sexta-feira, 25 de setembro de 2015


        CRÓNICAS DE UMA CONSPIRAÇÃO  SICILIANA

                            (PARTE UM)

 
                                   


A ameaça comunista latente no imediato pós-guerra siciliano inspirava às forças conservadoras a prioridade de eliminar o chamado perigo vermelho e assim restabelecer os equilíbrios e obediências sociais e políticas tradicionais da ilha, uma acção já em marcha ainda antes da queda do fascismo. O objectivo principal consistia fazer reemergir algumas figuras esquecidas desse mesmo fascismo.
 
 
Os ditos especialistas sicilianos da violência, caídos em desgraça durante o regime fascista e praticamente desaparecidos do mapa começavam a reaparecer à luz do dia.
 
 
Em siciliano calati iuncu ca passa la china queria dizer que o canavial deve flectir e dobrar-se à passagem da enchente do rio, para se reerguer logo a seguir à força toda. Durante os muitos anos do governo fascista foi esta a palavra de ordem nos meios mais obscuros da violenta tradição siciliana. Governo fascista que, diga-se, perseguiu caninamente a Mafia. Mafia que, diga-se, no sentido de restaurar o seu tradicional e sangrento poderio, e valendo-se de um também atávico e tradicional secretismo, foi parte decisiva das redes de informação e inteligência (com o célebre gangster mafioso “nova-yorquino” Lucky Luciano a servir de agente de ligação) que possibilitaram o desembarque na Sicília das tropas americanas e britânicas.
 
 
Porque nas esferas de decisão mais altas se concluíra que para reprimir as revindicações camponesas da região não era bastante o recurso à força policial, ou mesmo militarizada. A cada incidente violento protagonizado pelas forças da ordem na via pública novos clamores populares se levantavam e os sentimentos de revolta se reavivavam originando sangrentos contra-golpes.
 
                                                        
 
Os grandes agrários, a aristocracia, os do partido monárquico e os círculos conservadores da alta burguesia constituíam, dizia-se, o fiel dos equilíbrios políticos tanto regionais como nacionais.
Papel fundamental no conflito siciliano vai ter o Ministro do Interior Mario Scelba, não por acaso também ele siciliano, e que ocupará o cargo por sucessivas legislaturas, sobrevivente a todas as remodelações de governo – chegará a ser primeiro-ministro em 1954 e 1955.
 
 
Um uso calculado e prudente da violência policial em conluio estratégico com os poderes obscuros mas organizados da violência marginal e mafiosa era a receita indicada.
 
 
Nos dias 20 e 21 de Abril de 1947 os sicilianos foram chamados às urnas para eleger a primeira assembleia regional. O chamado bloco do povo, com comunistas e socialistas coligados obtém uma vitória tão inesperada quanto sensacional, chegando aos 29,13% dos votos. A Democracia Cristã, até então crónica vencedora, remete-se ao segundo lugar com 20,52%. É um escândalo eleitoral no contexto político siciliano, o que faz soar o alarme para as próximas eleições nacionais agendadas para daí a um ano, Abril de 1948.
 
 
Era preciso agir, pensavam as hostes conservadoras. A tensão sobe vertiginosamente na Sicília depois da vitória da esquerda, prenunciadora, naquele quadro de transformação do imediato pós-guerra, de sérios revezes para os equilíbrios políticos e sociais tradicionais na região.
 
 
Comunistas e socialistas apresentavam-se com todas as condições para repetir em 48 o êxito eleitoral de 47. Impunha-se uma acção dissuasora capaz de desmobilizar os votantes esquerdistas e fazer inflectir a tendência eleitoral de forma a reconduzir a Democracia Cristã ao lugar que lhe é histórico de força política dominante e até aí indiscutível.
 
