terça-feira, 17 de março de 2020


 
 
                         EXISTENCIALISTAS 2
 
 
Os tempos passavam, paulatinos. Colocada em Paris, no Liceu Moliére, Beauvoir não tarda a deslumbrar outra aluna, de seu nome Bianca Bienenfeld, 16 aninhos, loira, bonita, delicada de modos, e depois fascinada com a história dos trios que Beauvoir lhe ia contando. Ao mesmo tempo que Sartre seduzia a tal irmã mais nova de Olga, Wanda, e se deixava seduzir por uma jovem actriz, Colette Gilbert, confessando-lhe que a ama, mas que não há lugar para ela na sua vida, onde já estavam Olga, Wanda, e Beauvoir, claro, Beauvoir primeiro que todas e que tudo. Os trios ampliavam-se, multiplicavam-se.


Quando Sartre se apaixona por Wanda, diz Beauvoir que no Flore as pessoas olhavam de lado para mim.



E a jovem Bianca acabará também por ir parar aos braços de Sartre. E Sartre declara-lhe o seu amor e quer saber se será possível ela vir a apaixonar-se por ele – histórias de cordel, não? Bom, possível era, que a jovem se apaixonasse por ele, o que ela não queria de maneira nenhuma era magoar mademoiselle de Beauvoir. Mas Sartre desvaloriza. Não, Castor não se importaria nada com isso.


E pronto. Era um novo trio fundado por Sartre às escondidas. Sartre passava a noite com Bianca e de manhã ia bater à porta de Beauvoir, no Hotel Mistral, a contar-lhe como tinha sido a noite. Mas também a jovem Bianca se abria com Beauvoir, admitindo que estava apaixonada por Sartre e que tinha medo de o perder. Beauvoir que falasse com ele. Depois de ela me dizer isto descemos para o meu quarto, onde nos envolvemos em carinhos ilícitos. Mas penso que, em última análise, não sou homossexual, uma vez que, sensualmente, não sinto quase nada.


Sartre está na tropa, longe de Paris. Beauvoir vê-se e deseja-se para estar com ele. Para ir ter com ele ao quartel passa estafadeiras entre camionetas e comboios. E num fim de semana da tropa, Sartre mostra-se preocupado. Por causa dessa coisa das mentiras, as mentiras que andava a impingir a Wanda. Parecia-lhe que a rapariga o amava a sério. Começava a questionar-se. E se fosse melhor ficar fiel a uma só pessoa? E é quando o jovem Bost salta da cama da Beauvoir e cai todo juntinho na cama de Olga.


Mas mesmo no meio da balbúrdia de corpos e camas, Sartre não deixava, de pensar, de escrever. E tanto assim que chegamos a 1938 e Sartre, passadas muitas tentativas e cunhas poderosos junto da editora Gallimard, lá consegue ver publicado o primeiro livro, um romance, o celebérrimo A Náusea.


E nem os seres de alta compleição intelectual têm meios de escapar à parvoíce e à toleima barata. Depois de saber que a Gallimard lhe vai publicar a obra – sim, vai, porém na condição de aceitar a sugestão do patrão, Gaston Gallimard, e mudar-lhe o título de Melancholia para A Náusea – sai-se com esta: hoje sim, posso caminhar pelas ruas como um autor. Alguém saberá melhor do que eu a diferença entre o andar na rua como um paisano vulgar e o andar na rua como um autor.


 No caso de Beauvoir, rejeitada pela Gallimard e logo em seguida pela Grasset, demorava a encontrar editora para o primeiro romance. Oiça, Castor, porque não se coloca a si própria na sua escrita? – pergunta-conselho de Sartre. Você é muito mais interessante do que essas olgas, wandas, biancas, lisas. Sobressalto de Beauvoir: cale-se lá homem!, o quê, lançar-me a mim própria num livro, não preservar as distâncias, comprometer-me? Só a ideia de se expor lhe punha os cabelos em pé, Ousar, ousar – recalcitrava Sartre. A minha maneira de sentir, de reagir, era tudo isso o que eu deveria exprimir num livro? Nunca! (Pois, desde então não fez outra coisa em toda a vida e obra.)


