domingo, 3 de setembro de 2017


                 UMA GINJINHA NO ROSSIO


 
 

É verdade. Foi o que tomei um destes dias, depois do jantar, e lembrei-me de que quando Filipe II chegou para tomar posse do trono português não se dirigiu logo a Lisboa. Entrou por Badajoz e ficou-se ali por Almada. As tropas do duque de Alba tinham-no precedido e tinham vindo a saquear desde a fronteira até estacionarem em Setúbal.
 
 
O rei e senhor de metade do mundo de então foi até Almada e lá se alojou na modesta casa de um certo João Lobo, e com o propósito determinado de estudar a cidade à distância, além de ter de esperar pelo termo de mais uma peste que assolava Lisboa, cidade de pestes, tremores de terra e procissões.
Mais de cem navios de todos os feitios ali estavam e vindos de muitas partes – escreveu Filipe II, ou alguém por ele. Assim percorremos a margem de Lisboa, vendo tudo o que dá para o rio que tem cerca de uma légua de largura, e reconhecendo tudo muito bem.
 
 
A 29 de Junho de 1581, Filipe II entra oficialmente em Lisboa, desembarcando num Terreiro do Paço hiper-engalanado. E quis o rei nesse mesmo dia dar uma curva pela cidade. Atravessou a Rua Nova e deparou-se com um bailarico popularucho de vendedeiras e padeiras em sua honra. Do grupo das dançarinas populares destacou-se uma regateira que se dirigiu ao grande rei, dizendo que o recebiam de bom grado como rei e senhor até que viesse o rei Sebastião, porque em vindo o rei Sebastião, Sua Majestade era bom que deixasse aquele reino e se volvesse com Deus a Castela: Filipe II achou pilhas de piada e mandou pintar a cena.
 
Filipe II gostava das músicas e dos músicos que ouvia em sua homenagem. E quem lhe escrevia os panegíricos proclamava que Lisboa era a maior cidade de Espanha e que em Lisboa havia a maior praça, e que era esta onde estou agora, o Rossio.
Os embaixadores de Veneza que cá vieram cumprimentar Filipe II de Espanha por ser Filipe I de Portugal gostavam da largueza das ruas de Lisboa, mas queixavam-se das constantes subidas e descidas.
Por mais que presentemente me dê vontade de chorar o Portugal dos gestores de sucesso, é em Lisboa que me reconcilio com a minha nacionalidade, ou com o meu patriotismo vacilante. Lisboa no verão – prefiro o mês de Junho, mas ontem já era Agosto. E de modo particular a parte oriental, a Sé, aqueles miradouros que se debruçam sobre Alfama. Que foi onde tudo começou. Mas ainda não foi ontem que lá fui. Fiquei-me por ali, pelo Rossio.
 
 
Uma ginginha tomada no Rossio por um destes fins de tarde estivais pode avivar muita memória histórica.
 
 
Ah, mas tenho que dizer que devo esta memória à leitura recente do livro Biografia de Lisboa, de Magda Pinheiro, editado pela Esfera dos Livros. 
 
 
Sim, concordo, a ginjinha do Rossio (sem elas), como tanta outra coisa nesta nossa vida, já não é o que foi. 1.40€. Desenxabida e aguada roubalheira. Não sei se já se vendia daquele martelado licor de ginja no dia 15 de Maio de 1492, que foi quando se lançou a primeira pedra para a construção do hospital central que o papa autorizara.
Aquilo por ali era a horta do convento de S. Domingos e ali iria nascer o grande Hospital de Todos os Santos, de aspecto e funcionalidades copiadas dos seus semelhantes de Florença e de Siena.
 
 
Andei com o meu ínfimo copinho de plástico em mãos (1,40€ de desenxabida e aguada roubalheira) e olhei para a fachada do Teatro Nacional. Apaguei dos meus olhos as pilastras, os capitéis, o frontão e os eventuais sem-abrigo e convoquei à imaginação um edifício liso, o Palácio dos Estaus, feito para albergar os hóspedes do reino de mais marcado estatuto. E com este palácio e a imponente massa que é o Hospital de Todos os Santos estava feito o Rossio - e eu ainda longe de acabar a ginjinha.
 
 
Em Quinhentos havia ali também um mercado. Nesse tempo, mil pobres deambulavam pela cidade a pedir esmola e seriam as suas cerca de cento e tal crianças anualmente abandonadas que o Hospital de Todos os Santos recolhia.
 
 
 
Pestes, tremores de terra e procissões foi o que mais houve na História de Lisboa. No século XIV foi um ver-se-te-avias, não tiveram conto. Pestes várias que culminam com a grande peste negra que leva 1/3 da população da capital. Peste que chega a matar um rei, e logo um dos mais venturosos - que não em assuntos de saúde - D. Manuel I.
 