 
         O bandido Salvatore Giuliano (Turiddu) tem contactos com as mais gradas figuras aristocrático-conservadoras (ou neo-fascistas) que se constituem como as reais forças vivas e actuantes do tecido social siciliano, nelas incluídas as ramificações da Mafia infiltradas na aristocracia e na burguesia agrária, alguns agentes do governo central e dos serviços secretos italianos e americanos – é Mike Stern, agente dos serviços secretos americanos (OSS) sob a cobertura de jornalista, chegado à Sicília em 44 com as tropas aliadas, que começa a construir o mito Salvatore Giuliano, fornecendo apoio táctico-político, logística e armas.
 
      

              
 
Giuliano, ainda que teoricamente um marginal de vida clandestina, ouvia todos e era recebido e ouvido por todos. Um bandido notório e tolerado, mesmo enquanto autor de roubos, emboscadas às forças da ordem, raptos de personalidades e um rôr de crimes de sangue.
         Recebido nos salões, é-lhe sugerida a organização de uma acção de força exemplar preventiva de novos sucessos eleitorais da esquerda vermelha para o ano seguinte. Era preciso conter o poder eleitoral das massas, a deriva progressista era inaceitável. Pede-se uma coisa em grande. Uma acção muito violenta. O povo teria de se sentir aterrorizado e cair em si na hora de votar. De contrário, a sagrada estabilidade político-social corria grande perigo.
 
                                                                   
 
         Antes de mais, e recorrendo sem peias a métodos violentos, a seita de Giuliano devia garantir que a nenhuma força política, à excepção dos democratas-cristãos e dos monárquicos, seria permitido fazer campanha eleitoral nas zonas montanhosas controladas pela seita e seus associados. Num segundo tempo seria de planear uma cilada em local e em tempo minuciosamente escolhidos.

 
         Giuliano não era facilmente definível em termos político-ideológicos. Evidenciava bastantes simpatias à esquerda, mas, como disse, era recebido e mantinha estreitos contactos com aristocratas e conservadores. Também era adepto do separatismo e chefiava um vago grupo que sonhava com uma Sicília independente – nada mais do que um disfarce para as actividades daquilo que realmente era, uma célula neo-fascista.
         Giuliano aceita o encargo. Com a condição de um perdão oficial de todos os crimes cometidos no seu passado sangrento.
 
                                                                         
 
          Por outro lado, suspeita de que lhe queiram fazer a cama. Os que lhe encomendavam aquele serviço e lhe prometiam mundos e fundos (amnistia e dinheiro) só pensavam em usá-lo e deitá-lo fora, abandoná-lo, queimá-lo depois de feito o serviço sujo.
 
 
         Giuliano sabe melhor que ninguém que há gravíssimas contas a ajustar no cadastro dele, e também por via das ligações escusas que mantém com o neo-fascismo. Vai para seis anos que anda a monte e que as proezas violentas dele (sempre encomendadas e sob cobertura de alguém, ou alguns) têm coberto de ridículo as forças policiais, que há muito lhe juram pela pele. É um bandido famoso, mais ou menos romântico (rouba trigo para matar alguma fome aos camponeses), conhecido não só na Sicília como em toda a Itália, e até no mundo, Salvatore Giuliano, o lendário e temido bandido da Sicília, bem parecido, tipo latin lover, que chama a atenção das revistas americanas.
 
 
         E sabe demasiado acerca das manigâncias políticas e dos crimes daqueles que o recebem, aos quais já prestou fretes sangrentos e naturalmente lhe fazem vista grossa ao passado. Tanto assim que já chegou a receber nas montanhas, e a entender-se, com altas figuras oficiais, o inspector-geral das polícias, Ciro Verdiani, o procurador-geral de Palermo (nem menos), Emanuele Pili.
 
 
No dia 1º de Maio de 1947, a planura siciliana entre montanhas de Portella della Ginestra é cenário de uma manifestação de camponeses da região. Centenas de bandeiras do Partido Comunista e do Partido Socialista vibram ao vento.
 
 
Desde a proclamação da república em Itália é a segunda comemoração da festa do trabalho depois que as eleições regionais consagraram a vitória do dito bloco do povo (coligação PCI-PSI) sobre a perpétua preponderância política do partido da Democracia Cristã.
 
