A JUSTA LUTA DO PATRONATO POR
MELHORES
CONDIÇÕES DE VIDA
(1)
Sempre muito se falou na justa
luta dos desgraçados, dos operários, dos camponeses, dos empregados, dos
proletários, em suma. Ninguém fala, nem dá vivas, à luta insana e secular do patronato
contra os trabalhadores. Porque o
patronato, depois de séculos e séculos de luta sem quartel , ainda não se
conseguiu ver livre dos trabalhadores.
- Portanto, o senhor paga o
queijo…
- Pago o queijo? Mas qual queijo?
Eu não comi queijo.
- Se não comeu foi porque não
quis, o queijo estava na mesa.
- Mas então eu vou ter que pagar
um queijo que não comi?
- Se não comeu foi porque não
quis, o queijo estava na mesa, portanto tem que o pagar.
E o mundo está mais ou menos
assim… assim, como esta história de queijo…
A fabulosa queda do muro de
Berlim, tão entusiasticamente saudada pelo mundo e pela juventude - diria mais, pelos trabalhadores, os tais
proletários de todo o mundo que pouco se chegaram a unir - foi o primeiro passo moral dado na cavalgada
do patronato para o o poder e a
discricionaridade totais.
A queda do Muro queria também
dizer que estavam por terra todas as ilusões. A queda do Muro foi o desencanto
global quanto ao socialismo como sistema de vida mais justo. E esse sistema salvífico –mas que afinal
parece que proporcionava um salvação falsificada - compreendia a estatização da economia, a
centralização, a planificação que ordenava que os bens produzidos pela
colectividade eram propriedade da totalidade dos cidadãos, que os bens, muitos
ou poucos que houvesse, eram para distribuir por todos conforme as suas
necessidades. E foram aos milhões os que acreditaram e deram a vida para que
esta esperança nobre e grandiosa sorrisse aos homens.
A queda do Muro autenticou, a
impossiblidade de uma utopia. Ninguém queria mais aqueles princípios.
Alguém pode ter dito que
distribuindo tudo por todos, ficavam
todos pobres na mesma.
A partir da queda do Muro tudo passava a ser permitido. E foi. E está a ser. E que cada um se salvasse como pudesse.
E pensar que
houve um tempo em que muitos de nós
acreditavam que o socialismo era um sistema viável e vantajoso que poderia
assegurar o bem estar material e até, pasme-se, a liberdade.
Quem acredita
hoje nisso?
Mas também
houve no passado tempos em que muita gente acreditava que o capitalismo privado
e a economia de mercado eram sistemas imperfeitos de vida colectiva, económica;
um sistema, além do mais, humana e socialmente injusto que não garantia o bem
estar geral e empanava as liberdades.
E hoje? Quem acredita também nesta?
Hoje
dificilmente se arranja quem não ache o capitalismo privado e a economia de mercado
o sistema único e o único eficiente para assegurar essas duas premissas
básicas, o bem estar colectivo e a liberdade. Foi isto que pensou uma das
cabeças mais importantes da economia contemporânea, Milton Friedman.
Foi o mercado a fé que veio ocupar
o sentimento e a moral das massas que se confrontaram com a queda em fanicos do
seu ideal de toda a vida. Afinal, o que era bom era o contrário de tudo aquilo
em que haviam acreditado uma vida inteira.
O que era preciso eram reformas.
Não revoluções.
O Consenso de Washington. Os
países pobres poderiam tornar-se ricos. Como?
Disciplina fiscal. Taxas de câmbio
competitivas. Liberalização dos comércios. Investimento – se possível
estrangeiro. Privatizações. Desregulamentações. Ai daquele que duvidasse da eficácia da
mézinha e pensasse em resistir a estas ordenações superiores e abstractas.
Em Washington
chega-se a um consenso para uma nova moral orçamental – ou seja, uma disciplina
férrea nas contas estatais, ou seja, uma redução rigorosa das despesas públicas;
ou seja, a liberalização absoluta das trocas comerciais, das regras dos
mercados financeiros e da passagem das instituições criadas para servir o bem
geral e público para as mãos de particulares; ou seja, uma reforma da
fiscalidade. A nova ordem económico-financeira, vai, em termos filosóficos,
criar um pensamento universal único.
O Consenso de Washington marcou as
fronteiras: uma coisa é a economia do desenvolvimento; outra coisa é a economia
ortodoxa.
Naquele dia 15 de Agosto de 1971 muita coisa vai começar
no mundo e na vida das nações e dos homens, muitas transformações. Richard
Nixon, então na presidência, proclama urbi
et orbi que os EUA acabam de
suspender a convertibilidade do dólar em ouro.
É o fim de um
sistema de vida monetária que começara no imediato pós-guerra. O capitalismo
vai ser outro. Vai reformular-se a liberdade de manobra monetária, vai
desregulamentar-se o mundo financeiro, a liberalização vai, enfim, alastrar,
invadir as nações, as casas e as famílias.
