PEREGRINOS
(Com Papas e bolos se enganam os tolos,
costumava dizer o povo. Mas não é isso o que me traz agora aqui.)
O que me traz aqui, o que me espevita
recordações (e destempadas meditações) foram as incansáveis colunas de
peregrinos que vi passar a caminho de Fátima nos idos anos 60.
Memórias melancólicas da minha vida pessoal,
devo dizer.
Era, tanto quanto julgo saber, a primeira visita de um papa a
Portugal, Paulo VI, Maio de 1967. Faz cinquenta anos – e foi nos cinquenta anos
das aparições. Era eu moço, era. Moço, mas já não muito menino, pois cumpria
uma parte da minha vida militar no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, e já
nesses dias formalmente mobilizado para a guerra de África.
Estava muito mau tempo, lembro-me como se
fosse hoje (muito pior do que esteve nestes últimos dias do centenário). Uma
massa de ar instável proveniente de uma depressão a noroeste da Madeira
influenciava desgraçadamente as condições climatéricas do continente com céus
muito nublados alternando com rápidas abertas.
Com o Sr. Presidente da República
trabalharam por esses dias os Srs. Ministros da Justiça, do Interior e dos
Negócios Estrangeiros e era recebido em audiência o Sr. Visconde de Asseca.
Avionetas sobrevoavam algumas áreas do
Alentejo a pulverizar terras assoladas por uma praga de gafanhotos.
Na televisão passavam as Melodias de Sempre e, para além das
transmissões directas das cerimónias de Fátima, podíamos ver a Vida Sã em Corpo São, do Dr. Ramiro da
Fonseca; os Concertos para Jovens, de
Leonard Bernstein; Encontro com a Vida,
do padre Francisco Videira Pires; Sangue
na Estrada, de Filipe Nogueira.
O Banco Nacional Ultramarino inaugurava uma
dependência na Costa da Caparica e os jornais anunciavam a prisão na Guatemala
de um homem que se supunha ser nem menos do que Martin Bormann, o lugar-tenente
de Hitler.
Nunca mais me saiu do já esbatido écran
interior, no preto-e-branco desse tempo, o quadro dos peregrinos, a pé e de
joelhos, a atravessar, desde as primeiras horas manhã até cair a noite, as ruas
de Tomar.
Nunca mais me esqueci dessas cenas do
Portugal mais pardacento, mais obscuro, mais deprimido, mais derrotado, a exibir
em espectáculo público a brutalidade da sua fé religiosa feita de pernas e pés
entrapados e ensanguentados.
Um comunicado do PAIGC, transcrito pelos
serviços de informação do Exército, alegava ter infligido 60 mortos às nossas
tropas e destruído quatro navios de guerra. Notícias que inflamavam a
imaginação temerosa de um mancebo sentenciado a ir lá parar.
Mas é claro que o boletim das Forças Armadas
desmentia liminarmente tais notícias, alegando por seu turno que o PAIGC havia
saqueado tabancas e espancado nativos.
O pianista Arthur Rubinstein estava
anunciado para o Festival Gulbenkian.
Outro comunicado das Forças Armadas dava
conta de dois mortos, onze feridos e um desaparecido em resultado de emboscadas
às nossas tropas nas fronteiras com o Congo-Kinshasa.
Os bares do (hoje saudoso) Monumental eram
assaltados pela quarta vez. E, nem de propósito, Sammy Davis estava contratado
por Vasco Morgado para actuar no mesmo Monumental no próximo dia 19.
Emboscadas no angolano itinerário
Ambrizete-Quinau. Flagelações no Leste, em Cavungo, Marco 25 e Lucusse.
Iam chegando a Fátima romeiros dos países de
Leste e do Extremo-Oriente, e algumas das mais caridosas embaixatrizes
estrangeiras serviam refeições aos peregrinos pobres.
A assustadora visão da fé que se arrastava
lenta e dolorosamente pela estrada que atravessava Tomar para ocidente, em
cumprimento de promessas feitas à divindade implacável nas graças que concedia,
era também para mim uma peregrinação pelo real de um paganismo transcendente.
O quarto de Paulo VI (3x4 metros quadrados)
reproduzia a cela de um frade de Mafra na Casa dos Retiros de Nossa Senhora do
Carmo – o mesmo usado nestes dias pelo papa Francisco. Uma lamparina de azeite.
Um canapé forrado a veludo verde. Peanha com tampo de madeira. Arcaz trazido do
Museu de Arte Antiga. Quadros de Pedro Alexandrino nas paredes.
Enquanto os peregrinos de negro desfilavam a
dor pelas estradas de Portugal, as hóstias para a comunhão geral estavam a ser
fabricadas por uma máquina eléctrica – em formato grande para os sacerdotes, em
pequeno para o comum dos fiéis.
Grande afluência de jornalistas
estrangeiros.
Entretanto, acabava de sair um novo disco de
um certo Chico Buarque de Hollanda, e a grande Palmira Bastos ia a enterrar.
Quando Paulo VI sai do avião da TAP chove
torrencialmente, e em Santarém duas senhoras peregrinas que seguiam para Fátima
são mortalmente atropeladas por um autocarro.
Disse Paulo VI: Nós vos saudamos, irmãos e filhos aqui presentes, e vós especialmente,
cidadãos desta ilustre Nação que na sua longa História deu à Igreja homens
santos e grandes, e um povo trabalhador e piedoso.
O Presidente do Conselho não conseguiu reter
lágrimas de comoção.
Bernardo Santareno era o dramaturgo
português do momento. O Maria Vitória levava
à cena António Marinheiro, o Édipo de
Alfama (Eunice Muñoz e João Perry) e no Monumental Laura Alves, Rui de
Carvalho e Paulo Renato representavam A
Promessa.
No cinema, Paulo Rocha estreava Mudar de Vida, e eu assistia nas ruas
de Tomar ao lancinante espectáculo do sacrifício humano e interrogava-me quanto
aos labirintos da fé e da vida interior do peregrino.
Disse Paulo VI: Tão grande é o nosso desejo de honrar a Santíssima Virgem Maria, Mãe de
Cristo, e por isso Mãe de Deus e Mãe nossa, que viemos, peregrino humilde e confiante,
a este Santuário bendito onde se celebra hoje o cinquentenário das aparições de
Fátima, e onde se comemora o vigésimo quinto aniversário da consagração do
mundo ao Coração Imaculado de Maria.
Manuel Conde e David Ribeiro Telles
toureavam em Salvaterra.
A casa Valentim de Carvalho continuava a
alugar pianos verticais e de cauda.
Havia jantares dançantes na Quinta de São
Vicente.