 
A jubilosa manifestação desenvolve-se e avança no terreno agitando vitoriosamente as bandeiras vermelhas, cantando a Internacional, quando as rajadas de metralhadora Breda, de alto poder de fogo, disparadas da montanha começam a varrer os manifestantes. Onze mortos: nove camponeses e duas crianças; cinquenta e sete feridos.
 
 
Os disparos são atribuídos às seitas de bandidos sicilianos a actuar em colaboração com um comando de assassinos profissionais a soldo da Mafia.
 
 
O chefe dos bandidos era o já então famoso Salvatore Giuliano (também operaticamente chamado Turiddu), um homem que muitos olhavam como comunista, conhecido como era o ideal que proclamava de distribuir pelos camponeses esfomeados a parte das terras não cultivadas dos grandes proprietários da região.  
                                                                                                    
 
O morticínio de Portella della Ginestra é o primeiro assassínio em massa da História da república italiana – chamam-lhe uma chacina de Estado. Marca também os primeiros alvores de uma estratégia americana de guerra fria anti-comunista.
 
                        
 
                                                                                   
 
De notar que dois meses antes do massacre a Assembleia Constituinte da nova república italiana começara a gizar um projecto de nova democracia assente num pacto de regime entre as principais forças político-sociais mais empenhadas na resistência ao fascismo e ao nazismo, socialistas, comunistas e católicos. O sangrento episódio de Portella della Ginestra serviria, entre outros desígnios, como tentativa de liquidação do dito projecto constitucional para uma nova era da vida política italiana. O atentado ao chefe comunista Palmiro Togliatti, no ano seguinte (14 de Julho de 1948), iria no mesmo sentido. 
         Nos meses que se seguem, Salvatore Giuliano sente-se muito só, abandonado, perseguido. Abandonado pelos políticos e pelos mafiosos e perseguido pelas forças da ordem.

 
 
         Disse-se que montava a cavalo e corria pelas montanhas como um lobo raivoso. E é nesse estado que começa a enviar mensagens à imprensa. Há quem diga que perdeu qualquer contacto com a realidade. Desconfia de tudo. Desconfia de todos. De todos, excepto de um, o seu fidelíssimo primo e guarda-costas Gaspare Pisciotta.
 
 
         Giuliano passa à chantagem. Das montanhas de Montelepre, escreve aos parlamentares sicilianos em Novembro de 1948: nas nossas zonas de influência votámos sempre em vós e assim mantivemos a nossa promessa. Toca a vós manterem as vossas.
 
 
         Abril de 1949. A seita de Giuliano assalta um quartel, mata uma quantidade de carabinieri e manda uma carta aberta aos jornais, desafiando uns quantos ministros a cumprirem o que lhe prometeram pelo serviço efectuado, indo ao ponto de ameaçar com um golpe de mão e instalar-se em Roma, no Palazzo Chigi (sede do governo).
 
                                                        
 
         Um senador comunista, Girolamo Li Causi, desafia-o por seu turno a divulgar publicamente os nomes dos mandantes da carnificina de Portella della Ginestra. Em resposta, o bandido escreve ao Unità, órgão oficial do Partido Comunista Italiano, e aponta o dedo ao ministro do Interior do governo de De Gasperi. Mario Scelba. Scelba quer eliminar-me porque o tenho na mira para lhe atribuir responsabilidades tais que não só lhe podem destruir a carreira política como até custar-lhe a vida.
 
 
         Em Janeiro de 49, o caso ainda corre nos tribunais e um humilde pastor declara ao juiz de instrução de Palermo um facto por ele testemunhado:
         - Foi no dia 28 de Abril, lembro-me muito bem, três dias antes, portanto, das mortes em Portella. Em Saraceni, Giuliano encontrou-se com o cunhado, Sciortino Pasquale, recebeu da mão dele uma carta, afastou-se enquanto a lia, acendeu um fósforo e queimou-a logo ali, e virou-se para os homens dele e disse-lhes que a hora da libertação deles tinha chegado e que no dia primeiro de Maio iria tudo para a Portella della Ginestra atirar aos comunistas.
         Para os autos foi ditado: Que a carta tenha alguma relação com o delito que pouco dias depois terá sido consumado por Salvatore Giuliano à frente do seu bando não parece ser de pôr em dúvida por este tribunal.
                                                      