Ajustamento estrutural!, gritou
Washington aos países em vias de desenvolvimento. Toca a desmantelar as
estruturas proteccionistas da economia – sobretudo as economias fortemente
endividadas. Toca a reduzir os défices orçamentais e comerciais. É preciso
saber, e depressinha, que empresas privatizar.
As reformas liberais, dizem, resultaram nalguns países e foram positivas e
estabilizaram os preços e deram algum crescimento às economias. Os hospitais de
alguns desses países é que começavam a sentir a falta de medicamentos. E as
bolsas, primeiro eufóricas, também se começaram a tornar perigosas.
A década de 90 foi uma época de
crises económicas e financeiras. Já ninguém se lembra? Crises e retomas. Valorizações e
desvalorizações. Nomeadamente entre 1994 e 1999. Crises que atravessaram
fronteiras nacionais. Crises que perturbaram
os sistemas financeiros de alguns países, causaram falências, anularam
os ganhos económicos anteriores feitos à custa de duras reformas e a provocar
conflitos sociais.
À entrada do milénio já se ouviam vozes preocupadas com a viabilidade das
democracias nos países que se sujeitaram às reformas liberais. Irónico, não?
Fundo Monetário
Internacional e Banco Mundial serão os novos tribunais de um universo
financeiro sem leis. Através deles, o modelo liberal de vida económica vai ser
imposto à Ásia, à América Latina. E à Europa. Se não for a bem vai a mal. Se o
capital investe milhões nessas regiões do mundo, resulta justo e moral que as
queira configurar aos seus interesses. E mais do que isso, à sua maneira de
viver a vida e apreciar as coisas.
A missão
principal do FMI passa a ser a da abertura dos mercados nacionais, na escala do
planeta, ao investimento e à apropriação dos bens humanos e naturais por parte
dos países mais ricos, sem a mínima restrição à circulação das mercadorias, dos
serviços e dos fundos. É a mundialização liberal.
O repertório de
ajustamentos estruturais do FMI, receita de equilíbrio das contas dos estados
mais depauperados, não é muito variado. Consta no essencial de: desvalorização
da moeda nacional, se a houver; restrições severas nos orçamentos de Estado;
despedimentos maciços; subida das taxas de juro; controle apertado dos
salários; crédito restrito; corte de subsídios; aumento de tarifas nos bens de
interesse e necessidade geral, água, electricidade, transportes; reforço de
exportações; privatização de empresas públicas. O velho e conservador
liberalismo, herança de um velho mundo com velhas regras e antiquíssima moral,
vai passar a chamar-se neo-liberalismo. Vai ser agressivo. Vai varrer tudo à
sua frente. Até os fossilizados mundos e as inteligentes e salvíficas
ideologias que ficam do outro lado da Cortina de Ferro.
O
neo-liberalismo vai ser tão militante que até lhe vão poder chamar
neo-totalitarismo de fôlego global.
O primeiro
valor moral, até então indiscutível, a caír ferido de morte é a capacidade de
intervenção económica do Estado. E depois, a desregulamentação da economia
mundial. E por consequência, a progressiva aniquilação da influência dos
sindicatos – que só fazem sentido com uma economia e com uma relação de
trabalho assente em claras regras de convivência com o capital, claro está. Mas
se o capital abandona as regras, fatalmente que o trabalho se desmoraliza. Ou
se amoraliza. O que conta é o dinheiro, a capacidade económica. Os sindicatos
eram uma reserva moral de compensação de forças antagónicas. Mas quando
unilateralmente uma dessas forças deita fora as suas regras de convivência, a
outra esbraceja no escuro da selva. E perde-se.
Estado? Mas
qual estado! A ordem será doravante o privado, a privatização. Tudo deve ter um
proprietário. Todo o homem precisa de um patrão objectivo e concreto para cujo
interesse está condenado a trabalhar, que é como quem diz que todo o escravo
não o é se não tiver um dono.
O destino da
instituição Estado é ser um Estado mínimo, uma regressão ao minimal. E esta
regressão ao minimal limita-lhe a acção ao mínimo, é evidente.
Os estados
perderam toda a força de se oporem aos mercados, ao mercado. Perderam a vontade
de o fazer, antes de mais. E também deram de mão aos meios para tal.
Limitaram-se a consagrar as directivas de política económica – e da outra,
claro está, por consequência – que lhes são ditadas pelos organismos económicos
à escala mundial.
Por isso os
políticos favoreceram nas últimas décadas a liberdade de circulação de
capitais, a voga das privatizações e a transferência de centros de decisão –
mesmo no tocante à saúde pública, à educação, ao ambiente e à cultura – da
esfera governamental e do interesse do público nacional em geral para as mãos
do capital privado e internacionalizado.
São os
dirigentes das empresas privadas e de raio de acção mundial que comandam a
economia das democracias através da imposição das medidas políticas convenientes.
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