terça-feira, 23 de janeiro de 2018


                                   OS CARVOEIROS


 
Estás disposto a pegar numa carabina, revólver, punhal ou bomba e esperar onde quer que seja o tirano do povo para nele executares justiça sumária?
 
 
 
Desejo comunicar com a invisível Carbonária.
Entra, e não te assustes.
 
 
Primo Presidente, ser-me-á permitido falar com os homens que tudo sabem e que tudo vêem? Acompanha-me um amigo que deseja ser iniciado.   
E como pôde esse homem pensar em ser iniciado nos segredos da Carbonária?
Presidente, este homem é da minha confiança.
 
 
Vários tipos de fraseologia de iniciação na Carbonária. Mas os pormenores de encenação também são significativos, e simbólicos. A mesa da presidência forrada a negro; o triângulo invertido; as velas acesas; o machado. Assim dentro de casa. Podia ser ao ar livre, na floresta, na sombra de uma árvore, de onde pendiam os símbolos carbonários e maçónicos.
 
 
Dois tostões de jóia pagos ao proponente. Uma fotografia do neófito, junto com os dados biográficos. Olhos vendados. Uma sala às escuras. Cuidado, meus primos, que todas as precauções sejam tomadas. O cano de um revólver encostado ao ouvido do candidato. No cano de revólver que sentes no teu ouvido está a garantia de que nada poderás contra nós. Nunca penses em nos atraiçoar.
 
 
O candidato era algemado. O grilhão que te aperta os pulsos significa que é um escravo dos inimigos do povo todo aquele que não pertence à Carbonária. E o candidato era inquirido. Sobre o seu passado. Sobre as associações a que pertencia. Sobre a religião – a que não poderia responder afirmativamente sob pena de ser imediatamente expulso. Sobre o seu grau de instrução. Sobre as ideias que tinha a respeito da regeneração nacional. Ninguém te sugestiona para entrares nesta organização? Vens livre e espontaneamente, sem coacção?
 
 
Os deveres: proteger os sócios que precisassem de auxílio; obedecer às ordens dos corpos superiores; ter a força de guardar um segredo; informar a associação de tudo o que possa interessar; ser tanto ou mais dedicado à associação como à pessoa que mais estima. Conformas-te?
 
 
Quem presidia à sessão podia vestir um balandrau e pôr um capuz com orifícios na boca, nos olhos, no nariz e nas orelhas. Era assistido por bons primos, dois secretários, dois vogais, chamados pelos nomes de árvores, primo choupo, primo carvalho, primo olmo, havia um de vigia que tomava conta do local e avisava se algo nas redondezas acontecesse de suspeito.
 
 
Era proibido pertencer a qualquer outra organização política de tipo secreto, exceptuando, obviamente a maçonaria. Era proibido mencionar nomes de outros consócios, bem como as casas onde se reuniam ou os mistérios da iniciação. Era proibido transmitir as palavras de ordem. Nem aos próprios filiados era permitido referir o que se passava na organização, assim como era proibido dar-se a conhecer como carbonário até a outro membro da Carbonária.
 
 
Dedicação. Segredo. Obediência. Em que incorre o que não cumprir o perceituado? Será perseguido. E o que não obedecer? Será punido. E insistes em pertencer á organização? Pensa bem. Ainda estás a tempo de desistir. O candidato diz que sim. Tiram-lhe as algemas. Era-lhe recomendado que apagasse da memória a casa onde estava e o timbre das vozes que ouvira.
 
 
O que é que mais desejas? A consolidação da república. Qual o ideal que nos une? O ideal da Carbonária que está acima de todos os ideais. Qual é o ideal da Carbonária? O bem estar do povo. Onde trabalha a Carbonária? Em toda a parte. Que voz ressoa na floresta contra os traidores? A voz lúgubre da justiça. Porque a Carbonária está em toda a parte, faço votos para que nunca no teu espírito se acoite a ideia de nos atraiçoar. Faça-se luz. Em cima da mesa podia haver uma folha de papel atravessada por um punhal.
 
 
Podiam perguntar ao candidato se se sentia com força para verter o seu sangue pela república, ou em plena revolução, e se seria ou não capaz de recuar no caso de uma sentença de morte lhe ser incumbida, claro está que para bem da sociedade ou fazendo parte do castigo de um traidor. Está visto que o candidato já sabia ao que ia e dizia a tudo que sim, e jurava tudo, incluindo a sentença da sua própria morte, se por um desvario, uma desobediência ou uma traição a viesse a merecer.
 