 
Pestes e procissões, e umas em consequência das outras. Na morte de D. Manuel a procissão que se seguiu foi um espectáculo, com 20.000 almas a incorporarem-se nela, tudo de negro, a bandeira a arrastar pelo chão, os escudos a quebrarem-se. E mesmo aqui ao pé, no Rossio.
Peste maior foi a de 1569, Junho, a doença que provocava inchaços pelo corpo. Corriam os boatos. O povinho da cidade a fugir para os subúrbios e para as colinas. Ficavam os ricos. Mas o rei estava fora. Por toda a Lisboa eram desmaios e gritos, gente enlouquecida. Não havia que comer. Tiveram que chamar os forçados das galés para ajudar a enterrar os mortos. Os jesuítas não tiveram mãos a medir na assistência religiosa. Mete-se o Natal. A praga abranda.

 
O rei regressa a Lisboa em Maio. Acções de graças. As procissões de expiação começavam. A mais célebre de todas, que ainda hoje, suponho eu, se realiza, é a da Senhora da Saúde, que era na 5ª feira mais próxima do dia 20 de Abril. Sai (ou saía) da ermida, ali ao Martim Moniz, corria a Mouraria, ia até à Sé.

 
Lisboa das seculares procissões, como diz a canção, e é verdade. E a da Senhora da Saúde deve ter tido coreografia parecida com aqueloutra de 1552, já não me lembro (se é que alguma vez o soube) a que propósito e coloridamente descrita pelos cronistas. Era inicitiva da Misericórdia e começava ao anoitecer. Ia até S. Francisco, e depois vinha à Trindade, descia o Carmo, ia até ali a S. Domingos, calcorreava encosta acima até à Sé, e voltava à Misericórdia.
O cortejo de velas, archotes e candeias na noite escura devia ser medonho e fantasmagórico, com os penitentes a disciplinarem-se à vergastada, com outros a carregar bacias de vinho, bilhas de água fresca e fatias de marmelada para não deixar desfalecer os penitentes.
À chegada à Misericórdia tinham os físicos à espera para lhes espremer as chagas, lavá-las com vinho e ligá-las. 
 
 
No século XVI teve início em Lisboa aquilo a que não sei se poderei chamar de registo civil. Registo dos lisboetas que nasciam e eram baptizados e dos que faleciam. O Concílio de Trento havia dado ordens terminantes nesse sentido, sim, mas pela razão também das crescentes desavenças rácicas e religiosas. Pelo registo ninguém ocultava a sua origem étnica, a religião, os antepassados. E porque entre os séculos XV e XVI vivia-se em Lisboa um estado larvar de guerra racial.
Feições asiáticas, levantinas, negras, foi o que aqui há dias vi passar à minha frente, sentado nos degraus do Teatro D. Maria na companhia dos tais eventuais sem-abrigo que beberricavam cerveja velha e me pediam cigarros. E a minha memória livresca emprestou roupas de outros tempos e ritmos de outros tempos à andadura dos indianos, chineses, marroquinos e negros que vejo passar – que passavam por mim no Rossio, é verdade – e lembro-me de que foram estes os que ficaram cá por Lisboa depois da conquista cristã.
Depois dessa conquista (ou reconquista) cristã, os mouros, ou as elites deles, conservaram algumas autonomias. Algumas dessas elites reclamaram-se descendentes directos do Profeta e reivindicaram da corte certas benesses, que aliás lhes foram concedidas. Tinham o seu corpo de leis e os seus notários próprios. Eram-lhes até confiadas missões diplomáticas. E muito por eles, e por suas manufacturas em sedas e tapeçarias, a corte, nos seus luxos, adoptou certo gosto orientalizante.
 
 
Os judeus, apesar de mal vistos, também se iam governando menos mal com os metais preciosos de África, com os açúcares da Madeira, com os seus tratos com a corte. Os menos favorecidos pela fortuna estavam obrigados a rudes medidas de identificação e de demarcação de residência e de propriedade. Os de mais posses, obviamente, escapavam às regras. Mas a vida deles não seria facilitada para sempre.
 
 
Em 1482 é saqueada a Grande Judiaria. Estavam a chegar judeus de Espanha. O papa Sixto fora na conversa dos reis católicos e dera força à Inquisição. 20.000 chegam de Espanha e têm oito meses para desaparecer. Mas não desaparecem assim com duas cantigas e é-lhes decretada a expulsão.
Mas como expulsar os judeus de modo compulsivo se não há nas docas navios que cheguem para levar tanta gente? E então muitos deles vêm dar com os ossos ali, no Palácio dos Estaus, que será futuro palácio da Inquisição, ali mesmo, no Rossio, onde eu  andava às voltas com a minha ginjinha. E ali eram convertidos às três pancadas à fé cristã. E baptizados. E ficavam novos. Cristãos novos.
 
