O MEU ENCONTRO COM MARIO VARGAS LLOSA
Por uma manhã de
sábado do pretérito Outubro, depois de uma inspecção aos bouquinistes do Chiado onde comprei um romance que muito tinha
ouvido gabar mas que nunca me caíra nas mãos, Bouvard et Pécuchet (de Flaubert), resolvi sentar-me na esplanada
da Bénard para tomar um café e comer um croissant.
E então sento-me. E
quem é que eu vejo sentado na mesa mesmo ao lado da minha? Mario Vargas Llosa.
(A vizinhança de uma
celebridade pode ser irresistível para os importunos.)
Não acreditei às
primeiras. Não. É parecido. Se fosse irmão não seria tão parecido com ele. Que
diabo poderia estar a fazer o Prémio Nobel Vargas Llosa em Lisboa, na esplanada
da Bénard, por um sábado de inverno às onze e tal da manhã?
Mas era mesmo.
Era, “o olhar
límpido de quem viveu reconciliado consigo mesmo” – pelo que li num artigo a
ele dedicado no Magazine Littéraire.
Meto conversa? A
propósito de quê? Ah, senhor Vargas Llosa, sou um grande admirador seu, li
todos os seus livros e adorei!
Não seria totalmente verdade. Admirador,
sim. Descobri-o, e dos primeiros livros que li dele gostei, sim senhor, muito. Anos 70. E
depois, mais nada.
Meto conversa? Quem
me garante que ele não é tão antipático como o Nobel Saramago, como o Vergílio
Ferreira? Ou como o seu ex e já falecido amigo Garcia Marquez – pelo que me
disseram dele mesmo lá na Colômbia – e me responde torto?
O senhor tinha
acabado de tomar o pequeno-almoço e concentrava-se na leitura do El Pais.
Fato cinzento
formal, camisa branca sem gravata. Sem parecer a idade que seguramente tem. A
melena grisalha insubmissa como na juventude.
Pergunto-lhe pelo
pai, mecânico de rádio, que não levava à paciência ter casado com uma mulher
com fumos de aristocracia? Não, claro, seria de mais.
Evoquei para mim os
livros dele que tinha lido nos distantes anos 70. A Conversa na Catedral, que adorei, diga-se de passagem. Pantaleão e as Visitadoras, idem. E
depois? Menos. Nada. Sim, mais nada, que me lembrasse. E do último que li, O Falador, que, sinceramente, não gostei.
E porquê, Don Mario,
essa propensão para casar em família – logo aos 19 anos, com a tia; e depois
com Patrícia, prima? Gostava de lhe perguntar, confesso, no caso de decidir
meter conversa, mas falecer-me-ia a coragem para tanto.
Podia falar-lhe da admiração comum por
Faulkner. Podia.
De certeza absoluta que ele não iria
confidenciar a um desconhecido estrangeiro que escrever era para ele razão
bastante para viver e escapatória para o desespero. São coisas que se dizem nas
entrevistas e pronto. Nem me diria que um escritor não deveria ter vergonha de
se envolver na acção politica como foi o caso dele – ah, comprei por acaso na
latinamérica El Pez en el Água, as
memórias dele quando metido nessa acção politica, enquanto candidato
presidencial; está para ali esquecido, nem me lembro de o ter sequer folheado.
Não. Fosse mais novo... talvez. Talvez
metesse conversa sem grande cuidado quanto à recepção dele, como conversa
descaradamente meti noutros tempos com algumas celebridades, todavia
não-literárias.
E então tirei do saco o meu Flaubert,
coloquei-o sobre a mesa. Chegou o
croissant. Folheei o livro. Comecei a trincar o croissant e com a morbidez adocicada chegou-me uma ânsia.
Vou falar-lhe. Tem que ser. Em todo o resto
da minha vida não comerei mais croissant
algum ao lado de um Prémio Nobel.
Vou falar-lhe e estou-me nas tintas se ele me
receber mal, e não lhe digo o que penso da produção actual dele, que me parece
mais uma operação comercial, acontece com todos os escritores que sobrevivem
demasiado em fama e proveito. Vou falar-lhe. E só Conversa
na Catedral. E só Pantaleão e as
Visitadoras. E só A Casa Verde.