 
Assim que, por este ritual, ao candidato fosse arrancada a venda dos olhos, o espectáculo para ele seria terrificante, pois sentiria encostados ao peito os bicos de vários punhais de duplo gume, apontadas para si várias pistolas e pendente sobre a cabeça um machado de lenhador. Se faltares ao teu juramento, serás morto sem remissão.
Rocha Martins opinou que o ritual podia ser grotesco, todavia muito necessário, como ele diz, como medida de precaução para ferir as imaginações.
 
 
Fala do mestre sublime Luz de Almeida, transcrita pelo Prof. António Ventura no seu livro A Carbonária em Portugal, a que devo boa parte deste texto: no lôbrego subterrâneo de uma loja de trapeiro, na Rua da Cruz dos Poiais, pertencente a um Bom Primo que era conhecido como o trapeiro de Paris, fizeram-se sensacionais iniciações de rachadores e de mestres. O candidato numa dessas iniciações era dono de uma carvoaria e fanático admirador dos panfletos de João Chagas. A iniciação foi rapidíssima e aquele Bom Primo e mestre viu-se obrigado a embarcar para a Califórnia e completar a sua choça com enfarruscados carvoeiros de verdade.
 
 
Pois algumas iniciações, como se viu, decorriam mesmo em carvoarias. Uma mesa enegrecida para o presidente. Montes de carvão pelos cantos. Uma lanterna pendente do tecto. Molhos de carqueja encostados às paredes. Um cepo nodoso com um machado enterrado. Nalguns destes casos não eram precisas máscaras nem balandraus. Bastavam as camisolas cobertas de pó de carvão, com o qual os circunstantes também enegreciam as caras ficando assim irreconhecíveis.
 
 
José Nunes, um dos nomes que mais ressaltam quando se fala de movimentos clandestinos da sazão ardente de 1907/1908, conta que dentro do cemitério dos Prazeres, um dos iniciados, torneiro no Arsenal da marinha, foi vendado e e em seguida precipitado na vala comum, ao mesmo tempo que lhe ordenavam que se desvendasse. E teve esta frase lapidar dirigindo-se aos cadáveres pelos quais trepou até ao nível do solo: ainda não é desta que vocês cá me apanham.
 
 
A um outro, conta ainda José Nunes, fizeram estar horas vendado e sentado à porta de um jazigo nos Prazeres. Como não ouvisse vivalma, aborrecido, desvendou-se, olhou em volta, e com um sangue frio admirável, sossegadamente, procurou a saída.
 
 
Machado Santos, o herói da república e um dos sumo-sacerdotes da Alta Venda carbonária – em 1921 vilmente assassinado na rua por esquadrões da morte -, deixou escrito o acto da sua própria iniciação.
Uma noite, Luz de Almeida conduz-me à Rua do Benformoso, depois de me obrigar a dar várias voltas, conseguindo eu perceber que pelo caminho trocava sinais com vários indivíduos estrategicamente postados.
 
 
Depois de me demorar uma meia hora numa casa de espera, conduz-me vendado, à sala onde se ia proceder á minha iniciação; e aí se consumou o acto, parece que a contento de todos os mascarados. Ia quase protestando à entrada, quando me chamaram pagão, não porque me sentisse em estado de graça para com a santa madre igreja católica, mas porque era tão irritante o tom da voz que estive quase para responder – pagão será você!
 
 
Feito o juramento, não se pense que os mestres e chefes aceitavam assim, sem mais nem ontem, o candidato. Teria de prestar provas várias. De dedicação,de coragem, de solidariedade e de segredo. Também não lhe confiavam os segredos mais relevantes. Era o qe faltava. Nem lhe era permitido assistir às sessões onde matéria mais delicada se tratasse.
 
 
Um certo juíz, já aqui anteriormente falado, o conhecido Veiga, chegara a dizer que só havia atentados  anarquistas em Lisboa quando João Franco estava no poder.
Porque foi com a chegada de João Franco ao poder, e sequente instauração da ditadura, que a Carbonária assumiu maior militância e se tornou uma força temível e extremamente activa de resistência, aumentando o número de iniciados por todo o país e fundando choças onde era possível. Numa choça de Évora chegou a estar planeado o rapto da família real quando estivesse em Vila Viçosa.
 
