KANE
Por falta de inspiração e
querendo prestar homenagem aos cem anos de Orson Welles, apanhei em qualquer
lado (uma amarelada edição da Vida Mundial) um texto de Gregg Tolland (de 1941),
o celebrado director de fotografia de Citizen
Kane. Trata-se da questão inovadora e genial dos tectos. É capaz de ser
muito técnico e de não interessar a ninguém. Ou talvez sim. Sabe-se lá. O
título é DO REAL AO ARTIFICIAL, e reza como segue:
Citizen Kane em nada é
um filme convencional e vulgar. É, antes de tudo, um filme realista. Desde a
sua preparação, Orson Welles e eu quisemo-lo assim. Queríamos que, ao vê-lo, o
público tivesse, tanto quanto possível, a impressão de estar a ver não um
filme, mas sim cenas tiradas da realidade.
Porém, a esta
concepção juntavam-se dois problemas técnicos complicados.
Em primeiro lugar,
os cenários do filme tinham um papel importante a desempenhar na história: um
papel tão importante como o dos actores. Não eram simples cenários, eles
ajudavam a descrever a ascensão e o declínio do herói.
Em segundo lugar, e
igualmente importante, existia a ideia que Welles tinha acerca da progressão
visual da história. Ele havia instintivamente compreendido aquilo que
realizadores muito mais experientes nunca tinham chegado a admitir: que as cenas
e as sequências devem ter uma progressão tão suave que o público se não
aperceba da técnica de construção. Ainda que anteriormente tivesse sido um
homem de rádio e de teatro, ele tinha perfeita consciência das imensas
possibilidades da câmara na tradução de ideias dramáticas sem recurso às
palavras. É por isso que, a partir do momento em que a planificação foi
estabelecida, tudo estava previsto tendo em conta a edição da imagem.
Quisemos, tanto
quanto possível, evitar a montagem cut (raccord de dois planos sem a
intervenção de fondus ou de outras
trucagens). Quisemos, pelo contrário, prever uma acção que permitisse à câmara
panorâmicas ou travellings de um
ângulo a outro do cenário, sempre que o desejássemos. Noutras cenas, tínhamos
previsto os ângulos de tomada de vista e a composição da imagem de modo que a
acção, normalmente mostrada em vários planos, era mostrada numa só cena, mais
longa. Frequentemente, numa cena, desenrolavam-se simultaneamente várias acções
importantes em pontos muito distantes, inteiramente em primeiro e em último
plano.
Estes métodos não
convencionais, ou sem quebras, impõem dificuldades insuperáveis no campo de
trabalho com a câmara. Digamos para ser mais brutal, que eles não podem ser
realizados utilizando métodos convencionais. Mas eles faziam parte intrínseca
de Citizen Kane e era
necessário aí chegar.
A primeira etapa
foi a elaboração dos cenários. Era necessário que eles dessem a impressão de
realidade. Numa sala verdadeira, estamos sempre mais ou menos conscientes do
tecto. Na maior parte dos filmes, no entanto, vemos os tectos apenas em planos
muito afastados ou, mais frequentemente, eles aparecem em transparência. Nos
planos mais aproximados, a câmara raramente mostra um tecto, ou algo que sugira
um tecto.
A iluminação
convencional para cenas de interior provém, pelo contrário, de fontes luminosas
vindas de praticáveis que se encontram debaixo do plateau e, portanto, em ângulos que seriam
impossíveis de realizar em verdadeiras salas com tecto.
É por isso que a
quase totalidade dos cenários de Citizen Kane foram construídos com tecto. Eram tectos
muito baixos, por vezes mais baixos do que o que seriam na realidade. Além
disso, a maior parte dos nossos ângulos de tomada de vista previam que as
câmaras fossem colocadas muito em baixo, para que a tomada de vista pudesse ser
efectuada de baixo para cima, o que daria maior realidade a esses tectos.
Certos cenários foram mesmo construídos de tal modo que se podia retirar o chão
e colocar a objectiva ao nível dele. Isto, bem entendido, levantou
imediatamente um interessante problema da iluminação. Uma vez que os cenários
tinham tecto, nenhum dos 110 cenários tinha iluminação vertical. À excepção de
alguns raros planos onde podíamos levantar uma pequena parte dos tectos para
usar um pequeno projectos onde fosse realmente necessário; tudo neste filme era
iluminado do chão.
Tendo os cenários
uma certa profundidade, isso obrigava-nos a utilizar luzes muito penetrantes.
Encontrámo-las em projectores-difusores de arco duplo, os quais são usados no technicolor. Essas lâmpadas eram o essencial da nossa
iluminação, com alguns juniors, seniors e 170.
A propósito,
mencionemos que esta utilização de cenários com tecto nos trazia outra
vantagem: eliminava essa praga dos cineastas: a sombra do microfone. Os tectos
eram de musselina e os engenheiros de som não tinham problema algum em colocar
os seus microfones sobre esses tectos permeáveis ao som. Eles estavam sempre
fora de campo, forçosamente, e, como não havia iluminação vertical, não
projectavam sombra. E como os tectos eram muito baixos, os microfones estavam
numa óptima posição para captar o som. Devo admitir que, depois de ter
trabalhado assim durante 18 ou 19 semanas, é árduo voltar às condições
habituais de iluminação, em que é preciso velar sem descanso para que o
microfone e a sua sombra permaneçam fora de campo.
Um outro problema
consistia em obter a definição e a profundidade de campo que correspondessem à
concepão que Welles tinha do filme. Se bem que o olho humano não seja realmente
um instrumento óptico de foco universal, a sua profundidade de campo é tão
grande e as suas capacidades de ajustamento tão automáticas que se pode
considerar o olho como a objectiva ideal.
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