 
         Há investigações a apurar que Giuliano tentara negociar em secretamente com alguém, em troca da acção na Portella, a libertação de alguns dos seus parentes presos, para além, claro, da impunidade para si. As negociações incluíam garantias de poder sair do país com larga soma em dinheiro nos bolsos. 
No dia 20 de Junho de 1950, Giuliano assina um memorando entregue ao procurador-geral de Palermo, Pili, no qual se declara como responsável único pela chacina de Portella.
Comete um erro. Um erro que lhe poderá ser fatal. Era a última hipótese de chantagem que lhe restava, transferir as principais responsabilidades para o mandantes secretos do crime, pessoas de quem mais dia menos dia poderia citar publicamente os nomes. Ora desde o momento em que passa a escrito a sua total e única responsabilidade no crime, ainda que continuando obviamente a saber quem lhe encomendara o serviço e continuando a poder em qualquer momento revelar a identidade desses mandantes altamente colocados, tal revelação perdia força e descredibilizava-o por dar o dito por não dito se lhe passasse algum dia pela cabeça vir a público com a mesma questão.
 
 
No dizer de alguns, Giuliano passará, a partir desse dia de Junho de 1950 a ser olhado como “um homem morto que anda”.
Desencadeia-se então uma compita entre a polícia e os carabinieri. Quem conseguirá a honra de se fazer fotografar ao lado do cadáver de Salvatore Giuliano?
 
 
O Unità escreve: Giuliano sabe tudo e será morto por isso. Giuliano sabe demasiado e não haja dúvida de que se lograrem prendê-lo ele falará.
 
 
         Na noite de 4 para 5 de Julho de 1950, Salvatore Giuliano é assassinado.
         Versão oficial (como em todas as conspirações): atingido durante uma troca de tiros com as forças da ordem.
 
 
         É um jornalista do L’Europeo que descobre a personagem capital de Gaspare Pisciotta, o primo de Giuliano que dormiu com ele nessa noite. Certas fontes (sempre secretas, nunca identificadas, nunca confirmadas) atiraram culpas para Luciano Liggio, jovem killer da Cosa Nostra, enquanto outras afirmaram que nessa noite, Pisciotta se teria limitado a abrir a porta do quarto ao mafioso quando o serviço já estava feito.
 
                                                                       
 
         Fosse quem fosse que tivesse liquidado Salvatore Giuliano estava sob a alçada da lei, e sem dúvida que quem quer que tivesse acabado com Giuliano o fizera por encomenda e com garantias de protecção e impunidade.
 
 
         Há quem ridicularize as teorias da conspiração (em primeiro lugar quem dessa conspiração pode beneficiar), tão intrincados e inverosímeis alguns acontecimentos da vida política se nos afiguram. No caso vertente foi ideia generalizada entre os jornalistas em serviço de reportagem por terras de Montelepre tratar-se de outro crime de Estado.
 
 
Ou seja, crimes e razões de Estado umas sobre outras. Dissuasão dos eventuais votantes socialistas ou comunistas com prejuízo político da Democracia Cristã, força política dominante em Itália (então e por muitos mais anos enquanto partido que se confundia com o próprio Estado, ou como a ditadura instalada no seio da democracia), no crime de Portella della Ginestra; crime de Estado que começa na ordem para disparar sobre o povo; e crime de Estado que alastra sobre a razão de Estado de preservar a lei do silêncio (omertà siciliana) ao mandar disparar sobre quem disparou sobre o povo; e crime e razão de Estado, finalmente, um pouco mais tarde, ao continuar a ordem de eliminar quem eliminou o assassino de Portella.
 
 
Mas é esta a lógica secreta da vida política mais obscura, a que não vem nos jornais e não aparece na televisão. São estes os seculares e normais procedimentos na ordem dos atentados políticos.
 
 

 

                         CONTINUA

 

 

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