A relação de Sartre com Wanda era pública e notória, mas a paixão de Beauvoir e Bost era clandestina, enquanto as relações de Bost com Olga eram oficiais. Mas a relação de Sartre com Beauvoir, estranhamente, também era consumada um pouco às escondidas, porque Sartre não queria que que Wanda soubesse demais. E Sartre e Beauvoir lá continuavam a pagar todas as despesas daqueles trios, ou, sei lá, quartetos, quintetos, às escondidas ou às claras.


Acreditavam firmemente no socialismo, mas o individualismo (em que acreditavam ainda mais) refreava-lhes as posições progressistas, e assim se mantinham no papel de testemunhas silenciosas dos acontecimentos políticos. A guerra! Haveria guerra ou não haveria guerra?


Apoiavam platonicamente as manifestações operárias, as greves nas fábricas, porque eram justas, mesmo sabendo que essas manifestações e greves lesavam gravemente o outro apoio platónico que davam ao governo socialista de Léon Blum, o Front Populaire. Que viria pouco depois a cair por acção da extrema direita.


Numa viagem pela Alemanha ainda lhes custava convencerem-se da realidade, que o nazismo não era aquele fogo de vista político que os comunistas propagandeavam. E assistiram às paradas, viram os braços estendidos e os olhares fixos de um povo em transe.


Sartre já profetizara: se Hitler não fosse derrotado, a França teria a mesma sorte da Áustria (entretanto anexada por Hitler, como se sabe). Mas havia outras correntes de pensamento, a dizer que uma França em guerra seria bem pior do que uma França nazificada. E Sartre continuava a bradar, sem abandonar o seu individualismo burguês e filosófico, somos intelectuais, uma dominação nazi roubará todo o sentido às nossas vidas.


E profetizava mais: aquela seria uma guerra moderna, sem massacres; como a pintura moderna, sem personagens; como a música moderna, sem melodia; como a Física, sem matéria. Profecias erradas. Acontece aos melhores.


Por outro lado, Beauvoir ia dando nota das transformações (e conversões) que se estariam a produzir nela perante a ameaça nazi. 1939 era ano de rupturas pessoais. Renunciava ao individualismo – não percebo como uma pessoa pode renunciar a uma condição que lhe está, digamos, na massa do sangue. Mas Beauvoir, vá lá, dizia estar a aprender a solidariedade.


Mas também retrospectivava os últimos dez anos de vida e as transformações e conversões de 1929, a saída da casa dos pais, a independência económica, o fim das amizades da infância e adolescência e o começo das novas. E Sartre. E a felicidade assegurada por via do pacto com Sartre. E a ambição literária, vamos lá, ainda que baseada, segundo ela, numa vocação abstracta. Queria ser escritora, muito bem, mas iria escrever o quê? Admitia nunca se ter curado dos males do moralismo, do puritanismo, ou de um universalismo tão abstracto como a vocação literária. E era o sonho de felicidade pessoal que a cegava para as realidades políticas.


E por uma bela tarde de domingo, 3 de Setembro de 1939, a França segue a Inglaterra e declara guerra à Alemanha. Beauvoir estava no Café de Flore a escrever, e o primeiro pensamento dela foi para o jovem Bost, a grande paixão contingente do momento. Bost que estava no serviço militar e que lhe inspirava o pressentimento de que iria morrer na frente. De caminho, escreve-lhe: meu amor, se lhe acontecer algum mal nunca mais sentirei qualquer felicidade nesta vida.


Sartre já tinha acabado o tempo de tropa normal e estava na reserva. Mas, sendo um caso de guerra, também estava à bica para ser mobilizado e enviado para a Alsácia. E se Sartre morresse também? As probabilidades não eram muitas, Sartre não tinha uma especialidade de combate, era meteorologista, mas, mesmo assim, nunca se sabia. Se Sartre morresse, Beauvoir não tinha que pensar senão numa coisa: suicídio. E até achava reconfortante essa ideia suicidária. Ao ler a carta em que ela lhe revela essa intenção, Sartre responde que aquelas ideias de suicídio lhe transmitiam uma paz profunda. Não gostaria nada de a deixar para trás. Nunca senti tão intensamente que você e eu somos um. Ela replica: meu amor, você não é apenas uma coisa da minha vida, pois a minha vida já não me pertence, você é sempre eu.