E lembrei-me a tempo. Não, não vou
falar-lhe coisa nenhuma. Lembrei-me a tempo da minha viagem à Colômbia na
honrosa e exagerada qualidade de conferencista, e da minha estadia de dia e
meio em Cartagena de Indias, quando uma amiga chegada de Garcia Marquez me
perguntou se gostaria de o conhecer e de falar com ele. E eu disse
imediatamente que sim, entusiasmado. E bruscamente aterrado. Quem era eu? O que
é que eu poderia dizer de interesse a Garcia Marquez? Que interesse teria
Garcia Marquez em falar comigo, em dizer-me qualquer coisa.
Felizmente, Garcia Marquez não estava em
Cartagena, embora fosse dali e tivesse lá um palacete. Estava no Máxico onde
residia na maior parte do tempo. Ainda bem. Livrei-me de passar uma vergonha.
Vou falar a Vargas Llosa. Eu? Não, não lhe
vou falar. O croissant começava a
enrolar-se-me na boca.
Chegou o café. Folheei o livro – sim, duas
vezes. Vá lá, três vezes. Folheei o livro. Bebi o café. (Exercício breve de
escrita estática.) Olhei para o movimento da rua – e pelo canto do olho para a
celebridade, interessado no El País.
Folheei o livro acabadinho de comprar.
E de repente lembrei-me. Lembrei-me de ter
lido há anos uma entrevista em que ele se considerava um flaubertiano, e que,
como Flaubert, acreditava que escrever era uma maneira de viver, e era a
maneira de viver dele, que não conhecia outra, que nem mesmo concebia a ideia
de outra maneira de viver que não fosse a escrever.
Acredito. E concordo. Na minha miserável
insignificância de assistir impotente à passagem do tempo cada vez concordo
mais.
(Tão gira que era, a Patrícia, e está um cavaco...)
E fechei o meu Flaubert. E guardei-o no
saco. Por cima da folha do El País
ele podia ter reparado no livro e ter pensado “este sacana deste português, leu
nalgum lado que sou um flaubertiano, foi comprar um Flaubert e sentar-se nesta
mesa mesmo ao lado da minha para me provocar e não tarda nada está a meter
conversa comigo a pretexto do Flaubert, e portanto deixa-me cá pagar a conta,
dar corda aos sapatos e pôr-me na alheta para não ter que o aturar.”
Não sei. A verdade é que não se levantou.
Não pagou. Só virou mais uma página do El
País.
E quanto ao murro inexplicável aplicado em
público no nariz do seu então grande amigo Gabo, grande camarada desde os
tempos encantados de Havana, do realismo mágico, de Barcelona? Porquê?
Política? Porque Gabo andava a fazer-se com a Patrícia? Porque Gabo lhe roubara
alguma ideia romanesca?
Nunca se soube. E se eu lhe perguntasse e
ele se descaísse a contar essa história proibida a um ancião desconhecido de
Lisboa?
Traga-me outro café, se faz favor. Não, não
quero mais nenhum croissant.
A que propósito meter conversa com Mario
Vargas Llosa num sábado de sol lisboeta? Porque não deixar o homem acabar de
ler em paz o seu El País?
Por que despautério de vida os anónimos da
rua sentem tanta necessidade de chegar à fala com os famosos. Para se tornarem
menos anónimos? Calcula tu que estive esta manhã a conversar com o Mario Vargas
Llosa – e a réplica cada vez mais possível do amigo ou amiga: quem é o Mario
Vargas Llosa?
Consta que é um bom orador, um bom
conferencista. Recordo uma conferência lida – suponho que era uma conferência,
publicada em português num livrinho curto e estreito – em que ele, se não estou
confundido, ainda em princípio de celebridade, admitia não ser um talento
espontâneo, um escritor inspiradamente torrencial, literariamente ejaculante.
Antes pelo contrário, suava as estopinhas, era um trabalhador da escrita. Um
trabalhador disciplinado, todos os dias à mesma hora sentadinho à mesa de
trabalho como um colegial. À espera. Da inspiração, digamos assim. A tentar
laboriosamente o torneio de uma ou duas frases que nem sempre lhe saíam a
gosto. A acabar a jornada com a produção de uma página de romance, o que já era
um avanço. E no dia seguinte ali caído outra vez. À espera. Da inspiração.
