajustamento tão automáticas que se pode considerar o olho como a objectiva ideal.  

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