Mas quando Sartre pensava em Wanda e imaginava a vida no pós-guerra sem ela era como se o mundo ficasse encolhido. Faltar-lhe-ia a dimensão vital.


Ora Wanda entrara para os cursos de teatro de Charles Dullin e andava a ser cortejada por um actor da companhia. Uma corte que não fazia sentido a Sartre. É óbvio que a vida dela sou eu, não pela ternura que lhe possa inspirar, mas pela necessidade intelectual e material que tem de mim. Isso mesmo, Sartre continuava a sustentá-la, como sustentava a irmã Olga, e talvez o jovem Bost, tudo a meias com Beauvoir. Nos tempos desgraçados de guerra e ocupação, sem o apoio financeiro deles, os amantes cairiam na miséria mais negra. E nas notas que tomava para uma próxima obra filosófica (que viria a intitular-se O Ser e o Nada – eu sou o Eu que os outros conhecem), Sartre escrevia que as relações humanas envolvem sempre conflito, e que o amor entre duas pessoas é necessariamente um conflito… cada uma quer que a outra o ame, mas sem levar em conta que amar é querer ser amado, e cá está a perpétua insatisfação do amante. O amor era uma batalha. Dois sujeitos livres a tentarem apoderar-se da liberdade um do outro, e ao mesmo tempo querendo libertar-se do domínio do outro. Nem mais. O Mal existe, e foi inventado pelos homens de bem.


Sinto o avanço alemão como uma ameaça pessoal. A minha única ideia é não ficar separada de Sartre, não ser caçada como um rato numa Paris ocupada.


Claro, vem mesmo a guerra, a derrota, a consequente ocupação E vem a vida tornada um inferno de sobrevivência e de subsistência.
Sartre é feito prisioneiro pelos alemães. Beauvoir tem pesadelos, sim, ele volta, volta mas já não me ama e eu encho-me de desespero.


E de facto, Sartre volta. Volta depois de uma libertação com as estranhas aventuras que mais parecem de uma evasão. Volta e toma uma consciência nova das coisas.


Paris era o enfrentamento da realidade da ocupação alemã, do recolher obrigatório, da penúria, da fome, do risco, dos atentados, da Gestapo, das perseguições, das torturas. E diz que não voltou a Paris para se gozar da liberdade, não, voltou para agir. E como os alemães têm que ser expulsos da França, organiza um minúsculo grupo de amigos como uma célula (privada) de resistência. Reúnem secretamente no quarto do hotel onde Beauvoir está hospedada.



Daí a uns tempos, Sartre vai à zona livre para contactar alguns notáveis possivelmente próximos da verdadeira resistência.


Malraux – que lhe responde que só os tanques russos e os aviões americanos podem ganhar a guerra e salvar a França, nunca os intelectuais pequeno-burgueses.


Gide – que muda de conversa quando Sartre lhe conta os planos da célula privada dele.


Vai falar com os comunistas – que desconfiam abertamente dele; passou o tempo de prisão a ler Heidegger, um nazi; se os alemães o libertaram alguma coisa ele com eles colaborou; e a mesma conversa dura dos intelectuais: do que a resistência menos precisava era de intelectuais pequeno-burgueses. E assim a micro-célula de Sartre se dissolve.
Não era que o epíteto de intelectual pequeno-burguês o incomodasse particularmente, mas tal classificação não era bastante para lhe definir as posições pessoais e a atitude cívica.