 
Mas ainda por aqui por este Rossio das ginjinhas, no fatídico dia 19 de Abril de 1506, o pagode levantou-se contra judeus e crstãos novos e foi o massacre.
 
 
Damião de Góis culpou os frades dominicanos de terem açulado os populares e chamado os marujos portugueses e holandeses que andavam pelas docas para ajudar à matança.
Os frades fizeram um furo na cruz da igreja (a de S. Domingos, presumo) e por detrás do furo puseram uma candeia acesa, de forma que a chama lucilava como um sinal divino. Imediatamente foram arranjadas interpretações teológicas para consumo dos fiéis. Aquele sinal era Deus a manifestar a sua vontade de que os judeus fossem imolados sacrificialmente pelo fogo.
 
 
Lisboa estava a ser vítima de uma seca prolongada e um cristão novo presente na missa tem a infeliz ideia de adiantar um interpretação diferente do sinal, recusando o milagre da chama na cruz, denunciando a candeia por detrás, dizendo ah, quisesse o céu que fosse um milagre de água em vez de fogo… com esta seca é de água que precisamos. Foi ele o primeiro a quinar. Mas ainda era o primeiro dia. Ali mesmo. No Rossio.
 
 
“Il di spuntò, di del terror”, dizem os frades inquisidores da ópera D.Carlos, de Verdi. E realmente, ali, no Rossio, o dia despontava mesmo para mil cristãos darem caça a judeus e cristãos novos. Judeus e cristãos novos que tinham deixado de andar pela rua, a ver se escapavam à fúria da populaça. Não escaparam. Os cristãos amotinados iam buscá-los a casa, arrastavam-nos pelas ruas, velhos, mulheres e crianças de colo, e, ou matavam-nos antes de os deitarem ao fogo, ou atiravam-nos para a fogueira ainda vivos.  
 
 
E ontem eu olhei para a Igreja de S. Domingos e para aquele teatro nacional carregados de História trágica e lembrei-me dos violentos incêndios, em 1959 e 1964, e veio-me à ideia a hipótese de vingança do que aqui se passou naqueles dias de Abril de 1506. 2.000 mortos com primores de crueldade. Vingança desses dias e doutros, claro, porque aconteceram aqui os primeiros autos-de-fé.
 

                                                                 


 
Foram esses autos-de-fé do Rossio em 1540. A corte assistiu. Mas subsequentemente achou-se preferível como cenário para tais cerimónias o Terreiro do Paço, devido a uma monumentalidade que aqui o Rossio não tinha, e porque os condenados e os convidados deveriam sentir-se temerosos ante o espectáculo dos poderes mancomunados, o de Deus e o do rei – o que então ia dar no mesmo. Ou, dito de outra maneira: os poderes da Igreja e os do Estado – o que também ia dar no mesmo.
 

E o interessante é que, com toda a repressão, com toda a violência instituída pelo Santo Ofício sobre hereges, judeus, mouros, bruxas, sodomitas e loucos, houve notícia de portugueses baptizados que renegaram a fé de Roma e se converteram ao islamismo.
 
 
Eram tempos de grande violência, sim, uma violência que nos custará a imaginar. Naqueles tempos festejavam-se os actos de barbárie de modo superlativamente entusiástico. E mais ainda se se tratasse de barbárie religiosa, como foi o caso da festança que por aqui houve quando do massacre dos huguenotes em Paris. Até houve luminárias em intenção dessa tristemente célebre noite de S. Bartolomeu.
 
 
Durante os preliminares da excursão a Alcácer Kibir Lisboa era uma cidade aberta, por onde circulavam mouros, tudescos, castelhanos, genoveses, romanos. Tudo quanto era estrangeiro desembocava ali, naquela praça do Rossio e ali se armavam as maiores zaragatas multinacionais e multirraciais.
 
 
Os problemas de trânsito cá por Lisboa começaram historicamente cedo. Foi quando pegou a moda dos coches, ainda no tempo do rei Sebastião. Os populares odiavam os coches, mas o coche dava estatuto e todo o nobre ou burguês endinheirado passou a andar de coche, e foi preciso regular a circulação. Além do mais os coches arruinavam o pavimento, que era de tijolo. De maneira que houve que regulamentar o tipo de rodas.

D. Sebastião era de saúde fraca. Não lhe aconselhavam como morada o Palácio da Ribeira. Por causa da muita humidade. E por isso, em 1566, ele se mudou para o Palácio dos Estaus. E foi ali, em S. Domingos, que correram as cerimónias da entronização.
Por falar em D. Sebastião, toda a Lisboa andava por aqui inquieta com os correios que iam chegando de Marrocos. E a 12 de Agosto de 1570 houve a certeza do que ocorrera lá pelos areais inóspitos no dia 4 desse mês, o desbarato das tropas lusas e o desaparecimento do rei. Ninguém aqui pelo Rossio queria acreditar na notícia.
 