 
Mas também parece evidente que os acontecimentos revolucionários falhados, as explosões acidentais, as expectativas de revolução republicana e as prisões que foram consequência de tudo isto, alguma coisa enfraqueceram a Carbonária, pondo a polícia em estado de alerta máximo quanto a conspirações secretas. Em todo o caso, não foi, nem nada que se parecesse, suficiente para anular a operacionalidade da organização.
 
 
Nas contas da polícia, o número de carbonários activos em começos do sec XX andaria pelos 8 mil, 10 mil. Mas pelo testemunho de Luz de Almeida haveria pelos anos de 1907/1908 34.000 filiados, subindo aos 40.000 até ao limiar da república. Acho muito, mas enfim, catar documentos de uma sociedade secreta deve ser missão impossível para um historiador.
 
Fidalgos e burgueses, juntando-se ao povo, não pregavam sua liberdade económica. Iam, como José Relvas e Anselmo Braancamp Freire, guardando a integridade de suas fortunas pingues – prosa do celebrado Rocha Martins. As bombas iam-se fabricando em larga escala nos antros lisboetas da clandestinidade.
 
 
Na verdade, os anarquistas actuavam em ligação com alguns elementos monárquicos dissidentes, José de Alpoim entre eles, os quais também teriam alguma coisa a ver com republicanos mais radicais. E havia boa gente de dinheiro a financiar a fabricação e a aquisição das bombas e de outro material de guerra.
 
 
Se os maçons eram os pedreiros, ditos livres, os carbonários seriam os carvoeiros, certamente não menos livres. Viviam, pensavam e conspiravam associados, sendo embora os carvoeiros, como braço armado dos pedreiros, os mais secretos.
A ligação umbilical, pode dizer-se, entre Carbonária e Maçonaria, é fora de dúvidas. A Carbonária funcionaria como um braço executor, operacional, armado, dos superiores desígnios maçõnicos, com especial destaque para a Loja Montanha - nas palavras de Aquilino a milícia secreta da república.
 
 
A Carbonária teria a seu cargo os golpes duros, executados por militantes cujas actividades e nomes não soavam muito nos meios sociais e políticos. E acredita-se com facilidade nas fileiras carbonárias de homens com profissões liberais ou oficiais do exército e da marinha, mas o caso é que, associados às acções violentas e ao fabrico de explosivos, e por isso presos, segundo o livro do Prof. António Ventura, as profissões são banais, são humildes até, caldeireiros, ferro-velhos, carpinteiros, canalizadores, sapateiros, tanoeiros, droguistas, calceteiros, taberneiros, cortadores, um guarda-portão, um bordador…
 
 
E quanto a hierarquias militares, o mais que se encontra são sargentos. Raramente um oficial subalterno, e mais raramente ainda um oficial superior. Está bem que na Carbonaria fossem aceites homens de todas as classes sociais e profissões, mas para as acções arriscadas vê-se bem quem avançava.
 
Cada canteiro englobava cinco chamados rachadores. A choça compunha-se de quatro canteiros, e havia um mestre de choça. E cinco choças davam uma barraca; e cinco barracas constituíam ma venda, A Carbonária designada como Jovem Portugal tinha os graus de rachador, aspirante, mestre e mestre sublime. A Alta Venda, já se disse, era o estado-maior da Carbonária, composto por cinco mestres.
 
 
Os carbonários chamavam-se entre si de primos - irmãos eram os maçons. Só se conheciam entre si até ao número de cinco – mas os chefes conheciam todos. Tratavam-se por tu nas sessões. Trocavam sinais próprios e palavras de passe. Carbonário podia ser qualquer um, evidentemente que depois de proposto e iniciado. Havia um ramo militar que podia incluir de oficiais superiores a soldados rasos.
Organização secreta, iniciática, ritualista, naturalmente que primava pelas simbologias. Uma estrela de cinco pontas representava a figura de pé de um Bom Primo, pernas afastadas, braços abertos, cabeça erecta. O que significava: pronto para a luta contra as tiranias.
 