Até aí, tinham vivido na militância existencialista, a liberdade individual e sexual acima de tudo, finalidade suprema de vida. Ilusões classistas, já se sabe. Filhos de uma burguesia de privilégio, podiam entregar-se a luxos intelectuais, um deles esse mesmo: o primado absoluto da liberdade individual. E já nos idos anos 30 se tinham perguntado se seria justo contentarem-se intelectualmente com as simpatias que sentiam pelas classes operárias, eles, burgueses bem instalados na vida. Sartre ainda nessa altura pensou em aderir ao Partido Comunista, mas… as ideias dele, o projecto de vida dele, o próprio temperamento dele, recusaram tal hipótese. Dois intelectuais pequeno-burgueses invocando a sua obra, o seu futuro, para evitar o compromisso político: era essa a nossa realidade – lúcido reconhecimento de Beauvoir.
Começavam agora a sentir a História carregar-lhes sobre a consciência, a realidade pungente dos mortos, dos estropiados, dos torturados, dos refugiados, da ocupação pelo inimigo da cidade onde tinham nascido. A História.


Está bem, mas já em pleno tempo de ocupação nazi, Beauvoir, apesar de escrever a Sartre que o sexo com jovens bonitas era só um pobre substituto do artigo genuíno, entusiasmara-se com outra aluna, Nathalie Sorokine, também esta de pais russos. Alta, loira, corpo musculado, arrapazada, ladra de bicicletas. Não há nada a fazer, ela quer dormir comigo. Nas cartas para o jovem Bost minimizava Beauvoir o interesse por aventuras lésbicas. Era estranho ser amada por tantas jovens, mas certamente que não era a ela que amavam, era o reflexo do próprio futuro delas que ela representava.


Da fama de abusadora de raparigas à denúncia não se livrou Beauvoir. Em Março de 42, a mãe da nova conquista, a Sorokine, entra no Ministério da Educação de Vichy com uma queixa contra ela. Mademoiselle de Beauvoir andava a corromper-lhe a filha menor. Ou mais: Mademoiselle de Beauvoir seduzira a filha e a seguir, em acção proxeneta, passara-a para as camas dos seus amigos Sartre e Bost.


Foi-se a ver e a mãe da jovem sabia quase tudo dos trios e dos quartetos e das rebaldarias do casal Sartre/Beauvoir. Um ex-namorado da filha tinha-lhe contado tudo. E o caso meteu polícia. E meteu interrogatórios a todos os envolvidos, e até ao pessoal e aos residentes dos hotéis, e aos reitores dos liceus onde Beauvoir leccionara. Os do núcleo dos trios, olha que meninos, mestres da mentira, combinaram cuidadosamente as estratégias, e, claro, negaram tudo. Pois, mas era tudo verdade.


Muito mais tarde, testemunhas abalizadas (Bianca e Nelson Algren, o amor americano de Beauvoir) confessariam que era isso mesmo, que Beauvoir actuava como atravessadora, seduzindo as amiguinhas e atirando-as para os braços de Sartre, que, coitado, feio como uma noite de trovões bem precisava dessa ajuda. E devia essa ajuda a uma cláusula secreta do pacto de 1929.


O reitor da Universidade de Paris considerou inadmissível manter Beauvoir nos corpos docentes. A França queria restaurar valores morais e mademoiselle de Beauvoir vivia há anos em relações de concubinato, não tinha casa, vivia em hotéis de má nota, corrigia os trabalhos dos alunos na mesa dos cafés e ensinava a obra de autores homossexuais, Proust e Gide. Em Junho de 43, o governo de Vichy expulsa Beauvoir do ensino – o que lhe acrescentou prestígio, diga-se, nos meios da esquerda. Viria a ser reintegrada depois da libertação, mas sem nunca ter voltado a dar aulas.


Tenho 32 anos, sinto-me uma mulher feita, mas gostava de saber que mulher. Sou mulher, sim, mas em que sentido eu posso não o ser?
Sartre alinhava novas profecias para o que viria a ser aquela guerra, mas já pensava no pós-guerra. Não poderia mais esquivar-se à participação política. Um homem tinha de assumir aquilo a que chamava de “uma situação”, e assumir uma situação era passar à acção. Ia construindo uma filosofia. O Ser e o Nada. Desejar o Absoluto e sofrer da ausência dele no desolado caminho da inutilidade do Ser e do Nada. Qual a relação entre situação e liberdade?
A jovem Olga, que, como já se disse, não tinha préstimo para grande coisa na vida, frequentava também os cursos do Théatre de L’Atelier e fez uma pontinha numa peça dirigida pelo então jovem prometedor Jean Louis Barrault.