 
E estava-se ainda de luto carregado pelo rei morto em terras berberes quando aqui pelo Rossio começa a correr o inquietante boato. El-rei Sebastião teria sido visto em Itália na companhia de outros vinte portugueses.
 
 
Em 1670, a Câmara de Lisboa estava pelos cabelos de dívidas, estava em incumprimento e deixara de pagar aos credores.
O lixo, os dejectos, os despejos para a rua foram uma constante em Lisboa pelos séculos dos séculos. Havia falta de gente classificada de “inferioridade” para tratar do problema da higiene pública. As escravas calhandreiras é que andavam já nos princípios do século XVIII com vasilhas a “alimpar” as imundícies deitadas à rua, e esgravatando nos lixos à cata de anéis ou moedas de ouro e prata perdidas.   
    
                  
No tempo de D. João V, os viajantes estrangeiros escrevem: a cidade não tem iluminação durante a noite e é frequente perder-se um sujeito e correr o risco de ser enxovalhado pelas imundícies que é uso despejarem-se para as ruas, pois as casas não têm latrinas.
Dizem alguns visitantes que Lisboa sofria uma praga de cães. Os cães, o lixo, as matanças do porco em plena rua. Os estrangeiros queixavam-se do mau cheiro de Lisboa
O abalo sísmico e o incêndio que se seguiu aqui no Hospital de Todos os Santos, cinco anos antes do grande terramoto, e no exacto dia da morte de D. João V, pode ter sido um primeiro aviso do destino quanto às desgraças que estavam para vir. O hospital ficou destruído, em especial as enfermarias que deitavam para a Rua da Betesga e cinco anos depois, no dia 31 de Outubro de 1755, a maré atrasou-se duas horas.
 
 
A 1 de Novembro de 1755 pensou-se que era chegado o dia do Juízo Final e os padres e os frades não tiveram mãos a medir por entre os ajuntamentos de povo a esgatanhar-se à porfia para se confessar.
A Lisboa que eu estava a ver dali era nesse dia uma fogueira pegada, há quem diga que por causa de velas e lamparinas deixadas a arder nas igrejas com a precipitação da fuga. A Lisboa renascentista, maneirista e barroca apagava-se nesses dias do mapa. Vadios, desertores e ladrões passaram a acoitar-se nas ruínas dos muitos prédios destruídos.
 
 
Na reconstrução da cidade aqui o Rossio dignificou-se. Foi-lhe regularizada a forma sem alteração das dimensões. Deixou-se estar ali ao meio a fonte com a estátua de Neptuno. Fizeram aquele edifício ao fundo, aquele frontão, onde é a Tendinha, abriram o arco, que é o Arco do Bandeira. O hospital foi reconstruído e só vem a ser substituído pelo de S. José depois da expulsão dos jesuítas. O palácio da Inquisição ali ficou.
 
 
Os enjeitados abandonados nos adros das igrejas ou à porta de particulares ricos eram às centenas ainda no século XVIII. A 5 de Outubro de 1737, ali para cima para a Senhora do Monte, foi achada a Rita. O provedor da Misericórdia foi chamado e recolheu a criancinha, para evitar que, na palavra dos cronistas, a não comessem os cães.
Os visitantes dos séculos passados estranhavam que o lisboeta desse esmola a mendigos válidos para o trabalho. E daí concluíam os visitantes da estranja (em tom de liberalismo económico) que a grande quantidade de pobres em Lisboa era resultado do espírito caritativo dos portugueses – e dos ricos, sublinhe-se, que em certos dias distribuíam comida a centenas de esfarrapados, mulheres e crianças, e os viam da janela devorar tigelas de caldo e pedaços de toucinho como se animais esfaimados eles fossem.
À mendicidade infantil valeu Pina Manique com a criação da Casa Pia do Castelo. Mal sabia ele…
Acabei então a minha ginjinha e não me apeteceu outra.
Mas, para terminar, ainda o lixo e a mendicidade. Não era por falta de legislação camarária que nos séculos de antanho não se deitavam mãos ao problema. Havia legislação em barda. Mas dos regulamentos à capacidade de os executar no terreno vai sempre, em Portugal, grande distância – como ainda hoje bem sabemos. Deve ser factor constitutivo do espírito português.
 


 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentário:

  1. O que uma ginjinha vem lembrar...Episódios tão esquecidos e que, em alguns casos, nos definem como povo. Bravo, Joel!!

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