Que pachorra…
Como me dizem haver pintores que não têm
jeito para o desenho (custa-me a crer), também deve haver escritores com pouco
jeito natural para escrever…
De facto, nunca o achei um puro e
instintivo contador de histórias, à imagem – por exemplo - do seu confrade
Garcia Marquez.
Vou falar-lhe de política. Foi o que
pensei. Não o fiz. Não me apetecia. Vejo-o como um homem da direita
correctíssima – passadas depressa as primeiras ilusões castristas – um vulgar
neo-liberal de ideias correntias, muito aceitável nas colunas dos jornais do
sistema. Pode ser que não seja.
E se não for? Não me interessa na mesma.
O que interessa, Don Mario, é a voz
narrativa, os segredos da voz narrativa. Quem conta a história? A pergunta que
se deve colocar também o compositor quanto à tonalidade com que vai iniciar o
seu novo quarteto de cordas.
Que me diz a isso, Don Mario? Narrativa na
primeira pessoa? Narrativa na terceira pessoa? Nas duas?
Eficácia diegética. Expressividade. Desenho
das personagens. Velocidade de escrita – para a velocidade de leitura. Clareza.
Obscuridade. Rigor. Caos.
Adivinho que me irá dizer que o narrador
pode ser exterior à intriga. Prevejo que me diga até mais: que nem fará mal nenhum,
até pelo contrário, que uma história possa ter mais do que um narrador. E nem
me admiraria se me dissesse, quanto ao tempo narrativo e ao tempo real, que não
está escrito em lado nenhum que eles tenham que coincidir – mas o povinho
leitor gosta das histórias bem arrumadinhas, clarinhas e cronológicas. Essa é
que é essa.
O tempo psicológico, sim, percebi, a
subjectividade humana que todas as maravilhas pode operar no espaço romanesco,
as emoções, claro, já o ouvi – ou antes, já o li, com respeito a estas
matérias, não precisamos de falar mais nisso, logo agora, aqui, na esplanada da
Bénard, por um sábado de sol agreste…
Como? Já vai? Que horas serão isto? Quase
uma da tarde.
Fecha e dobra meticulosamente o El País. Até mais ver, Don Mario, foi
uma conversa muito interessante. Acolhe com afabilidade o empregado que lhe traz
a conta. Paga. Afinal parece simpático. Terei pedido alguma coisa por não ter
metido conversa – conversa real, digo.
Levanta-se. É alto, direito, desempenado.
Pela figuraça nada me diria que andasse perto dos oitentas.
Ah, é verdade, Don Mario, seu maroto, esse
romance com a socialite espanhola,
parece impossível, com a sua idade, deixar a Patrícia, Don Juan peruano de uma
cana, para o que lhe havia de dar…
Detém-se um minuto numa montra de sapatos
de luxo, ao lado da Brasileira.
Encaminha-se para os lados do Camões. É capaz de estar aboletado naquele hotel
de charme…
(E
agora, passadas algumas horas, me lembro de que Mario Vargas Llosa era para vir
fazer uma conferência a Lisboa. Sobre quê? Não sei. Já teria feito naquela
manhã de sábado? Não sei. Não averiguei.)
Uma história principal pode ocultar no seu
íntimo uma quantidade de histórias. Técnica, técnica, Don Mario.
Caminha calmamente. Ninguém o reconhece. Ou
pelo menos ninguém o interpelou até o ter pedido de vista para lá do quiosque,
perto da igreja dos italianos
Pude então folhear o meu
Flaubert sem receio de mal entendidos.
Um diálogo interior interessantíssimo. Quantas vezes já vivemos situações semelhantes?
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarExcelente!
ResponderEliminarPena eu não ter estado nesse dia na mesma esplanada.
Quem sabe se não teria tido a coragem de me dirigir - e pedir ao menos um autógrafo - ao Autor do «Ao Tempo Que Não Servimos Carapauzinhos de Escabeche»...