Barrault não desgostou dela e ela perguntou-lhe como poderia vir a fazer papéis mais importantes. O melhor, na opinião de Barrault, ainda seria arranjar alguém que escrevesse uma peça para ela. Olga conta o caso a Sartre e está feito, Sartre não perde tempo: e porque não eu a escrever essa peça para si?


É verdade que já não tinham nada um com o outro, mas o que começara por um trio já era uma família, e Olga fazia parte da família. E é assim que nasce a primeira peça teatral de Sartre, As Moscas, uma inspiração bebida na tragédia dos Átridas, o regresso de Orestes para matar os assassinos do pai – quer dizer, a própria mãe e o amante dela -, e com evidentes alusões à situação política que se vivia.


O doloroso segredo dos deuses e dos reis é que os homens são livres, tu sabe-lo, Egisto, eles é que não. Se o soubessem deitariam fogo ao meu palácio. Represento esta comédia para lhes esconder o seu próprio poder.


Barrault era para montar a peça, mas entendeu que Olga não tinha cabedal técnico-artístico para o papel de Electra e barafustou contra Sartre, alegando – com razão - que o que ele pretendia era promover uma amante. Sartre não cedeu, pôs os pés à parede, queria Olga no papel e acabou-se.


E Barrault abandona o projecto, e a peça vem a ser dirigida por Charles Dullin, grande nome do teatro francês da época. E a estreia dá-se em Junho de 43, com uma certa Olga Dominique no principal papel feminino.


Teve pouco público, mas foi um acontecimento teatral histórico. Críticas mitigadas. Crítica que, aliás, fingiu não ter percebido o panfleto político dissimulado no texto. A palavra liberdade na boca de Orestes explodiu sobre nós como uma bomba – escreveu Beauvoir na noite da estreia. Sou livre, Electra, a liberdade abateu-se sobre mim como um raio.


Nesse verão de 43, Sartre publica o ensaio O Ser e o Nada – dedicado a Castor. Ser é tomar consciência de ser olhado. É o olhar do outro que me conduz a mim mesmo. E em Agosto sai enfim o primeiro romance de Beauvoir, A Convidada – e a despeito das muitas reservas da editora Gallimard. Um romance que de tão autobiográfico lança a público as primeiras luzes sobre as reais relações Sartre/Beauvoir. A teoria que Beauvoir formula, depois de publicado aquele primeiro livro, dizia que o indivíduo não se podia conhecer a si mesmo, só se podia contar.


 E a Wanda, a tal irmã de Olga, e então amante principal de Sartre, também lhe dá para o teatro, também frequenta os cursos do Atelier, e também já fizera um pequeno papel.


Daí que Sartre se sentisse tentado a escrever também uma peça para ela, uma coisa breve, um cenário único, um acto único, duas ou três personagens, uma situação de beco sem saída, ou, como no título original, um Huis Clos.


Ou seja, um inferno – o inferno são os outros: sentença final da peça. Que é uma obra-prima. Que é um sucesso. O maior de Sartre até então. Wanda integra o elenco sob o nome de Marie Olivier.


Numa tarde de princípios desse ano de 43, no Flore, um sujeito que quer editar uma obra sobre as tendências ideológicas do momento, vira-se para Beauvoir e pergunta: e você, é existencialista?
Muitos anos passados, ao contar a peripécia, Beauvoir ainda se lembrava do embaraço dela. Sim, quer dizer, isto é, pois claro… lera Kirkegaard. Sim, sabia que quando se falava de Heidegger, além da palavra fenomenologia, vinha associada a palavra existencialismo, sim, sabia disso. Mas também reconhecia que naquele momento de 1943 ignorava o sentido dessa palavra existencialismo, uma palavra, sim, sabia, acabada de lançar no mundo intelectual francês pelo católico Gabriel Marcel. Também sabia das suas (dela) limitações filosóficas e não se atribuía importância suficiente para ostentar uma etiqueta filosófica.