 
Claro que vem tudo do italiano, carbone, que é carvão; carbonaria que é carvoaria; e visto que foi em Itália que o movimento foi criado como maçonaria florestal.
Os primeiros lugares de reunião dos maçons florestais italianos era no meio dos bosques, nas choças dos carvoeiros – os que rachavam a lenha.
Outras simbologias revertem à tradição: as barracas, as vendas de carvão, o cepo, a lenha, a raíz, o ramo, a corda de nós,o carvão, o machado, o punhal, as cadeias de ferro, as estrelas, o sol.
 
 
         E muitos dos nomes que aparecem quando se fala de acontecimentos portugueses do final da monarquia só nos sugerem nomes de ruas de Lisboa, o almirante Reis, o Feio Terenas, o Brancaamp Freire, o Azedo Gneco, o Heliodoro Salgado.
 
 
Pois tomemos o Heliodoro Salgado. Foi um dos grandes ideólogos da Carbonária. Terá sido ele o criador da loja dos Obreiros do Futuro, por voltas de 1899. Heliodoro Salgado esteve sempre em contacto com os seus primos italianos, napolitanos, dos quais bebeu os ensinamentos organizativos, segundo os quais fundaria a sua loja. Os rituais eram copiados dos dos célebres revolucionários italianos Mazzini e Garibaldi.
 
 
Começara por não iniciar quem na sua biografia não denotasse rigorosos princípios anarquistas, só mais tarde aceitando todos os credos políticos, menos os monárquicos
 
 
Com disposições revolucionários mais objectivas, a Carbonária (agora chamada Carbonária Portuguesa, e síntese de outras organizações cabonárias pré-existentes) recebe novos alentos nos fins do sec. XIX,  por influência de Luz de Almeida.
Luz de Almeida, o grande animador da ideia carbonária era venerável da loja Montanha do Grande Oriente Lusitano Unido; era bibliotecário; era magro, baixo e pálido; era metido consigo e songamonga; vestia sempre de preto e usava uma lavalliére. Morreu em 1939.
 
 
Pelos anos de 1907/1908, a Carbonária vai ter um papel absolutamente decisivo no desenvolver da sazão ardente do fim da monarquia, até à chegada da república. Cãndido dos Reis (o almirante Reis da avenida), Machado Santos e António Maria da Silva virão a ser alguns dos seus chefes supremos.
No dia 6 de Agosto de 1907, ás 9 da manhã, no nº 17 da Rua de Sto. António à Estrela dá-se uma violenta explosão.
 
 
Fora um acidente. Os homens que fabricavam bombas teriam errado nalguma coisa e as bombas rebentaram-lhes nas mãos. Um estava maneta; outro estava com as tripas de fora; outro estava zarolho; outro ficava com o peito rebentado. Todavia, vivos. Em estado lastimoso, mas vivos. Um ainda fugiu e foi preso. O rei estava a águas. Atribuía o desastre aos anarquistas cujos atentados estavam então muito em moda na Europa.
 
 
Estreitamente implicada dos rebentamentos estava a Loja Obreiros do Futuro, onde a maioria dos congregados eram operários. Avisados da explosão,alguns primos dessa loja – os mais famosos a dar pelos nomes de António Alcochetano e Carlos Antunes – correram de madrugada à sede e fizeram desaparecer material explosivo que chegava para carregar 1.500 bombas. Mas não tardaria muito que pelas prisões feitas e pela fuga de alguns membros, a loja Obreiros do Futuro desaparecesse do mapa da insurreição lisboeta.
 
 
E foi com o restante pessoal clandestino dos Obreiros do Futuro que se congregou a chamada Carbonária Portuguesa, organizada por Luz de Almeida.
 
 
Mas o povo das províncias aclamava el-rei por onde quer que ele andasse. El-rei não dava mostras de temer pela vida, não obstante o exemplo que tinha na família: Umberto I de Itália, seu tio, morto num atentado sete anos antes. Os rebentamentos da Estrela eram considerados pelo rei obra de marginais e sem relevãncia para o curso da política.
Meu querido João, quanto aos anarquistas, não me admira que neste momento alguns apareçam, mas é para isso que cá estamos e por certo nem a ti nem a mim será o medo que nos fará mudar de caminho.  
 
 
E não mudaram mesmo de caminho. Ao entrar o ano de 1908, dá-se a frustrada revolução do 28 de Janeiro em que os principais cabecilhas são ridiculamente apanhados por um polícia de giro num elevador. Os Náufragos do Elevador, chamei-lhes eu.

 

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