E agora, a grande sensação. As vidas estavam num tempo de crises demasiadas e, para ajudar à triste festa da vida sob a ocupação, Sartre declara unilateralmente o fim da relação sexual com Beauvoir. A minha relação com Wanda é perfeita, declarou. Wanda a quem a Beauvoir tinha um pó dos diabos, como também o tivera à irmã, a Olga, quando a disputara com Sartre. E filosofava, a Beauvoir: é evidente que nos homens o hábito mata o desejo. Mas estava com 33 anos e custava-lhe engolir que o homem que mais amava não a desejasse. Mais tarde viria a concordar que nos últimos anos, antes da guerra, as relações deles já eram mais de amizade profunda do que de amor.


Até podia aceitar que Sartre fora para ela um substituto do pai – e que Olga lhe funcionara como sucedâneo de uma filha. A dialéctica que corre da infância à idade adulta transforma as relações afectivas, conserva-as e ultrapassa-as. A minha ligação com Sartre reverte à minha infância, mas também ao que ele próprio era. Para me interessar por Olga seria preciso haver em mim uma disponibilidade, um desejo de me dedicar a alguém, mas foi a personalidade de Olga que determinou a singularidade da nossa relação.


Beauvoir viria a assassinar Olga. Calma. A assassinar literariamente. Assassinar a personagem ficcionada para aplacar os rancores, as irritações que a pessoa real lhe causara, e que era bem assinalável enquanto personagem romanesca. E isso foi logo no romance de estreia, A Convidada, que não era muito mais do que o conto das inter-relações daquele trio. O assassínio da personagem inspirada na pessoa real de Olga foi uma libertação. A passagem do meu coração às palavras (como Sartre lhe havia aconselhado), por momentos, pareceu-me um obstáculo intransponível. A ligação maníaca de dois adultos a uma criança de 19 anos não era explicável senão pela efabulação. Lá estava: o indivíduo não se podia conhecer a si mesmo, só se podia contar.


E vamos do individualismo militante ao compromisso político. Era o que a situação histórica exigia. E tal como nós, Camus passara do individualismo ao compromisso. Sabíamos que ele já tinha responsabilidades no movimento Combat. E acolheu com naturalidade o sucesso literário, a notoriedade, parecia não se tomar muito a sério.


Camus era um tipo engraçado, contador de histórias em linguagem picante, em luta contra a tuberculose, um homem que atraía as mulheres. Atraiu Wanda. E atraiu Beauvoir. Talvez ele e Beauvoir tenham passado os seus bons bocados. A palavra dela a esse respeito é ambígua até mais não. Jantámos Chez Lipp e levámos uma garrafa de champanhe para o quarto do Hotel Louisianne
.

Ocorre dizer que a notoriedade literária também viria a ser festivamente acolhida por Beauvoir. Entrava verdadeiramente no mundo intelectual, as novas amizades, e todas importantes, eram uma festa para ela, que se sentia no huis clos daquele mundo acanhado dos trios, das manigâncias sexuais, das mentiras, as amantes tornadas amigas e as amigas tornadas amantes.


A notoriedade literária proporcionava-lhe a qualidade de vida, e a qualidade de visita de casa e de festas de gente de renome, Picasso, Salacrou, Cocteau, George Bataille, Michel Leiris, Lacan. Foi então que começou a vestir bem.


E é nessa altura que ela e Sartre descobrem os talentos poéticos de um fulano acabado de sair da prisão por roubos e outras malfeitorias de delito comum, um fulano chamado Jean Genet.


Queria que no meu livro entrasse o mundo inteiro, embora não tivesse nada de preciso a dizer, a não ser uma revolta individualista contra uma sociedade corrompida.


Depois, ouviu-se dizer que a bandeira tricolor já tremulava na Torre Eiffel, que o general De Gaulle já tinha chegado a Paris e se preparava para desfilar nos Campos Elísios.


Foi por uma sexta-feira de Agosto de 1944.   
          
                                CONTINUA


2 comentários:

  1. Que esta malvada pandemia não o impeça de nos continuar a presentear com estes textos e imagens fabulosos...Obrigada, Joel.

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  2. Saúdo o seu regresso, caro Joel Costa!! Obrigado!!

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